Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


PRÁTICA PEDAGÓGICA ALFABETIZADORA À LUZ DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA
PRÁCTICA PEDAGÓGICA ALFABETIZADORA A LA LUZ DE LA PSICOLOGÍA HISTÓRICA-CULTURAL Y DE LA PEDAGOGÍA HISTÓRICA-CRÍTICA
Psicologia em Estudo, vol. 22, núm. 1, pp. 03-13, 2017
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Artigo Original


Recepção: 03 Maio 2016

Aprovação: 03 Agosto 2016

DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v22i1.31815

RESUMO.: O objetivo deste trabalho é apresentar aspectos da prática pedagógica alfabetizadora com base nas contribuições sobre a periodização do desenvolvimento e a construção social da escrita a partir de autores da psicologia histórico-cultural, bem como assinalar sua relação com a base teórico-pedagógica histórico-crítica. Entendemos que a alfabetização desponta como processo fundamental para que os indivíduos participem de forma efetiva da sociedade, podendo atuar em suas transformações e que a realização da atividade pedagógica alfabetizadora depende de um projeto sistematizado, intencional e que vise o máximo desenvolvimento dos seres humanos. Nesse sentido, a educação se coloca como processo revolucionário que contribui na transformação também revolucionária da sociedade. Logo, o papel da educação e, mais especificamente, o papel de uma educação revolucionária, passa pela socialização dos bens materiais e imateriais a todos os indivíduos, como enfatizam a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, que deve ser traduzida para a prática educativa emancipadora dos seres humanos.

Palavras-chave: Psicologia educacional, educação, atividade pedagógica.

RESUMEN.: El objetivo del presente estudio es presentar aspectos de la práctica pedagógica alfabetizadora basado en las contribuciones sobre la periodización del desarrollo y la construcción social de la escritura a partir de autores de la psicología histórica-cultural, así como señalar su relación con la base teórica-pedagógica histórica-crítica. Entendemos que la alfabetización surge como proceso fundamental para que los individuos participen de forma efectiva de la sociedad; que puedan actuar en sus transformaciones y que la realización de la actividad pedagógica alfabetizadora depende de un proyecto sistematizado, intencional y que busque el máximo desarrollo de los seres humanos. En este sentido, la educación es un proceso revolucionario que contribuye en la transformación, también revolucionaria, de la sociedad. Por lo tanto, el papel de la educación y, más específicamente, el de una educación revolucionaria, pasa por la socialización de bienes materiales e inmateriales a todos los individuos, como enfatizan la psicología histórica-cultural y la pedagogía histórica-crítica, que deber ser traducida a la práctica educativa emancipadora de los seres humanos.

Palabras-clave: Psicología educacional, educación, actividad pedagógica.

Intrdução

A escolarização, como algo intencional, planejado, que visa dar a cada indivíduo aquilo que o conjunto da humanidade já produziu (Saviani, 2013), leva-nos a pensar a ação pedagógica como um processo mediado. Isso quer dizer que nós não nos apropriamos do patrimônio humano-genérico sozinhos, precisamos da intervenção, do “empréstimo psíquico” (Martins, 2013b) daqueles que já se apropriaram “... da humanidade produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 2013, p. 13). Na escola, esse é o papel do professor.

O que vincula o aprendiz e o “par mais desenvolvido”, assim chamado por Vigotskii (2006), é o conhecimento. Este se traduz em signos e significados. Logo, a educação (e mais especificamente a sua forma escolar) é um “... ato mediado por signo[s] [que] provoca profundas transformações no psiquismo humano, modificando radicalmente a relação sujeito- objeto, ou, a resposta do sujeito aos estímulos do meio” (Martins & Marsiglia, 2015, p. 21). Por essa razão, Martins (2013b) assinala que o professor não é o mediador, mas sim, o portador dos signos que medeiam o desenvolvimento psíquico.

Tendo em vista que Vigotski (2001) apontou a palavra como signo dos signos, vai daí a importância do desenvolvimento da linguagem em suas formas mais elaboradas para o processo de humanização dos indivíduos. Sendo a linguagem: meio de existência (forma de expressão do indivíduo), meio de transmissão da experiência histórico-cultural e meio de comunicação (Martins, 2013a), podemos afirmar que a palavra orienta nossas ações, é ferramenta de pensamento e se estabelece na relação com o outro. Por isso Vygotski (2012, p. 150, tradução nossa) apresenta como lei genética geral do desenvolvimento cultural do psiquismo, que “... toda função no desenvolvimento cultural da criança entra em cena duas vezes, em dois planos, primeiro no plano social e depois no psicológico, ao princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica”. Relacionando-se a essas categorias, temos então a área de desenvolvimento iminente e o nível de desenvolvimento efetivo, que deve organizar o trabalho didático, levando em conta sua forma e conteúdo, isto é os elementos culturais que precisam ser apropriados e as formas mais adequadas para sua incorporação (Saviani, 2013).

Segundo Cheptulin (1982), o conteúdo reflete o conjunto de processos de alguma coisa e a forma reflete a estrutura do conteúdo (aspectos externos e internos). Forma e conteúdo se articulam organicamente, sendo o segundo determinante ao primeiro, pois é o conteúdo que caracteriza uma determinada forma, a qual se altera quando as mudanças no conteúdo obrigam a mudança da forma de modo a garantir a continuidade do desenvolvimento do conteúdo.

A seleção e organização do conteúdo escolar e sua forma estão relacionados ao destinatário (Martins, 2013b), que determina o grau de complexidade do conteúdo e condiciona a forma de realização do trabalho didático. É por essa razão que autores como Duarte (2013), Martins (2013b) e o próprio Saviani (2013) tem alertado para o fato de que não existe “a” forma de organização do trabalho didático na pedagogia histórico-crítica e menos ainda que essa forma sejam sequências de atividades contidas em planejamentos de ensino para a prática social, outras para a problematização, outras para a instrumentalização e assim por diante. A proposta metodológica da pedagogia histórico-crítica parte da prática social e retorna a ela de forma enriquecida; vai da síncrese à síntese pela mediação da análise, sendo que esse processo não é linear, estanque e/ou compartimentalizado, justamente por apoiar-se filosoficamente numa base lógica de cunho dialético-materialista.

A relação entre forma e conteúdo, tomadas como categorias dialéticas, exige tratamento dinâmico e intervinculado, que possibilite saltos qualitativos do desenvolvimento. Como explica Cheptulin (1982, p. 268, [grifo nosso]) e se coloca como meta do processo de escolarização segundo a pedagogia histórico-crítica:

Inicialmente, as mudanças que se produzem no conteúdo não influem no sistema relativamente estável das ligações da forma; elas instalam-se completamente em seu quadro e, por esse fato, o conteúdo evolui rápida e imperiosamente. Mas há um ponto em que as mudanças no conteúdo atingem um nível em que os quadros desse sistema de correlação tornam-se muito estreitos. O sistema relativamente estável começa a entravar o desenvolvimento do conteúdo, a reprimi-lo. Nesse estágio de desenvolvimento do conteúdo, a forma deixa de corresponder ao conteúdo, contrariamente ao primeiro estágio, em que ela correspondia-lhe e dava-lhe toda possibilidade de desenvolvimento. A não-correspondência da forma com o novo conteúdo, à medida que esse se desenvolve, torna-se sempre mais aguda e finalmente um conflito explode entre o conteúdo e a forma: o novo conteúdo rejeita a antiga forma, destrói o sistema relativamente estável de movimento e, baseado em um novo sistema relativamente estável de movimento (isto é, da forma), transforma-se passando a um outro nível qualitativo.

Assim, ao explicarmos como se dá o desenvolvimento da escrita (conteúdo) na criança (destinatário) e associá-lo aos mecanismos pedagógicos necessários (forma), estamos atendendo aos princípios do materialismo histórico dialético de historicidade, movimento e contradição. Em relação à primeira categoria (historicidade), a escrita tanto tem um caráter histórico enquanto construção social, como tem esse mesmo caráter no que se refere às técnicas que cada indivíduo utiliza, bem como transforma e supera no processo de apropriação da linguagem escrita. Isso permitiu que Luria (2006) denominasse o processo de conquista da escrita - que perpassa um longo caminho até que a criança comece, de fato, a escrever - de pré-história da escrita.

Sobre a ideia de movimento, é preciso considerar a relação entre quantidade e qualidade. Cada pequeno movimento não representa imediatamente um salto qualitativo, mas somados e incorporados permitirão essa transformação. Daí a ideia da passagem do simples para o complexo, isto é, o ponto de chegada (a transformação) depende das cumulativas e progressivas alterações que estão no processo de desenvolvimento. Entretanto, se no ponto de partida (simples) não tivermos o ponto de chegada (complexo) estabelecido; se o ponto de chegada não estiver claro como a meta a ser atingida, os movimentos realizados no processo estarão diluídos e não ocasionarão o avanço necessário. No caso da linguagem escrita, ela é produto das inúmeras tarefas que são realizadas e que, somadas, articuladas e incorporadas ao sujeito como segunda natureza (Saviani, 2013), dão a ele o domínio da escrita ou, em outras palavras, de fato, alfabetiza o indivíduo.

Por fim, a categoria de contradição se expressa em articulação com as anteriores, mas vale destacar especialmente o que foi mencionado sobre o “simples” e o “complexo”. A aprendizagem (“simples”) é uma possibilidade que se movimenta em diferentes graus e está na dependência do ensino (“complexo”) oferecido. Este, por seu turno, comparecerá com as condições para que a possibilidade de aprendizagem se transforme em realidade na direta proporção da complexidade com que estejam organizados os conteúdos das diferentes áreas de conhecimento. Em síntese, ensino e aprendizagem são processos internamente contraditórios, que se movimentam da possibilidade à realidade em uma espiral crescente.

Pensando na base dialética do ensino e da aprendizagem, que sustenta a ideia da tríade conteúdo-forma-destinatário (Martins, 2013b), passemos a apresentar as ideias da psicologia histórico-cultural sobre como se dá a apropriação da escrita e como, segundo a pedagogia histórico-crítica, isso deve ser trabalhado no processo de alfabetização.

A alfabetização para a psicologia histórico-cultural e para a pedagogia histórico-crítica

O primeiro destaque importante é que precisamos compreender que a alfabetização começa, como afirma Luria (2006, p. 143), “... muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras”. As técnicas primitivas de escrita desenvolvidas antes da alfabetização escolar representam momentos importantes para que a escrita se desenvolva como um sistema de signos culturalmente elaborado. Portanto, esse processo se inicia com a linguagem oral, pois a linguagem escrita está enraizada nela e esta, também, não se inicia quando a criança começa a falar, mas sim quando “... os objetos dados à captação sensorial conquistam a possibilidade de representação sob a forma de palavras” (Martins & Marsiglia, 2015, p. 43), que inicialmente não são verbalizadas pela própria criança, mas por aquele que denomina os objetos, o que, para a criança, faz com que os objetos tenham a denominação como mais uma de suas propriedades.

Nessa etapa (pré-linguística), que vai dos ruídos e murmúrios aos equivalentes funcionais das palavras, ocorre a modelagem social que possibilitará a apreensão da linguagem como algo que tem conexão interna entre signo e significado, o que inicialmente não existe, sendo palavra e objeto conectados externamente. Observe-se também que, não por acaso, essa etapa corresponde (em condições típicas de desenvolvimento), à Atividade-guia Comunicação emocional direta, pertencente à esfera afetivo-emocional (em que predomina a relação criança-adulto social) (Elkonin, 1987; Facci, 2004; Pasqualini, 2013).

Antes de darmos prosseguimento, esclareçamos a que se refere a Atividade-guia. Esse conceito se fundamenta na construção histórico-social de Atividade, por meio da qual o indivíduo se relaciona com a realidade. Não se trata daquilo que o sujeito faz por mais tempo, caracterizando-se pela presença de 3 atributos: na Atividade-guia surgem outras atividades, processos psicológicos específicos são formados por ela e a personalidade do indivíduo se forma por meio da Atividade-guia. A transição de uma Atividade-guia para outra está em direta relação com as condições de vida e educação dos sujeitos, não sendo, portanto, uma sucessão linear de etapas naturais. Por essa razão, destacamos, em nossa escrita, o aspecto das “condições típicas/adequadas de desenvolvimento”.

Voltando, então, à Atividade-guia do bebê (Comunicação emocional direta), o desafio é que o trabalho educativo faça com que “... a palavra, gradativamente, [vá] deixando de ser mera extensão ou propriedade do objeto e, ultrapassando a conexão direta objeto-designação, promova a conversão da imagem do objeto em signo” (Martins & Marsiglia, 2015, p. 44). Para tanto, é preciso ensinar a criança a falar, o que não se resume à mera repetição de palavras, mas à apresentação do mundo à criança, de modo que o bebê tenha a estimulação cultural necessária para relacionar objetos, fenômenos, sons e significados (Martins, 2012). Isso explica porque a automatização (Saviani, 2013) não é, neste caso, um mero mecanismo mnêmico de reprodução das palavras, mas sim, o resultado de inúmeras associações e apropriações que se realizam no processo.

Para que a imagem do objeto se converta em signo, a criança precisa compreender que a “cadeira”, não é só uma cadeira. Desse modo, colocam-se em jogo os processos de generalização do pensamento, possibilitando à criança a aproximação à função social dos objetos e consequentemente dos signos que os representam abstratamente, possibilitando o domínio primário do idioma, que é característico do segundo ano de vida e que amplia o vocabulário que a criança decodifica e pronuncia (Martins, 2012).

Neste momento, a Atividade-guia do desenvolvimento é Objetal-manipulatória e pertence à esfera intelectual-cognitiva (em que prevalece a relação criança-objeto social) (Elkonin, 1987; Facci, 2004; Pasqualini, 2013). A Atividade Objetal-manipulatória, como o próprio nome indica, relaciona-se à intensa manipulação de objetos para analisar suas características (peso, cheiro, gosto, cores, sons, temperatura, textura etc.), mas especialmente porque, nessa manipulação, ela se apropria da função social dos objetos. As ações pedagógicas devem, pois, dirigir essa manipulação. Primeiro, porque a manipulação sensorial e perceptual dos objetos é insuficiente. É preciso denominar (linguagem), atribuir significado (pensamento), atentar e memorizar voluntariamente e tudo isso exige comportamentos não naturais, que precisam ser direcionados. A segunda razão (relacionada à primeira) pela qual é preciso intencionalmente planejar e promover a manipulação dos objetos se relaciona à qualidade das manipulações. Se a criança ainda não tem atenção voluntária, uma miríade de estímulos (muitos brinquedos, muitos espaços, muitos sons, muitas cores etc.), quando não orientados, pode não ser proveitosa ao seu desenvolvimento.

Pensando em um trabalho didático realizado com planejamento, que tenha em vista o enriquecimento da formação dos indivíduos segundo uma concepção de mundo1 e que leve em conta as condições objetivas de realização do trabalho educativo, espera-se o enriquecimento das apropriações da criança e, em virtude delas, a partir dos três anos a etapa típica que se observa no desenvolvimento da linguagem é o domínio da estrutura gramatical da linguagem. Nessa etapa, a criança se expressa por meio de orações (a princípio) com poucas palavras, mas elas já expressam o pensamento infantil (Martins, 2012). Para que esse domínio se concretize, não basta que a criança simplesmente “fale”. Ela precisa de ações educativas que envolvam: aumento de vocabulário (conhecer o léxico do idioma) - leituras planejadas que sejam ricas de signos e significados; aprimoramento da dicção (aspectos fonéticos da língua) - entonação de canções, cantigas, parlendas e trava-línguas que coloquem a criança a exercitar suas capacidades de articulação verbal; reconhecimento das normas gramaticais da língua, que regulam a fala e a escrita - brincadeiras que exijam compreensão de comandos (regras) e possibilitem a reflexão sobre a organização da fala (tanto nas orações como no texto em seu conjunto - começo, meio e fim).

Estes exemplos não eliminam entre si que uma brincadeira porte signos e significados, bem como que uma cantiga contenha elementos que permitem apreender a gramática da língua. O que é preciso destacar é que, sem compreender o que é léxico, gramática, fonética e assim por diante, estamos impedidos da organização de um trabalho intencional que tenha como meta o máximo desenvolvimento dos indivíduos. Estamos nos remetendo, pois, ao que Saviani (2013) e Martins (2013b) já explicaram e foi anteriormente mencionado, sobre a tríade conteúdo-forma-destinatário destacando a relevância de uma sólida formação de professores.

Justamente pensando no desenvolvimento da linguagem dos destinatários, que nesta etapa (em condições adequadas de desenvolvimento) já estão compreendendo a função social dos objetos pela mediação das palavras, é importante ressaltar que a criança ingressa em uma nova Atividade-guia, chamada Jogo de papéis, que atende à esfera afetivo-emocional (Elkonin, 1987; Facci, 2004; Pasqualini, 2013). Nesse período, a Atividade impulsionadora do desenvolvimento da criança é a reprodução lúdica das relações sociais com as quais toma contato. Não é por acaso, pois, que, na primeira etapa do desenvolvimento da escrita, sinalizada por Luria (2006), chamada por ele de “Pré-instrumental”, a criança imita o adulto escrevendo (relações interpsíquicas) com as técnicas que domina até o momento para tal tarefa (relações intrapsíquicas) (Martins & Marsiglia, 2015).

Qual é o desenvolvimento efetivo da criança na fase pré-instrumental? 1) sua compreensão de que as pessoas utilizam a escrita; 2) sua capacidade de grafar; 3) o conhecimento de um conjunto de objetos, situações e relações com determinadas funções sociais e significados. Mas, o uso da escrita pela criança, como destacado, é imitativo, externo, um ato em si mesmo, relacionado ao prazer da manipulação de objetos (Martins, 2012), como canetas, pincéis, esponjas e lápis. Daí a importância do oferecimento de diferentes suportes e instrumentos de escrita (que mencionaremos na sequência).

O desenvolvimento efetivo anteriormente caracterizado permite justamente que o professor atue na área de desenvolvimento iminente de forma a provocar a superação dessa imitação “... fazendo com que utilize os registros gráficos como meio, ou seja, que a escrita lhe auxilie a recordar algo e assim assuma uma função de operação psicológica” (Martins & Marsiglia, 2015, p. 47).

Para exemplificar, tomemos a leitura do livro “Olívia perdeu seu brinquedo”2 (Falconer, 2012). Após a leitura, peça às crianças que reproduzam objetos e personagens da história (camelo, camisa verde, boneco de pano, tapete, sofá, gato, piano, cachorro etc.). Em cada produção, aplique diferentes técnicas (como modelagem, colagem, dobradura, pintura), utilizando diferentes materiais: argila, gesso, tecido, sisal, algodão, papel (crepom, laminado, camurça, celofane, etc.), barbante, cola colorida, palitos, lápis de cor e giz de cera de formatos (cilíndrico, triangular, retangular), tamanhos e espessuras diferentes (maior, menor, grosso, fino), guache, aquarela, pincéis, escovas, esponjas. A lista de possibilidades é imensa. Dessa forma, cada objeto ou personagem representado terá a sua “marca”, que possibilita à criança rememorar cada parte da história ou, com várias histórias, cada material utilizado auxiliará a lembrar a qual história se refere um registro.

Observe que toda essa exploração, visando fazer com que a criança utilize o desenho com função mnemônica, não atua exclusivamente nesse objetivo. Todo o conjunto psíquico precisa entrar em ação para sentir e perceber diferentes texturas, cores e formas e adequá-las às produções; atentar-se ao enredo, comandos e sequência que se constrói (além da concentração na atividade em si); memorizar a história, personagens e objetos e relacioná-los ao registro elaborado; denominar os objetos e personagens representados; realizar generalizações e associações entre as imagens (pensamento por complexos); criar representações do real, podendo fazê-lo com inventividade (o gato não precisa ter pelagem no desenho, mas diante da disponibilização de diferentes suportes e instrumentos, reconhecer aquele que mais se adequa ao objetivo, mesmo que ele seja verde, cor na qual não encontraremos um gato real); dar satisfação (prazer) na realização da tarefa, traduzindo-se em alegria, felicidade ou para lidar com frustrações que se expressam em tristeza, decepção etc.

O que está sendo feito numa ação como essa? Estamos instrumentalizando a criança com um conjunto de conhecimentos necessários ao domínio da escrita. Não é preciso, pois, realizar com os alunos uma aula sobre a prática social que tem a escrita como forma mais avançada de registro da produção humana. Também, não precisamos de uma aula (ou sequência de aulas - sequência didática) que problematize as implicações da ausência do domínio da escrita para os seres humanos. Mas, estas questões não podem ser perdidas do olhar do professor, que, ao selecionar determinados conteúdos, recursos, procedimentos e estratégias de avaliação, já considerou esses elementos em seu planejamento, guiando assim a sua execução.

É com base nessa organização que o professor elegerá este ou aquele conteúdo necessário ao processo de alfabetização, dando a ele o verdadeiro sentido clássico sobre o qual se refere Saviani (2013). É clássico alfabetizar, isso é praticamente um consenso. Mas, alfabetizar como? Fazendo qual escolha de conteúdos que levem à apropriação do domínio da linguagem escrita? Ao afirmar que é preciso trabalhar com vocabulário (conteúdo), há, na seleção de materiais (livros, brincadeiras, músicas etc.), também um critério a ser utilizado: aqueles mais ricos e, portanto, mais avançados e que sejam os mais indicados para determinados procedimentos propostos, diante dos recursos disponíveis (forma) para determinados alunos (destinatário).

Seguindo o percurso da “Pré-história da escrita”, Luria (2006) sinaliza que entre quatro e cinco anos de idade, a criança já utiliza registros gráficos para relembrar uma sentença ditada. Ele denomina esta etapa de “Atividade gráfica diferenciada”, na qual a criança começa a utilizar seus próprios “rabiscos” (externamente, não há, de início, diferença significativa em relação à etapa anterior) para rememorar. Dessa forma, os rabiscos têm agora uma função específica (auxiliar do signo), demonstrando um aprimoramento em relação à etapa anterior.

O desenvolvimento efetivo que se apresenta é, portanto, da atribuição de significados às marcas que faz (função mnemônica) e então o desenvolvimento iminente pelo qual podemos nos guiar é da necessidade de superar o registro mnemônico, fazendo-o expressar um conteúdo específico.

Para que a criança consiga atender a essa necessidade mais elaborada de registro, elementos da matemática são fundamentais, como quantidades, tamanhos, formas, espessuras etc., de tal modo que permitam representar uma relação entre signo e significado. Voltemos à história “Olívia perdeu seu brinquedo” (Falconer, 2012). Se pedirmos à criança que, somente com seu desenho, represente um gato e um piano, seu conhecimento sobre o tamanho de um e outro influenciarão sua representação. Do mesmo modo, se solicitarmos que desenhe duas camisas de futebol e uma bola, suas noções de quantidade e forma serão importantes para fazer esse registro. Mas, a criança não precisa saber desenhar camisa, piano, gato ou bola de futebol. Ela apenas aproximará determinados elementos a alguns padrões para se lembrar de sua intencionalidade ao fazer o desenho (um círculo - bola de futebol; duas marcas - camisas; uma marca pequena e outra grande - gato e piano). Então, perguntamos: quem deu os comandos e a fez pensar nesses elementos? Em outras palavras, quem determinou a intencionalidade da tarefa? O professor. Cabe a ele, portanto, garantir os conhecimentos matemáticos (contagem, quantidade, formas geométricas, grandezas e medidas) que servirão tanto ao desenvolvimento lógico-matemático quanto ao desenvolvimento da escrita (Martins & Marsiglia, 2015).

A Atividade-guia permanece sendo o Jogo de papéis (até por volta dos seis anos), mas ele vai se tornando mais complexo, atendendo cada vez mais à reprodução fiel do real na busca da compreensão das relações sociais com as quais se depara. Julgamos importante destacar duas observações sobre a Atividade-guia e seu papel no desenvolvimento.

Primeiro, não são apenas as vivências reais da criança que permitem sua reflexão e ação sobre/com os papéis sociais. Logo, ela não precisa conviver com um médico ou um pedreiro para brincar de hospital ou construção. Na verdade, deixar que apenas as vivências particulares da criança dirijam os conhecimentos dos quais se apropria, vai de encontro com as defesas da pedagogia histórico-crítica. Nesse sentido, a literatura é de grande importância para possibilitar à criança o contato com personagens, tempos históricos e contextos que lhe permitam a reprodução lúdica das mais variadas situações que enriqueçam seu repertório.

Segundo, uma Atividade-guia sempre se engendra “por dentro” de sua antecessora. Portanto, para que a criança transite da Atividade de Jogo de Papéis para a Atividade de Estudo, a segunda é gestada dentro da primeira. A Atividade-guia é a mais desenvolvimentista em dado momento, mas vai perdendo força enquanto outra vai assumindo seu lugar. Mas, como isso não se dá naturalmente, jogos com regras, Atividades de produção, esportes etc., precisam ser incentivados, proporcionados e organizados de modo a assumirem lugar de destaque no desenvolvimento da criança, criando a insuficiência (crise) de uma Atividade que será superada por outra.

No caso da escrita, colaboram decisivamente nesse percurso as Atividades de produção, pois como explica Davídov (1988), o ensino da língua deve partir da fonética, que dá regularidade à língua. Conhecendo as letras (grafemas) e associando-as aos seus fonemas, a criança começará a associar registro e fala (palavra). Mas registro do quê? De substantivos concretos, desenhados, pintados, modelados, recortados, que recebem denominação e que possuem uma regularidade inscrita em seus grafemas e fonemas. Retomando o exemplo da história de Ian Falconer (2012), observemos que nela encontramos diversos substantivos concretos (bola, camisa, tapete, camelo etc.), mas também outros abstratos, bem como adjetivos e verbos (Olívia não gostava de seu uniforme; ouviu um barulho assustador numa noite escura; o pai lhe diz para não ficar chateada porque o cachorro despedaçou seu brinquedo e para consertá-lo ela costurou o boneco).

Assim, solicitar o desenho de gostar, chateação, costurar etc. não serão as requisições mais acertadas para alguém que “... ainda está elaborando o desenho e precisa de referências concretas para este fim” (Martins & Marsiglia, 2015, p. 53). No entanto, trabalhar com substantivos concretos não quer dizer limitar o repertório do aluno. Para usar outro exemplo, podemos mencionar a música “Sopa” (Tatit & Peres, 2004). Nela, são listados diferentes ingredientes que podem ser colocados numa sopa (espinafre, tomate, feijão, agrião, farinha, macarrão, rabanete, berinjela, mandioca, alho-poró, repolho, palmito). Mas, a canção traz também alimentos que não se usa numa sopa (balinha, sorvete, caqui, pirulito), outros ingredientes que não são alimentos (caminhão, panela, minhoca, chulé, sabão em pó, piolho) e dois animais, que em nossa cultura são pouco comuns na alimentação (jacaré e javali). Será que as crianças conhecem todos esses elementos? São capazes de categorizá-los e fazer generalizações? E ainda: será que já comeram todos alimentos ali catalogados? Portanto, há um vasto conjunto possível de ser trabalhado que extrapola o universo já conhecido pela criança (Martins & Marsiglia, 2015).

Seguindo adiante, por volta dos cinco a seis anos, teremos a “Escrita pictográfica”. O desenho da criança segue em desenvolvimento, expressando-se de forma cada vez mais elaborada, sendo utilizado como uma forma de registro mnemônico (desenvolvimento efetivo), mas ainda sem que esteja associado a um expediente auxiliar de escrita (desenvolvimento iminente). Isso nos chama atenção para a necessidade de dirigir o desenho da criança para que ela possa superar o uso do desenho como técnica de escrita, substituindo-o pela escrita simbólica (Martins & Marsiglia, 2015).

Martins (2013a, p. 80), ao discutir a proposição de Atividades de produção, afirma que elas devem se complexificar para que não se esvaziem de sentido, bem como seu planejamento deve considerar:

... atividades com modelo inicialmente concreto e, depois, por imagem plana (desenhos, fotos etc.); sem modelo, fornecendo objetivos e materiais a serem utilizados; de criação própria, a partir de ideias e materiais selecionados pela criança.

Notemos que essas etapas estão articuladas ao que anteriormente já sinalizamos sobre o uso de inúmeros recursos e procedimentos para o desenho, a modelagem, o recorte e colagem, a pintura etc. Quando pedimos a uma criança que faça um “desenho livre”, isso será extremamente difícil e frustrante para ela se não possuir os conhecimentos de técnicas e materiais, além dos próprios signos e significados. Mas será absolutamente viável se ela for devidamente encaminhada em explorações diversas que vão do modelo à criação própria.

O mesmo pode ser dito sobre a escrita. Inicialmente, necessitamos de materialidade (substantivos concretos) e modelos (recursos que dão objetividade à representação) para fazer marcas gráficas. Em seguida, a criança será desafiada a registrar segundo determinados objetivos (a sequência de uma história ou os objetos de uma música - modelo “mais aberto”) e materiais, avançando para reproduções mais complexas (substantivos abstratos, verbos, adjetivos etc.), até que possa escrever utilizando somente letras e aí sim, redigir frases, orações, períodos e então criar seus próprios textos.

Na Escrita pictográfica, considerando a exigência de superar a “mistura” entre desenho e letras, propor tarefas que demandem uso de substantivos abstratos, verbos, adjetivos etc, será relevante para a apropriação da escrita. Também é interessante o trabalho com escrita coletiva (o professor serve de escriba), pois tanto revela para a criança como a escrita se organiza, como a faz refletir sobre os diferentes tipos de texto existentes. Agora sim, será importante pedir que o aluno desenhe Olívia desgostosa com sua camisa verde; chateada porque o cão estragou seu brinquedo; costurando o boneco de pano; ouvindo um barulho assustador em uma noite escura etc.

Além disso, é preciso conhecer o alfabeto (relação grafema-fonema) para que a criança possa lançar-se ao desafio de escrever as palavras que pronuncia. Ao fazer esse exercício, o aluno assume condição de converter uma palavra em outra verificando seu novo significado ou a perda dele (Davídov, 1988). Ruth Rocha (1999, p. 9), na história “Marcelo, Marmelo, Martelo”, nos ajuda a problematizar essa questão para a criança. Marcelo faz muitas perguntas às pessoas (adultos) sobre o porquê das coisas (por que a chuva cai, por que o mar não derrama, por que cachorro tem quatro pernas?). Mas, ele também questiona o nome das coisas, a começar pelo seu nome:

  • - Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo?

  • - Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos.

  • - E por que é que não escolheram martelo?

  • - Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta...

  • - Por que é que não escolheram marmelo?

  • - Porque marmelo é nome de fruta, menino!

  • - E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?3

O diálogo de Marcelo e sua mãe nos revela a compreensão da criança de que palavras diferentes representam coisas diferentes (e assim, também, terão registros diferentes). Isso avoluma seu repertório linguístico e possibilita entender que a escrita representa a fala e que esta tem uma significação universal (social), é, pois, supra individual (Martins & Marsiglia, 2015).

Por volta de seis a sete anos de idade, a fase da “Escrita simbólica” já se apresenta - desde que, nas etapas anteriores, a promoção do desenvolvimento da criança tenha conduzido a saltos abstrativos e enriquecido sua capacidade para elaborar generalizações mais complexas. Primeiramente, como ato externo que precisa ser objetivado, mas diante dos caminhos percorridos até então, para assimilar os mecanismos desse instrumento cultural, a internalização se dá pela superação do recurso de marcas gráficas aleatórias ou desenhos, levando a criança ao uso exclusivo do sistema alfabético (desenvolvimento efetivo). Este precisa ser aprimorado com a aprendizagem de conteúdos como concordância nominal e verbal, gênero, número e grau, acentuação, pontuação, classes de palavras analisadas morfologicamente e sintaticamente (desenvolvimento iminente).

Na história “Olívia perdeu o seu brinquedo” (Falconer, 2012), encontramos vários destes conteúdos, sendo que ela ainda utiliza recursos visuais que apoiam as aprendizagens. Por exemplo: o tamanho das letras de grande parte do livro é menor do que algumas palavras enfatizadas por Olívia em determinados trechos (ONDE está o meu brinquedo? - usa tanto letras maiores como as maiúsculas no advérbio; O CACHORRO! - exclamação da personagem ao descobrir quem pegou seu brinquedo (substantivo concreto); uso de travessão nos diálogos; uso de “ritmo” das palavras associado às imagens4.

Ao utilizar as palavras em determinados contextos e para certas finalidades, “... coloca-se em questão o desenvolvimento da linguagem tanto em sua face fonética quanto semântica” (Martins & Marsiglia, 2015, p. 63). No caso da primeira, a criança lida com a palavra segundo seus aspectos sonoros, exteriores, enquanto na face semântica expressa sua significação na frase, oração ou período. Retomando a história “Marcelo, marmelo, martelo” (Rocha, 1999), observamos que, quando Marcelo troca o nome de um objeto por outro (cachorro - latidor etc.), ele está relacionando a palavra somente à sua representação material, de forma primária, fonética (que tem sua relevância pela libertação que dá ao indivíduo de operar com objetos na ausência deles). Todavia, a função simbólica da palavra (face semântica) fica prejudicada, posto que limita generalizações, categorizações e abstrações. Assim, a função da palavra de servir de meio de formação de conceitos não terá êxito, posto ter a palavra o papel de permitir “... refletir o mundo com mais profundidade do que o faz a nossa percepção... Eis porque a palavra não apenas significa uma imagem, mas também inclui o objeto no riquíssimo sistema de ligações e relações em que ela se encontra” (Luria, 1979, p. 35).

Prossegue o desenvolvimento da escrita, alterando o lugar das escritas coletivas, pois agora (de posse de instrumentos culturais complexos) a criança poderá escrever individualmente, sendo esta uma tarefa necessária, posto que cada um precisa se apropriar dos conhecimentos historicamente produzidos e isso só é possível na atuação de cada indivíduo singular em seu processo de humanização. A qualidade dessas escritas (forma e conteúdo) depende dos conteúdos de língua portuguesa disponibilizados aos alunos, referentes à gramática e aos gêneros (literários ou não).

Entre os seis/sete e dez anos de idade (o que corresponde em nossa seriação escolar aos anos iniciais do ensino fundamental), em que a alfabetização se sistematiza e consolida, a Atividade-guia é o Estudo, que atende à esfera intelectual-cognitiva (Elkonin, 1987; Facci, 2004; Pasqualini, 2013). A centralidade desta Atividade, voltando-se à relação criança-objeto social tem como elemento fundamental o conhecimento (objeto). Diferentemente do período anterior (Jogo de papéis) em que importava para o desenvolvimento da criança o processo da brincadeira e não exatamente seu resultado, no Estudo as ações são orientadas por um produto, qual seja, dominar os conhecimentos que os adultos têm, de forma a não mais reproduzir ludicamente suas ações, mas compartilhar com eles as experiências e saberes acumulados ao longo da história e que configuram o patrimônio humano genérico.

Por essa razão, no Estudo, em termos de apropriação da escrita, desde o ingresso da criança em um novo tipo de escola (passagem da educação infantil para o ensino fundamental), passando pela maior sistematização dos conteúdos, até a forma de organização dos grupos (o coletivo das crianças)5, tudo é relevante e influencia na alfabetização dos alunos.

Para que os anos guiados pelo Estudo caminhem a bom termo, o professor deve planejar o trabalho educativo de modo a criar as condições para que as crianças aprendam a comportar-se em diferentes situações requeridas pela escola: ouvir explicações, elaborar sínteses, fazer registros, expor ideias, trabalhar individual e coletivamente etc. O grau de complexidade dos conteúdos exigidos nessas tarefas deve ser programado pelo educador de tal modo que não se esvaziem de sentido, como já mencionado anteriormente. Pouca exigência (conteúdos simples, sem “provocações” psicológicas) leva à desmotivação, desinteresse, indisciplina e retrai a aprendizagem. Conteúdos sofisticados, adequadamente dosados e desafiadores terão condições de contribuir categoricamente para a humanização dos indivíduos (Saviani, 2013) e, especificamente a linguagem escrita, terá decisivo papel na formação de conceitos teóricos, determinante para a elevação da capacidade de pensamento dos sujeitos.

Considerações finais

Essa exposição objetivou apresentar as principais características das etapas do desenvolvimento da linguagem escrita, que tem sua raiz na linguagem oral, superando-a em forma e conteúdo. Ao comentar sobre esse processo, também foram apontadas suas vinculações com desenvolvimento efetivo/iminente e suas conexões com a periodização do desenvolvimento (Elkonin, 1987). Desse modo, procurou-se salientar a importância da educação escolar nesse processo e o que a alfabetização representa para o desenvolvimento humano em suas máximas possibilidades.

Como sabemos, a relação do indivíduo com o gênero humano se fundamenta no trabalho e suas objetivações (Duarte, 2013). Desse modo, estabelece-se a objetivação também do próprio indivíduo e esta individualidade, por sua vez, participa do desenvolvimento do gênero. Acontece que o desenvolvimento dado na relação indivíduo-gênero pode não expressar a verdadeira humanização dos indivíduos (que seria a forma de desenvolvimento do gênero), tornando-se algo “em-si”, porque precariamente identificado com o desenvolvimento imediato dos sujeitos.

No caso da educação escolar, o aluno que frequenta a escola alcançará certos desenvolvimentos. Seria irreal afirmar que ele nada apreende em seu processo de escolarização. Entretanto, qual é este desenvolvimento e em que grau ele se manifesta? A vida cotidiana nos fornece meios de sobrevivência. Mas sobreviver, nas mínimas condições objetivas e subjetivas é inteiramente diferente de viver, plena e maximamente. Quanto mais a escola se apressa na formação dos indivíduos, esfacela os conteúdos e desqualifica o papel da educação na humanização dos seres humanos, mais ela garante o sobreviver e não o viver. As pedagogias do “aprender a aprender” (Duarte, 2006), que se aprofundam cada vez mais na sociedade capitalista, cumprem dignamente papel alienador e fetichizado na formação dos indivíduos. E é claro que essas não são as condições necessárias ao desenvolvimento mais avançado do gênero humano, mas sim, aquelas que atendem às premissas neoliberais de flexibilidade, múltiplas habilidades, capacidades adaptativas etc. que povoam a educação escolar travestidas de liberdade, diversidade, respeito e multiculturalidades.

A relevância da alfabetização desponta como necessidade para o desenvolvimento da individualidade livre e universal (Duarte, 2013), necessária no interior do processo de superação do capitalismo. Nesse sentido, a educação se coloca como processo revolucionário que contribui na transformação também revolucionária da sociedade. Logo, o papel da educação e mais especificamente, o papel de uma educação revolucionária, passa pela socialização dos bens materiais e imateriais a todos os indivíduos, como enfatizam a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, que deve ser traduzida para a prática educativa emancipadora dos seres humanos.

Referências

1. Cheptulin, A. (1982). A dialética materialista: categorias e leis da dialética. São Paulo: Alfa-Omega.

2. Davídov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psiquico. Investigación psicologica teórica y experimental. Moscou: Editorial Progresso.

3. Duarte, N. (2006). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (4a. ed.). Campinas-SP: Autores Associados.

4. Duarte, N. (2013). A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo (3a ed. rev.). Campinas-SP: Autores Associados .

5. Duarte, N. (2015). A importância da concepção de mundo para a educação escolar: porque a pedagogia histórico-crítica não endossa o silêncio de Wittgenstein. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, 7 (1), 8-25.

6. Elkonin, D. (1987). Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en la infancia. In V. Davídov & M. Shuare (Orgs.), La psicología evolutiva e pedagogica en la URSS: Antología (pp.104-124). Moscú: Editoria Progresso.

7. Facci, M. G. D. (2004). A periodização do desenvolvimento psicológico individual na perspectiva de Leontiev, Elkonin e Vigotski. Caderno CEDES, 24 (62), 64-81.

8. Falconer, I. (2012). Olívia perdeu seu brinquedo. São Paulo: Globo.

9. Luria, A. R. (1979). Curso de psicologia geral: linguagem e pensamento (Vol. IV). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

10. Luria, A. R. (2006). O desenvolvimento da escrita na criança. In L. S. Vigotskii, A. R. Luria, & A. N. Leontiev (Orgs.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (10a. ed., pp. 143-189). São Paulo: Ícone.

11. Martins, L. M. (2012). O ensino e o desenvolvimento da criança de zero a três anos. In A. Arce & L. M. Martins (Orgs.), Ensinando aos pequenos de zero a três anos (2a. ed., pp. 93-121). Campinas - SP: Alínea.

12. Martins, L. M. (2013a). Especificidades do desenvolvimento afetivo-cognitivo de crianças de 4 a 6 anos. In A. Arce & L. S. Martins (Orgs.), Quem tem medo de ensinar na educação infantil?: em defesa do ato de ensinar (3a. ed., pp. 37-62). Campinas - SP: Alínea .

13. Martins, L. M. (2013b) O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas-SP: Autores Associados .

14. Martins, L. M. & Marsiglia, A. C. G. (2015). As perspectivas construtivista e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita. Campinas-SP: Autores Associados .

15. Pasqualini, J. C. (2013). Periodização do desenvolvimento psíquico à luz da escolar de Vigotski: a teoria histórico-cultural do desenvolvimento infantil e suas implicações pedagógicas. In A. C. G. Marsiglia (Org.), Infância e pedagogia histórico-crítica (pp. 71-97). Campinas-SP: Autores Associados .

16. Rocha, R. (1999). Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias (2a. ed.). São Paulo: Salamandra.

17. Saviani, D. (2013). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (11a. ed.). Campinas-SP: Autores Associados .

18. Smirnov, A. A., Rubinstein, S. L., Leontiev, A. N., & Tieplov, B. M. (1960). Psicología. México: Grijalbo.

19. Tatit, P. & Peres, S. (2004). Sopa. In Palavra Cantada. Palavra Cantada 10 anos. CD. São Paulo. Gravadora: Palavra Cantada. Distribuição: MCD e Lua Discos.

20. Vigotski, L. S. (2001). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes.

21. Vigotskii, L. S. (2006). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In L. S. Vigotskii, A. R. Luria, & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (10a. ed., pp. 103-117). São Paulo: Ícone .

22. Vygotski, L. S. (2012). Obras escogidas (Vol. III). Espanha: Machado Libros.

Notas

1 Duarte (2015) explica que a formação da concepção de mundo não se separa do ensino dos conteúdos, traduzidos na escola por saberes escolares, que devem ser organizados com a tomada de posição na luta ideológica que marca a luta de classes. Desse modo, para esse autor, a escola deve fundamentar o ensino na concepção de mundo materialista, histórica e dialética. É claro que no caso das crianças pequenas, esses conteúdos não são transmitidos diretamente, mas, como assinala Martins (2012), a formação operacional dos pequenos é decisiva para a formação teórica que toma cada vez mais lugar na educação escolar.
2 Olívia é uma porquinha. Sua história começa com Olívia sonhando que estava andando de camelo no Egito. Ela é acordada por sua mãe para jogar futebol com um uniforme verde que ela não gostava, porque era igual aos outros. Ela tem um brinquedo preferido (um boneco de pano) que desaparece lhe fazendo procurar embaixo do tapete, do sofá, do gato, perguntar aos irmãos, até que numa noite escura, enquanto tocava piano, Olívia ouve um barulho assustador e o segue, até que encontra seu brinquedo destruído pelo cachorro. O pai lhe promete outro brinquedo, mas aquele era seu preferido. Então ela costura o brinquedo.
3 Apesar de reconhecer o valor da história utilizada no exemplo, discordamos da finalização da autora, pois quando Marcelo se depara com uma situação em que não consegue se fazer entender (a casinha do cachorro pega fogo e Marcelo não consegue se explicar, porque diz ao pai que “embrasou a moradeira do Latildo”), Ruth Rocha resolve o dilema fazendo com que os pais se adaptem ao uso de palavras com significado subjetivo (só Marcelo entende) em lugar de destacar como moral da história a importância do significado supra individual.
4 Olívia espera sua mãe costurar sua camisa de futebol. Ela pergunta à mãe se está pronta e ela responde que não. E então Olívia esperou (imagem da porquinha em pé), esperou (Olívia aparece sentada) e esperou (a porquinha está deitada, de braços e pernas abertas), até que cansou de esperar (Olívia sai de perto da mãe, com expressão aborrecida).
5 Como explicam (Smirnov, Rubinstein, Leontiev, & Tieplov, 1960, p. 534, [grifo nosso]) o coletivo das crianças se organiza “... a partir das regras socialmente constituídas e dirigidas pelo professor, [colocando] em jogo a formação de uma “opinião social”, que valoriza cada um de seus membros diante de suas atitudes em relação ao estudo e ao próprio grupo. Dessa maneira, o aluno “... ao sentir-se membro do conjunto, deve ter em conta não só seus desejos pessoais, mas também as exigências e interesses da classe e sua opinião social”.

Autor notes

Ana Carolina Galvão Marsiglia: Realizou estágio de Pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Núcleo de Educação Infantil (NEDI-UFES), do grupo de pesquisa "Estudos Marxistas em Educação" e líder do grupo de pesquisa "Pedagogia histórico-crítica e educação escolar".
Dermeval Saviani: Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq e Coordenador Geral do Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" (HISTEDBR).

E-mail: galvao.marsiglia@gmail.com



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por