Artigo Original

UMA COMPREENSÃO PSICANALÍTICA ACERCA DO PROCESSO DE LUTO NA SEPARAÇÃO AMOROSA

UNA COMPRENSIÓN PSICOANALÍTICA ACERCA DEL PROCESO DE DUELO EN LA SEPARACIÓN AMOROSA

Ohara de Souza Coca
Universidade São Judas Tadeu, Brazil
Rodrigo Jorge Salles
Universidade São Judas Tadeu, Brazil
Laura Carmilo Granado
Universidade São Judas Tadeu, Brazil

UMA COMPREENSÃO PSICANALÍTICA ACERCA DO PROCESSO DE LUTO NA SEPARAÇÃO AMOROSA

Psicologia em Estudo, vol. 22, núm. 1, pp. 27-39, 2017

Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 05 Setembro 2016

Aprovação: 30 Janeiro 2017

RESUMO.: A separação amorosa é vivida como uma experiência de morte em vida, na qual o indivíduo precisa passar pelo processo de luto para que dê sentido à perda. Este trabalho teve como objetivos principais compreender e analisar o processo de luto diante da separação amorosa, sob uma perspectiva psicanalítica, e, como objetivos específicos, identificar o tipo de escolha objetal (anaclítica/ narcísica) dos indivíduos; verificar se houve algum tipo de amparo no decorrer do processo; e analisar os sentimentos existentes após a separação amorosa. Para isso, seis participantes foram submetidos a uma entrevista semiestruturada, sendo os dados analisados por meio da análise de conteúdo. Como resultado, identificamos a presença de ambas as escolhas objetais, com predominância da escolha narcísica nos mais jovens; que o processo de luto possibilitou mudanças e transformações; encontramos amparo familiar, de amigos, espiritual e psicológico; e os participantes apresentaram maior individualidade após o rompimento. Levantamos a hipótese de que o sofrimento, ocasionado pelo fim do relacionamento, gere como defesa o distanciamento de outro que poderia vir a ser um novo objeto de amor. No processo de elaboração do luto é possível introjetar as partes boas do objeto amado, que são integradas ao ego. Dessa forma, os aspectos bons passam a fazer parte do sujeito, que pode aceitar a perda. Destacamos que mais estudos se fazem necessários sobre a temática específica.

Palavras-chave: Narcisismo, amor objetal, luto.

RESUMEN.: La separación amorosa se vive como una experiencia de muerte en vida, en la cual el individuo necesita pasar por el proceso de duelo para darle sentido a la pérdida. Este estudio tiene como objetivo principal comprender y analizar el proceso de duelo frente a la separación amorosa desde el punto de vista psicoanalítico, y como objetivos específicos, identificar el tipo de objeto escogido (analítica/narcisista) por los individuos; verificar si hubo algún tipo de amparo en el transcurso del proceso y analizar los sentimientos existentes después de la separación amorosa. Para esto, seis participantes se sometieron a una entrevista estructurada, y los datos se estudiaron por medio del análisis de contenido. Como resultado, identificamos la presencia de ambos aspectos, con predominancia de la elección narcisista en los más jóvenes; el proceso de duelo permitió cambios y transformaciones; encontramos el amparo familiar, de amigos, espiritual y psicológico; y los participantes presentaron mayor individualidad después de la ruptura. Levantamos la hipótesis de que el sufrimiento ocasionado por el fin de la relación genera como defensa el distanciamiento del otro que podría llegar a ser un nuevo objeto de amor. En el proceso de elaboración del duelo es posible incorporar las partes buenas o positivas del objeto amado, que son integradas al Ego. De esta forma, los aspectos buenos pasan a formar parte del sujeto, que empieza a aceptar la pérdida. Destacamos que son necesarios más estudios sobre la temática específica.

Palabras-clave: Narcisismo, amor objetual, duelo.

Introdução

Abordaremos uma temática que traz grande curiosidade e que tem importância nos dias atuais, visto que o número de separações e divórcios tem crescido nos últimos anos, assim como as uniões passaram a ser mais curtas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[IBGE], 2012). O luto, ao contrário do que alguns pensam, não está relacionado apenas à morte concreta, mas sim às sucessivas perdas, reais e simbólicas que sofremos ao longo da vida (Cavalcanti, Samozuk,& Bonfim, 2013; Kovács, 1996).

Para entendermos a vivência do processo de luto de um indivíduo que passa por uma separação e perda do objeto amado, é necessário compreendermos como se deu tal escolha amorosa. Partindo de uma perspectiva psicanalítica, a escolha objetal caracteriza-se como “ato de eleger uma pessoa ou um tipo de pessoa como objeto de amor” (Laplanche & Pontalis, 1998, p. 154). Freud (1914/2004) apontou para dois possíveis tipos de escolhas objetais: anaclítica (ou de apoio) e narcísica. A escolha anaclítica se dá a partir da relação estabelecida entre o bebê e seu cuidador. Inicialmente, as pulsões sexuais estão apoiadas nas experiências de satisfação primária, com propósito de autoconservação das funções vitais que são providas pela mãe, sendo ela o primeiro objeto sexual do lactente. Na vida adulta, a retomada dessas escolhas é uma forma de reencontro com o objeto da infância. Dessa forma, na escolha anaclítica, toma-se como objeto de amor o homem protetor ou a mulher que nutre. Já a escolha narcísica ocorre quando o indivíduo tem a si mesmo como modelo da relação, pautado no que foi, no que é ou no que gostaria de ser. São indivíduos que de certa forma buscam a si mesmos como objeto de amor.

Ferreira (2010) diz parecer que os indivíduos atribuem aos parceiros o poder de satisfação de seus desejos e prazer. Atualmente, é comum a queixa de estar sozinho junto a reclamações de superficialidade, visto que o amor romântico continua como ideal a ser alcançado como forma de completude. Em dias nos quais tudo deve ser rápido e fácil, o amor é algo raro, pois as pessoas não encontram tempo para construir uma relação (Rios, 2008). Assim como propôs Bauman (2004), a modernidade líquida apresenta relacionamentos flexíveis e laços frouxos, havendo dificuldade na criação de vínculos. Muitas vezes, procuramos envolvimento para fugir da fragilidade, da solidão. Aconteça como acontecer, a partir do momento em que se constitui o vínculo e que tomamos o objeto como amado e significativo, haverá algum tipo de luto, caso a perda ocorra.

Freud (1917/2006), em seu artigo Luto e Melancolia, definiu o luto como uma reação à perda do objeto amado ou a abstrações que poderiam tomar seu lugar, caracteriza-se por um processo que ocorre gradativamente e gera dor. À medida que o teste da realidade mostra que o objeto foi perdido, é necessária a retirada de toda libido investida em tal porém isso não ocorrerá de maneira imediata. A cada lembrança do objeto, este será superinvestido de energia, até que, de maneira vagarosa, esse trabalho poderá se completar, deixando o indivíduo livre para investir energia em outro objeto. O enlutado apresenta grande desinteresse pelo mundo exterior (com exceção de tudo que recordar o objeto perdido). “No luto o mundo tornou-se pobre e vazio” (p.105).

A separação amorosa pode ser vivida como um tipo de morte entre os vivos, pois foi necessário matar o outro dentro de si. Além de perdermos o objeto amado, também perdemos o significado que depositamos nele, como a perda de uma parte do ego. Os sentimentos e emoções são vividos de forma exacerbada e ambivalente. O processo de luto deve aparecer diante da separação, podendo tomar vários caminhos, desde a elaboração da perda e retomada dos processos cotidianos da vida até uma desorganização psíquica, podendo tornar-se patológica (Kovács, 1996). Parkes (1998) explica que o luto é um processo que envolve várias fases, tendo cada uma suas características particulares, as quais cada indivíduo experienciará de uma maneira. Kübler-Ross (1926/1994) definiu cinco fases encontradas no processo de luto: negação, em que buscamos negar o conflito vivido; raiva, quando se manifesta o sentimento de revolta diante da realidade da perda; barganha, como tentativa de revertermos a perda inevitável; depressão, quando a pessoa fica consciente da inevitável perda, sofrendo grande tristeza, medos e sentimentos desoladores; e, enfim, a aceitação, quando conseguimos entender e seguir a vida.

Embora possamos encontrar uma quantidade satisfatória de trabalhos relacionados ao luto, estes, em sua maioria, são teóricos ou referem-se à morte concreta. Dos trabalhos de campo, explanados em nossa pesquisa, apenas dois são relacionados ao luto por separação amorosa, sendo um de Marcondes, Trierweiler e Cruz (2006) e outro, de Parisi (2012). Muitos dos artigos encontrados apresentam descritores não reconhecidos pela BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), o que acabou por dificultar nossa busca. A partir disso, sentimos necessidade de ampliar a temática com uma pesquisa de campo sobre o luto diante da separação amorosa. Propusemos uma pesquisa de caráter exploratório para ter maior contato com o fenômeno e levantar hipóteses. Como objetivo principal, buscamos, a partir de uma perspectiva psicanalítica, compreender e analisar o processo de luto diante da separação amorosa e, como objetivos secundários, buscamos identificar o tipo de escolha objetal dos indivíduos, verificar se houve algum tipo de amparo no decorrer do processo de luto e analisar os sentimentos existentes após a separação amorosa.

Método

Participantes

A amostra por conveniência foi composta por seis participantes, moradores de São Paulo, com idade igual ou superior a 20 anos. Todos permaneceram no mínimo seis meses em um relacionamento e sofreram a separação amorosa. Como critério de exclusão, a perda não poderia ser por morte concreta, pelo fato de o término não ter sido optativo ou passível de retorno (Tabela 1).

Material/Instrumentos

Para as entrevistas, utilizamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), questionário sociodemográfico e roteiro de entrevista semiestruturada com 20 questões abertas, que buscou abarcar todo o relacionamento e o processo de luto. Para auxiliar a coleta e transcrição dos dados, utilizamos um gravador.

Tabela 1
Caracterização dos participantes
Caracterização dos participantes

Procedimento

Após submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade São Judas Tadeu (CAAE: 38487414.4.0000.0089), realizamos a divulgação do estudo via redes sociais. A partir do contato inicial dos interessados, explicamos melhor sobre a pesquisa, sendo verificados os critérios de inclusão e exclusão, para, então, marcarmos as seis entrevistas individuais. Ao início de cada coleta, apresentamos e lemos o TCLE com os participantes, esclarecendo as dúvidas. Após consentido o estudo, demos início à aplicação dos instrumentos de pesquisa, começando pelo questionário sociodemográfico, seguido da entrevista semiestruturada.

Nenhuma coleta ultrapassou 1 h e quase todas foram realizadas na clínica da própria universidade, conservando o sigilo e ambiente livre de interferências. As entrevistas foram realizadas sempre com a mesma pesquisadora e foram gravadas com consentimento, para auxiliar a transcrição dos dados. Objetivando não perder os detalhes de observação, realizamos as transcrições no mesmo dia de cada coleta. Após esse procedimento, os áudios foram apagados e a íntegra das entrevistas transcritas encontra-se guardada.

Os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo, proposta por Bardin (2011). A partir da pré-análise, realizamos diversas leituras flutuantes com o objetivo de organizar o conteúdo, estruturando os aspectos mais globais das entrevistas. A fase de exploração do material visou categorizar o material, desmembrando o texto para posterior reagrupamento. Empregamos o critério semântico, que consiste em categorias temáticas. Assim como explica Campos (2004), as categorias podem ser compreendidas como um aglomerado de temas, escolhido pelo pesquisador de acordo com sua intimidade com estes, visando facilitar a compreensão dos objetivos propostos. Dessa forma, foram constituídas quatro categorias: as escolhas objetais e suas nuances; o processo de luto na separação amorosa; a importância e os tipos de amparo durante o processo de luto; sentimentos após a separação e expectativas. Por fim, os resultados foram analisados por meio de inferência e interpretação dos pesquisadores.

Resultados e Discussão

As escolhas objetais e suas nuances

Ao apresentarmos os tipos de escolha objetal, embora Freud (1914/2004) faça uma diferenciação entre escolha anaclítica e narcísica, destacamos que ambas são marcadas pelo narcisismo infantil, havendo, portanto, idealização do objeto na busca do narcisismo perdido. Buscamos no outro um complemento narcísico, seja pelos cuidados que nos podem oferecer ou pela sustentação da própria imagem (Ferreira, 2010). Tendo isso em vista, sabemos que não há escolha pura, mas é possível haver predominância de um dos tipos, bem como que essas escolhas se entrelacem e mudem ao longo do relacionamento.

Dessa forma, iniciamos a análise por participantes que apresentaram predominância da escolha anaclítica. Durante dez anos de relacionamento, P4 refere-se ao marido como aquele que provia e cuidava de tudo, fosse do ponto de vista financeiro ou afetivo. Conforme notamos a seguir, é perceptível a dificuldade de P4 em fazer qualquer coisa, sozinha, demonstrando grande dependência, fator que pode dificultar o processo de luto (Kovács, 1992). Chama atenção o fato de a participante continuar oficialmente casada, ainda que seu marido esteja em outro relacionamento:

Ele sempre teve do meu lado quando precisei. Sempre, pra tudo, em relação a minha família, pra tudo ... eu era dependente dele... Tipo não só financeiramente... financeiramente também, porque na época eu não trabalhava, mas eu era de dependente de tudo. Aliás, até hoje. Se eu vou fazer alguma coisa, se for uma coisa muito importante, tipo vou comprar um carro... eu não consigo comprar um carro sem falar com ele. Eu tenho essa dependência até hoje(P4).

No caso de P1, durante quatro anos a relação foi mantida a distância, mas, quando sua ex regressou e começou a voltar-se para planos profissionais, o participante pareceu sentir-se perdido e sem o apoio:

O problema começou quando ela começou a trabalhar, porque aí o foco dela começou a se voltar pra essas questões assim. E aí eu acho que começou a pegar isso porque ela ficava mais longe mentalmente de mim ... naquele momento que talvez você espere que alguém vai te apoiar, seria uma pessoa tão próxima, que você espera que vai passar o resto da sua vida, por esse mesmo motivo ela mesma já te larga, e aí você fica sem nada.

Enquanto P4 veja no marido o homem protetor, P1 busca os cuidados e olhar da companheira. Os participantes, expostos até o momento (P1 e P4), apresentaram escolha predominantemente anaclítica e seus relacionamentos foram caracterizados como mais longos. No artigo intitulado Amor nos tempos de Narciso, Rios (2008) afirma que é preciso ultrapassar os ideais narcísicos, para que possamos chegar à alteridade e reconhecer o outro. Podemos hipotetizar que os relacionamentos mais longos proporcionam esse reconhecimento do outro como alteridade, possibilitando o predomínio de uma relação anaclítica. P3, que também teve relacionamento longo, embora mais jovem, apresenta alternância em sua escolha:

Eu que tenho um histórico assim tipo carente, um monte de outras questões familiares, era uma pessoa que supria essa minha ausência...eu sempre quis muito sair de casa, então ele era a grande tipo, sei lá: ah beleza, estamos juntos, vamos casar, eu vou sair de casa, vou conseguir realizar aquilo que eu queria né. Tenho muito esse ideal de ser mãe, então pra mim era a pessoa que iria possibilitar que eu realizasse os meus planos de forma mais rápida.

O trecho permite verificar as duas escolhas. Por um lado, fala do companheiro mais velho que lhe apresenta a vida e as mais variadas situações, fala da necessidade de proteção (lembrando a figura paterna); por outro, existe uma questão mais narcísica, como se o outro não fosse realmente reconhecido, mas sim usado para facilitar a realização de seus desejos. A questão da carência é característica da sociedade moderna atual, na qual o outro é usado para suprir esse vazio (Smeha & Oliveira, 2013). Parece que os relacionamentos dos mais jovens e de menor duração (P2, P3 e P6) trazem a questão de ter necessidades e desejos atendidos.

O relacionamento de P2, de menor duração, apresenta escolha predominantemente narcísica. Quando questionada sobre o que a fez gostar da pessoa com a qual se relacionava, respondeu:

Acho que o que eu queria que ela fosse. Objetivos que eu queria, gostaria que ela alcançasse. É... na verdade essa pessoa é uma pessoa boa, e você vê possibilidades pra ela... uma das coisas que eu gostei bastante de me aproximar dele foi essa possibilidade de ter visto nele o que eu também fui errada, e como eu já tinha mudado muito, muito provavelmente eu via que ele também poderia mudar.

P2 demonstra relacionar-se com si mesma, não parecendo haver um reconhecimento desse outro. Além disso, quando fala em possibilidades, podemos pensar na projeção e idealização do objeto como forma de substituir o narcisismo primário, perdido na infância (Ferreira, 2010). Outro participante que apresenta escolha narcísica é P6, que demonstra a impossibilidade de reconhecer esse outro. Quando falava sobre o processo que levou ao rompimento, trouxe a questão da mudança de comportamento da companheira como se fosse válida apenas se fosse por ele: “ela não mudou de verdade, ela só cedeu um pouquinho no que ela não faria normalmente, só isso... mas não que ela não tenha melhorado por minha causa”. P6 também apresentou dificuldades em lidar com o ritmo diferente da ex-namorada diante da resolução dos conflitos.

O outro é a possibilidade de termos nossos desejos atendidos, reaver nosso narcisismo primário, no entanto, se não for como idealizamos, melhor que seja descartado. P2 citou no momento do término: “se você não quer dar o que eu preciso, então não preciso continuar nesse relacionamento”. P6 rompeu quando a namorada deixou de corresponder às suas expectativas: “ela tava fazendo umas coisas que tipo, pra mim... não tava dando mais certo... ela tava enchendo muito o saco, não era uma coisa natural”. Após terminar, P6 explicou: “no outro dia eu estava meio mal ainda, mas depois eu fiquei bem”. Dois dias depois, o participante começou a se relacionar com a atual namorada. Os dados de Smeha e Oliveira (2013) elucidam essa questão, explicando que, nos relacionamentos atuais, a busca gira em torno de alguém que proporcione prazer e felicidade, com disponibilidade de tempo atenção e dedicação, que possa dar afeto mais que receber.

Salles, Sanches e Abras (2013) afirmam que, nas clínicas atuais, existe a questão de os relacionamentos com base anaclítica terem maior durabilidade, mas chama a atenção para o fato de que os mais jovens, que fizeram escolha com base narcísica, apresentam queixas como falta de atenção e cuidado, o que é pertinente à escolha anaclítica. Nossos resultados vão ao encontro dessa afirmação.

Nossa cultura contemporânea produz indivíduos que buscam cada vez mais a si mesmos, a si próprios como objetos de amor (Rios, 2008). Conforme apresentaremos em outra categoria, o próprio sofrimento diante da perda parece tornar os participantes mais individualistas, como forma de protegerem-se de um novo sofrimento, independentemente de a escolha ter ocorrido com base narcísica ou anaclítica.

O processo de luto na separação amorosa

Diante da separação amorosa de alguém significativo, não houve morte concreta, mas há a presença da morte em vida pelo fim de uma situação. Embora o processo de luto seja universal, a forma como cada um passa por esse processo é individual e única (Kovács, 1992, 1996). A partir desta pesquisa, observamos diferentes maneiras de enfrentamento. Enquanto alguns (P3, P5 e P6) conseguiram elaborar a perda, outros ainda estão em processo de luto (P1, P2, P4). Sobre o início do período de luto, podemos observar:

foi como cair de um precipício, um buraco mesmo... e no início não dá pra sair desse buraco, até porque eu me vi sozinho... Não existia nenhum tipo de perspectiva antes, ou motivação, e acho que aí progressivamente isso começou... talvez uma luta muito grande interna de tentar ter uma voz dentro de você que está motivando aos poucos você a voltar desse buraco (P1).

O participante viu-se sozinho e sem rumo, tendo que encontrar forças para recomeçar. Parisi (2012) explica que, quando alguém está em um relacionamento, partes de si são projetadas no outro e sem ele é como se a pessoa ficasse pela metade. Os próprios hábitos vividos pelo casal também deixam de existir. O “nós” vira “eu” e essa identidade precisa ser reconstruída. Podemos encontrar a mesma questão em P6: “era como se minha vida tivesse uma lacuna, tipo um vago gigante; ...você está acostumado com uma coisa, aí de um dia pro outro, não tem ninguém, não tem mais nada. O que você faria nas horas vagas? ”.

O mundo dos participantes ficou pobre e vazio, assim como explicou Freud (1917/2006), pois toda a energia psíquica estava concentrada no objeto perdido. À medida que existe um gasto dessa energia, por consequência de o teste da realidade mostrar que o objeto não está mais lá, recuperamos a possibilidade de investir em um novo objeto. P1, P3 e P4 relataram tentativas de envolvimento enquanto ainda estavam no processo de luto. P1 indicou o estranhamento diante da nova experiência afetiva: “Estranha porque pra mim é difícil de esconder né, o que aconteceu e como eu me sinto a respeito” e comparações com o ex, por ser alguém diferente, assim como P4 citou: “toda pessoa que eu arrumo eu comparo e tipo... nunca é igual a ele”. Existe uma tentativa de buscarmos o objeto perdido em outros objetos, mas, na maioria das vezes, isso acaba gerando frustração, visto que o objeto é insubstituível e o novo não passa de outro objeto: “eu tava confundindo, buscando ainda meu ex nessa pessoa”(P3). P2 apresentou a necessidade de desvalorizar a pessoa perdida, o que pode ser entendido como uma tentativa de desligamento do objeto de amor (Kovács, 1992).

Assim como afirma Parkes (1998), uma perda traz outras perdas secundárias. Os indivíduos se deparam com a necessidade de reestruturar papéis e funções, mudar a rotina, lidar com o que não está mais presente, encontrando um limite e a sensação de desamparo. Os participantes que estão em processo de luto (P1, P2e P4) apresentam algumas mudanças progressivas. P2 tem se dedicado aos estudos e, sobre seu processo de luto, afirmou: “É difícil, mas tá indo... Eu acho que estou fazendo várias transformações. É... desde evitar algumas pequenas coisas, às vezes, até voltar nelas [lembranças, fotos, músicas] pra que eu não me sinta tão vazia”. P1 está trabalhando, empenhado nos estudos e em um novo relacionamento: “A parte da tristeza já passou, porque agora eu tenho as minhas metas, que era o que faltava no início”. Embora P4 esteja no processo de luto, os dados nos levam a crer em um luto com disposições complicadas, anteriormente conhecido como patológico (Kovács, 1996; Parkes, 1998) e que, para Freud (1917/2006), estaria relacionado à melancolia por isso a dificuldade em lidar com a perda: “às vezes é... depende do momento você não está legal. Eu choro pra caramba, falo: puta, que merda que aconteceu na minha vida?”.

As fases de luto, apresentadas por Kübler-Ross (1926/1994), podem ser reconhecidas com facilidade na fala de P3, que já elaborou seu luto, entre elas, depressão, negação, raiva e aceitação:

Sensação de vazio, muita angústia. Eu passei por um processo de depressão depois do término, um período assim de não querer sair de casa, não querer falar com as pessoas e uma certa vergonha por um tempo... passei por um processo muito doloroso de querer saber tudo, de tipo ficar fuçando internet, família, amigos... Depois eu passei por um processo de ódio mortal, do tipo: eu quero que a pessoa morra, não quero ver ela na minha frente, e aí depois foi aquele processo de tipo ele lá e eu aqui. (P3)

Outra forma de luto, encontrada em nossos participantes, diz respeito ao luto antecipatório, que ocorre antes da perda real e tem as mesmas características e fases do luto (Ducatti, 2005/2013). Tanto P5 como P6 apresentaram uma elaboração ainda quando estavam com o companheiro (a). No caso de P5, a progressão do desgaste do casamento foi proporcionando, ao longo dos anos, a elaboração e reorganização de alguns aspectos. O nascimento do último filho deu força à decisão de terminar o relacionamento: “foram seis anos mais ou menos né, de desgaste... Depois de um bom tempo que eu comecei a pensar na minha vida, como seria de divorciada... Então o que eu senti mesmo foi um alívio”. Já P6, que demonstrou ser mais narcisista, apresenta características pertinentes à modernidade líquida, a preocupação com sua individualidade e a facilidade em descartar o outro:

Eu pensei bastante, pensei três meses pra mim terminar com ela, tipo: ‘será que é isso mesmo? Será que eu não vou me arrepender? ’ Só que aí eu realmente percebi que não ia dar certo, daí eu preferi terminar logo...o tempo que eu fiquei pensando se queria isso ou não, eu meio que já tava me acostumando com a ideia que eu ia terminar(P6).

O processo de luto envolve sentimentos e emoções ambivalentes e diversificadas (Kovács, 1996). Dentre eles, os participantes falaram sobre amor, dor, tristeza, raiva, angústia, solidão, culpa, amizade, ressentimento, mágoa, saudades, entre outros. P4 demonstra um movimento melancólico, pois, além das características do luto, apresenta baixa autoestima e agressões ao próprio ego. Parece que o objeto perdido foi introjetado, fazendo com que as acusações dirigidas a ele fossem deslocadas a si mesma (Freud, 1917/2006), como o desejo de morte e raiva. A separação da participante foi decorrente de uma traição por parte do marido, que, segundo Levy e Gomes (2011), pode liberar o ódio, a vingança e o desejo de destruição. Podemos observar em sua fala:

na época eu queria morrer, depois eu falava: ‘maldita hora que eu fui ter filho, pra quê eu fui ter filho?’ ... senti uma dor de perda, de abandono. É... uma inútil, uma infeliz, sei lá... Isso durou sem brincadeira, isso que eu senti, de chorar, deitar na cama e querer morrer... eu acho que quase dois anos... às vezes com ódio eu falo: ‘Tomara que ele morra’, sabe assim... tipo, pelo menos ele não tá nem comigo nem com ela. Penso mesmo. Ou então às vezes eu penso assim, tipo... ‘se ele morrer, nossa, eu vou sofrer pra caramba’.

O relato da participante apresenta muita agressividade e ressentimento com relação ao ex-marido, que são transferidos para a filha, por ser fruto da união, algo que não pode ser apagado. Além disso, em alguns momentos, o companheiro aparece como idealizado: “eu não vejo nenhum aspecto ruim nele, ele sempre foi muito gente boa”. Parece haver dificuldade em perceber o outro como independente, com vida própria, enquanto ela era/é totalmente dependente. Levy e Gomes (2011) explicam que, nesses casos, o objeto é sentido como insubstituível; existe a necessidade de continuar fundido, e perceber essa independência do objeto pode soar ofensivo, como se fosse um traidor, gerando, inclusive, o desejo de morte (de si e/ ou do outro) (Kovács, 1992).

Assim como cada luto é vivido de maneira única, os ganhos e significados também são particulares, por isso a importância de elaborarmos e nos reorganizarmos diante da perda (Kovács, 1992; Parisi, 2012; Cavalcanti et al., 2013). Grande parte dos participantes, independentemente de estarem ou não em processo de luto, destacaram as transformações e o crescimento encontrados diante da perda. Podemos observar: “consegui finalmente fazer as pazes com o ambiente, me sentir bem” (P1); “toda perda gera um crescimento, um autoconhecimento, acho que até uma descoberta de personalidade”(P3);“crescimento pessoal. Hoje eu me relaciono muito melhor com as pessoas, me sinto mais livre, crescimento espiritual também”(P5);“depois de um término, você sempre aprende uma coisa importante pro próximo relacionamento... na maioria das vezes você muda, porque é uma experiência que marca na vida das pessoas”(P6). Dos participantes em processo de luto, P1 e P2 estão conseguindo elaborar a perda. No entanto, pelo fato de P4 apresentar características melancólicas, não identificamos um movimento efetivo de elaboração. Conforme ela própria afirma, ainda sente muita “mágoa e ressentimento”, indicando um caso em que a ajuda psicoterapêutica poderia auxiliar no processo de luto.

A importância e os tipos de amparo durante o processo de luto

Em um mundo em que os relacionamentos são cada vez mais efêmeros e descartáveis (Bauman, 2004), a sociedade é capaz de reconhecer e ajudar ao próximo diante do sofrimento por separação amorosa? Os participantes nos ajudam nessa resposta, apresentando os tipos de amparo encontrados no processo de luto. Houve amparo familiar, de amigos, psicológico e espiritual? Começando por P5:

Minha mãe e meu pai... eles foram essenciais. Meu irmão.... se eu não tivesse o apoio deles aí com certeza... Na época eu tava bem legal, mas emocionalmente, se você não tem com quem contar, você... esmorece mesmo... Minha mãe desde sempre olhou os meninos pra mim, pra eu trabalhar, sempre... tinha esses dois amigos que eram quase dois irmãos pra mim; então eles também foram muito importantes. (P5)

A participante relatou a importância do amparo familiar e dos amigos. Notamos que, além do amparo emocional, também houve ajuda no cuidado com os filhos. P5 destacou o crescimento espiritual diante da descoberta do kardecismo. Em outro momento, P5 explica que, com a ajuda dos pais, conseguia tempo para sair e relacionar-se socialmente, bem como conseguiu estabilizar-se em sua casa e ficar mais confortável. Além de P5, P3 também demonstrou a importância do amparo familiar e dos amigos:

Da minha família em geral, mas em especial da minha avó, ela me deu bastante atenção... Minha família por várias vezes achou que seria importante procurar terapia, mas eu não quis, porque eu achava um absurdo eu entrar em depressão por causa de homem...conforme as pessoas foram ficando sabendo, ...foram me amparando da melhor forma que eles conseguiram: convites pra sair, coisas pra você ir se distraindo, conhecendo novas pessoas. E os meus amigos do colégio também, foram me reintegrando aos Eventos... Nesse ponto eu tive muito amparo. De conversa, tipo, você vai chorar, nós vamos te escutar. Mas foi um amparo mais limitado assim. Chegou um tempo em que as pessoas não tinham mais paciência.

A família de P3, principalmente sua avó, demonstrou preocupação, chegando, inclusive, a indicar psicoterapia. A participante chegou a perder peso e chorou por muito tempo, gerando comoção nos demais, mas, depois de um tempo, apenas a avó permaneceu ao seu lado. Os amigos aparecem como aqueles que a chamam para se distrair, evitando que pense no ex. Chama atenção a vergonha apresentada pela própria participante, como se não fosse permitido sofrer por amor. Doka (citado por Casellato, 2005/2013), citado por Casellato (2005/2013), aborda o caráter social do luto não reconhecido. Quando ocorre a negação, tanto da sociedade como da pessoa, é possível que se vivam sentimentos como culpa e vergonha, além de se vivenciar o sofrimento em isolamento. A própria resistência em procurar psicoterapia demonstra ser decorrente da vergonha desse luto.

Bem diferente de P3, P1 explica que, pela distância, sua família ajudou pouco e ele não tinha amigos. Por outro lado, traz a importância da ajuda profissional:

Uma coisa que ajudou pouco, mas me ajudou legal foi fazer triagem na clínica psicológica... me ajudou no sentido de pela primeira vez eu falar pra alguém... foi reconfortante falar tudo que estava engasgado sem medo de ser feliz, porque não ia ter nenhum tipo de julgamento. Significou pela primeira vez algum tipo de apoio.

Conforme destaca Kovács (1992), o trabalho psicológico pode auxiliar no desenvolvimento do luto, principalmente nos casos mais patológicos. Expressar os sentimentos evocados pela perda é a via de elaboração, e, em alguns momentos, esse trabalho psicológico pode ser, inclusive, preventivo, evitando um processo patológico.

O amparo oferecido para P2, P4 e P6 foi mais típico da contemporaneidade, parecido com a dinâmica dos amigos de P3. Convites para sair, como no caso de P4: “tive amparo da minha família... sempre alguém estava me chamando pra estar em algum lugar... mas eu também não tinha vontade de ir pra lugar nenhum. Eu me afastei de todo mundo”. Em determinado momento, a participante contou que chegava a sair e chorar nos lugares, questionando e pesando que não queria estar ali. As amigas de P2 ajudavam a depreciar o objeto: “Todas minhas amigas já detestavam ele, então eu tive bastante apoio delas, principalmente pra falar mal”. P6 estava preocupado em arrepender-se de sua decisão, sendo esse seu questionamento aos demais enquanto ainda estava no relacionamento: “Eu fiquei conversando com minha atual namorada sobre isso e tal, aí ela me ajudou bastante... conversei com uns moleques do quartel também,... eles falaram que eu ia me arrepender, mas no final eu não me arrependi”.

Podemos elucidar essas características da sociedade líquida a partir de Pivetta, Matos e Alexandre (2012), que buscaram entender a identidade dos sujeitos atuais. Os autores explicam que as pessoas não possuem tempo para conservar hábitos, rotinas e relacionamentos. Se essas identidades são mantidas pelo consumo, então uma forma de amparar é encorajando a seguir em frente, superar, encontrar um novo alguém. Poucos são os que ofereceram o tempo e escuta necessária. Assim como afirmam Mendes, Eliana e Bara (2014), “o indivíduo é convidado o tempo todo a reagir rapidamente às experiências de perda, o que acaba dificultando e muitas vezes impedindo a elaboração do luto” (p.428).

De acordo com Ducatti (2005/2013), é necessário expressarmos os sentimentos decorrentes da perda para que possamos elaborar e resignificar a experiência vivida. Em alguns casos, seria importante, inclusive, um ritual de passagem. A rede de apoio se faz necessária para reconhecermos o luto e expressarmos o pesar, seja por meio dos amigos, família ou da espiritualidade ou psicoterapia.

Como exemplo, Parisi (2012) criou um espaço ritual que aconteceu por meio de um grupo vivencial de mulheres. Foram oito encontros com duração de 2 h 30 min. Além das conversas, foram utilizadas diversas técnicas expressivas e narrativas de mitos, alcançando-se o objetivo de favorecer a elaboração simbólicado luto. Outra proposta interessante, embora aplicada em outro público e temática, diz respeito ao trabalho apresentado por Gil e Tardivo (2011). A Oficina Psicoterapêutica de Cartas, Fotografias e Lembranças foram realizadas em um processo breve de 16 sessões semanais, com duração de 1 h 30 min. cada. A partir da utilização dos objetos e fotografias, foi possível que os participantes expressassem os aspectos emocionais e valorizassem os ganhos. Essas são algumas ideias de intervenções possíveis para favorecer processos de elaboração do luto.

A própria entrevista da atual pesquisa demonstrou ter efeito importante para os participantes. Ao final das entrevistas, todos relataram que a experiência foi interessante, pois permitiu falar situações significativas e reviver sentimentos. Para dois participantes que ainda estão em processo de luto (P1 e P2), a busca por participar da pesquisa ocorreu com o objetivo de falar sobre o relacionamento: “bom falar sobre isso de novo, porque eu também não falo a respeito disso com ninguém. Porque tipo, é difícil admitir pras pessoas de fora o quanto isso ainda me afeta. Acho que por parecer sinal de fraqueza” (P1); P2 comentou a importância de conversar sobre a situação com alguém desconhecido, por não existir opinião formada, e fez um gesto de que queria se livrar de tudo o que pensava:

É uma forma de você também, acho que mentalmente lembrar de várias coisas, estruturá-las e colocar os pontinhos no is. Realmente, colocar o significado que teve o relacionamento ou quem é esse tipo de pessoa, ou o que você espera agora de um relacionamento, acho que faz com que tudo fique mais claro. (P2)

Diante do relato dos participantes e da própria experiência como pesquisadores, observamos que é preciso que a sociedade passe a autorizar o luto por separação amorosa, para que possamos amparar e escutar melhor os enlutados.

Sentimentos após a separação e expectativas

Após o término, muitos são os caminhos percorridos, mas restam algumas dúvidas: O que restou dos sentimentos? Após períodos distintos pós-término, todos os participantes demonstraram sentimentos ambivalentes. Se por um lado há amor, por outro existe raiva, seja por ressentimentos passados ou pelo fato de o outro ter seguido em frente. Para aqueles que ainda estão em processo de luto (P1, P2 e P4), há aspectos a serem elaborados. Conforme podemos verificar:“Eu ainda gosto dela... mas eu sinto talvez, o principal é saudade.”(P1); em meio a certa negação, P2 acabou assumindo a raiva: “Ah, não sei... acho que tudo, de tudo talvez, e nem raiva... só um pouco, porque ele já tão rápido ficou com outra pessoa”; P4 apresenta dificuldade em elaborar o processo de luto, esboçou que às vezes deseja a morte do marido, pois ao menos não estaria com a outra (pela qual foi trocada), mas sofreria sem ele: “Hoje eu não sei se é amor ou se não é, então eu não sei que sentimento que eu tenho. Que nem, às vezes com ódio...Eu não sei explicar... a mágoa é a mesma...”

Dos participantes que elaboraram o luto, P3 e P5 demonstraram maior amadurecimento ao falar do relacionamento: “é uma pessoa superimportante na minha vida, alguém que eu sempre vou lembrar por N questões, por N coisas que vivemos... É assim, consideração né, é uma pessoa importante”. P5 chegou a se emocionar enquanto falava:

tenho certeza hoje, que aquele sentimento lá do comecinho, que a gente tinha de amizade, companheirismo um pelo outro, eu acho hoje, sinceramente, se acontecer qualquer coisa e eu precisar dele, eu posso contar com ele hoje; e ele pode contar comigo (P5).

Marcondes et al. (2006) realizaram uma pesquisa intitulada Sentimentos predominantes após o término de um relacionamento amoroso. Os dados são ilustrativos e carecem de mais pesquisas, mas, por meio de uma escala de atitudes, foi possível observar que, ao contrário do que imaginávamos, não só os relacionamentos duradouros apresentam maior sofrimento. Os relacionamentos de menor duração podem, inclusive, gerar sofrimento mais intenso, assim como ocorreu com o público masculino da pesquisa dos autores. Sobre a questão de quem deixa e é deixado na relação (Parisi, 2012), pode existir variação na dor, mas, independente disso, a perda e separação ocorrem para ambos, que devem elaborar o luto.

Com relação às expectativas para o futuro, os participantes demonstraram mudanças em sua forma de lidar com os relacionamentos. Parece haver dificuldades em se relacionar novamente e entrar em contato com um novo sofrimento, talvez por isso as expectativas sejam baixas. Para os jovens participantes da pesquisa de Smeha e Oliveira (2013), o futuro das relações será, entre outros, baseado na individualidade, prioridade da estabilidade profissional e liberdade além do pouco investimento no outro. Nossos participantes confirmam essas características conforme veremos a seguir.

Referindo-se às metas individuais, P6 falou: “Espero que a gente tenha um tempo pra ficar com a gente; mas também acho que a gente tem que ir atrás do que quer pra vida”; já P1, em meio à reconstrução de seu novo eu, teme perder o que tem conquistado com dor: “Tem que ser alguma coisa que me faça bem, acima de tudo... não tire nada meu, da minha individualidade, porque agora que estou recuperando ela de novo”. P2 gostaria de obter algo que não encontrou nesse relacionamento: “Alguém que saiba quem é e saiba o que pode oferecer pra mim. Segurança”, mas afirmou não querer se relacionar por um bom tempo e P4 busca alguém igual ou melhor que o antigo parceiro. P5 disse não ter planos, mas gostaria de encontrar alguém que lhe faça bem, no entanto afirmou: “Eu não consigo me ver morando com outra pessoa, dentro da minha casa, com outra pessoa envolvida ali no meu... não acho espaço pra essa pessoa ali dentro, eu não consigo, porque eu estou muito livre e independente”. P3 também apresentou dificuldades:

hoje em dia eu espero muito pouco. Acho que eu tenho muito medo de sofrer de novo tudo aquilo, então eu sou uma pessoa que vai até devagar demais, até meio que... sabe uma pessoa que se bloqueia? Tipo eu não vou gostar tanto, não vou investir tanto, eu não vou abrir mão de tantas coisas pra investir em uma pessoa.

A partir de Freud (1914/2004), podemos refletir sobre o narcisismo secundário como sendo a retomada da libido objetal para o investimento no próprio eu, como forma de reaver o amor primitivo por si mesmo. Os participantes, diante do sofrimento, não esboçaram muita preocupação com o outro, mas consigo próprios. A partir disso, questionamos se o outro é somente meta para satisfação, não sendo reconhecido em sua alteridade, por isso a ferida narcísica diante da perda de si mesmo (Levy & Gomes, 2011). As pessoas são como bens de consumo, mas, se a tão esperada felicidade não é encontrada rapidamente, soa mais atraente vivermos sós, na fantasia onipotente de que não precisamos do outro (Rios, 2008). Ainda segundo a autora, “Evitamos as dores de amores pelo outro e afundamos nas dores do vazio de si mesmo” (p.424). Assim como afirma Parisi (2012):

Não se pode afirmar que futuras decepções ou separações amorosas na vida das participantes não serão vivenciadas sem sofrimento, uma vez que não há como criar imunidade à dor sem pagar o preço de um distanciamento da vida. O sofrimento é inerente ao envolvimento e ao estar profundamente vinculado a alguém (p.227).

Podemos refletir sobre os medos e defesas ocasionados pela perda diante da separação amorosa. Ainda que futuros vínculos sejam evitados, somos convidados o tempo todo a buscar alguém que nos proporcione a ilusão de completude, encontrada outrora.

Considerações finais

A presente pesquisa atingiu seus objetivos, permitindo ampliar a temática e possibilitando maior contato e compreensão com relação àqueles que sofreram a perda amorosa. Levantamos a hipótese de que o sofrimento ocasionado pelo fim do relacionamento gere como defesa o distanciamento de outro, que poderia vir a ser um novo objeto de amor. Podemos entender essa característica concernente ao narcisismo secundário, em que o indivíduo busca voltar a investir em si mesmo como forma de defesa. Por existir a necessidade de afeto e segurança por parte do outro, os participantes buscam, de certa forma, relações anaclíticas, embora se comportem como narcisistas. Dessa forma, encontramos as queixas atuais de necessidade de cuidado e companheirismo, ainda que as pessoas não estejam necessariamente dispostas a oferecer o mesmo.

No processo de elaboração do luto, após o período de dor, levamos a marca do acontecimento, mas, ao mesmo tempo, recuperamos a capacidade de tentar novamente, pois com a elaboração é possível introjetar as partes boas do objeto amado, que são integradas ao ego. Dessa forma, os aspectos bons passam a fazer parte da pessoa, que pode aceitar a perda. As lembranças e transformações foram destacadas por alguns dos participantes, indicando que tais relacionamentos se tornam base para outros futuros relacionamentos.

O trabalho apontou a importância de uma rede de apoio e a necessidade de deixar que o indivíduo expresse sua dor, autorizando o luto por separação amorosa. Diante de uma sociedade que busca a felicidade a qualquer preço, negar a dor é mais fácil que lidar com os sentimentos difíceis. Observamos a necessidade de um processo terapêutico individual ou algum outro tipo de intervenção, como via de expressão e elaboração do luto, para casos como o de P4, em que a elaboração não se mostra eficiente. A atual pesquisa trabalhou com uma amostra aberta e amplo questionário, o que nos permitiu escolher o conteúdo que seria trabalhado, mas não possibilitando trabalhar todos os dados. Dessa forma, acreditamos que mais trabalhos se façam necessários diante da temática específica, visto que os conteúdos apresentados não foram esgotados.

Referências

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Autor notes

Ohara de Souza Coca: psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu - USJT (2015), aprimoranda pela mesma instituição no serviço de Apoio Psicológico ao Aluno (2016) e na disciplina Clínica Psicodinâmica na Sociedade (2016).
Rodrigo Jorge Salles: psicólogo graduado pela Universidade de Uberaba - UNIUBE (2009). Foi residente do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde - RIMS, Área de Concentração em Saúde do Idoso, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM (2010-2012). Mestre e doutorando em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP (2012-2014). Pesquisador/Colaborador no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social - Serviço APOIAR. Professor na Universidade São Judas Tadeu (USJT).
Laura Carmilo Granado: psicóloga graduada pela Universidade São Francisco (2001), mestrado em psicologia (Neurociências e Comportamento) pela Universidade de São Paulo (2005), e doutorado em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora na Universidade São Judas Tadeu e pesquisadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social - APOIAR (USP). Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em clínica, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise, psicoterapia psicanalítica, enquadres diferenciados, fobia, angústia e neurociências e psicanálise.

E-mail: ohara_coca@hotmail.com

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