O DISCURSO CONSTRUCIONISTA SOCIAL NA PRÁTICA CLÍNICA DE TERAPEUTAS FAMILIARES1
SOCIAL CONSTRUCTIONIST DISCOURSE IN THE CLINICAL PRACTICE OF FAMILY THERAPISTS
EL DISCURSO CONSTRUCCIONISTA SOCIAL EN LA PRÁCTICA CLÍNICA DE TERAPEUTAS FAMILIARES
O DISCURSO CONSTRUCIONISTA SOCIAL NA PRÁTICA CLÍNICA DE TERAPEUTAS FAMILIARES1
Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 2, pp. 267-278, 2016
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 28 Julho 2015
Aprovação: 22 Junho 2016
Resumo: O campo da terapia familiar (TF) é composto por diferentes propostas teóricas e epistemológicas. Recentemente, o construcionismo social tem contribuído para a configuração de novas práticas em TF, levando a uma maior ênfase nos processos de comunicação no contexto terapêutico. O objetivo deste estudo é investigar a difusão do construcionismo entre terapeutas familiares brasileiros. Participaram 14 terapeutas, homens e mulheres, psicólogos, que realizam atendimentos de famílias e são professores em cursos de formação em TF. Realizamos entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas em áudio e transcritas literalmente. A partir das propostas construcionistas para a pesquisa científica, realizamos análise temática das informações. Nas cinco temáticas construídas, discutimos como os participantes descrevem o construcionismo e as implicações advindas em sua prática clínica. Concluímos que a difusão deste está atrelada à atribuição de utilidade aos conceitos teóricos, constituindo-se em porta de entrada para reflexões acerca da atuação clínica e cujas contribuições agregam novos elementos ao posicionamento do terapeuta.
Palavras-chave: Terapia familiar, construcionismo social, psicologia clínica, terapeutas.
Abstract: The field of family therapy (FT) consists of different theoretical and epistemological proposals. More recently, social constructionism has contributed for the creation of new practices in FT, leading to an emphasis on the communication processes in the therapeutic context. This study aims to comprehend dissemination forms of social constructionist discourse among Brazilian family therapists. We interviewed 14 family therapists, men and women, psychologists, who work with family counseling, and are responsible for teaching social constructionism in FT training institutes. All the interviews were recorded and literally transcribed. A thematic analysis was carried out based on social constructionism contributions for research practice. Throughout these themes, we discuss the part icipants’ definitions of social constructionism and its implications for their positioning in daily practice. We conclude that the dissemination of social constructionist discourse is related to the utility that family therapists attach to these theoretica l contributions, turning them into resources for their positioning as family therapists.
Keywords: Family therapy, social constructionism, clinical psychology, therapists.
Resumen: El campo de la terapia familiar (TF) es constituido por diferentes propuestas teóricas y epistemológicas. Recientemente, el construccionismo social ha contribuido a la configuración de nuevas prácticas en TF, lo que lleva a un mayor énfasis en los procesos de comunicación en el contexto terapéutico. El objetivo del estudio es investigar la difusión del construccionismo entre terapeutas familiares brasileños. Participaron del estudio catorce terapeutas, hombres y mujeres, psicólogos, que realizan atendimientos familiares y son profesores en cursos de formación en TF. Se realizó entrevistas semiestructuradas, que fueron grabadas en audio y transcritas literalmente. Desde las propuestas construccionistas para la investigación científica, realizamos análisis temático de las informaciones. En los cinco temas creados, discutimos como los participantes describen el construccionismo y las implicaciones desde su práctica clínica. Se concluye que la difusión del construccionismo está vinculada a la distribución de utilidad a los conceptos teóricos, constituyéndose en puerta de entrada para reflexiones acerca de la actuación clínica y cuyas contribuciones abarcan nuevos elementos al posicionamiento del terapeuta.
Palabras clave: Terapia familiar, construccionismo social, psicología clínica, terapeutas.
Este estudo está inserido no campo de conhecimento da terapia familiar (TF). Nosso objetivo foi investigar a difusão do discurso construcionista social entre um grupo de terapeutas familiares brasileiros, focando em como este se constitui em um aporte útil para a prática clínica. O movimento construcionista social tem influenciado diferentes campos de atuação profissional e inspirado novas possibilidades de práticas, tornando-se relevante compreender como os profissionais atribuem sentidos ao intercâmbio existente entre a produção científica e as novas práticas emergentes.
O campo da TF pode ser considerado interdisciplinar, uma vez que as diferentes abordagens que o compõem surgiram sem um sistema de crenças compartilhado, resultando em múltiplos modelos teóricos e conceituais (Rhodes, 2012). As primeiras propostas no campo da TF consolidaram-se a partir da década de 1950, época em que grupos de estudiosos nos Estados Unidos e na Europa passaram a se dedicar à ampliação do foco individual dominante nas práticas psicoterapêuticas e na saúde mental. Nesse período, estudos realizados nos campos das ciências exatas e naturais deram forma a teorias que superavam a fragmentação da ciência ao explorar fronteiras disciplinares. Tais contribuições buscavam deslocar o foco dos elementos de qualquer complexo a ser estudado para a relação entre eles (Costa, 2010). No âmbito da terapia, discursos acerca da família passaram a considerá-la um sistema em que os membros interagem entre si de forma recíproca e interdependente, e as práticas decorrentes desses entendimentos voltaram-se para a totalidade da dinâmica familiar e para os padrões de interação e comunicação entre os membros (Costa, 2010; Féres-Carneiro, 1996; Macedo, 1994; Rapizo, 2002).
Entre as décadas de 1970 e 1980, o desenvolvimento do campo acompanhou discussões do âmbito científico mais amplo, relacionadas a questionamentos acerca da objetividade e da neutralidade do pesquisador ao realizar seus estudos e observações. A partir dessas contribuições, os terapeutas familiares passaram a considerar a si mesmos elementos cruciais nas descrições que fazem a respeito das pessoas e famílias (Flaskas, 2011).
A partir da década de 1980, o campo da TF foi influenciado por propostas que enfatizavam o papel da linguagem e os processos de construção social da realidade. A centralidade que a conversação adquiriu nas abordagens de TF deu forma ao que alguns autores têm nomeado como terapias ou práticas pós-modernas (Strong, 2002). A inclusão dessas novas formas de compreensão possibilitou que as propostas construcionistas sociais passassem a ser úteis para se entender e atuar na prática da TF (Flaskas, 2010, 2011).
O construcionismo social é um movimento no âmbito científico que provocou transformações em conceitos fundantes das práticas e teorias nas ciências sociais em geral e na psicologia em particular (Gergen, 1985). Sua premissa central afirma que todo conhecimento possui uma raiz histórica e cultural, voltando o foco das investigações para as práticas sociais e relações entre as pessoas (Dickerson, 2010; Gergen, 1985). Ao colocar em dúvida as concepções do mundo dadas como certas, o construccionismo está inserido no contexto da racionalidade pós-moderna, que tem como foco central questionar as narrativas dominantes em diferentes âmbitos da prática de pesquisa e da vida social (Moscheta, 2014).
Em consonância com as propostas pós-modernas, o construcionismo coloca-se criticamente em relação à visão representacional da linguagem. As propostas construcionistas tomam a linguagem a partir de seu caráter performático e constitutivo, entendendo que as formas de linguagem ganham seus sentidos a partir da maneira como são utilizadas nas relações, e não em sua correspondência com o que representam, como estabelece a visão representacional (Strong, 2002). Assim, aquilo que as pessoas assumem como a realidade para si emerge a partir da inserção em contextos sociais, históricos e culturais que circunscrevem a produção de sentidos sobre o mundo. Tais sentidos, por sua vez, estão sempre abertos a transformações à medida que mudam os contextos relacionais e sociais em que as pessoas vivem (Gergen, 1997).
Segundo Flaskas (2011), o movimento construcionista é uma influência predominante nas perspectivas contemporâneas da TF. A partir da década de 1990, os desenvolvimentos práticos e teóricos substituíram as metáforas dos sistemas pelo interesse na linguagem e nos processos de conversação que estruturam os encontros terapêuticos (Anderson & Goolishian, 1988). O construcionismo mudou a compreensão do processo terapêutico corrente nessa época porque desafiou a ideia do terapeuta-cientista, cuja neutralidade e objetividade conferem legitimidade às suas ações (Dickerson, 2010; Strong, 2002).
Sob a influência do construcionismo social, a relação terapêutica caracteriza-se por ser colaborativa e marcada pela exploração dos discursos que os clientes trazem ao contarem suas histórias (Anderson, 2012; Dickerson, 2010). Neste processo de construção conjunta de significados, o terapeuta também está aberto para transformar a si mesmo, buscando estar atento e responsivo às contribuições oferecidas à conversa (Strong, 2002).
Os problemas são entendidos como ligados às práticas discursivas dominantes no contexto social, que definem parâmetros do que é considerado normal e patológico. Nesse sentido, os processos de mudança são facilitados pela construção de conversas sobre potencialidades e preferências, e a ação do terapeuta não objetiva um resultado específico, uma vez que não podemos saber de antemão as possibilidades que surgirão na relação terapêutica (Dickerson, 2010).
Sendo o movimento construcionista engajado em atuar como uma espécie de “crítica social” (Gergen, 1985, p. 301), ao questionar discursos, práticas e posturas dadas como certas nas relações interpessoais, alguns autores enfatizam sua influência no entendimento da prática clínica como uma forma de ativismo social e político (Gergen & Warhuus, 2001). Assim, sentidos criados na terapia são vistos como éticos e políticos em suas consequências. Essa sensibilidade traduz a crítica construcionista às propostas terapêuticas que clamam ser neutras e isentas de comprometimentos sociais e ideológicos.
É importante pontuar que as contribuições do discurso construcionista não delineiam uma “abordagem construcionista social” em terapia. Diferentemente, elas oferecem recursos para o campo terapêutico, os quais enfatizam práticas críticas e reflexivas que focam em aspectos discursivos e relacionais (Guanaes, 2006).
A partir do exposto, vimos que o percurso histórico que originou a TF é entrecortado por múltiplas abordagens, escolas, teóricos e profissionais, o que a torna um campo rico no qual coexiste a multiplicidade. Nesse contexto, apresentamos um estudo que objetivou investigar a difusão do discurso construcionista entre terapeutas familiares, focando em como este se constitui em um aporte útil para sua prática clínica.
Método
O delineamento e a realização da pesquisa cumpriram as disposições da resolução 196/96 (Resolução n. 196, 1996) sobre pesquisas envolvendo seres humanos, em vigor no momento da realização do estudo, e foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa antes de seu início.
Delineamento teórico-metodológico
Nosso estudo está situado dentre as investigações de natureza qualitativa e foi realizado a partir das propostas construcionistas sociais em ciência, que oferecem contribuições específicas para o desenvolvimento de investigações em psicologia. Sob essa perspectiva, a pesquisa é considerada uma prática social, visto que a construção de conhecimentos acerca do objeto pesquisado depende, a um só tempo, das idiossincrasias de quem o constitui como tal, do momento histórico e cultural dessa produção e das regras instituídas no contexto de criação e divulgação do conhecimento (McNamee, 2014).
Segundo McNamee (2014), o foco da investigação científica é o uso da linguagem nas atividades humanas. Assim, o pesquisador está interessado nas formas de linguagem compartilhadas e como estas são negociadas entre as pessoas em suas ações conjuntas, iluminando implicações que podem influenciar diferentes atividades sociais.
No processo de avaliação das pesquisas, o rigor é considerado um fenômeno intersubjetivo que está atrelado ao contexto de planejamento e realização do estudo. Assim, o rigor relaciona-se às formas pelas quais os passos da análise e interpretação do corpus da pesquisa são explicitados na socialização e compartilhamento da pesquisa para a comunidade de interlocutores (Strong & Gale, 2013).
Participantes
No delineamento do estudo, criamos dois critérios independentes de inclusão dos participantes, ou seja, cada critério gerou convites para participação:
- ser terapeuta familiar; ser psicólogo(a); ter a prática clínica como principal atividade profissional; possuir responsabilidade docente em institutos de formação em TF filiados à Associação Brasileira de Terapia Familiar (Abratef), nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, sendo que a atividade docente deve relacionar-se com o ensino do construcionismo social. Delimitamos esses Estados brasileiros pautados no estudo de Ponciano e Féres-Carneiro (2006), os quais apontam que nesses dois Estados ocorre a maior produção de trabalhos e participação em congressos relativos ao campo da TF;
- estar entre os cinco autores que mais publicaram na revista Nova Perspectiva Sistêmica (NPS) nos últimos cinco anos. Esta revista foi selecionada por circular, majoritariamente, entre profissionais da TF e ter como objetivos apresentar e refletir sobre a evolução das teorias sistêmicas e seus diálogos com outras teorias do campo, sobretudo o construtivismo e o construcionismo social.
Consideramos que esses critérios nos permitiram investigar a difusão das ideias construcionistas entre os participantes no contexto profissional da prática clínica, uma vez que tanto autores quanto terapeutas com responsabilidade docente estão envolvidos na propagação das ideias construcionistas sociais no meio profissional.
Para cada critério estabelecido, tivemos um procedimento específico para a seleção dos participantes:
- indicação dos coordenadores dos institutos de formação do(s) profissional(ais) responsável(eis) por apresentar(em) as propostas construcionistas. A partir das informações disponibilizadas na home page da Abratef, analisamos os programas dos cursos de formação em São Paulo e no Rio de Janeiro, verificando se o construcionismo era uma temática abordada em qualquer momento do curso. Selecionamos os institutos cujos programas discutem essa perspectiva, e enviamos o convite de participação, pedindo a indicação de formas de contato com o professor responsável;
- análise das publicações na revista NPS. Entramos em contato com a revista NPS, que nos disponibilizou os índices quantitativos dos autores que mais publicaram entre 2008 e 2012. Três dos autores indicados eram estrangeiros e dois, brasileiros. Como a pesquisa visa investigar a difusão do construcionismo no contexto nacional, optamos por entrevistar apenas autores brasileiros. Um desses autores já havia participado da pesquisa por ser docente em curso de formação filiado à ABRATEF. O outro autor foi convidado a participar e aceitou nosso convite. Aqui, designamos tal participante como “autor” de forma genérica e não como forma de identificação de gênero.
Por esses critérios, participaram deste estudo 14 terapeutas familiares, homens e mulheres. Para preservar o sigilo da identidade, os nomes utilizados neste trabalho são fictícios. Dos 14 participantes, oito estão vinculados a institutos de formação no Estado de São Paulo, cinco, a institutos do Rio de Janeiro, e um deles é um dos autores que mais publicaram na revista NPS entre 2008 e 2012.
Constituição e análise do corpus da pesquisa
As informações do corpus foram obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas, nas quais exploramos como foi o contato do/a participante com o construcionismo social, as influências do construcionismo em sua prática clínica e os desafios e possibilidades que surgem a partir do uso dessas ideias. Tal como propõe Pinheiro (1999), consideramos a entrevista uma prática discursiva, entendendoa como uma interação situada, em que sentidos são produzidos e negociados momento a momento. Realizamos as entrevistas entre fevereiro e maio de 2013, as quais foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Páginas e linhas foram enumeradas para auxiliar a análise do material.
Como propõe Guanaes (2006), consideramos que a análise das informações da pesquisa tem seu início no momento da transcrição das entrevistas. Isso porque se constitui em uma forma de contato com o material que inclui aspectos como entonações e inflexões de voz, que oferecem ao pesquisador elementos importantes para a atividade interpretativa.
Posteriormente, realizamos leituras sistemáticas e repetidas das transcrições, buscando a familiarização com os assuntos e temas tratados e a reflexão sobre semelhanças e diferenças existentes entre as entrevistas. A sistematização dos dados foi pautada em uma análise temática, inspirada pela proposta de Spink (2010). Esta análise nos permitiu construir cinco temas, denominados: construção social da realidade; caráter performático da linguagem; relativismo moral; eu relacional; e terapia focada nos recursos da família. Paralelamente a esta análise temática, descrevemos as implicações que tais descrições do construcionismo têm no posicionamento dos participantes como terapeutas. Esse foco está embasado no entendimento de que diferentes descrições da realidade possuem implicações nas relações entre as pessoas e destas com os fenômenos à sua volta (McNamee, 2014).
As principais perguntas que nortearam esta análise foram: Como o construcionismo foi descrito na conversa com os participantes? Qual o lugar dos conceitos teóricos nesta descrição de construcionismo? Quais combinações e articulações conceituais são produzidas? Como esta discussão nos permite construir sentidos sobre a difusão do construcionismo entre esses terapeutas? Quais são as implicações dessas apropriações teóricas em seus posicionamentos como terapeutas familiares? Nesse âmbito, consideramos o posicionamento como o processo de criação e negociação da identidade por meio de diálogos e intercâmbios sociais (Harré & van Langenhove, 1999). Elegemos este termo como uma forma de evidenciar a dinamicidade envolvida nos processos de negociação da identidade e também para nos distanciar da noção de identidade que remete aos estudos e propostas tradicionais em psicologia.
Outro ponto importante refere-se ao modo como conversamos sobre as ideias construcionistas nas entrevistas. Não realizamos nenhuma pergunta direta sobre definições do construcionismo. Assim, as entrevistas não buscaram a verificação de conceitos junto aos participantes, mas focaram na relação direta e pessoal que eles estabelecem com o discurso construcionista social na prática cotidiana. Coerentemente com o entendimento da fluidez e dinamicidade dos posicionamentos que as pessoas podem assumir nas relações que estabelecem com o mundo, entendemos que os participantes podem transitar entre distintos posicionamentos e entendimentos acerca do construcionismo social. Nesse sentido, nossa discussão tem seu interesse central nos discursos criados com os participantes nas entrevistas, não se constituindo em uma análise da prática individual dos mesmos.
Por fim, ressaltamos que a proposta deste artigo não foi produzir resultados generalizáveis para os diversos profissionais que utilizam as ideias construcionistas em sua prática clínica, uma vez que a discussão apresentada remete-se a sentidos produzidos em contextos específicos de interação com os participantes.
Resultados e discussão
A Tabela 1 sintetiza e organiza as informações abordadas na discussão dos resultados. Na primeira coluna, descrevemos as ênfases do movimento construcionista que foram identificadas nas entrevistas e que nomeamos como parte da prática clínica dos participantes. Na segunda coluna, descrevemos maneiras como os conceitos e pressupostos são enfatizados no cotidiano clínico dos terapeutas.
Nomeamos esta coluna de “Manejo clínico do conceito e/ou pressuposto” por entendermos que o uso das contribuições teóricas no cotidiano de atendimentos possui especificidades que respondem a demandas próprias do contexto clínico, como discutiremos nos itens seguintes. A terceira coluna apresenta as implicações que as referidas formas de uso do discurso construcionista têm no posicionamento dos participantes como terapeutas familiares.

Construção social da realidade
Em diferentes entrevistas, produzimos sentidos sobre a construção da realidade por meio da linguagem. Articulamos essas descrições com as afirmações de Gergen (1985, 1997) sobre o primeiro pressuposto que embasa o construcionismo social. Segundo o autor, as experiências que temos do mundo não determinam, em si mesmas, as palavras que utilizamos para descrevê-las. Nesse sentido, nossas formas de compreender o mundo, as pessoas e os fenômenos são sempre limitadas pelas convenções linguísticas que partilhamos e pelo contexto em que estamos inseridos – tanto o contexto imediato da conversação quanto o social e histórico (Gergen, 1997).
Na entrevista com Raquel, a participante refere-se a esse pressuposto como norteador de sua prática. O trecho que apresentamos foi extraído do momento em que perguntamos qual é a importância do construcionismo em sua prática. Raquel diz:
Às vezes, quando eu faço muitas perguntas pra uma família, eles falam assim: “nossa, mas precisa perguntar tudo isso?”, e eu digo: “não, só quando não dá certo” [risos] Quando está dando tudo certo, as crianças devem ir pra escola aos seis anos, devem dormir às oito da noite, está tudo certo. Na hora que não tá dando certo você começa a perguntar: “como é que construiu isso? Como é que construiu aquilo? E se isso é nã-nã-nã, se isso é verdade, é desse jeito, o que fica de fora”. Só quando não dá certo. Quando dá certo você não precisa. Vai andando, né?.... Então eu acho que na minha prática em geral ele [construcionismo] é uma bússola.
Ao exemplificar como conduz atendimentos familiares, a participante conversa sobre a exploração de questões da organização familiar, que, para ela, são construídas pelos membros como verdades por meio de suas relações cotidianas. Assim, em momentos em que a família considera-se em crise e busca a terapia, Raquel se coloca em um posicionamento de investigação sobre o modo como os membros construíram seus consensos e regras.
A participante presentifica um discurso que traz para a prática clínica o entendimento do caráter normativo da construção social da realidade, em que as realidades compartilhadas assumem o status de verdade, gerando padrões específicos de obrigações e expectativas, ou seja, uma norma social que constitui e organiza as vivências cotidianas (Gergen, 1985; Dickerson, 2010). Orientando-se por essa premissa, Raquel configura momentos interativos que convidam à exploração de pressupostos, crenças, limites e possibilidades que a família traça para si mesma. Esses aspectos do construcionismo se colocam, então, como uma bússola para ela à medida que guiam suas perguntas e ações.
Outros participantes também referem-se a esse pressuposto como norteador de práticas. Eles enfatizaram que considerar que o sentido não está contido nas palavras utilizadas pelos pacientes possibilitou focar a prática terapêutica no processo de conversação e negociação de significados por meio do diálogo terapêutico.
A importância atribuída a tais aspectos parece ser um fator transformador de suas práticas, visto que dirige o foco do terapeuta para os sentidos que as pessoas atribuem às suas experiências. Por oferecerem contribuições ao manejo de questões que surgem em seus atendimentos, essas propostas ocupam um lugar legítimo dentre as premissas teóricas que utilizam no trabalho clínico.
Caráter performático da linguagem
Ao definir a linguagem como fruto da coordenação de ação entre as pessoas em suas relações, as quais ocorrem em contextos histórica e culturalmente situados, Gergen (1997) enfatiza as possibilidades de criação e transformação das vivências cotidianas por meio da exploração de novos significados, que contribuam para a construção de futuros generativos quando as situações presentes estão a favor da opressão e do sofrimento. Alguns entrevistados destacaram essas ideias como norteadoras de seus trabalhos. Nina, quando descreve o início do contato com a perspectiva construcionista, afirma:
Então, aplicando também no campo da terapia familiar, que pra mim é um ponto de interesse muito grande.... que eu acho que o construcionismo se presta muito bem pra isso, e ajuda muito, porque.... é mais a questão da conversação, do diálogo, e tal. Então, a habilidade e a sensibilidade do profissional são suficientes para conduzir um assunto e ajudar as pessoas a ampliarem as suas visões mais rígidas, e buscarem alternativas. Enfim, de ressignificarem sua vida, seus problemas.
Nina refere-se às possibilidades de trabalho na clínica, descrevendo as propostas terapêuticas como um momento de conversação em que o profissional está ativamente engajado em construir sentidos com as pessoas e buscar descrições que possam gerar mudanças. A participante afirma que a habilidade e a sensibilidade do profissional são recursos para a condução da conversa, colocando o foco do terapeuta no diálogo e na ampliação de narrativas, que muitas vezes são trazidas pelos clientes de maneira rígida e limitante.
Outros participantes também presentificaram discursos que conferem relevância às possibilidades de transformação de sentidos por meio da conversa. Na entrevista com Júlia, quando perguntamos quais possibilidades surgem em seu trabalho, ao conhecer o construcionismo, ela afirma que “é possível olhar para aspectos singulares, aspectos da relação, do contexto e desconstruir significados com o outro”. Na conversa com Mônica, a participante afirma que o que mais lhe chamou a atenção no construcionismo social foi “o processo de trabalho da ressignificação, o trabalho da reconstrução daquilo que se diz.... É escutar, devolver, conversar com a família ressignificando e redefinindo”. Quando perguntamos à participante Nice quais recursos ligados ao construcionismo ela identifica em sua prática, ela afirma:
....a principal [ferramenta], eu acho que eu identifico como a minha pessoa. Eu, na relação com o outro, me oferecendo pra estar ali e me utilizando, né? As coisas que eu penso, as coisas que eu aprendi, mas sempre dizendo que não são a verdade. São as minhas verdades, são as coisas que eu aprendi. O que eles podem fazer com as coisas que eu aprendi. É como se fosse um cardápio de coisas, tem as minhas coisas e tem as coisas deles, e dessas coisas que eu estou oferecendo podem servir pra transformar o que eles tão vivendo ali, né? Em coisas com mais qualidade de vida, que eu acho que é o que as pessoas vem buscar aqui, né?
Da forma como entendemos, Nice vê a si mesma, suas crenças e experiências de vida como recursos que podem convidar à construção de novos significados no processo terapêutico. Sob esse ponto de vista, os clientes podem expandir o que pensam a partir da escuta de diferentes visões a respeito de uma situação. Diante do “cardápio” (leque de possibilidades) constituído pela visão de mundo da terapeuta, os clientes têm a opção de escolher (ou não) aquilo que os aproxima dos objetivos buscados na terapia. Nesse sentido, os conhecimentos da terapeuta não são considerados a verdade sobre os fatos, mas sim convites à expansão de significados que geram sofrimento e opressão.
Assim, essa temática discute formas pelas quais os terapeutas utilizam, na prática, propostas construcionistas acerca da linguagem. A possibilidade generativa da produção de sentidos coloca o foco do terapeuta no processo de conversação e nas aberturas do momento interativo para a criação de futuros preferíveis. Dentre os diversos aspectos que embasam as propostas teóricas sobre o caráter performático da linguagem (Anderson, 2012; Anderson & Goolishian, 1988; Gergen, 1985, 1997), os participantes conferem relevância específica ao foco na possibilidade transformadora das práticas discursivas.
Relativismo moral
As descrições da proposta construcionista sobre a moralidade são distintas daquelas historicamente difundidas no corpo social, inclusive no âmbito científico (Gergen, 1997). A perspectiva construcionista considera que as ordens morais são construídas nos processos sociais, ou seja, pelos indivíduos em relacionamento. A moralidade, sob esse ponto de vista, é uma ação que adquire seu significado em contextos sociais, históricos e culturais. Assim, atribuir o sentido de “moralmente correto” a um posicionamento é consequência da coordenação das ações entre pessoas e está circunscrito às suas tradições sobre moralidade. Nesse âmbito, o convite construcionista volta-se para o questionamento de noções que tomam as ordens morais como fato ou essência, afirmando que estas são construídas a partir de acordos locais.
Em algumas entrevistas, os participantes enfatizaram que o contato com as ideias construcionistas lhes permitiu legitimar diferentes pontos de vista com que se deparam na clínica. Consideramos que essa descrição traduz a sensibilidade construcionista em relação às ordens morais, sendo que esse aspecto teórico lhes permite posicionarem-se com mais disponibilidade e abertura para lidarem com discursos diferentes daqueles que compartilham. Na entrevista com Márcia, quando conversávamos sobre as formas como o construcionismo é útil em sua prática, ela afirmou:
Eu acho que, assim, uma coisa muito importante, o Gergen que frisa, essa coisa de você honrar as tradições diferentes. Porque quando a gente recebe as pessoas no consultório, a gente não tem a menor ideia de onde essas pessoas vêm, das histórias, que tradições, né? E a gente vai descobrindo. E entrar em contato com essas ideias, e ter lido, conhecido essa proposta é muito bom, porque já faz uma diferença no modo como eu escuto. Eu já escuto de uma outra forma. Isso já foi uma alteração.
Pelo contato com a proposta construcionista, Márcia dá mais atenção às formas como as pessoas atribuem sentido às suas experiências. Este foco, segundo ela, possibilita que o trabalho esteja pautado em uma escuta mais atenta e sensível aos diferentes discursos e à exploração destes. Ela considera esse aspecto importante à medida que cria possibilidades de aproximação com os clientes por meio da conversa. A diferença de crenças e convicções não é significada como algo que inviabiliza o processo terapêutico – diferentemente, é aspecto que a convida a tornar-se curiosa em relação a essas diferenças.
Em outras entrevistas nas quais o tema foi abordado, os participantes destacaram que o construcionismo foi um convite para a criação de formas de trabalho em que eles podem posicionar-se de maneira mais flexível e curiosa acerca do que é falado pelos clientes.
No tocante à difusão das ideias construcionistas entre os participantes, vemos que o significado atribuído ao conceito teórico oferece um recurso para a prática clínica de todos eles, os quais podem posicionar-se a partir da legitimação das diferenças. Essas mudanças estão relacionadas ao convite construcionista para o interesse pelos diferentes discursos sem julgamentos de valor a priori, o que é descrito por Gergen (1997) como implicações do relativismo moral. Essa forma de compreensão agrega um recurso para o terapeuta, que trabalha com pessoas com as quais não partilha, necessariamente, crenças e visões sobre os temas conversados.
Eu relacional
Gergen (2009) descreve o self como um produto complexo de nossas interações presentes e passadas, sendo negociado e construído ao longo da vida por meio dessas relações. Entrelaçando as noções de identidade e linguagem, a proposta do self relacional (Gergen, 2009) atrela a construção da identidade aos processos de trocas culturais e intercâmbios pessoais. Assim, manter a estabilidade ou promover mudanças na identidade requerem uma negociação de sentidos na qual os interlocutores contribuem para a permanência ou transformação dessas narrativas. Na entrevista com Estevão, quando conversávamos sobre a forma como as ideias construcionistas modificaram sua trajetória profissional, ele afirmou:
Quando a gente sai do intrapsíquico e vai pras relações, é... a gente atende um, mas a gente não atende um, a gente atende um monte de gente. Uma ideia de rede social que é também pra além das famílias. São todas essas pessoas que, de alguma maneira, sentam junto com aquele cliente individual. Então.... sei lá, são diferentes as conversas, acho que elas são mais, são mais relacionais, são mais da participação dos outros na vida dessa pessoa, dessa pessoa na vida dos outros, como foi acontecendo. Essas ideias que essa pessoa traz pra sessão. Eu trabalho também muito com isso. Com a construção dessas ideias, desses significados, desses sentidos. Quem participa desses sentidos, e aí já é uma construção de ver essas pessoas que participam, enfim.
Nesse trecho, o participante descreve seu entendimento sobre o caráter relacional das construções narrativas. Para ele, as histórias contadas na conversa terapêutica incluem discursos que circulam em espaços mais amplos do que a família e o indivíduo, e influenciam na manutenção do senso de self que é negociado na terapia. Tais entendimentos convidam Estevão a propor diferentes conversas para seus clientes. Suas explorações passam a ser “mais relacionais”, investigando as relações dos clientes com seus contextos e os significados atribuídos aos discursos circulantes nas relações em que estão imersos. Esse posicionamento, além de sensibilizar sua escuta aos processos relacionais, também permite a Estevão trabalhar com o modo como os clientes constroem conhecimentos a respeito do mundo e de si mesmos.
Outras participantes também conversaram a respeito da compreensão relacional do self. Nice, por exemplo, utiliza este conceito ao resgatar, nas conversas com os clientes, as diferentes construções narrativas sobre uma mesma história, pessoa ou acontecimento. Para a participante, essa é uma forma de trabalho que a encanta uma vez que evidencia a premissa da criação das identidades e da realidade por meio das relações.
No tocante à difusão do construcionismo, destacamos que as trajetórias profissionais dos participantes citados nessa temática acompanharam parte do desenvolvimento histórico das propostas sistêmicas no campo da TF. Eles inseriram-se na TF no momento em que as ideias sistêmicas eram predominantes, acompanhando a inclusão das contribuições do construtivismo e, posteriormente, do construcionismo social para a criação de práticas e teorias em TF. Nesse sentido, são profissionais que, ao longo de sua trajetória, problematizaram a noção de um indivíduo isolado, afirmando a importância das relações no estudo dos fenômenos humanos. Partindo de um foco na relação herdado das ideias sistêmicas, esses participantes transitaram para a concepção de self relacional como uma forma de enriquecer sua atuação clínica.
Terapia focada nos recursos da familia
A orientação do trabalho terapêutico para as potencialidades e recursos da família ou indivíduo para lidar com situações de crise é uma ênfase das propostas sensíveis às ideias construcionistas sociais (Flaskas, 2011; Gergen & Warhuus, 2001; Dickerson, 2010). Ao questionar a natureza essencial da realidade, o discurso construcionista lança um olhar crítico às descrições universais acerca de problemas e conflitos. Considera que aquilo que as pessoas definem como problema é um consenso criado e sustentado por meio da linguagem e das relações. No âmbito da terapia, essa proposta abre possibilidades de descrições alternativas sobre situações sentidas como problemáticas, convidando os participantes do problema a ampliarem tanto os significados que atribuem aos fenômenos e situações, como as saídas possíveis para criarem futuros alternativos (Anderson, 2012).
Na entrevista com Mônica, quando conversávamos sobre os autores e obras de cunho construcionista que influenciaram sua prática, ela afirmou:
Então, nessa altura, isso tudo é meio da década de 90, nessa altura, eu já tinha me dado conta do seguinte: que a leitura, principalmente do Pakman, eu tive muita leitura do Pakman e também daquele livro “A terapia como construção social”.... Os trabalhos do Goolishian, os trabalhos da Harlene [Anderson], eu vi a Lynn Hoffman trabalhando. É isso que eu estou te dizendo, todos eles começaram... Sluzki, todos eles faziam redefinição, trabalhavam com essa reconstrução. É um olhar, né? Olha, a gente tem que levar algo que não foi possível ainda a família enxergar, né?.... Porque eu acho que uma coisa que aconteceu muito, é uma influência do construcionismo, pra começar é deixar de fazer a “terapia do não”: “ah, porque vocês não tem isso, porque vocês não são isso, porque vocês não conseguem aquilo”. Para começar, disse: “não, vocês tem”, e o que a família tem, tudo que ela consegue, né? Isso foi um marco. Isso foi um marco. Porque não é uma coisa otimista, só. É mudança de direção de como que você lida, de como você vê, o valor que você dá, o que você escuta, o que você transforma e devolve à família, naquilo que é possível.
Tais descrições remetem ao foco construcionista nas potencialidades. A participante afirma que, a partir da leitura e do contato direto com determinados autores, ela passou a dar importância ao trabalho de reconstrução do significado que perpassa a terapia. Esse foco, embasado no pressuposto de que o sentido não é fixo e está sempre em transformação (Gergen, 1985), permitiu a ela posicionar-se como alguém que pode convidar os membros da família a ampliarem significados atribuídos ao mundo e às suas experiências.
Para Mônica, esse posicionamento demanda uma nova direção para a construção de conhecimento do terapeuta. Ela afirma que nomear e enfatizar potencialidades são aspectos da atuação do terapeuta que devem permear o que ele vê, como e o quê escuta na conversa com os clientes e quais rumos o profissional oferece para a continuidade do diálogo. Nesse sentido, a participante presentifica um discurso crítico em relação às tradições no campo da psicoterapia que reificam a noção de problema, definindo a priori quais temas são problemáticos e devem ser abordados na terapia. As ideias construcionistas nesse campo se propõem como uma alternativa a esses entendimentos (Anderson, 2012).
Do ponto de vista da difusão das ideias construcionistas, ressaltamos a referência feita à proposta construcionista como uma porta de entrada para reflexões sobre a exploração de potencialidades das famílias para lidarem com situações conflituosas. É interessante notar como a perspectiva construcionista social tornou-se atraente ao convidar os participantes a transformarem sua prática, oferecendo-lhes meios de aprimorar seus recursos pessoais para ações cotidianas na clínica.
Considerações finais
Este estudo buscou compreender aspectos da difusão das ideias construcionistas sociais entre um grupo de terapeutas familiares brasileiros, iluminando como estas se tornam uma contribuição relevante para sua prática clínica. Os temas discutidos fazem referência às premissas e conceitos definidos na literatura científica, como a análise buscou apontar.
No tocante à difusão do discurso construcionista, o estudo nos permite afirmar que as descrições originalmente discutidas por teóricos da perspectiva construcionista social são utilizadas na prática clínica a partir da relevância dada a aspectos que lhes conferem possibilidade de utilização na prática terapêutica. Nesse sentido, a difusão está ligada à criação de versões do construcionismo que borram as fronteiras delimitadas pelos aportes teóricos inicialmente descritos na literatura, fazendo com que ideias consideradas úteis no campo da prática sejam, algumas vezes, dissonantes daquelas predominantes na literatura voltada para a discussão teórica. Se, por um lado, essa escolha pode implicar em menor exploração de aspectos teóricos descritos na literatura, por outro, ela coaduna com o interesse primordial dos participantes entrevistados: a prática clínica e a formação de alunos.
Desse modo, entendemos a difusão do discurso construcionista como um processo de criação e transformação de significados. Ao eleger determinadas teorias para o embasamento da prática, cada terapeuta constrói um modo particular de se relacionar com as mesmas, selecionando conceitos de maior interesse e, muitas vezes, combinando o construcionismo com outras teorias com as quais têm afinidade. Nesse processo, os profissionais constroem modos particulares de inteligibilidade a respeito do processo terapêutico e de seu posicionamento como terapeutas familiares.
No tocante ao nosso campo de estudo, o que vemos é que os terapeutas familiares – para além daqueles por nós entrevistados – agrupam-se no campo profissional conforme afinidades na compreensão e descrição da prática terapêutica, criando comunidades que compartilham linguagens e criam novos processos de difusão. Nesse contexto, o discurso construcionista social é uma contribuição que agrega a essa multiplicidade novos matizes e nuances relativos, sobretudo, ao posicionamento do terapeuta diante dos clientes.
Dentre os limites do estudo apresentado, destacamos que a análise não discute ou dá visibilidade às contribuições do construcionismo social que não são exploradas na prática dos terapeutas, aspecto que também permite analisar sua difusão. Como exemplo, podemos citar a reflexão crítica sobre aspectos sociais e culturais que subjazem o trabalho clínico e que não foi mencionada nas entrevistas. Além disso, o estudo possui limitações pelo fato de o corpus ter sido construído a partir de conversas sobre a prática clínica por meio de entrevistas. Nesse sentido, pesquisas que têm o atendimento clínico como contexto de construção do corpus, isto é, que se voltam à análise da própria prática clínica, podem oferecer outras contribuições importantes para a TF.
O presente estudo também está limitado aos institutos paulistas e cariocas que ensinam o construcionismo social aos terapeutas familiares em formação. A realização de estudos nos demais Estados brasileiros pode oferecer novos parâmetros de compreensão sobre a difusão do construcionismo e sobre o campo da TF no país.
Por fim, como pesquisadores sensíveis às implicações dos discursos que produzimos, realizamos esta pesquisa, atentos aos possíveis diálogos que ela pode gerar, esperando que possam atingir as conversas daqueles que estão diretamente envolvidos no campo profissional da prática em TF.
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Notas
Autor notes