Artigo Original
Recepção: 24 Junho 2016
Aprovação: 09 Fevereiro 2017
DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v22i1.32409
RESUMO.: Este artigo apoia-se nas contribuições teóricas de Pierre Bourdieu, Philippe Ariès e Michel Foucault com o objetivo de examinar conceitos e instituições centrais para a psicologia do desenvolvimento. Utilizando o recurso do distanciamento histórico para compor o debate epistemológico, observou-se que a noção de desenvolvimento sofre deslizamentos de significado em decorrência de transformações históricas que conduzem à formação dos Estados Nacionais, forjados no ideal de progresso. A noção de desenvolvimento recebe, assim, sustentação das instituições escolares, encarregadas da formação dos novos cidadãos, e se reforça com o contexto capitalista. Finalmente, debate-se como a psicologia do desenvolvimento, herdeira e colaboradora desse ideal - que alcançou conquistas, mas conhece paradoxos e contradições -, poderia reposicionar reflexivamente o conceito de desenvolvimento em diálogo com áreas diversas que sublinhem a importância do bem-viver coletivo, das relações comunitárias e ancestrais. Trata-se, portanto, de propor uma perspectiva dialógica pluriepistêmica como possibilidade de integração da psicologia ao mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Desenvolvimento, psicologia do desenvolvimento, epistemologia da psicologia.
RESUMEN.: Este artículo se basa en los aportes teóricos de Pierre Bourdieu, Philippe Ariès y Michel Foucault, con la finalidad de examinar los conceptos y las instituciones centrales de la psicología del desarrollo. Por medio del distanciamiento histórico y del debate epistemológico, se observó cómo la noción de desarrollo sufre deslizamientos de significado como resultado de las transformaciones históricas que condujeron a la formación de los estados nacionales, forjados en el ideal de progreso. La noción de desarrollo recibe, así, apoyo de nuevas instituciones educativas, que participan de la formación de nuevos ciudadanos, y se ve reforzada por el contexto capitalista. Por último, se interroga cómo como la psicología del desarrollo, heredera y colaboradora de este ideal - que alcanzó logros, pero también paradojas y contradicciones -podría, reflexivamente, revisar el concepto de desarrollo tomando aportes de diferentes modelos en diálogo con otros campos. De esa forma se acentuaría la importancia del bienestar colectivo, de las relaciones comunitarias y ancestrales. La cuestión aquí es proponer una perspectiva dialógica pluri-epistémica como una manera de integrar la psicología en el mundo contemporáneo.
Palabras-clave: Desarrollo, psicología del desarrollo, epistemología de la psicología.
Introdução
A psicologia do desenvolvimento introduziu a dimensão histórica na psicologia (Foucault, 2011) ao estudar o sujeito em aspectos, habilidades e comportamentos ao longo da vida. A importância de estudos mais amplos e menos voltados para seus tradicionais objetos, como o do historiador Philippe Ariès, do filósofo e sociólogo, Pierre Bourdieu, e do filósofo-ativista que não se quis classificar disciplinarmente, Michel Foucault, está em proporcionar à psicologia condições de situar-se criticamente num contexto histórico-epistemológico.
Este artigo destaca princípios caros à psicologia do desenvolvimento (doravante PD), praticamente intocados por problematizações histórico-epistemológicas, embora sustentem investigações, saberes e práticas em quantidade expressiva. O modo de pensar a infância e demais marcadores de vida não é atributo exclusivo da PD, tampouco está livre das circunstâncias do mundo. Ao contrário, tais concepções e práticas continuam sendo tomadas das reflexões e práticas sociais, dentre elas, o fazer científico, e se relacionam intimamente com a estrutura socioeconômica e com projetos de sociedade e de ser humano.
O recurso ao olhar histórico-epistemológico, implicado nos conceitos de “desenvolvimento”, “progresso” e “evolução”, permite pensar a construção dos grandes marcadores ou etapas da vida com o entrelaçamento de instituições, discursos e práticas, formulados pelos campos da educação e da própria PD. Aqui, interrogaremos e estranharemos conceitos, instituições e teses da PD que foram naturalizados. Bourdieu (2011) considera a análise das prenoções e pressupostos um trabalho difícil, talvez interminável; contudo, aliada à reconstrução histórica, tal análise constituiria um caminho potente para rupturas com o “senso comum esclarecido” e para a compreensão da doxa - visão dominante e imperceptível, que se impõe sobre as demais.
Diversos autores já apontaram a pouca reflexividade sobre a configuração e produção da PD, o que contribui para a naturalização de conceitos e práticas (Lyra & Moura, 2000; Madureira & Uchoa, 2001; Mota, 2005, 2010; Oliveira, 2006; Ferreira & Araujo, 2009), assim como o uso pouco preciso de seus descritores (Barros, 2013; Lopez, 2015). Tais características confundem a PD com a própria psicologia (Barros, 2013; Lopez, 2015) e tornam ainda mais delicada a tarefa de examinar sua produção (Biaggio, 1989, 2011; Matos, 1992; Mota, 2005, 2010; Dessen & Guedea, 2005; Sifuentes, Dessen & Oliveira, 2007; Barros, 2013; Lopez, 2015), gerando multiclassificações em inúmeras subáreas, em revistas em psicologia (Souza, Gauer, & Hutz, 2004), Programas de Pós-graduação (PPGs) em psicologia, linhas de pesquisa (Tourinho & Bastos, 2011) ou em projetos de pesquisa (Matos, 1992).
Tal exercício reflexivo ainda é uma tarefa incompleta da própria psicologia no bojo das ciências humanas, conforme Foucault (2011), que aponta para a necessidade de insistirmos no desafio de narrar, perscrutar e constituir as diversas psicologias (Figueiredo, 1995; Jacó-Vilela, Ferreira, & Portugal, 2013) ou “ciências psicológicas” (Bock, Furtado, &Teixeira, 2001) contemporâneas. Desafio, aliás, que pode ser tomado como característica positiva do campo (Figueiredo, 1995; Jacó-Vilela, Ferreira, & Portugal, 2013; Ferreira, 2013).
Ao falarmos de “desenvolvimento”, conceito central para a PD, que ideia de ser humano e de sociedade assumimos implicitamente? Haveria a etapa final, o degrau último ou nos encontramos enclausurados em armadilhas metafóricas, nas quais os termos ‘progresso’, ‘desenvolvimento’ e ‘evolução’ evocam repercussões intermináveis, porém quase silenciosas ou silenciadas, de outros campos? Comecemos estranhando o termo progresso.
Derivas Etimológicas
O termo progresso, do latim progressus, indica avanço para frente, crescimento. Avançar é deixar coisas para trás, pisar em território novo. “O sentido etimológico espacial de ‘movimento para a frente no espaço’ sobreviveu apenas no emprego militar da palavra” (Rey, 1993, p. 1643). A figura geométrica que melhor ilustra o ideal do progresso é a reta ascendente. Lalande (1996, p. 871) observa dois sentidos: marcha para uma direção definida e outro, valorativo e relativo, de mudança gradual do “menos bom para o melhor”.
Para Rey, o sentido neutro, ligado à série de acontecimentos militares, “sem ideia de melhoramento, recua nos séculos XVII e XVIII e desaparece no século XIX, com o emprego generalizado da palavra evolução” (Rey, 1993, grifo do autor). No chamado século das luzes (o século XVIII), o termo designa o ideal de ‘evolução da humanidade’, nas direções científica, técnica e política. A palavra ‘progresso’ (e não ‘desenvolvimento’) seria essencial e a ideia neutra de ‘mudança’ expressaria ‘evolução’: “Os filósofos do progresso, típicos do século XVIII e, sobretudo, do século XIX recuaram claramente no século XX, no qual o progresso científico é frequentemente julgado de modo mais nuançado” (Rey, 1993, p. 1644).
Diferentemente de ‘desenvolvimento’ e ‘evolução’, ‘progresso’ não é muito encontrado na PD. Apesar de usos distintos, os dois primeiros têm origens comuns. Enquanto ‘desenvolvimento’ conhece um emprego abrangente, com difícil delimitação a um único corpo teórico, ‘evolução’ é mais utilizado na abordagem evolucionista, com referências diretas a Charles Darwin. Lalande (1996), ao discutir o termo ‘evolução’, lembra que este não foi utilizado no livro de Darwin, mas o foi nas obras de Herbert Spencer.
Desenvolvimento vem do verbo volvere (rolar, fazer girar) e de dois prefixos: des, que frequentemente indica oposição (desfazer, despenalizar), e en,que remete à posição interior ou movimento para dentro (encéfalo, embrião). Na palavra desarrollo, encontramos a mesma ideia: desenrolar, assim como em développement “Ação de desenrolar o que estava enrolado sobre si mesmo” (Rey, 1993, p. 594). O sentido de ‘desenrolar’ era o mais comum desde o século XIV, mas no século XVIII adquiriu novos valores semânticos: “Ação de desenvolver, de crescer” (Bonnet, 2006, p. 61); o sentido figurado, “ação de evoluir” (Bonnet, 2006, p. 143). O uso de ‘evolução’ seria mais recente e o encontramos no século XVIII na psicologia e na retórica para nomear acréscimo ou aprofundamento de um tema (Bonnet, 2006; Rey, 1993). Abbagnano (1966) observa que o sentido mais otimista para desarrollo torna-se comum na filosofia do século XIX, ligado a ‘progresso’, mas sua acepção anterior remonta ao conceito aristotélico de movimento, como passagem da potência ao ato.
O termo ‘evolução’ é analisado por Giddens (2009), interessado pela incidência dos princípios evolucionistas de Darwin nas teorias sociais. Segundo o autor, o termo sofre oscilação, com um momento de acentuada popularidade e posterior declínio. Do latim evolutia, derivado de e- (‘fora de’) e volutus (‘enrolado’), relacionado ao desenrolar de livros em pergaminhos. No final do século XVII, adquire sua acepção atual: processos ordenados de mudança, observados em estágios.
Os termos ‘evolução’ e ‘desenvolvimento’ têm gênese comum, marcada pelo elemento de composição “volv-”, de raiz indo-europeia “wel-/welw-”, com sentido de rolar, rodar, com correspondentes em diversas línguas. No grego, dois termos: elútron, para estojo, bainha de espada, casca de frutos, reservatório de água e, por extensão, corpo como invólucro da alma; e héliks, ikos, espiral, movimento circular. No latim volvo, volvi, volutum: rolar, revirar, rodar, enrolar, fazer passar o tempo, pensar, meditar (Rey, 1993). Observamos, portanto, a constância das noções de movimento e de desvencilhar-se de um envoltório. O exemplo do pergaminho (Giddens, 2009) parece apropriado e coerente com o sentido mais antigo no percurso histórico do termo e na apropriação e cristalização de determinada noção de infância, que discutiremos adiante.
Até o surgimento da imprensa, o principal suporte material do conhecimento fora o pergaminho (Serres, 2013). ‘Desenvolvimento’, em psicologia, foi sendo utilizado como o desenrolar de uma suposta essência, o desembaraço de uma situação provisória de incapacidades e fragilidades. O termo ‘infância’ (como infante e infantil) vem do latim infans (Rey, 1993), formado de in (prefixo negativo) e fari (falar): aquele que não fala. Por sua vez, fari remete a “esclarecer”, como seu sucedâneo “fenômeno”, e “falar”, como em afasia. Essa noção aproxima-se da concepção que Hall (2006) identifica no “sujeito do Iluminismo”:
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou ‘idêntico’ a ele - ao longo da existência do indivíduo (Hall, 2006, pp. 10-11).
A nomenclatura remete à localização histórica. Discutiremos o caminho constitutivo dessa concepção de desenvolvimento, consolidada no iluminismo. No final do século XVIII, segundo Japiassu (2006, p. 30), “os êxitos da física permitem se conceber um universo determinista totalmente inteligível ao cálculo”. Desse modo, constrói-se uma visão hegemônica, cujas origens remontam à filosofia racionalista. Japiassu (2006, p. 36) comenta, extensa e enfaticamente, a redução que o século XVII faz às “determinações ideais”. Instaura-se um “paradigma de simplificação”, caracterizado pelos princípios de disjunção, redução e abstração.
A invenção da infância e da escola
De acordo com Ariès (2012), a criança europeia dos séculos XIV e XV passa de uma condição subalterna, de invisibilidade e indiferença na relação com adultos, para a de centro das atenções no século XIX. No Império Romano, o pai poderia desconsiderar a criança nascida do ventre de sua esposa e expô-la à sorte, recém-nascida, do lado de fora de sua casa para uma possível adoção ou para saciar a fome de algum animal. Até o final do século XVII, crianças conviviam livremente com adultos, frequentavam os mesmos espaços, aprendiam a vida diretamente por meio desse contato - o que o autor denomina de aprendizagem.
O entendimento de Ariès (2012) sobre a descoberta do sentimento da infância no mundo burguês não se refere a relações afetivas entre adultos e crianças, mas à concepção do momento infantil como distinto das demais etapas da vida. Antes do século XVII, a criança europeia é um adulto pequeno, convivendo nos mesmos espaços, utilizando roupas similares, dividindo as mesmas salas escolares com crianças mais velhas.
Para Ariès (2012), a “paparicação” é o primeiro sentimento da particularização burguesa da infância. O segundo momento de distinção ocorre entre os séculos XVI e XVII, inicialmente pelos moralistas, eclesiásticos e legisladores, que viam nas crianças frágeis criaturas de Deus a serem preservadas, vigiadas e disciplinadas. A instituição escolar será o âmbito privilegiado para essa construção burguesa e disciplinadora. Os colégios europeus no século XIII (Ariès, 2012) eram asilos para crianças pobres, mantidos por doadores, geridos por regras monásticas, que somente se caracterizariam como instituições de ensino a partir do século XV, com o aumento da população (principalmente leigos, nobres e burgueses) e adoção de disciplina hierárquica e autoritária: “O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu da escola medieval, simples sala de aula, ao colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude” (Ariès, 2012, p. 110).
Foucault (2011) destaca as instituições militares, hospitalares e escolares, ao discutir a disciplina como tecnologia política de exercício do poder, que teve sua fase de elaboração mais importante ao longo do século XVIII. Assim como o colégio, descrito por Ariès (2012), os hospitais não cumpriam as finalidades que hoje reconhecemos neles, dedicados que eram ao abrigo de pobres. No caso dos hospitais, pobres moribundos.
Com a expansão populacional, o colégio torna-se condição imprescindível para a “boa educação” burguesa. Ariès (2012) observa que o movimento ocorre tanto pela preocupação com a formação moral e intelectual da criança, a necessidade de “adestrá-la”, quanto pela análise ou fragmentação que passa a caracterizar a “consciência moderna”. Assim, a formação pedagógica ocupa-se com parâmetros e métodos idênticos, processo que favoreceu a distinção do período da adolescência, uma ideia, se não inexistente, bastante incerta.
A disciplina regulava-se por grupos de camaradagem, dos quais as crianças participavam em “bando de companheiros” (Ariès, 2012). Esses grupos de variadas idades contavam com aprovação social, sendo submetidos a castigos corporais e humilhação. Tal condição se manteria até o final do século XVIII, como prática comum nos colégios. O chicote, antes reservado a crianças pequenas e aos plebeus, a partir do século XVI se estendeu a toda a população escolar, até a idade de 20 anos. A mudança desse panorama se deu com a supressão dos castigos: “Surgiu a ideia de que a infância não era uma idade servil e não merecia ser metodicamente humilhada” (Ariès, 2012, p. 118).
Ariès (2012) e Foucault (1998) nos apresentam a nova disposição social do século XVIII. Foucault faz vasta análise da passagem dos suplícios públicos a uma nova economia do castigo, propiciando a reformulação da política do direito de punir. A punição se desloca do corpo, como alvo privilegiado, para práticas sutis, veladas, menos diretamente físicas e mais despojadas de ostentação cerimoniosa, como no caso dos suplícios em praça pública. Nesse deslocamento, são mobilizados novos saberes, técnicas, discursos científicos, que justificam e garantem legitimidade a práticas do poder de punir, materializadas em imensa quantidade de papéis, organizados por um novo regime de verdade, aplicado não somente aos punidos, mas a todos que são “vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência” (Foucault, 1998, p. 28). Para Foucault (2011), a disciplina surge como técnica de gestão de seres humanos por meio de um conjunto de tecnologias que se associam, entrecruzam-se e se complementam: análise dos espaços e dos gestos, vigilância dos indivíduos em um sistema piramidal de olhares, inspeções, registro contínuo, exames como instrumento de classificação.
O processo disciplinar (Foucault, 1998) se desenha por volta do século XVIII e estabelece suas práticas concomitantemente na formação de exércitos, fábricas, escolas. O soldado se fabrica a partir de um corpo inapto, por meio da disciplina incansável e constante, disposta em sequências de exercícios e graus crescentes de dificuldade. Exercícios compõem métodos minuciosos de controle do corpo, tornando-o tanto mais útil quanto mais obediente e eficaz. A construção de corpos dóceis instaura-se em locais heterogêneos, como colégios e quartéis, onde o biopoder, íntimo e microfísico sobre o corpo, opera em termos de individualidade - porque distingue, separa e classifica -, e de produção em larga escala, transformando-se em máquina disciplinadora de grandes contingentes populacionais.
Além das técnicas de exame, vigília e da prática dos exercícios, a disciplina se consolida por meio da ‘arte das distribuições’ e do controle dos indivíduos no tempo e no espaço. No espaço operacionalizado em instituições especializadas (quartéis, fábricas, escolas), instaura-se o princípio da localização imediata ou o “esquadrinhamento” dos indivíduos: “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo.” (Foucault, 1998, p. 123). Na “classe” escolar, esse princípio localiza sujeitos, seguindo o modelo da legião romana: disposição em fileiras, hierarquias e vigilância piramidal. Gradativamente, a atribuição dos lugares replica a classificação interna, alinhamentos obrigatórios que atribuem a cada sujeito, tornado estudante, uma posição em relação aos demais de acordo com diversas categorias: idade, rendimento, comportamento.
A tecnologia pedagógica entra em operação para o treino do gesto útil, ágil e produtivo, disposto em séries, em um tempo linear, evolutivo, individual, cumulativo, orientado para um ponto terminal, positivo e estável (Foucault, 1998). Constrói-se a ideia de ‘evolução em termos de ‘progresso’. Tal “historicidade evolutiva” se constitui tão profundamente que, ainda hoje, é tomada como evidência e, em decorrência, ligada a um modo hegemônico de funcionamento do poder.
A tarefa de cuidados, atribuída a educadores, encontra apoio na etimologia de ‘aluno’ e ‘estudante’. Aluno deriva do verbo alère, relacionado à criança de peito, lactente, discípulo, a quem se deve cuidar, alimentar, sustentar. Estudante deriva do latim estud- e se refere a ações ativas de cuidar, ter zelo sobre algo ou alguém. Enquanto o primeiro é dependente de outrem, o segundo indica ação positiva no mundo.
Alain Coulon discute (2008), com exuberância de exemplos na vida universitária contemporânea, essa passagem, no limiar da vida adulta, à custa de intenso processo de aprendizagem de regras institucionais e de conhecimento. Lopez (2011) afirma que essa passagem se efetua quando (e se) ocorre uma afiliação afetiva e de tempo-espaço, ou seja, quando o estudante consegue realizar a tarefa emocional de constituir novos laços afetivos na universidade, ao tempo em que se reposiciona em seu grupo de origem e incorpora exigências de tempo e espaço universitários, sobretudo quando há migração de cidade.
A noção tradicional de desenvolvimento em psicologia não contempla, em geral, o protagonismo da ação criadora do sujeito do processo tampouco a inseparável composição deste com seu contexto. Em contrapartida, Vigotski, referência teórica importante na PD, desde o início do século XX, oferece uma compreensão integral da constituição do sujeito na cultura e no convívio com seus pares, dando ênfase às transformações, à criação e à arte. Contudo, no Brasil, seus estudos somente aparecem de modo significativo nos congressos brasileiros de psicologia do desenvolvimento mais recentes, no início do século XXI. Lopez (2015) observa que Vigotski é quase completamente ignorado nas primeiras edições do principal congresso da área no país, enquanto nas últimas edições passa à referência constante em trabalhos, títulos de conferências, mesas-redondas, comunicações orais e pôsteres. Além disso aparecem outros autores, como os russos Alexander Luria, Alexei Leontiev e Mikhail Bakhtin, o alemão Walter Benjamin, os cubanos radicados no Brasil, Fernando Luis González Rey e Albertina Mitjáns Martínez, e Jaan Valsiner, nascido na Estônia e professor nos Estados Unidos.
González-Rey (2013) relaciona esse atraso na América Latina, com exceção de Cuba, à vigilância ideológica, presente nesses países, que consideravam subversivas quaisquer produções científicas, culturais ou artísticas, provenientes da antiga URSS, durante o extenso período da guerra fria. Nas últimas décadas, aumentam investigações que tomam como ponto de partida a constituição da infância como fenômeno multideterminado, do qual fazem parte indissociavelmente seu lugar e sua relação no coletivo, isto é, família, cultura, rede de apoio, desejo de pertencimento ao grupo, condições físicas e sociais, sentidos e significados atribuídos ou mesmo contexto histórico e político. Permanecem, contudo, investigações que concebem a criança como universal, comparável em sua faixa etária com qualquer outra nos mais distantes contextos, espacial e temporalmente.
A importância crescente do contexto para compreensão dos fenômenos que envolvem o sujeito aparece nas propostas de classificação, de Hall (2006), de sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. A noção do sujeito sociológico, com “núcleo” ou “essência interior”, compreende que é na relação deste com o social que se constitui a “identidade”, pela mediação de valores, sentidos e símbolos. O “sujeito pós-moderno”, tributário de uma filosofia não metafísica, não será mais herdeiro de uma essência primeira. Se a noção de identidade esteve associada à fixidez e imutabilidade, passa a ser incorporada em diálogo com o contexto. No limite, investigações, não apenas em psicologia, nas quais aparecem ideias de formação e transformação contínuas, marcadas pela transitoriedade e pelo conceito de identidades múltiplas e, por vezes, contraditórias: “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (Hall, 2006, p. 13).
Na sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu (2005, 2009, 2011) a compreensão de uma vida ou de uma obra é indissociável de suas condições de realização, circunscritas a um “espaço dos possíveis”. Nessa perspectiva, a compreensão do pesquisador deve voltar-se para o campo no qual e contra o qual uma vida se fez e, primeiramente, para sua própria vida, no movimento reflexivo que Bourdieu (2005) defendeu e exercitou. Para o autor, na vertente anterior estão implícitos pressupostos de que a vida constitui um todo coerente, linear, expressão unitária de intenção ou projeto, que transcorre em uma ordem cronológica e lógica, com origem e fim, dirigida para sua realização. Tentar compreender a vida com essas características seria quase tão absurdo quanto analisar um trajeto no metrô sem considerar a estrutura da rede, as condições e relações objetivas, a passagem por aqueles trilhos.
Para Bourdieu (2011), essa característica narrativa encontra paralelo na estrutura tradicional do romance literário, no qual, por ilusão retórica, são estabelecidas conexões e coerência à sucessão de acontecimentos, tornando a vida coerente, progressiva, totalizante, linear. Essa formulação biográfica preocupa-se em atribuir sentido, em encontrar uma lógica de ligação entre acontecimentos passados e futuros, uma sucessão de etapas de um desenvolvimento necessário. Bourdieu (2011) afirma que o mundo social organiza-se por meio de mecanismos sociais que privilegiam e fomentam a compreensão da vida como unidade e totalidade, em rituais mais ou menos institucionalizados de “falar de si”, da confidência, da identidade social por meio do nome próprio e de sua constância no tempo e no espaço, os ritos institucionais de atribuição, as “apresentações sociais de si”, como carteira de identidade, curriculum vitae. Como alternativa, Bourdieu (2011) propõe a noção de trajetória para colocar em evidência a série de posições ocupadas pelo agente, ou pelo grupo, em um campo que está, assim como ele próprio, incessantemente submetido a pressões, mudanças, rupturas. Acontecimentos são compreendidos como deslocamentos pelo espaço social, a partir da circulação e do acúmulo de diferentes capitais, tensionado pelas diferentes forças e estratégias em jogo, e em um específico espaço dos possíveis. O espaço dos possíveis “à maneira de uma língua, ou de um instrumento de música, se oferece... como um universo infinito de possibilidades contidas em estado potencial num sistema finito de imposições” (Bourdieu, 1996, p. 125).
Desenvolvimento como palavra-chave do capitalismo
Após a experiência destruidora da Segunda Guerra Mundial, desenvolvimento torna-se a consigna de fóruns e organismos internacionais. No Brasil, mesmo que a ideia positivista de progresso continue tremulando na bandeira nacional, desenvolvimento é palavra-chave que incita grandes agências públicas nacionais. Reconstruir e desenvolver são objetivos de numerosos organismos: Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Internacional para Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Comitê de Políticas para Países em Desenvolvimento [PolicyCommitteeonDeveloping Countries] (PCDC) e diversas ONGs e agências públicas.
No que se refere ao campo acadêmico, antes mesmo do século XX, a noção de progresso constituía a base para políticas e práticas em educação, incidindo evidentemente nos discursos que a sustentam, como a psicologia, na produção de conhecimentos e intervenções, tanto na esfera pública quanto privada. Ambas, psicologia e educação, contribuíram para a manutenção e legitimação de privilégios em um regime de práticas.
As profundas transformações sociais (Ariès, 2012; Foucault, 1998; Bourdieu, 2005, 2009, 2011) intensificam-se entre os séculos XVII e XVIII, com a invenção do Estado burguês. Além da ascensão da burguesia e o aparelhamento do Estado, por meio de conceitos e instituições que lhe dão sustentação, destaca-se a instituição escolar, intimamente relacionada à reprodução da elite hegemônica. Mediante a lógica específica da escola, coloca-se em operação a “máquina infernal” que mantém a ordem preexistente de desequilíbrio entre quantidades desiguais de capital cultural entre os estudantes (Bourdieu, 2011).
Em linhas gerais, o sistema escolar atua como reprodutor da ordem preexistente ao impor operações de seleção e triagem, que reconhecem e premiam os herdeiros do capital cultural específico de classes e famílias privilegiadas. Capital cultural, para Bourdieu (2011), é qualquer capital - econômico, cultural, escolar, social, acadêmico - percebido de acordo com princípios de visão, divisão e classificação (habitus), compartilhados em um campo específico com os demais agentes. A chancela da instituição escolar constitui “ato de ordenação”, assim como a entrega do diploma pode ser comparada à sagração do cavaleiro nas ordens medievais, nas quais eleitos eram marcados em definitivo e, assim, legitimados a exercer o poder e dominar os demais.
Em seu Esboço de Auto-Análise (2005), Bourdieu observa que, no processo escolar de avaliação e seleção, estão implicados diversos conteúdos que ultrapassam limites conteudistas. O autor apresenta conceitos que desenvolveu a partir de sua própria experiência, por ter nascido em uma pequena cidade rural do interior da França. Ele relata como alguns professores se mostravam impressionados com o capital cultural dos estudantes parisienses que se exibiam em maneiras, trajes e “elegância burguesa”, pretensões literárias, vendo e premiando essas disposições, indicadores de propriedades intelectuais, morais e materiais.
Além do poder reprodutor e consagrador, a instituição escolar é importante meio de reprodução de modos, costumes, ideologias e práticas da elite dominante, contribuindo para disciplinar e ‘civilizar’ corpos ou lugares (Foucault, 1998). Em linhas gerais, foi essa a intenção dos jesuítas que vieram para o Brasil, na segunda metade do século XVI. Segundo Massimi (2013), a criação de escolas jesuíticas foi um dos principais objetivos do plano missionário jesuíta que, imbuído do espírito da pedagogia humanista aristotélica medieval, compreendia a educação formal como instrumento privilegiado para criar o homem novo da Terra de Santa Cruz: “Tal empreendimento acarretava a necessidade de formular conhecimentos e práticas que, na nossa linguagem atual, designaríamos como pedagógicos e psicológicos” (p. 86).
Como vimos, a partir das contribuições de Foucault (1998) é justamente nesse espaço de vazio discursivo e de práticas que novos saberes passam a operar. Segundo Ferreira e Araújo (2009), há um longo percurso de invenção da infância e da escola como lugares privilegiados e “naturais” da psicologia, sobretudo PD e psicologia escolar, com seus conhecimentos e saberes legítimos, portanto, de poder.
Foucault (2011) afirma que a constituição da psicologia se dá no esforço de compreender e classificar “o anormal” para dominar contradições humanas. Ao fazê-lo, advém, como consequência, uma psicologia do “normal”. Assim constituída, estabelece relações com a prática da educação, da medicina mental, da organização de grupos e passa a lidar com as dificuldades que a prática impõe e que Foucault denomina de fracassos temporários. O autor vê nesse ponto o surgimento de diversas especialidades da psicologia, incluindo a PD, concebida para lidar com as falhas no desenvolvimento.
O conceito de desenvolvimento, operado e naturalizado pela PD, sustenta procedimentos de compreensão e regulação do normal e do patológico, do desvio e do esperado, do adiantado e do atrasado. Lyra e Moura (2000) compreendem que o estudo do desenvolvimento deslocou seu interesse dos processos de mudança para as distinções entre etapas ou estágios, marcados por indícios de capacidades ou habilidades: “(...) respondendo à necessidade de uma psicologia das diferenças na qual o objetivo está voltado para classificar, sobretudo atrasos de desenvolvimento, ou separar os mais competentes daqueles menos competentes” (p. 218). Consideração bastante próxima a essa faz Ferreira (2010), que analisa como diferentes teorias que embasam a PD criaram práticas de adaptação e ajustamento, escalonando e separando grupos humanos em categorias e interessando-se pelo “ajuste” aos “desajustados”, “adaptação” dos “desadaptados”. A participação da PD nesse processo é apenas uma das inúmeras variantes que o termo ‘desenvolvimento’ experimentou.
Alguns efeitos da noção de desenvolvimento
As ideias de progresso, desenvolvimento, evolução conhecem longa trajetória no campo das ciências humanas. O sociólogo estadunidense Robert Nisbet (1986), ao discutir o termo ‘progresso’, demonstra que a noção está presente em povos antigos. Afirma, entretanto, que somente nas civilizações ocidentais o conceito é aplicado à história, compreendido como avanços de aperfeiçoamento da humanidade. As ideias de progresso, aperfeiçoamento e avanço estão relacionadas a aspectos coletivos como riqueza, conhecimento, civilização, técnicas de guerra. Embora o autor anteveja em Sêneca princípios comuns ao evolucionismo de Darwin, é em Santo Agostinho que a formulação de um crescimento individual, apoiado no ideal ascético cristão, dar-se-ia. Aqui a referência etimológica de ‘desenvolvimento’, como um desenrolar que tem início na infância, está em primeiro plano. O ser humano é visto como portador, em sua “essência”, das potencialidades da perfeição, acessíveis por meio do movimento de desenrolar que o termo comporta.
A ideia de progresso, contudo, somente ganhará força na Europa muito mais tarde, no século XVIII, e conhecerá sua pujança durante o início do século XIX (Nisbet, 1986). Em seguida, passa a ser desacreditada por um número crescente de autores, antes mesmo das mais graves contestações históricas como as duas grandes guerras, ditaduras militares, o holocausto, a quebra da bolsa de valores de Nova York, que colocam em xeque os princípios de um crescimento econômico ilimitado e reordenamento jurídico (em termos de igualdade entre povos e entre pessoas).
Uma demonstração do lado obscuro desses termos, segundo Nisbet (1986), foi a relação estabelecida, em alguns povos, entre a ideia de progresso e a existência de supostas “raças superiores”, como ocorreu na Alemanha nazista, mas não somente lá. A concepção de avanço necessário e irremediável da humanidade rumo à perfeição sustenta ideias totalitárias e ditaduras, diz o autor.
Ignacy Sachs (2009), um dos principais teóricos do desenvolvimento sustentável, compreende que o desenvolvimento inspirado no ideário moderno do progresso legitimou concepções racistas e visões totalitárias, nas quais povos mais avançados economicamente foram chamados a dirigir os destinos de outros, supostamente atrasados, os que não “evoluíram”, e, assim, impuseram as vias pelas quais aqueles deveriam encaminhar seu futuro para se aproximar das “metas universais” da civilização. Embora tais facetas da noção sejam suficientes para nos colocar em sobreaviso com o termo, podemos ainda analisar alguns desdobramentos. Como já discutimos anteriormente, a gênese da noção de desenvolvimento se relaciona com a ascese cristã, com o trabalho sobre si e a realização plena de uma essência que conduziria, por meio do merecimento, a uma vida futura feliz, inevitável, em um ambiente saturado de graça e contentamento. É provável que a origem comum tenha guardado o sentido de valorização de etapa futura, idealmente perfeita e plena, e de desqualificação do momento atual: imperfeito, incompleto, marcado por embaraços que devem ser desfeitos e superados.
O campo da educação, com suas tecnologias e discursos, lugar no qual se origina e do qual progressivamente se afasta a psicologia, ao padronizar métodos, exames, triagens, provas de eficiência e competência, em etapas descritas em graus minuciosamente compartimentados, que devem ser observados e superados pelo indivíduo, cria instrumentos e discursos que demandam medir, classificar, comparar. Índices classificatórios ganham ampla circulação e estão facilmente disponíveis para operações cotidianas de mensuração e exame. Basta a primeira consulta do pré-natal para pais urbanos contemporâneos entrarem na corrida desenvolvimentista - algumas delas antes mesmo do parto - com infinitos parâmetros a observar, como tamanho da tíbia, diâmetro do crânio, desenrolar da marcha, da fala etc.
Estudos em PD evidenciam metodologicamente suas escolhas e crenças: consistem, muitos deles, em um único encontro com a criança, para testes ou desempenhar tarefa a ser examinada. Essa abordagem desenvolvimentista, além de potencializar individualismo e competição, pode aproximar-se de um determinismo desenvolvimental que premia aqueles de melhor performance nos exames, ao passo que desqualifica e constrange “atrasados” (em oposição aos precoces), “deficientes” (em oposição aos eficientes), “desobedientes” (em oposição aos dóceis) e todos os demais, falhos, que se encontram fora da curva normal de representação estatística (Ferreira & Araujo, 2009; Ferreira, 2010; Lyra & Moura, 2000; Lopez, 2015). Além dessas características, a PD recebe críticas que a caracterizam como operando pouca reflexão (Barros, 2013; Mota, 2010, 2005; Madureira & Uchoa, 2001; Lyra & Moura, 2000). Lopez (2015) observa que, em seu principal congresso científico, estudos que tomaram a PD como objeto de debate ou reflexão não chegam a 4%.
Em favor de diferentes desenvolvimentos
A ideia de desenvolvimento sustentável surge na Declaração de Cocoyoc, em 1974, e no relatório WhatNow, de 1975. No primeiro documento, pobreza e desigualdade seriam as causas maiores da crise ambiental, enquanto o segundo enfatiza os abusos do poder como fator determinante da crise planetária. Em ambos, a necessidade de pensar limites para crescimento desordenado, consumo e produção, assim como soluções para as desigualdades e para urgentes questões ambientais. O ideal de crescimento a qualquer preço demonstrou seu acelerado potencial de destruição: extinção de espécies, contaminação das fontes de água, desertificação, mudança climática, lixões etc. Ignacy Sachs (2009) critica o modelo de desenvolvimento, pensado como crescimento homogeneizante, e propõe uma visão centrada em cada sociedade, suas peculiaridades, possibilidades, potencialidades, desejos, valores e projetos etc. A sustentabilidade defendida pelo autor integra componentes éticos, políticos, geográficos, econômicos, sociais, psicológicos e ecológicos. Acrescentamos que compreende a dimensão estética, presente no que Sachs denomina sustentabilidade cultural. A integração, que supõe deveres, obrigações e compromissos, é resultado de articulação laboriosa que requer participação livre e informada por parte da sociedade, mas demanda autonomia, liberdade e protagonismo dos sujeitos. Essa linha de pensamento não pertence aos princípios do desenvolvimento sustentável, mas é compartilhada por alguns movimentos mundiais. Na América Latina e no continente africano, a cultura do cuidado com o meio ambiente e do respeito à mãe Terra e seus elementos são parte de um legado ancestral que, mesmo tendo sido subjugado, invisibilizado e silenciado, resiste e se reafirma no presente.
O bem-viver andino visa a uma ética da suficiência para toda a comunidade, e não apenas para o indivíduo. Pressupõe uma visão holística e integradora do ser humano na grande comunidade terrenal que inclui, além do ser humano, o ar, a água, os solos, as montanhas, as árvores e os animais, o Sol, a Lua e as estrelas; e busca um caminho de equilíbrio e estar em profunda comunhão com a Pacha (energia universal) que se concentra na Pachamama (Terra) (Boff, 2013, p. 62).
Há, nos países capitalistas, um forte e positivado investimento no termo ‘desenvolvimento’, para além da esfera individual, com reverberações políticas, culturais, sociais e éticas. A fé capitalista no progresso, limitado apenas por empecilhos técnicos, na suposta abundância inesgotável de recursos materiais, assim como na equação em que crescimento econômico e científico, somados, se traduziriam em crescimento humano já não convence. A ideia de desenvolvimento como desenrolar de uma essência a partir de um centro estável e fixo não se sustenta. Além disso o termo ‘desenvolvimento’ sofreu duros golpes em sua formulação ideal que projetava bem-estar para todos, como consequência do progresso científico. O contexto passa a ser, reconhecidamente, parte da constituição do sujeito que se refaz ao construir e reconstruir o mundo à sua volta. No nível planetário, começamos a compreender que o ritmo e o modelo de progresso econômico são de difícil conciliação com valores relacionados à qualidade de vida e à proteção dos recursos naturais.
A ideia de desenvolvimento reproduziu práticas e concepções que extrapolam a esfera do individual. Valores como produtividade, assiduidade, disciplina, obediência, competição são comuns tanto em corporações industriais como em instituições escolares, assim como práticas de triagem, classificação e seleção entre os mais e os menos aptos. Não por acaso, competência e competição carregam a mesma gênese etimológica. Em contrapartida, movimentos planetários revisam o modelo de desenvolvimento que tem no âmbito financeiro-econômico sua métrica. Práticas e discursos sobre sustentabilidade expõem as características do modelo vigente: insustentabilidade ecológica, descompromisso ético, social e moral com os lugares da Terra e suas populações.
Num contexto em que países definem seus papeis, levando em consideração tanto a regionalização quanto a globalização, e no qual diferentes projetos de desenvolvimento competem para garantir a necessária sustentabilidade socioambiental, se o pensamento não é único e as miradas para abarcar tal complexidade são necessariamente plurais, o desenvolvimento também não pode ser único nem universal.
O conceito de desenvolvimento humano implica o imperativo ético de não sacrificar o bem-viver dos outros em nome de seu próprio crescimento, progresso ou evolução. Esse imperativo baseia-se em ideais de justiça e fraternidade, em sentimentos como solidariedade e compaixão e em práticas de cooperação e cuidado, tarefas que não podem ser assumidas por sujeitos cuja formação está contida num único e mesmo campo disciplinar, como é o caso da psicologia ensinada no Brasil hoje. Diante da histórica disciplinarização da psicologia, é importante perguntar qual será o posicionamento dessa ciência doravante. Estudos de performances, com encontros únicos e amplas generalizações, desalojando ou subdimensionando processo e contexto, favorecem a construção de tecnologias eficazes, instantâneas e descompromissadas com a trajetória humana. Sem uma formação ampliada, que inclua pelo menos a psicologia ambiental, e sem trajetos formativos que contemplem diálogos com política, educação, ciências sociais e saúde coletiva, dificilmente ultrapassaremos a noção desenvolvimentista de desenvolvimento. Trata-se, portanto, de propor uma perspectiva dialógica pluriepistêmica como possibilidade de integração da psicologia ao mundo contemporâneo.
A tarefa de reconstituição da psicologia, em especial a que se propõe a acompanhar a trajetória humana, inclui o desafio de desvencilhar-se das noções de progresso, evolução e desenvolvimento, contidas no mantra capitalista que reúne individualismo, eficiência e competitividade como elementos capazes de vencer escassez e insegurança. Assim, poderemos avançar em outros desenvolvimentos ou ciclos possíveis, que acolham coletividades e diferenças humanas, com criatividade, pensamento crítico, artístico e ecológico, em redes de compartilhamento humano, porque socialmente referenciado.
Apoio e financiamento:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
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