HIPNOSE CLÍNICA E DORES CRÔNICAS: RUMO A UMA PERSPECTIVA COMPLEXA

CLINICAL HYPNOSIS AND CHRONICLE PAIN: TOWARD A COMPLEX PERSPECTIVE

HIPNOSIS CLÍNICA Y DOLORES CRÓNICOS: RUMBO A UNA PERSPECTIVA COMPLEJA

Maurício S. Neubern *
Universidade de Brasília, Brasil

HIPNOSE CLÍNICA E DORES CRÔNICAS: RUMO A UMA PERSPECTIVA COMPLEXA

Psicologia em Estudo, vol. 21, núm. 2, pp. 303-312, 2016

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 02 Fevereiro 2016

Aprovação: 21 Maio 2016

Resumo: O presente trabalho busca construir noções teóricas iniciais baseadas no pensamento complexo de Edgar Morin para uma compreensão alternativa das relações entre hipnose e dores crônicas. Partindo de uma crítica ao pensamento instrumentalista dominante no campo, marcado pela simplificação, foca dois eixos principais: a) subjetividade e animalidade como campos possíveis e distintos para a qualificação das dores crônicas e b) as relações entre sujeito, processos inconscientes e mudança durante a hipnose. O trabalho é concluído destacando a pertinência de algumas noções complexas para o tema: o holograma, que destaca as múltiplas influências socioculturais e biológicas, contrapondo-se à perspectiva individualista sobre a dor e a hipnose; que a organização configuracional, destacando o aspecto singular da produção semiótica do sujeito e as lógicas particulares dos campos subjetividade e animalidade; e consciência que, enquanto qualidade emergente no transe, situa o sujeito na condição de mediador e não de controlad or da experiência de dores crônicas.

Palavras-chave: Hipnose, dores crônicas, complexidade.

Abstract: This paper seeks to build initial theoretical notions on complex thought of Edgar Morin as an alternative to understanding of the relationship between hypnosis and chronic pain. Starting with a critique of the dominant instrumentalist thinking in the field, which is often too simplistic, this paper will focuse on two main axes: a) subjectivity and animality as possible fields for qualifying chronic pain and b) the relationship between subject, unconscious processes and change during hypnosis. The work is completed highlighting the relevance of some complex concepts to the topic : the hologram, which highlights the multiple socio-cultural and biological influences, in contrast to the individualistic perspective on pain and hypnosis; the configurational organization, highlighting the singular aspect of the semiotic production of the subject and the particular logic of the fields subjectivity and animality ; and awareness that, as an emerging quality in trance, the subject is located in mediating condition and not chronic pain experience driver.

Keywords: Hypnosis, chronic pain, complexity.

Resumen: En este estudio se busca construir nociones teóricas iniciales basadas en el pensamiento complejo de Edgar Morín a una comprensión alternativa de la relación entre la hipnosis y dolor crónico. A partir de una crítica del pensamiento instrumentista dominante en el campo, marcado por la simplificación, se centra en dos áreas principales: a) la subjetividad y la animalidad como posibles campos y diferente para la calificación del dolor crónico y b) la relación entre sujetos, procesos inconscientes y el cambio durante la hipnosis. La obra se completa destacando la relevancia de algunos conceptos complejos a este tema: el holograma, lo que pone de relieve las múltiples influencias socio-culturales y biológicas, en contraste con la perspectiva individualista sobre el dolor y la hipnosis; la organización configuracional , destacando el aspecto único de la producción semiótica del sujeto y la lógica particular de la subjetividad campos y la animalidad; y la conciencia de que, como una cualidad emergente en trance, el sujeto se encuentra en condición de mediación y no la experiencia de controlador de dolor crónico.

Palabras clave: Hipnosis, dolor crónico, complejidad.

Embora a relação entre hipnose e dores crônicas não seja novidade para o interesse científico, concebe-se que as pesquisas contemporâneas, na maioria de suas publicações, consideram esta relação numa ótica dominante de caráter instrumentalista e biomédico (Jensen & Patterson, 2014). Nesta perspectiva, enquanto a dor é concebida como resposta, obtida a partir de um instrumento (como questionários e inventários), a hipnose é situada como uma ferramenta de controle das mesmas, algo a ser manuseado por alguém externo à pessoa (o profissional de saúde) que representa um saber especializado, científico e, portanto, superior a ela e a seu mundo. No afã moderno de predição, quantificação e controle (Stengers, 2001), sustentado, sobretudo, pela perspectiva de mensuração da eficácia da hipnose para tal demanda, semelhantes estudos estabelecem uma ótica que se esforça por atender aos rigores das ciências médicas, ao mesmo tempo em que produzem uma perspectiva altamente mutilada e reducionista na compreensão dos processos que constituem tal relação (Neubern, 2014).

Uma primeira consequência, nesse sentido, é a concepção das dores crônicas como entidades biológicas herméticas e acabadas, sendo completamente isoladas do mundo sócio cultural, como a diversidade de trocas que o constitui na vida cotidiana das pessoas (Gonzalez Rey, 2011; Holanda, 2012). Assim, como a resposta aos questionários geralmente se centra em aspectos sensórios e isolados entre si, quando não a determinados padrões estatísticos, temas comuns na clínica das dores crônicas, que são marcadamente simbólicos e subjetivos, parecem ser situados como desprezíveis ou secundários face a tais modos de avaliação. Dificuldades no emprego e nas finanças, problemas sexuais, espiritualidade, passado de maus tratos, pertencimento e identidade, falta de acolhimento nos serviços de saúde, proximidade da morte, isolamento social, ou seja, problemas comuns na experiência de pessoas com dores crônicas (Breton, 2012), não são levados em conta nos sentidos que possuem para as pessoas que as vivenciam. O que parece importar é a classificação das respostas dentro de uma ótica estatística com o intuito de estabelecer uma leitura através de padrões que, não raro, constituem-se como modo de compreensão distanciado do cenário subjetivo e social de tais pessoas. Além disso, situando a dor como uma entidade biológica e, a bem dizer, inatacável, ela é concebida como um campo de acesso exclusivo ao saber médico e seu arsenal, uma dimensão quanto à qual a pessoa que a sofre ou os protagonistas e saberes de seu mundo cultural nada podem influenciar ou modificar. Esta assume um papel de autômato, alguém que nada pode fazer por si mesmo a não ser fornecer respostas às indagações médicas e obedecer às suas prescrições, pretensamente as únicas capazes de ajudá-la quanto ao sofrimento ocasionado por suas dores (Neubern, 2013). Caso fuja a tais protocolos de pesquisa, tal pessoa pode mesmo ser desconsiderada, uma vez que passa a ser uma fonte pouco confiável de informações.

Por outro lado, a mesma racionalidade presente em tais pesquisas situa a hipnose como uma ferramenta de controle, cuja função principal deve ser a de alterar determinados índices levantados nos respectivos instrumentos de avaliação. Processos já destacados por eminentes clínicos da hipnose (Benhaeim & Roustang, 2012; Bioy, 2011; Erickson, 1986; Michaux, 2012) como a relação de influências mútuas, a construção do contexto, a simbolização, a vinculação emocional, o uso da linguagem enquanto sugestão, o fenômeno hipnótico, a corporeidade, o transe em sua variedade de expressões, as diferentes formas de participação do sujeito e dos processos inconscientes raramente são reconhecidos e considerados relevantes no processo de mudança de experiência de tais pessoas. Em alguns estudos, como os que se referem ao uso específico de sugestões verbais (Dillworth & Jensen, 2010), são reduzidos à condição de variáveis que mantêm uma relação linear com as respostas de dores crônicas, o que em nada remete ao teor sistêmico, complexo e processual que os caracteriza no setting clínico e relacional onde a hipnose acontece (Erickson, 1986; Neubern, 2014).

O que tal cenário apresenta, de modo contundente, é uma compreensão altamente perpassada por uma ótica simplificadora (Morin, 1996, 2001) que impõe múltiplas separações entre os diferentes processos, concebendo-os como entidades isoladas que mantêm relações lineares entre si de modo a favorecer uma perspectiva instrumentalista para sua concepção. Assim, enquanto a dor crônica é separada da pessoa, de sua dialética com o mundo sociocultural e constituída como entidade biológica reificada e hermética, a hipnose é caracterizada como um procedimento alheio ao sujeito e reduzido a uma prática instrumental de controle, altamente empobrecida em termos de produção pensante e teoria (Neubern, 2013). Semelhante degradação tecnicista desvencilha a hipnose de seus aspectos humanos e subjetivos, perpassados pela complexidade de processos de fundamental importância para sua compreensão. A concepção e a abordagem das dores crônicas tornam-se particularmente prejudicada por tais perspectivas o que remete a uma questão sócio-política grave em termos de saúde, dadas suas estimativas atingirem cerca de 20% da população mundial (WHO, 2014).

Face a tal cenário, a proposta do presente trabalho é a de construir algumas noções teóricas inicias baseadas no pensamento complexo (Morin, 1996, 2001, 2005) para uma compreensão alternativa das relações entre hipnose e dores crônicas. Os principais eixos nos quais tal objetivo será desenvolvido serão: a) dois campos possíveis de qualificação da experiência de dores crônicas – subjetividade e animalidade; b) as relações entre sujeito, processos inconscientes e mudança durante o processo hipnótico. Para tanto, tais eixos serão discutidos a partir de alguns tópicos importantes. Primeiramente, a animalidade consiste na dimensão que evoca aspectos vitais da experiência do sujeito (sensações, reflexos, sons, percepções, suor, odor, temperatura), sendo processos ligados à corporalidade, como diria Roustang, (2015) e à herança filogenética (Morin, 2001); a subjetividade (Morin, 2001; Neubern, 2013, 2014), por sua vez, implica articulações de ordem simbólica, que também envolvem emoções, mas que se caracterizam por produções de sentidos subjetivos, a qualidade dominante simbólicoemocional desses sistemas (Gonzalez Rey, 2011) e também de outras ordens semióticas (Neubern, 2013).

Em segundo lugar, ambos os campos organizam-se em configurações (Neubern, 2013; 2014) que se constituem em sistemas complexos da experiência humana que envolvem diferentes processos semióticos (Peirce, 1998), ou seja, processos sistêmicos compostos por diferentes signos. O signo consiste naquilo que representa um objeto e produz um efeito (interpretante) na mente do interlocutor (Jappy, 2013). Quanto a seus objetos, eles podem ser: ícones (que os representam por semelhança qualitativa, como uma imagem ou desenho, muito ligados ao sentimento), índices (que os representam por laço físico ou funcional, como algo que chama a atenção da pessoa, reatividade) e símbolos (que os representam por lei ou convenção, como os argumentos, ou seja, o raciocínio ou pensamento)1.

No que se refere a este trabalho, torna-se possível estabelecer, num âmbito geral, uma ligação entre o caráter reativo dos índices e a animalidade, e o caráter mediador dos símbolos e a subjetividade. Ambos os campos organizam-se em configurações de onde emergem qualidades dominantes diversas (sensações, imagens, sentidos subjetivos, emoções) ao longo dos diferentes momentos da relação dialética do sujeito com o mundo. A proposta de uma ótica configuracional remete a uma compreensão na qual cada expressão de dor seja qualificada no seio do sistema, com suas respectivas formas de organização, onde se insere e adquire um significado singular e próprio.

As configurações, ao mesmo tempo em que permitem uma relação dialógica entre noções dicotomizadas pelo pensamento ocidental (Neubern, 2014), como atual x histórico, essência x existência, individuo x social, autonomia x determinismo, dentre outros, permite conceber a experiência da pessoa em termos de holograma, na qual o todo está contido na parte, assim como a parte está contida no todo (Morin, 1996). Assim, ao mesmo tempo em que a experiência de uma pessoa (como a de transe) não obedece a uma relação pré-definida entre estes pólos, ela também é influenciada por processos amplos da cultura (pertencimento social, classe, gênero, economia, espiritualidade, família, política) e da biologia. Contudo, como são processos singulares, tais sistemas as integram de modo particular e criativo de maneira que o mundo de experiência da pessoa se torna um todo e as influências amplas que sobre ele incidem tornam-se partes desses sistemas.

Dores Crônicas: Subjetividade & Animalidade

A qualificação das dores crônicas, em termos de uma compreensão singular sobre as mesmas, pode ser concebida em torno do que elas significam para o sujeito no que se refere a dois grandes campos (Morin, 2001): animalidade, caracterizada por uma dimensão vital e filogenética (com a predominância dos índices), e subjetividade, constituída pelo subjetivo e o cultural (onde predominam os símbolos). Esse significar, que encontra produções semióticas diversas, remete à variedade de formas de relações que o sujeito desenvolve consigo mesmo, como também com o mundo.

As dores crônicas não são, portanto, entidades independentes ou classificações em si mesmas, desvencilhadas dos processos vividos e subjetivos que se constituem na experiência cotidiana das pessoas. Nesse sentido, as típicas perguntas voltadas para a descrição das dores, como aperta, corta, puxa, esquenta, irradia (Michaux, 2012) não devem visar a mera classificação, mas uma compreensão de como se constituem nos sistemas vividos de configurações que remetem à sua animalidade. Tais palavras, mesmo que numa cadeia de símbolos, possuem função semiótica de índices, pois remetem a verdadeiros circuitos de reações, movimentos, ciclos de sensações que constroem a experiência de dor configurada neste nível. Nessa mesma perspectiva, apesar de as mesmas palavras surgirem, na descrição das dores, para diversos sujeitos em entrevistas de avaliação ou questionários, as configurações vividas de suas dores são únicas, posto que as relações entre seus diferentes constituintes, como a produção semiótica que deles emana, não se repetem igualmente entre duas pessoas distintas.

Essa dimensão animal, muito salientada em alguns autores da hipnose (Benhaeim & Roustang, 2012), apresenta ainda outras características importantes a serem ressaltadas. Primeiramente, Roustang (2015) qualifica este campo como anterior à consciência e à linguagem, algo de nossa corporeidade animal que viria à tona na hipnose: suspensas as expectativas e controles sociais conscientes, haveria possibilidades espontâneas de agir e ser legítimas do sujeito, que se tornaria mais conectado a seu corpo e capaz de seguir, com mais fidelidade, a sabedoria de tais diretrizes. Grosso modo, a animalidade implica a sensorialidade, mas também é a dimensão da percepção subliminar, da intuição e do “instinto” (Morin, 2001), processos que também podem se tornar mais acessíveis durante o transe. Esse campo de experiências não deve ser reduzido a uma ótica objetiva, como a dos exames médicos, que muitas vezes não acessam, nem detectam as dores dos sujeitos; nem tampouco a um efeito placebo ou mera imaginação. Ele se refere muito mais ao que é vivido pelo sujeito (Merleau-Ponty, 2008), uma experiência com características energéticas, de sensibilidade, de totalidade que envolvem o organismo como um todo e o impulsiona em seu movimento pelo mundo.

Daí que a vivência de irradiação de um ferimento na perna da pessoa não se restringe a uma ótica objetiva de lesão dos tecidos, mas a um processo que afeta o sujeito como um todo, alterando seus sistemas de movimentos e posturas – o esquema corporal (Gallagher, 2012), onde todo seu organismo se posiciona frente a este evento e ao mundo de outra forma. Essa irradiação está inserida no seio de processos sistêmicos e únicos que são vividos pelo sujeito, as configurações, e possuem uma lógica própria, que deve ser captada a partir das referências internas desses sistemas e, necessariamente, do sujeito que a vivencia. Em uma palavra, trata-se de uma proposta de compreensão que prioriza o que é vivido “de dentro para fora” pelo sujeito (Neubern, 2013), ou seja, a partir de seu mundo de experiências e dos sistemas configuracionais específicos que o constituem.

Em segundo lugar, essa dimensão não possui uma relação linear com a produção simbólica, sendo que há sistemas nos quais não existe qualquer processo de simbolização. No caso do ferimento acima descrito, ele pode significar algo para a animalidade do sujeito (Morin, 2001) enquanto uma produção semiótica de reações e sensibilidades que alteram seu esquema corporal, mas que ainda não foi acessado (e talvez não o venha a ser em várias partes de seus sistemas) pelos processos de simbolização da pessoa. Quando tal simbolização ocorre, ela não proporciona uma relação linear com o nível animal, mas um complexo circuito de configurações que integram em rede processos vividos e subjetivos. Entre tais dimensões há barreiras de auto-regulação, dentro das quais seus sistemas organizam-se por leis próprias, por trocas distintas entre seus elementos, em suma, por sistemas que atendem primeiramente a suas organizações internas do que à influência externa de outros sistemas.

A qualificação das dores crônicas, em termos de uma compreensão singular sobre as mesmas, pode ser concebida em torno do que elas significam para o sujeito no que se refere a dois grandes campos (Morin, 2001): animalidade, caracterizada por uma dimensão vital e filogenética (com a predominância dos índices), e subjetividade, constituída pelo subjetivo e o cultural (onde predominam os símbolos). Esse significar, que encontra produções semióticas diversas, remete à variedade de formas de relações que o sujeito desenvolve consigo mesmo, como também com o mundo.

As dores crônicas não são, portanto, entidades independentes ou classificações em si mesmas, desvencilhadas dos processos vividos e subjetivos que se constituem na experiência cotidiana das pessoas. Nesse sentido, as típicas perguntas voltadas para a descrição das dores, como aperta, corta, puxa, esquenta, irradia (Michaux, 2012) não devem visar a mera classificação, mas uma compreensão de como se constituem nos sistemas vividos de configurações que remetem à sua animalidade. Tais palavras, mesmo que numa cadeia de símbolos, possuem função semiótica de índices, pois remetem a verdadeiros circuitos de reações, movimentos, ciclos de sensações que constroem a experiência de dor configurada neste nível. Nessa mesma perspectiva, apesar de as mesmas palavras surgirem, na descrição das dores, para diversos sujeitos em entrevistas de avaliação ou questionários, as configurações vividas de suas dores são únicas, posto que as relações entre seus diferentes constituintes, como a produção semiótica que deles emana, não se repetem igualmente entre duas pessoas distintas.

Essa dimensão animal, muito salientada em alguns autores da hipnose (Benhaeim & Roustang, 2012), apresenta ainda outras características importantes a serem ressaltadas. Primeiramente, Roustang (2015) qualifica este campo como anterior à consciência e à linguagem, algo de nossa corporeidade animal que viria à tona na hipnose: suspensas as expectativas e controles sociais conscientes, haveria possibilidades espontâneas de agir e ser legítimas do sujeito, que se tornaria mais conectado a seu corpo e capaz de seguir, com mais fidelidade, a sabedoria de tais diretrizes. Grosso modo, a animalidade implica a sensorialidade, mas também é a dimensão da percepção subliminar, da intuição e do “instinto” (Morin, 2001), processos que também podem se tornar mais acessíveis durante o transe. Esse campo de experiências não deve ser reduzido a uma ótica objetiva, como a dos exames médicos, que muitas vezes não acessam, nem detectam as dores dos sujeitos; nem tampouco a um efeito placebo ou mera imaginação. Ele se refere muito mais ao que é vivido pelo sujeito (Merleau-Ponty, 2008), uma experiência com características energéticas, de sensibilidade, de totalidade que envolvem o organismo como um todo e o impulsiona em seu movimento pelo mundo.

Daí que a vivência de irradiação de um ferimento na perna da pessoa não se restringe a uma ótica objetiva de lesão dos tecidos, mas a um processo que afeta o sujeito como um todo, alterando seus sistemas de movimentos e posturas – o esquema corporal (Gallagher, 2012), onde todo seu organismo se posiciona frente a este evento e ao mundo de outra forma. Essa irradiação está inserida no seio de processos sistêmicos e únicos que são vividos pelo sujeito, as configurações, e possuem uma lógica própria, que deve ser captada a partir das referências internas desses sistemas e, necessariamente, do sujeito que a vivencia. Em uma palavra, trata-se de uma proposta de compreensão que prioriza o que é vivido “de dentro para fora” pelo sujeito (Neubern, 2013), ou seja, a partir de seu mundo de experiências e dos sistemas configuracionais específicos que o constituem.

Em segundo lugar, essa dimensão não possui uma relação linear com a produção simbólica, sendo que há sistemas nos quais não existe qualquer processo de simbolização. No caso do ferimento acima descrito, ele pode significar algo para a animalidade do sujeito (Morin, 2001) enquanto uma produção semiótica de reações e sensibilidades que alteram seu esquema corporal, mas que ainda não foi acessado (e talvez não o venha a ser em várias partes de seus sistemas) pelos processos de simbolização da pessoa. Quando tal simbolização ocorre, ela não proporciona uma relação linear com o nível animal, mas um complexo circuito de configurações que integram em rede processos vividos e subjetivos. Entre tais dimensões há barreiras de auto-regulação, dentro das quais seus sistemas organizam-se por leis próprias, por trocas distintas entre seus elementos, em suma, por sistemas que atendem primeiramente a suas organizações internas do que à influência externa de outros sistemas.

Daí porque a proposta antropomórfica e moralista de alguns profissionais, como alternativa ao modelo médico, carece de sentido, pois as configurações da dimensão vital não pensam, sentem e simbolizam como o faz o eu da pessoa. Dito de outro modo, as emoções não pensam e agem como pessoas e não possuem uma relação linear com os órgãos do corpo a ponto de fabricarem doenças, como os diferentes quadros oncológicos que, não raro, são contabilizados como produtos das descargas ou desequilíbrios emocionais dos pacientes. Tais formas de compreender o problema, além de negarem os múltiplos processos que antecedem a doença, colocam os pacientes sob a terrível acusação de serem capazes de criar doenças, mas não de desfazê-las, quando o tratamento não é bem sucedido.

Em terceiro lugar, as dores crônicas remetem, em algum nível, a um posicionamento que o organismo como um todo toma com relação ao mundo em função de um ferimento, disfunção ou ameaça que lhe é imposto. A noção corriqueira de um instinto de sobrevivência faz aqui algum sentido, posto que num nível inconsciente, a dimensão animal cria diferentes estratégias filogenéticas para que o sujeito, enquanto organismo individual, possa lidar com as dores e suas implicações (Erickson, 1986). Assim, esquecimentos, deslocamentos cinestésicos, compensações de peso, modificações na percepção de tempo podem ser algumas das estratégias já desenvolvidas que precisam ser captadas pelo terapeuta, por se constituírem como recursos já configurados a serem utilizados num processo hipnoterápico (Erickson, 1986; 1992). Tais estratégias, em sua maior parte inconscientes, são a base de muitos fenômenos hipnóticos de reconhecida eficácia na terapia das dores crônicas, como as amnésias, as dissociações, as distorções do tempo, anestesias, analgesias, regressões de idade e visualizações hipnóticas.

Por outro lado, a subjetividade se constitui como um dos principais campos de configuração das dores crônicas (Neubern, 2013), uma vez que implica uma produção simbólica integrada a uma emocionalidade específica do sujeito, os sentidos subjetivos (Gonzalez Rey, 2011), na relação dialógica que desenvolve nos diferentes momentos de inserção no mundo sociocultural. As temáticas cotidianas de tais pessoas (Brugnolli, 2014; Breton, 2012) não consistem em sinais a serem catalogados em padrões estatísticos sobre um possível perfil do paciente com dores crônicas, mas em registros socioculturais que são subjetivados pelos sujeitos, gerando sentidos subjetivos únicos para cada um deles, de importância fundamental em seu mundo de experiência.

Caracterizada, sobretudo, pela simbolização, a dimensão subjetiva traz à tona algumas considerações importantes sobre as dores crônicas. À princípio, há um aspecto terapêutico de grande relevância quando a investigação sobre tais experiências se dá num contexto em que o sujeito pode atribuir significados, por diferentes modos de expressão, àquilo que vivencia com suas dores em seu dia-a-dia (Erickson, 1986). Em tais processos o que parece ser inatingível, como uma dor que não responde mesmo a medicamentos, torna-se de algum modo maleável, ao alcance do sujeito que acaba por descobrir que pode, em alguma medida, influenciá-las por meio de símbolos. Apesar de tal processo não significar uma redução definitiva das dores, o sujeito aprende a modificar a compreensão sobre elas por meio da simbolização que lhe possibilita modificar a relação com algo que antes parecia escravizálo insoluvelmente.

Assim, a dor que antes parecia ser irracional e inatingível, pode passar a uma simbolização bastante diferente, como a de uma “professora exigente” que levou o sujeito a refletir sobre questões profundas de sua vida que, sem ela, jamais seriam pensadas (Breton, 2012). Em suma, aquilo que o sujeito sente e é colocado em palavras é da mais alta pertinência terapêutica, pois, mesmo não possuindo uma relação linear com a animalidade do corpo, pode possuir configurações partilhadas por processos subjetivos e vitais, estabelecendo sistemas complexos de experiência. Isso é o que permite a alguns autores afirmarem, sob diferentes perspectivas (Johson, 2007; Merleau-Ponty, 2008) que os símbolos entram na carne, fazendo com que o corpo animal se torne humano.

A segunda questão importante no tocante à subjetividade é que as dores crônicas levam o sujeito à construção de sentidos que lhes oferece lugares específicos na trama simbólica, seja no tocante a si mesmos, ao mundo social, à sua trajetória e ao próprio destino. Não se trata aqui de simples mapeamento de padrões de relações variados quanto a si e aos outros, mas dos lugares existenciais que o sujeito passa a ocupar pelo impacto via-de-regra transformador que as dores lhe trazem, lugares regidos por todo um enredo que envolve diferentes trocas sociais e percursos históricos, mas também os papéis ativos do sujeito frente ao mundo (Neubern, 2013). Estes lugares muitas vezes aparecem em formas simbólicas como metáforas e analogias e os sentidos subjetivos a eles incrustados remetem a uma lógica singular ligada a essas dores que precisa ser considerada para propósitos terapêuticos e de pesquisa.

Assim, a intensa dor de fibromialgia no alto da coluna, ombros e braços relatada pela paciente como “carregar o mundo nas costas” pode apontar na direção de importantes processos simbólicos configurados em sua trama cotidiana (Neubern, 2013), um modo de relação caracterizado por valores religiosos de submissão ao outro em detrimento de si, uma tentativa fracassada de cumprimento de um legado familiar de cuidado dos outros, que custa à pessoa a renúncia de projetos pessoais futuros. Tal dor torna-se, portanto, o fulcro que reúne registros sócio-culturais diversos, pauta suas relações de pertencimento, suas trocas afetivas com os outros, os campos significativos de sua vida, podendo mesmo, como se dá em alguns casos, estabelecer-se como núcleo de sua identidade. Ela pode assumir, assim, uma perspectiva existencial que diz de quem esse sujeito é para si e como se posiciona face ao vir a ser da vida.

Sujeito, Transe & Mudança

O problema do sujeito na hipnose, inclusive no tratamento para dores crônicas, é perpassado por uma contradição marcante: ao mesmo tempo em que há um consenso entre vários autores sobre o papel ativo do sujeito (Erickson, 1992; Michaux, 2012), existe considerável lacuna nas explicações sobre tal participação (Stengers, 2001), não sendo possível conceber se o eu seria eclipsado (Clément, 2011) ou permaneceria como fonte central de controle de processos inconscientes e da própria dor, como parecem supor as pesquisas contemporâneas (Dillworth & Jensen, 2010).

Parte-se aqui da perspectiva segundo a qual o eu, o nós, o isso, o eles, dentre outros, constituemse em qualidades emergentes dos processos da experiência de mundo da pessoa, em campos configurados em termos vitais e subjetivos que constituem sistemas da identidade da pessoa, esta altamente polifônica (Morin, 1996; 2001). O eu é mais ou menos atuante durante o transe, mas, ao mesmo tempo em que não se anula, não consiste no único nem no mais importante lugar de referência de ação do processo hipnótico (Neubern, 2014). Uma nova pauta na relação com o nós ligado à família, por exemplo, pode permitir o acesso a importantes rememorações e aprendizados passados da infância, como as brincadeiras com parentes e amigos, que se tornam capazes de re-configurar a dor generalizada pelo corpo, ocasionada por um quadro de lúpus. Ancorados no corpo e no inconsciente, portando algo da animalidade do isso, essas cenas do passado infantil e familiar do sujeito podem mobilizar processos vitais de deslocamentos de sensações, dissociações e analgesias com alto potencial de re-configuração para suas dores, que se tornam menos intensas e incapacitantes.

Malgrado a considerável complexidade existente neste processo, envolvendo uma infinidade de questões, dois aspectos podem ser ressaltados. Primeiramente, tomando-se novamente o exemplo acima destacado, a regressão hipnótica de um sujeito a cenas agradáveis da infância não deve implicar a priori numa tentativa conversacional de traduzi-las em palavras para o mundo do eu com suas referências, mas num processo vivido em que a sensorialidade é potencializada e mobilizada a seu favor (Célestin-Lhopiteaux, 2011). O sujeito re-aprende a sentir, a viver e mobilizar na carne processos até então adormecidos, a acessar lembranças e vivências inconscientes que impactam seu corpo vivido e conseguem, desse modo, modificar suas configurações. Mesmo que tal viagem parta de comandos simbólicos da indução hipnótica, iniciada pelo terapeuta e depois apropriada por ele por meio da autohipnose, o transe o educa a tomar sua sensorialidade vital por guia (ou seja, uma dimensão em larga medida anterior ao eu consciente) de maneira a se apropriar de vias que propiciem o acesso a processos vitais de grande valor terapêutico para suas demandas naquele nível de experiência.

Embora tal processo possa envolver uma reflexividade, ele não proporciona tradução ou racionalização, uma vez que permite que o sujeito, nessa relação promovida pela sensorialidade, coloque-se numa posição de abertura a processos que nascem na dimensão vivida. Este estado, não longe da meditação (Brugnolli, 2014), possui grande relevância terapêutica, por facilitar a emergência de novos sistemas de configuração até então inibidos, que podem atuar como recursos pertinentes às demandas clínicas do sujeito, alterando a relação todo-parte que caracteriza o holograma (Morin, 1996) pelo qual se organiza a experiência do sujeito: as diversas influencias socioculturais e biológicas presentes nas configurações podem ser rearranjadas levando-as a produzir novos processos semióticos.

Quando o processo hipnótico situa tais processos (como as memórias) em outro lugar no conjunto de configurações daquela organização mais ampla (como a dor e a identidade negativa), há uma alteração geral na sua lógica dominante de produção de sentidos subjetivos e sensações vividas. É como se, analogamente, o trecho de uma narrativa contada por um sujeito fosse tirado de um lugar marginal e apagado para ser situado num lugar central e influente do conjunto de maneira a alterar os sentidos gerais de sua lógica sobre importantes questões de sua vida (White, 2007). Essa mudança do conjunto organizacional costuma implicar uma vivência de nova qualidade de autonomia, tanto por proporcionar o acesso a recursos da animalidade antes inativos ou paralisados, como também por favorecer mudanças radicais na produção emocional e simbólica dos sujeitos. Em várias situações clínicas, as narrativas dos sujeitos após um processo terapêutico bem sucedido, ressaltam uma espécie de libertação de processos escravizadores (relacionais, históricos, biológicos, econômicos, familiares) e flexibilização na compreensão das temáticas importantes da vida, que coincide com novas qualidades de relação consigo mesmos e com os outros (Breton, 2012; Holanda, 2012; Neubern, 2014), principalmente em termos de produção de sentidos subjetivos.

Em segundo lugar, tais mudanças trazem à tona outro princípio – o problema da consciência emergente no transe – isto é, de uma condição de saber existente nos sistemas configuracionais além do saber racional e consciente do eu (Morin, 2001). O processo hipnótico favorece uma nova forma de integração entre os diferentes lugares de referência além do eu, de maneira a fazer emergir uma rede semiótica capaz de superar algumas das fragmentações da experiência produzidas pelas referências eu-mundo, como também agenciar processos para a lida com diferentes ordens de necessidades vitais e simbólicas. O sujeito comumente se concebe separado do mundo social, de seu corpo e de suas dores e, não raro, tais experiências levam-no a uma sensação de impotência e paralisação face a seu sofrimento. Assim, ao invés de uma relação fragmentada entre partes do corpo doloridas e uma intervenção pontual (como uma sugestão ou medicamento), essa rede de signos criada a partir do transe hipnótico proporciona formas de reflexividade, intencionalidade, criação e agenciamento que posicionam o sujeito diante do mundo enquanto totalidade. Ele se reconecta com sua sensorialidade animal e com seus liames de pertencimento na cultura (ethos), de maneira a possuir novas possibilidades de lugar (Morin, 2005) na transmissão geracional que o antecede (família, grupos de referência) e também no círculo de suas relações sociais correntes.

O problema da consciência em transe não consiste, portanto, numa tradução obrigatória de conteúdos inconscientes ao mundo do eu, como a busca de insights, nem num tratamento computacional de informações, como na metáfora cognitiva da mente (Johnson, 2007), mas na construção de uma nova rede semiótica que permita maior integração qualitativa entre as diferentes dimensões do ser de modo a conduzi-lo a um posicionamento mais integrado com relação ao fluxo de sua própria existência. Em outras palavras, ao mergulhar numa experiência regressiva como a mencionada, não é a lembrança enquanto eu quem garante a modificação das dores, de seus processos identitários e relacionais, nem um pretenso controle deste eu sobre a diversidade de processos inconscientes. São, ao contrário, as novas formas semióticas de conexão entre diferentes processos, sistemas e instâncias, coletivos e individuais, antes fragmentados e distanciados entre si, que, durante o transe, promovem a emergência de um modo de consciência qualitativamente distinto que proporciona uma troca mais intensa de potencialidades latentes e inibidas no cotidiano da consciência ordinária.

Assim, ao longo de uma experiência de transe, os recursos anestésicos, cinestésicos e dissociativos configurados na animalidade do isso podem ser mais facilmente acessados, uma vez que as fragmentações mente-corpo típicas da cultura onde o eu se constitui (Breton, 2012) são parcialmente suspensas ou alteradas. De modo similar, essa nova rede consegue fazer emergir processos culturais, antes pouco acessíveis pelas mesmas limitações, presentes no nicho de pertencimento circulando entre um nós familiar e um eles ancestral, que separa vivos e mortos, deuses e humanos (Clément, 2011; Nathan, 2014), trabalhando mais intensamente sua identidade, como as possíveis missões a ele atribuídas para a vida. Tal consciência, portanto, consiste num campo de novas redes de signos que forma uma totalidade de algum modo pensante e reflexiva do ser, daí a sabedoria destacada por Erickson (1986), capaz de um acesso diferenciado aos recursos antes isolados de outras instâncias, e também de posicionar o sujeito de modo mais integrado face ao mundo.

É daí que o eu consciente pode possuir um papel ativo, como destacado em diferentes autores (Erickson, 1992; Michaux, 2012), mas não enquanto instância dominante: seu papel aparece muito mais como mediador com outros lugares de referência e desencadeador de processos, do que como o agente superior de controle. Não há, portanto, uma proposta de controle da dor, como comumente destacado (Jensen & Patterson, 2014), mas um processo em que o eu se utiliza dessas novas formas de relação facilitadas pelo transe com outros sistemas e instâncias que, por sua própria autonomia, podem disponibilizar recursos, aprendizados e criações capazes de promover a re-configuração da experiência das dores crônicas. Ele é muito mais um interlocutor que procura negociar com seus interlocutores num processo hozontal do que um capataz que se impoe a seus subalternos.

Considerações finais

A título de conclusão, as ideias aqui desenvolvidas, em caráter ainda bastante inicial, podem ser sintetizadas em três tópicos diferentes. Em primeiro lugar, a perspectiva do holograma (Morin, 1996) é de grande relevância na concepção de uma experiência complexa como a das dores crônicas, por romper com uma ótica de isolamento do sujeito: ela o situa na dinâmica de processos socioculturais mais amplos, como também de toda uma herança animal que possui um papel central na organização de seus sistemas. Há um conjunto de influências e sistemas que atravessam a vivência das pessoas e rompem com a perspectiva da dor enquanto entidade acabada e externa, desvencilhada das trocas sociais e constituída como núcleo biológico estático e reificado. Nesse sentido, o refinamento da compreensão semiótica (Peirce, 1998) e configuracional (Neubern, 2013) permitem oferecer maior visibilidade a tal rede de trocas, permitindo conceber com mais clareza que, de fato, o todo (cultural e biológico) esteja na parte (sujeito), como esta mesma parte contenha o todo, posto que o sujeito com sua organização configuracional singular torna-se uma totalidade que passa a qualificar aquilo que recebe de tais influências.

Já no que diz respeito ao transe hipnótico, a noção de holograma pode ser concebida como uma espécie de abertura que proporciona uma troca entre a produção vivida e subjetiva do sujeito e os universos culturais e biológicos de tais experiências. Ao alterar as referências centrais da relação eumundo, o transe pode proporcionar ao sujeito uma nova possibilidade de negociação com processos (ritos, leis), legados (transmissões familiares, missões) e seres representantes (espíritos, daimons, deuses, ancestrais) de seus nichos culturais de pertencimento (Nathan, 2014) que envolvem questões da mais alta pertinência configuradas em sua experiência de dores crônicas (Breton, 2010). De modo similar, podem permitir o acesso a recursos filogenéticos configurados em sua corporeidade que, apesar de inibidos ou latentes na vigília, proporcionam a produção de fenômenos hipnóticos (dissociações, regressões, visualizações, analgesias, anestesias) de alto impacto na re-configuração das dores crônicas. A complexidade inerente ao transe hipnótico pode ser, portanto, de grande valia para uma compreensão mais abrangente do sujeito com dores crônicas, notadamente em termos dos complexos liames e universos que ele pode acessar a partir de tal dispositivo.

Em segundo lugar, a proposta de uma organização da experiência, em termos de configurações subjetivas e vividas (Neubern, 2013, 2014), possui contribuições significativas no que diz respeito às dores crônicas. Inicialmente, abre um leque de pesquisa clínica e qualitativa tendo o cenário do sujeito singular como palco principal (Gonzalez Rey, 2011), posto que cada informação deve ser qualificada não a partir de critérios e padrões externos, mas de acordo com o que significam nas configurações particulares em que se inserem. Há aqui implicações clínicas de caráter teórico e metodológico fundamentais que podem fazer a diferença para tais sujeitos, uma vez que suas necessidades, sensações, modos de ver o mundo e produzir sentidos tomam um lugar prioritário face às interrogações e intervenções do terapeuta. Ser levado a sério em seus relatos de dores, principalmente quando estas não são detectadas em exames médicos, consiste numa das principais reivindicações desta população, comumente vista com desconfiança por profissionais e familiares (Breton, 2012; Neubern, 2013).

A concepção das dimensões animal e subjetiva traz ainda contribuições de grande valor por convidarem a uma compreensão de universos e sistemas das dores crônicas com lógicas distintas que precisam ser compreendidos em sua especificidade. Se as dores crônicas possuem campos distintos de organização – a subjetividade e a animalidade – com lógicas específicas e sistemas próprios, o terapeuta deve trabalhar com o intuito de atender as necessidades e exigências particulares dos mesmos, compreendendo a lógica organizacional singular de suas configurações. Isso implica um direcionamento importante no sentido de evitar erros teóricos e metodológicos como o de traduzir processos vitais ao simbolismo do eu ou de propor ao sujeito uma leitura moralista e antropomórfica que sutilmente o acusa de criar suas dores, pelo desequilíbrio emocional, e o situa impotente para produzir modificações significativas à sua condição.

Em terceiro lugar, o problema da consciência emergente no transe hipnótico traz considerações de grande relevância para uma compreensão mais ampla sobre a condição do sujeito na re-configuração de suas dores crônicas. Ao situar esta forma de consciência como uma qualidade emergente (Morin, 2001, 2005), tal proposta rompe com a dicotomia entre dimensões (consciente x inconsciente), situando este processo como um campo não subjugado ao eu que emerge a partir de conexões entre processos antes fragmentados e distanciados entre si. Mesmo que se trate de um tema ainda polêmico (Gallagher, 2012) tal proposta apresenta-se como muito significativa na medida em que é qualificada como um sistema emergente e complexo (Morin, 2005) capaz de reflexividade, intencionalidade, agenciamento e criação, ou seja, qualidades muito presentes na clínica das dores crônicas apontadas como uma forma de sabedoria por importantes hipnoterapeutas (Benhaim & Roustang, 2012; Erickson, 1986). O transe, portanto, não abre a porta para interação com uma instância mecânica – a dor – a ser controlada linearmente pelo terapeuta e depois pelo sujeito, mas uma possibilidade de consciência distinta que integra diferentes processos numa nova totalidade, capaz de produzir alternativas de grande pertinência para o processo terapêutico.

Nessa perspectiva, ao situar o eu como um mediador entre processos e sistemas distintos, tal proposta abre importantes possibilidades de compreensão teórica quanto a um tema central na clínica das dores crônicas: o autoconhecimento (Brugnolli, 2014; Breton, 2010). A consciência emergente em transe – uma rede de signos integradora – torna-se aqui uma proposta pertinente, posto que os questionamentos movidos pelo extremo e pelas mudanças trazidas pelas dores crônicas remetem a uma possibilidade profunda de retomada de origens e re-construção de novos lugares no mundo – processos vividos na própria carne e não se restringem a questões cognitivas, nem a narrativas obedientes ao mundo do eu e suas referências. Autoconhecer-se, portanto, passa por novos modos relacionais deste eu com esta forma emergente de consciência, no rumo de uma reconciliação que estabelece novas conexões com o que antes havia se perdido e se distanciado em termos de sabedoria individual e coletiva (Morin, 2005).

Referências

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Notas

1 No tocante a este trabalho, concebe-se que, devido à extensão e dificuldade conceitual envolvendo semiótica, complexidade e hipnose, apenas posteriormente será feita uma aproximação mais profunda e consistente entre elas.

Autor notes

* Maurício S. Neubern: Professor Adjunto do Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Coordena, como projeto de pós-graduação, o Projeto CHYS, “Complexidade, Hipnose e Subjetividade”, voltado para aplicações clínicas e desenvolvimentos teóricos e epistemológicos sobre a hipnose.
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