Artigo Original
FAROESTE CABOCLO: LEITURA PSICANALÍTICA DE UMA CANÇÃO
FAROESTE CABOCLO: LECTURA PSICOANÁLISIS DE UNA CANCIÓN
FAROESTE CABOCLO: LEITURA PSICANALÍTICA DE UMA CANÇÃO
Psicologia em Estudo, vol. 22, núm. 1, pp. 117-127, 2017
Departamento de Psicologia - Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 29 Julho 2016
Aprovação: 15 Fevereiro 2017
RESUMO.: O presente artigo busca articular os conceitos psicanalíticos de mal-estar, violência, agressividade e inimigo com a consagrada música “Faroeste Caboclo”, importante legado do pop rock nacional da década de 1980. A canção narra a saga de João de Santo Cristo, órfão, cuja trajetória de vida foi caracterizada pela inquietação, discriminação racial e dificuldade em lidar com figuras de autoridade, o que fez com que se tornasse um renomado traficante de drogas. Com um desfecho marcado pela tragédia passional, culminando na morte dos protagonistas, violência, agressividade e ódio atravessam o enredo, demonstrando seus desdobramentos no campo da alteridade, na emergência da amizade e da inimizade, permitindo-nos compreender e discutir a história de João de Santo Cristo. Partindo do pressuposto de que a música é tanto uma expressão individual quanto porta-voz de uma realidade social, buscamos compreender dimensões psíquicas, retratadas neste texto musical, que narra uma história que se assemelha à de tantos outros envolvidos com a criminalidade no Brasil. O objetivo é que discutamos os possíveis sentidos da letra da canção, promovendo um diálogo construtivo entre cultura e psicanálise.
Palavras-chave: Psicanálise, violência, música.
RESUMEN.: El presente artículo busca relacionar los conceptos psicoanalíticos de malestar, violencia, agresividad y enemigo con la consagrada música “Faroeste Caboclo”, importante legado del Pop Rock Nacional de la década de 1980. La canción narra la saga de João de Santo Cristo, sujeto huérfano, cuya trayectoria de vida fue caracterizada por la inquietud, discriminación racial y dificultad en lidiar con las figuras de autoridad, haciéndose un renombrado traficante de drogas. Con un desenlace marcado por la tragedia pasional, culminando con la muerte de los protagonistas, la violencia, la agresividad y el odio atraviesan el enredo, demostrando sus desdoblamientos en el campo de la alteridad, en la emergencia de la amistad y de la enemistad, permitiéndonos comprender y discutir la historia de João de Santo Cristo. Partiendo del presupuesto de que la música es, al mismo tiempo una expresión individual y un portavoz de una realidad social, buscamos comprender dimensiones psíquicas retratadas en este texto musical, cuya historia se asemeja a la de tantos otros envueltos en la criminalidad en Brasil. El objetivo es que se discutan los posibles sentidos da letra de la canción, promoviendo un diálogo entre cultura y psicoanálisis.
Palabras-clave: Psicoanálisis, violencia, música.
Música de grande repercussão na década de 1980, “Faroeste Caboclo” (Russo, 1979/1987) narra por mais de 9 min. a história fatídica de João de Santo Cristo, marcada por ódio e terror, condutas antissociais, tráfico de drogas e uma triangulação amorosa cujo desfecho trágico culmina na morte dos três personagens principais.Trata-se de uma canção que possibilita visualizar como a realidade social vai além da realidade individual, visto que o personagem principal é um sujeito marcado pela ambivalência: inserido num contexto precário do ponto de vista afetivo e material, pôde ser“bem-sucedido” ao se tornar um renomado traficante de drogas em Brasília. O ponto alto dessa história consiste na rivalidade com Jeremias, traficante que se tornou seu inimigo declarado por competitividade e traição amorosa.
Entendendo a música como expressão de um sujeito, mas, concomitantemente, como voz de uma realidade social, parece-nos possível nos aproximar da letra, buscando compreender dimensões psíquicas que são retratadas na composição. Para justificar a importância da música em sua articulação com a cultura e com a psicanálise, reportamo-nos a Belo (2011), que aponta a música como espécie de tradutora, de simbolização, que possibilita veicular as mais variadas mensagens, sejam estas políticas, de amor, de trivialidades ou de tragédias, podendo nos possibilitar a entrada em regiões outrora ocupadas pelo que não pôde ser traduzido em palavras, pode funcionar como tentativa de dar contorno ao indizível, ao que escapa, dando algum alento ao desamparo inerente ao humano.
A canção será trabalhada aqui em seu recorte textual, partindo do pressuposto de que a letra musical pode traduzir o discurso de um sujeito que se apresenta por meio do texto. O objetivo, então, é fazer emergirem os possíveis sentidos a partir da letra musical. “Faroeste Caboclo” (Russo, 1979/1987) é o objeto do estudo, e a teoria psicanalítica foi eleita como guia interpretativo. A psicanálise possibilita espaço porque considera também os “restos”, do que não pôde ser traduzido em palavras ou ideias, mas que de alguma forma clama por ser escutado, o que pode ser feito pela poesia ou pela música.
Mandil (2003), ao discutir o encontro entre um psicanalista e uma obra literária, afirma que, desde Freud, quando tais encontros foram iniciados, surgiram várias linhas de desdobramentos deste campo, inclusive com certos impasses, advertindo-nos que a articulação entre psicanálise e literatura não deve pretender a ilustrar conceitos psicanalíticos, e sim promover um diálogo construtivo para a cultura. Exemplificando com Lacan e a obra de Joyce, Mandil (2003) destaca o avanço teórico, produzido por Lacan, ao construir um trabalho psicanalítico a partir de Joyce, que culminou numa renovação do conceito de sintoma e ainda ampliou a repercussão da obra de Joyce na cultura. Além disso, segundo o autor, esse trabalho produziu uma espécie de “zona de interface” entre psicanálise e estudos literários.
Velani (1985) em seu texto “leitura de uma balada popular moderna”, no qual analisa “Eleanor Rigby”, canção de John Lennon e Paul McCartney, define balada como “um canto popular, simples e triste, onde se narram sucessos lendários, amorosos, sobrenaturais, e este canto pode tomar acentos épicos e formas mais cultas” (Velani, 1985, p. 196). O autor argumenta que as baladas modernas, diferentemente daquelas mais tradicionais, possibilitam também uma espécie de consciência social, enfatizando a ideia de que determinadas obras musicais, tais como as de Chico Buarque, Bob Dylan e de Lennon e McCartney, “são tipos de arte a serviço de um programa, onde elas apelam para o sentido de justiça e convidam o ouvinte à ação. Elas têm um cunho de participação no contexto histórico de seu tempo” (Velani, 1985, p. 188).
De grande importância no contexto do rock da década de 1980, “Faroeste caboclo” continua a despertar interesse 30 anos depois, sendo isso confirmado por duas recentes publicações a seu respeito: o primeiro trabalho, de Carlos Marcelo (2012), consiste num ensaio político e social, enquanto o segundo, de Jorge Leite de Siqueira (2013), pretendeu ampliar a descrição e contar uma história mais aprofundada dos personagens principais. A música também teve sua versão cinematográfica - também denominada Faroeste caboclo -, filmada em 2013, com direção de René Sampaio.
Em termos culturais nacionais, segundo o próprio compositor da música, Renato Russo, ‘“Faroeste Caboclo’ é uma mistura de Domingo no parque, de Gilberto Gil, e coisas do Raul Seixas com a tradição oral do povo brasileiro. Brasileiro adora contar história ...” (Russo, n.d. citado por Assad, 2000, p. 103). Marcelo (2012) também discorre sobre a semelhança entre a canção do Legião Urbana e “Domingo no parque” (1967), enfatizando a triangulação amorosa e o desfecho trágico narrado em ambas as obras. Villa-Lobos, Demier e Mattos (2015), ao comentarem a respeito da música, acrescentam a semelhança desta à Hurricane, de Bob Dylan, que também é uma história em forma de música e famosa no universal musical. Estes autores ainda enfatizam o sucesso decorrente de Faroeste caboclo, que desafiou o convencional, ocupando o tempo de duração de três canções e, ainda assim, “foi o primeiro lugar nas rádios do Oiapoque ao Chuí” (Villa-Lobos, Demier, & Mattos, 2015, p. 135)
Em termos musicais, por sua vez,vale destacar a riqueza e heterogeneidade rítmica de “Faroeste caboclo”. Dapieve (1995) chama a atenção para a variação de ritmos, presente na obra, que passa pelo sertanejo, reggae e punk rock. Segundo Marcelo (2012), essa pode ser considerada “a canção mais brasileira da Legião Urbana, não só pela estrutura proveniente do desafio cantado, mas pela piscadela maliciosa para outro ritmo do terceiro mundo, o reggae, na parte na qual descreve o sucesso das primeiras vendas de maconha de Santo Cristo” (Marcelo, 2012, p. 404). Mas, para além da riqueza musical, é preciso ressaltar a força da letra, que, de acordo com Marcelo (2012), enfatiza a dor e a mobilização por ódio e vingança na saga de Santo Cristo e traz a marca da realidade: João morre e ressurge como lenda emblemática de parte de uma geração, inserida num contexto sócio-histórico de um país pós-ditadura militar: “E é nesse país contraditório e assimétrico, capaz de plantar simultaneamente as sementes da esperança e do ressentimento, que João de Santo Cristo traça um itinerário de espelho e de corte, de vida e morte” (Marcelo, 2012, p. 405).
Conforme Dapieve (1995), os 159 versos da canção narraram a “paixão e morte” de um sujeito traficante que também era “santo”. O autor compara essas variações do personagem com o Brasil, argumentando que João de Santo Cristo pode ser interpretado como uma “espécie de Brasil personificado” (Dapieve, 1995, p. 135).
A violência, a agressividade e o ódio, tão bem ilustrados, sugerem e até de certa forma convidam a inúmeras possibilidades de diálogos psicanalíticos. No caso deste texto, esta leitura privilegiará os temas do mal-estar, da agressividade e a ideia de inimigo.
A agressividade e o mal-estar do sujeito no texto freudiano
O tema da violência aparece no decorrer da obra freudiana em diferentes contextos: em reflexões sobre a guerra, nas discussões sobre o mal-estar na cultura, nas indagações sobre a origem mítica da civilização, entre outros, fazendo-se necessário ressaltar que Freud por vezes utiliza termos como “agressividade” e “hostilidade” para tratar do tema da violência. Parece pertinente enfatizar que esses termos apresentam similaridade, mas guardam diferenças. Ainda que essa diferenciação não interesse a Freud, vale explicar que, enquanto a agressividade se refere ao mundo da natureza, a violência está relacionada a uma categoria antropológica.
Em “Totem e tabu” (Freud, 2006a), Freud apresenta a ideia de que na origem da civilização encontraríamos um ato violento. Isso pode gerar um profícuo debate, tendo a violência, nessa perspectiva, importante papel nos primórdios da constituição da civilização, por meio da ideia da horda primeva. A reflexão freudiana sobre a origem da civilização e sua vinculação com a questão da violência é importante, mas acreditamos que o tratamento que o tema da violência recebe no texto “Mal-estar na civilização” (Freud, 2006e) contribui de forma mais eficaz para a apreensão da concepção antropológica freudiana, que pode ser considerada trágica no que se refere ao tema da violência, pois, para o autor,os homens possuem inclinação inata e resistente para o mal, com alta cota de agressividade. As palavras de Freud são categóricas:
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo -Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? (Freud, 2006e, p.116).
Para Freud, a relação entre o eu e o outro está sempre sob a ameaça de destruição. Por isso, para se manter, a civilização tem que dispor de uma elevada cota de energia para a contenção da inclinação inata para o mal. Assim, a violência é contida socialmente, mas, quando tal contenção fracassa, o homem revela sua face selvagem. Na maioria das vezes o ato violento é consequência de uma provocação, porém, quando o controle social é baixo, a violência se manifesta espontaneamente.
Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho (Freud, 2006e, p. 116).
A civilização tem de lançar mão de um gigantesco esforço para estabelecer os limites para a agressividade, e, para tal, o homem precisa conter a sua inclinação para a violência para garantir sua vida, pois só no grupo encontra proteção contra as forças avassaladoras da natureza. Quando não há tal contenção, a violência pode surgir como um gozo desmedido, não mediado e culminar em aniquilação e rupturas de laços sociais (Silva Junior &Besset, 2010).Para Freud, o caminho é a introjeção da “agressividade” para, assim, criar uma instância psíquica moral que observe, puna e controle o supereu.
Freud, em sua primeira reflexão sobre a guerra, datada de 1915, revela que o Estado libera a prática do mal em situação de guerra e quando há relaxamento de todos os laços morais, com repercussão sobre a moralidade dos indivíduos, “pois nossa consciência não é o juiz inflexível que os professores de ética declaram, mas é, em sua origem, ‘ansiedade social’ [angústia moral] e nada mais” (Freud2006c, p. 316). No texto em questão, Freud menciona rapidamente a influência do fator interno na conduta moral - isto é, na necessidade de amor- , mas desenvolve seu raciocínio, acentuando a importância do fator externo na manutenção da moralidade. A “suscetibilidade à cultura” (Freud2006c, p. 319), ou seja, à pressão do ambiente cultural imediato, e também à influência da história cultural de seus ancestrais transforma o egoísmo e a crueldade, sob a influência do erotismo, da necessidade de amor, em conduta moral, que pode ser temporariamente desfeita pela situação de guerra (Freud, 2006b, p.323).
Assim, para o pensamento freudiano, a energia original que circula entre os sujeitos é a agressividade. Podemos perguntar: Como é possível o convívio social? É possível construir formas para bordejar essa energia agressiva? Freud (2006e) nos revela que parcela desta energia pode ser introjetada e se transformar em sentimento de culpa. Dessa forma, o laço social seria garantido por meio da culpa, ou seja, da agressividade introjetada. Acreditamos que um dos elementos que mobiliza a introjeção da agressividade seria o encontro com a verdade do desamparo, que aponta para o outro como fim em si e não como meio. Do ponto de vista da constituição do laço humano, podemos pensar que a situação de desamparo estrutural denuncia a inegável importância do outro para a sobrevivência do eu. Posso me sentir culpado por desejar destruir o outro que suporta comigo a situação de desamparo. Sem o encontro e o reconhecimento da alteridade, o eu sucumbe ao desamparo, e o sentimento de culpa aparece como uma das modalidades de relação com a alteridade. Contudo podemos nos perguntar sobre outras formas de relação com o outro. Nesse sentido, buscaremos, a partir da psicanálise, localizar outras formas de relação, entre o eu e o outro, apresentadas na relação entre João de Santo Cristo e Jeremias, protagonistas da música Faroeste caboclo.
A saga de João de Santo Cristo: agressividade, inimizade, amor e morte.
A história de João de Santo Cristo, sujeito marcado pela inquietação, é composta de significantes intensos no quesito agressividade: “ódio”, “terror”, “discriminação”, “tiro”, “reformatório”, “violência”, “estupro”, “polícia”, “traficante”, “inferno”, “atirar”, “arma”, “brigar”, “sangue”, “contrabando”, entre outras palavras. Os temas - assassinato do pai, dificuldades com as figuras de autoridade, tráfico de drogas, traição - e as consequências sofridas - “como um cão”, “era só ódio por dentro” e “você perdeu a sua vida, meu irmão” - dão a tônica do enredo e nos convocam a pensar sobre como a psicanálise poderia contribuir para a leitura desse texto musical.
Violência e agressividade atravessam todo o percurso desse enredo e, embora consistam em conceitos complexos, podem organizar nosso diálogo, sobretudo porque, neste caso, se articulam com as ideias de amizade e inimizade.
Um fato interessante que encontramos nesse enredo, que condiz com a teoria psicanalítica, é a posição simbólica do ódio anterior ao amor. João de Santo Cristo, sujeito cuja infância fora marcada pelo ódio, que fora só aumentando “diante de tanto terror”, discriminação social e racial, aparentemente foi um rapaz que questionava a realidade na qual estava inserido. O significante “ódio” aparece diversas vezes no enredo: “sentir no sangue o ódio que Jesus lhe deu” e “era só ódio por dentro” são passagens que ilustram as atitudes hostis de João diante da sociedade desde seu período infantil. Consideramos oportuno recordar que o ódio, para Lacan, ocorre no processo de diferenciação eu / não eu e é considerado uma das paixões do ser, assim como o amor e a ignorância (Gori, 2006).
A respeito da infância de João, sabemos ainda que o personagem apresentava dificuldades com as figuras de autoridade e falta de respeito com os demais, ou seja, “era o terror da cercania onde morava”, o que é exemplificado pelo fato de que “ia pra igreja só pra roubar o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar”. Não podemos desconsiderar que, talvez, o elemento desencadeador dessa postura diante da vida tenha sido o assassinato de seu pai, morto a tiros por um soldado, o que aparentemente mobilizou em João um sentimento de vingança e alimentou seu interesse antigo por “ser bandido”. Contudo parece-nos importante enfatizar que não podemos estabelecer uma relação causal do tipo explicativo entre a morte do pai e a decisão de João de “ser bandido”. Entendemos com Freud (2006e) que a agressividade é constitutiva do humano, mas não podemos reduzir a agressividade a um conteúdo negativo. Conforme aponta Ferrari (2006), a partir da compulsão à repetição, temos a proposta de que tal agressividade pode ser um modo de sobrevivência, por se tratar “... da forma ruidosa que ele encontra para se preservar na cultura” (Ferrari, 2006, p. 56). Dessa forma, podemos argumentar que João, aparentemente, não teve condições psíquicas para que sua agressividade funcionasse como mobilizadora, aplacando sua angústia, mas fora direcionada desde o início ao mundo externo, com o qual identificou seu mal-estar, com dificuldade em encontrar destinos sublimatórios que possibilitassem seu desenvolvimento.
Contudo seus questionamentos acerca da vida aparentemente não lhe possibilitaram uma organização por meio das palavras, já que “não entendia como a vida funcionava”, “ficou cansado de tentar achar resposta” e saiu de sua terra natal, rancoroso. Com uma história sexual precoce e o direcionamento da agressividade no exterior de modo bem significativo, aos 12 anos de idade já havia experimentado uma vivência sexual significativa a ponto de ser considerado “professor” nessa área. Assim, inferimos que, num momento de latência, em que poderiam estar adormecidas para se reorganizarem, no caso de João, as pulsões entraram precocemente na efervescência da adolescência, experimentando uma condição sexual que, para muitos, ainda consiste por um bom tempo em fantasia.
Na falta de palavras e de um contorno simbólico que auxiliasse João a encontrar novos modos possíveis de subjetivação, ao adentrar a adolescência, o personagem atende às expectativas aparentemente depositadas em si, já que era o “terror” do local onde vivia. Assim, saiu “para sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu”, como se estivesse atendendo a uma expectativa infantil de ser “bandido”, fato no qual pensava com insistência, aparentemente potencializado pela vingança ao assassinato de seu pai. Assim, aos 15 anos foi institucionalizado, “mandado pro reformatório, onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”, enfatizando-se o destemor do sujeito disposto a deixar “para trás todo o marasmo da fazenda”, levando consigo já citado ódio que sempre o acompanhou. Se, para Miller (2010), o sujeito é um emigrante de si mesmo, numa espécie de terra desconhecida, no sentido de se construir mediante relações, João de Santo Cristo se constrói nesse ínterim de revolta e agressões variadas, provenientes de si e das mais variadas fontes.
Outra realidade, João conhecia apenas via televisão, não tendo até então saído de Santo Cristo. Nas palavras do sujeito que lhe deu a passagem para Brasília, propondo a ida de João ao Distrito Federal: “neste país lugar melhor não há”. Assim, chegou a Brasília, capital do país que o encantou com suas luzes e alguma ilusão de um futuro feliz. Trabalhou como carpinteiro e tentou estabelecer-se numa vida típica de assalariado, cujo rendimento foi insatisfatório: “E Santo Cristo até a morte trabalhava, mas o dinheiro não dava para ele se alimentar e ouvia às sete horas no noticiário que sempre dizia que o ministro iria ajudar”. Assim, João deparou-se com mais uma possibilidade de deslumbrar-se com outra cena que não a de trabalho, exaustivo e para o qual não via futuro. Desiludido, o personagem, diz o narrador, “não queria mais conversa”, afirmação coberta de ironia, já que por toda a sua história narrada não há um discurso consistente ou expectativas atendidas no sentido de qualquer estabelecimento de diálogo. Não há, durante um só momento da infância ou adolescência narrada, qualquer menção à ajuda de quem quer que seja, por meio da palavra, reportando-nos a uma precariedade de sentidos simbólicos, ainda que possamos argumentar que é “o simbólico que nos converte em seres de discurso” (Ramirez, 2012, p. 32).
Após a experiência de trabalho como carpinteiro, o protagonista decide, então, começar uma plantação de maconha, pois “decidiu que como Pablo [que era um traficante de sua referência]eleiria se virar”. E foi assim que enriqueceu e desestabilizou o tráfico local: “E o João de Santo Cristo ficou rico e acabou com todos traficantes dali.”
Curiosamente, a palavra “amigos” surge no enredo pela primeira vez depois de seu enriquecimento: “Fez amigos, frequentava a Asa Norte e ia para a festa de Rock para se libertar”. Isso sugere que somente após uma ascensão social lhe fora possível estabelecer relações de amizade.
Em Brasília, a menção à influência do outro, nesse sentido, é apontada no verso: “sob a má influência dos boyzinhos da cidade começou a roubar”, fato que o conduziu à cadeia, onde experenciou violência e estupro, definidos pela letra como um “inferno”, o que nos reporta à afirmação de Freud (2006e) de que o homem é o lobo do homem. Essas experiências definiram, para João, a posição como bandido destemido: “Agora o Santo Cristo era bandido destemido e temido no Distrito Federal. Não tinha nenhum medo de polícia, capitão ou traficante, playboy ou general”. Ao tornar-se “bandido”, com a agressividade transbordando e a violência se delineando, o personagem se depara pela primeira vez com o encontro amoroso:
Foi quando conheceu uma menina e de todos seus pecados ele se arrependeu, Maria Lucia era uma menina linda e o coração dele pra ela o Santo Cristo prometeu. Ele dizia que queria se casar e carpinteiro ele voltou a ser.“Maria Lúcia, para sempre vou te amar e um filho com você eu quero ter”.
Por meio do encontro amoroso surge a impressão de que será possível a reparação pelo amor. Contudo, após retomar sua vida de carpinteiro, João recebe uma “proposta indecorosa” para retornar ao tráfico. Após suas inúmeras restrições, a repetição da frase “Você perdeu a sua vida, meu irmão” vem marcada de modo mortífero, como bem ilustrado pelo verso seguinte: “essas palavras vão entrar no coração, e eu vou sofrer as consequências como um cão”. Aqui surge o “eu” num posicionamento diferente, reconhecendo os efeitos de suas ações que já não podem mais prosseguir sem consequências. Na sequência, João perde o emprego, envolve-se novamente com o tráfico de drogas, passa a usar armas, faz planos e aprofunda sua atuação na criminalidade.
Logo depois, surge o antagonista Jeremias, traficante renomado, que declara a decisão de “acabar” com João por ser um concorrente. O perfil de Jeremias é descrito como “maconheiro, sem vergonha”, desleal e mentiroso. A figura do inimigo é outro aspecto importante a ser discutido aqui, haja vista que boa parte do enredo é destinada a descrever Jeremias e sua relação com João, fato que também esclarece o motivo passional do desfecho trágico. Por despertar o ódio em Jeremias por estar fazendo sucesso no tráfico, João representa uma ameaça a sua posição de traficante bem-sucedido e famoso, o que é confirmado por Ramirez (2012) ao afirmar que odiar o outro pode significar invejá-lo, cobiçar suas posses.
De acordo com Teixeira e Moreira (2013), seja como testemunha ou espelho, no outro são projetadas as partes indesejáveis de si, já que a relação com o outro é comumente permeada por conflitos. Complementarmente, Ramirez (2012) chama a atenção para o modo como o inimigo é destinado a receber tais projeções e outras ofensas e como é constantemente vigiado, buscando estar por perto e conhecer o que se sucede com ele. Assim, “para assinalar seus defeitos de maneira implacável, ataca-se sua unidade, sua harmonia, sua completude, suas virtudes” (Ramirez, 2012, p. 31), o que é bem explicitado na descrição que João e o narrador fazem de Jeremias: “Jeremias eu sou homem coisa que você não é e não atiro pelas costas não”; “Jeremias, maconheiro, sem vergonha”.
João a essa altura já portava uma arma, mas aparentemente evitava o conflito armado, esperando que a briga fosse iniciada por Jeremias, aparentemente recuando à violência: “decidiu usar a arma só depois que Jeremias começasse a brigar”. Contudo, segundo Teixeira e Moreira (2013), se o sujeito se reconhece a partir do outro, ainda que indesejável, este outro lhe é “imprescindível” (p. 194), fato que nos possibilita indagar a postura de João diante do fato, já que fora ele próprio quem convidara Jeremias ao duelo, dizendo que o inimigo poderia, inclusive, “escolher as suas armas”, pois “eu acabo mesmo com você, seu porco traidor”. Em relação a esse tipo de conflito, Ramirez (2013) nos diz que “O conflito armado não é, então, uma explosão de violência ‘sem sentido’, mas obedece a um cálculo racional, geralmente fundamentado em argumentos de favorecimento coletivo que escondem paixões individuais” (Ramirez, 2013, p. 13).Nesse momento, Jeremias também já era um inimigo declarado, o que condiz com a colocação de Ramirez (2012) de que o inimigo é, assim, uma espécie de sujeito “infiel”, “o que oferece perigo, insegurança, [ou seja] encontrá-lo será uma desgraça, uma fatalidade” (Ramirez, 2012, p. 29).
Podemos afirmar que, desde Freud, temos clareza de que o ódio e a hostilidade são inerentes ao ser humano. Na verdade, o primeiro é uma espécie de “versão originária” do segundo. Para Gori (2006), o ódio é um conceito de difícil explanação justamente por aparecer em conjunto com o erotismo e com o amor, de modo que não poderemos visualizá-lo em “estado puro”. Conforme aponta o autor, “o ódio é realista, seu objeto é o real, ele recusa o aparelho de linguagem onde o sujeito ora se encontra, ora se perde, nos desfiladeiros da palavra” (Gori, 2006, p. 126). Para Macedo (2011), o ódio se pauta em certezas, dificultando transformações, fazendo com que o sujeito que odeia insista sempre numa mesma versão de si mesmo. Para este autor, amor e ódio também possuem muito em comum, mas são marcados por uma diferença muito interessante: “O amor liga, o ódio cola” (Macedo, 2011, p.261). Prosseguindo no raciocínio da ambivalência, temos Ramirez (2012) apontando que não há amor absoluto, puro, em sua totalidade, pois este sempre será acompanhado de ódio, inclusive no que concerne à amizade. Em condições em que a amizade prevalecer, outras ações podem surgir para não evidenciar esse ódio, sendo a competitividade uma possibilidade nesse caso.
Dessa forma, a inimizade pode ser proveniente de uma grande amizade, cujos afetos como ciúmes, ódio e inveja se sobrepuseram e o vínculo se evidenciou, a partir de então, de forma reativa. Ramirez (2012) concorda que a inimizade pode surgir num relacionamento outrora marcado pelo amor, pois, ainda que como inimigo, o sujeito permanece ao lado do outro, numa disputa reconhecida:
Ali, o inimigo pode conservar sua dignidade de par e ser enfrentado com as regras do cavalheirismo, pode respeitar-se a vida em sua condição de prisioneiro, de ferido ou de vencido, por exemplo. Mas, conforme o ódio se faça dominante e extinga o amor, isso pode levar até a degradação e deixar a investidura de par, de reconhecimento, de humanidade e tornar um inimigo radical (Ramirez, 2012, p. 27).
Partindo do pressuposto freudiano de que a amizade se constrói como consequência de um dos modos de renúncia pulsional, a inimizade não pressupõe tal renúncia, já que ao inimigo é permitida e, mesmo, incentivada a descarga da agressividade. De certa forma, há até um imperativo de violência, sendo muitas vezes considerado natural humilhar e rebaixar o inimigo (Ramirez, 2012). Quando se trata de um sujeito posicionado como inimigo, temos que considerar que o fato de estar localizado “fora” também pode diluir ou disfarçar a ambivalência, presente tanto na amizade quanto na inimizade.
Podemos considerar que o sujeito, posicionado como inimigo, pode nada mais ser que um representante de si mesmo, odiando o outro como forma de disfarçar sua inveja, além de ser constantemente vigiado e suas falhas serem sempre apontadas. Para Souza (2012), estabelece-se uma repulsa ao outro como forma de “projeção externa”, acionada quando o psiquismo se vê ameaçado pelo desamparo infantil. Assim, conforme argumenta Ramirez (2012), “para assinalar seus defeitos de maneira implacável, ataca-se sua unidade, sua harmonia, sua completude, suas virtudes” (p. 31), garantindo que, ainda que ilusoriamente, esteja preservado, já que o estranho fora projetado neste outro. Assim, a construção do inimigo como o Outro é uma lógica paranoica, e, quando absoluta, a separação prevalece sob a alienação, segregando-se, reduzindo-se e, de certa forma, quase se desumanizando o inimigo.
No caso da narrativa poética da canção, o surgimento de Maria Lúcia será fundamental para alimentar a lógica do inimigo e introduzir uma saída para João. No cenário de tanto ódio e destruição, ela aparentemente sugere a possibilidade de reparação do ódio pelo amor, o que, no entanto, não se concretiza. O amor frustrado acaba por potencializar o ódio sentido por João depois de Jeremias ter se casado com Maria Lúcia e de tê-la engravidado. A partir daqui, “Santo Cristo era só ódio por dentro”, sentimento que impulsiona o convite para um duelo por parte de João: “E você pode escolher as suas armas que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor / e mato também Maria Lúcia,aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor”. Para Gori (2006), as passagens ao ato passional possuem relação com a angústia de fusão, com o ódio, “constituiriam a tentativa última de produção da alteridade” e “se oferecem como uma espécie de escritura gestual. Como se algo da ordem de um traço escrito devesse ser disposto por meio de um ritual mortífero para vir a suprir os traços que faltaram na história do sujeito” (Gori, 2006, p. 134).
O duelo torna-se, então, um evento. Silencioso, embora com muitos espectadores, ninguém se posiciona com falas ou qualquer tentativa de interrupção; ninguém intervém. Esses espectadores, voyeurs ávidos por cenas de agressão, apenas aplaudem. Na falta da palavra, na ruptura do diálogo, o inimigo se apresenta como o pior, geralmente tendo que ser eliminado, combatido, o que pode culminar, inclusive, em sua negação como ser humano e na consequente degradação do conflito. Assim, “do discurso sobre o inimigo derivaram a tortura física e psicológica, a humilhação, a crueldade e o uso irracional e excessivo da violência, o que incidiu na degradação do conflito e em seu prolongamento”(Ramirez, 2013, p. 20).
Jeremias, como já descrito anteriormente, era um sujeito marcado pela covardia e pela ira, portanto, não surpreende que tenha atirado em João pelas costas. A expressão “pelas costas” também nos reporta de volta à traição de Maria Lúcia, que estabeleceu um relacionamento com Jeremias também “pelas costas” do protagonista.
João, em seu encontro com a morte, depois de baleado e “sentindo o sangue na garganta”, recorda-se de sua infância e de sua trajetória até ali, o que fez com que decidisse “entrar de vez naquela dança” e enfrentar o inimigo. Nas palavras do próprio João: “se a Via Crucis virou circo, estou aqui”. A exposição de João, assistida por todos os outros, reporta novamente à relação no campo da alteridade, que, no caso de João, fora sempre limitada, havendo uma lacuna que separava João dos demais durante todo o enredo. O povo, embora estivesse ali, era “só pra aplaudir”, assim como o fora ao longo de sua história. O “outro”, para João, interferiu sempre de forma destrutiva: o soldado mata seu pai; Maria Lúcia o trai; os rapazes que conhece o induzem a roubar; na prisão, a interferência do outro também é violenta, envolvendo, inclusive, o estupro.
O inimigo pode, ainda, ser um sujeito estranho, numa multidão unida com fins específicos, mas para o qual não há intimidade ou qualquer proximidade, na qual os sujeitos são desconhecidos, assim como “esse povo (que) sem demora foi lá só pra assistir”. Dessa forma, conforme argumenta Ramirez (2012, p. 29), “o inimigo será o não comum, o distinto de si, o desigual, o diferente, o que também sugere uma base narcisista”, sugerindo que todo o diferente ganha status de “inimigo”. Nesses casos, “a identidade da comunidade é correlativa à segregação do hetero, do outro distinto de si ... ao que se opõe o não familiar, o detestável” (Ramirez, 2012, p. 29). Nesse sentido, como bem afirmado por Macedo e Dockhorn (2016), é justamente nas considerações em torno da indiferença e de outros efeitos prejudiciais, na fronteira entre o eu e o outro que estarão em cena as fragilidades desse eu, fato tão bem demonstrado nessa narrativa.
A respeito da relação com o outro, Teixeira e Moreira (2013) chamam atenção para o quanto o conflito é comum, principalmente quando o outro é reduzido à condição de “testemunha” ou de “espelho”, projetando neste outro seus aspectos desagradáveis. O outro ameaça pela presença por revelar a diferença, justamente a diferença que o eu tenta combater (Macedo &Dockhorn, 2016). O outro, para João, é outro mau, qualquer que seja a posição em que transite no enredo. Drummond (2012) reporta-se às considerações de Miller (2010) para discutir como o sujeito contemporâneo tem sido interpretado como mau ou hostil, quando descrito pelo outro, lembrando que este outro direciona o inimigo para o mal, deseja o mal e goza com este mal (C. Drummond, comunicação pessoal, 10 de Janeiro, 2012). Para ilustrar isso, temos, em “Faroeste caboclo”, o exemplo de Jeremias, que encarnou significativamente esse outro mau para João de Santo Cristo, que, convém lembrar, era um sujeito marcado por “só ódio por dentro”.
A morte de todos os personagens do enredo possibilita associar seu desfecho aos destinos pulsionais, próprios do humano, por sua tendência de retornar ao seu estado inanimado. Freud (2006d)discute a pulsão de morte, como explica Ferrari (2006):
O objetivo de toda vida é a morte. Em vista disso, as interações humanas já não se apresentam simples. Exigem um grande esforço. Com efeito, a pulsão de morte foi a forma encontrada por Freud para dizer que o sujeito se edifica sobre um fundo que supõe destruição (Ferrari, 2006, p. 55).
Em certa medida, “Faroeste Caboclo” se assemelha à canção “Eleonor Rigby”, de Lennon e McCartney, balada estudada por Velani (1985) e cujo personagem é análogo a João em vários sentidos, tanto que seu texto apresenta argumentos pertinentes a este estudo:“A marginalização é a marca registrada do ser humano dentro do seu próprio espaço, que não postula ou não pode postular uma posição de estabilidade material dentro da sociedade, e uma posição de estabilidade espiritual, consigo mesmo” (Velani, 1985, p. 196).
Curiosamente, somente no final da narrativa é revelado o propósito da ida de João a Brasília. A princípio, não era claro qual o sentido desse destino, já que ele fora a Salvador e dali partiu para Brasília por ter ganhado a passagem. A intenção que motivou João de Santo Cristo em Brasília, contudo, foi “falar”. Em seu encerramento, a música revela que“João não conseguiu o que queria quando veio para Brasília com o diabo ter / ele queria ela falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só faz sofrer”.
Podemos pensar que João buscava encontrar uma figura de autoridade (ausente em toda a sua história de vida), representada pelo presidente, para que esta autoridade pudesse intervir sobre os demais, sobre “toda essa gente que só faz sofrer”. Ou seja, o personagem possivelmente buscava ajuda para si próprio, um ponto de basta no qual pudesse ancorar tanta inquietação, uma palavra que pudesse apaziguar sua angústia. A respeito da falta da palavra e de sua relação com a violência, concordamos com as considerações de Silva Junior e Besset (2010): “É fundamental reintroduzir a palavra ali onde há violência. A palavra permite o adiamento, a simbolização, dá um contorno, um limite, e os meios para que o sujeito possa pensar” (Silva Júnior & Besset, 2010, p.333).
O desfecho, com o ódio dirigido a Jeremias e Maria Lúcia e a desilusão com o ministro que reitera constantemente a promessa, mas não ajuda de fato, convoca-nos a pensar novamente no ódio. Encerramos, assim, com as palavras de Nimeir (1951 citado por Gori,2006): “Não se odiaria, se não tivesse que se odiar a si mesmo ao mesmo tempo” (p. 125).
Considerações finais
“Faroeste caboclo” consiste num texto musical de imensa importância no que concerne ao estudo do sujeito freudiano, pulsional, marcado pela ambivalência entre o amor e o ódio.
Por apresentar-nos a ainda contemporânea fragilidade dos laços sociais humanos, fragmentados e incipientes, com uma imensa fragilidade simbólica, carente de palavra, de intervenções que lhe possibilitem balizar esse ódio gozador, que tanto tortura o eu, a canção oferece uma clara visualização de como o amor e o ódio, o eu e o outro, o amigo e o inimigo andam sempre imbricados, ainda que, em determinadas cenas, disfarçadamente.
Assim, João, um típico caboclo, também pode ser pensado como um garoto cujas pulsões agressivas não encontraram saídas sublimatórias saudáveis, seu ódio não pôde ser reparado pelo amor, viveu uma vida de excessos destrutivos, que, lembrando Freud, trouxe em si, como todos os excessos, a semente da própria destruição.
A possibilidade de discutirmos uma história de vida, ainda que fictícia, recortada e descrita de modo sintetizado, é sempre um exercício importante no campo psicanalítico (Costa, 2014). João de Santo Cristo nos possibilitou inúmeras reflexões, principalmente ao resgatarmos Freud e os desdobramentos do mal-estar na cultura. Por estar inserido na civilização, o sujeito precisará inevitavelmente lidar com o outro, cujo ingresso em sua história fora desde a origem ambivalente e um obstáculo em sua satisfação. Na cultura este outro também dificulta sua existência e potencializa sua dificuldade de ser feliz.
João de Santo Cristo morreu tentando solucionar seu problema com a alteridade, mas foi impossibilitado por sua história de viver outro presente que não fosse representado por outro mau. Trata-se de uma trajetória de vida que se assemelha à história de tantos outros adolescentes envolvidos com a criminalidade violenta no Brasil.
Apoio e financiamento:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ( Capes) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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Autor notes
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