RESUMO: O presente estudo teve como objetivo principal investigar a relação entre o desenvolvimento da teoria da mente e a apreciação de humor. Participaram 41 crianças de quatro a 11 anos (Midade = 7 anos e 11 meses, DP = 23,8 meses), que foram agrupadas segundo o seu desempenho em quatro tarefas de crença falsa. As crianças ouviram três piadas e acompanharam três quadrinhos, todos direcionados ao público infantil, e foram solicitadas a indicar quão engraçada/o era cada piada/quadrinho. As análises revelaram correlação significativa entre o desempenho nas tarefas de crença falsa e a avaliação das piadas. As crianças com uma teoria da mente mais avançada (G2 e G3) apreciaram mais as piadas do que as crianças do grupo que não obteve sucesso nas tarefas de crença falsa de primeira ordem. Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos de teoria da mente em relação à apreciação dos quadrinhos. Os resultados corroboram a proposta de que o humor é um bom indicador de desenvolvimento sociocognitivo e apontam para uma linha de investigação promissora na psicologia do desenvolvimento.
Palavras-chave: HumorHumor,teoria da menteteoria da mente,cognição socialcognição social.
ABSTRACT: The main goal of the present study was to investigate the relationship between theory of mind development and humor appreciation. Forty-one children between 4 and 11 years of age participated (Mage = 7 years and 11 months, SD = 23.8 months) and they were grouped according to their performance in four false belief tasks. Children listened to three jokes and read three comic strips, all directed to children, and were asked to rate how funny each joke/comic strip was. Analyses revealed a significant correlation between performance in the false belief tasks and joke ratings. Children who had a more sophisticated theory of mind (G2 and G3) attributed better ratings of selected jokes than children who failed in first order false belief tasks. No significant differences were found among theory of mind groups regarding the comic strips’ ratings. Results corroborate the proposal that humor is a good indicator of social cognitive development and they point to a promising line of investigation in Developmental Psychology.
Keywords: Humor, theory of mind, social cognition.
RESUMEN: En el presente estudio se tuvo como objetivo principal investigar la relación entre el desarrollo de la Teoría de la Mente y la apreciación del humor. Participaron 41 niños de 4 a 11 años (M edad = 7 años y 11 meses, DP = 23,8 meses) que fueron agrupados según su desempeño en cuatro tareas de creencia falsa. Los niños oyeron tres chistes y vieron tres tiras cómicas, todos dirigidos al público infantil, y se les pidió que indicasen cuan gracioso/a era cada chiste o tira cómica. Los análisis revelaron una correlación significativa entre el desempeño en las tareas de creencia falsa y la evaluación de los chistes. Los niños con la teoría de la mente más avanzada (G2 y G3), apreciaron más los chistes que los niños del grupo que no tuvieron éxito en las tareas de creencia falsa de primer orden. No se encontraron diferencias significativas entre los grupos de teoría de la mente en relación con la apreciación de las viñetas. Los resultados corroboran la propuesta de que el humor es un buen indicador de desarrollo socio-cognitivo e indican una línea de investigación prometedora en Psicología del Desarrollo.
Palabras-clave: Humor, teoría de la mente, cognición social.
Artigo Original
QUAL É A GRAÇA?: HUMOR E TEORIA DA MENTE EM DESENVOLVIMENTO
WHAT’S FUNNY?: DEVELOPING HUMOR AND THEORY OF MIND
¿DÓNDE ESTÁ LA GRACIA?: HUMOR Y TEORÍA DE LA MENTE EN DESARROLLO
Recepção: 09 Março 2017
Aprovação: 26 Fevereiro 2018
Nas mais diferentes situações sociais, um indivíduo é convidado a fazer inferências sobre os estados mentais (i.e., crenças, desejos, intenções, emoções) de seus interlocutores para que ele possa estabelecer comunicação de forma eficiente. Ao fazer essas atribuições (e.g., o que o outro está pensando, sentindo, querendo?), esse indivíduo torna-se capaz de captar possíveis diferenças entre a sua perspectiva e a do outro, e, consequentemente, de explicar e predizer o comportamento do seu interlocutor. Se alguém, por exemplo, quer conversar com um amigo sobre um assunto desagradável, mas ao encontrá-lo, o amigo diz que acabou de ser assaltado, ele provavelmente evitará tocar no assunto desagradável, prevendo que o amigo não reagirá bem a mais uma má notícia.
Esse conjunto de habilidades necessárias para o sucesso das interações sociais é convencionalmente denominado de Teoria da Mente (Wimmer & Perner, 1983; Wellman, 2014). Embora evidências recentes sugiram a presença de precursores da teoria da mente nos primeiros anos de vida (e.g., Baillargeon, Scott, & Baian, 2016; para uma revisão, ver Souza & Velludo, 2016), nós não nascemos com uma teoria da mente plenamente desenvolvida. Estudos realizados em diferentes culturas nos últimos 30 anos têm demonstrado que o período de três a seis anos de idade, no entanto, é uma fase de grandes avanços no desenvolvimento da teoria da mente (Roazzi & Sperb, 2013; Wellman, 2014).
Ao mesmo tempo em que as crianças apresentam ganhos importantes em teoria da mente (e em cognição social, de forma mais abrangente), elas também começam a demonstrar a compreensão e a apreciação do humor cada vez mais sofisticado (Hoicka, 2014). O humor, por sua vez, parece exercer papel facilitador nas interações sociais e representa importante mecanismo de enfrentamento para indivíduos em situações adversas (e.g., Martin, 2007; McGhee, 1989; Ruch, 2008).
Definir o humor, na verdade, é uma tarefa difícil. Segundo Martin (2007, p. 5), uma definição possível e suficientemente abrangente deve incluir “qualquer coisa que as pessoas dizem ou fazem que é percebida como engraçada e tende a fazer outros rirem, os processos mentais envolvidos tanto em criar como perceber tal estímulo, assim como a resposta afetiva envolvida na apreciação do mesmo”. Ao longo da sua história, o campo de estudos sobre humor tem atraído pesquisadores de diferentes áreas, mas especialmente da linguística e da psicologia. No Brasil, em particular, a pesquisa linguística parece ter avançado um pouco mais do que a psicológica (para uma revisão da pesquisa linguística brasileira, ver Carmelino & Ramos, 2015).
Em relação às contribuições da psicologia, as teorias têm sido agrupadas em três categorias: teorias sobre os aspectos perceptuais e cognitivos do humor (i.e., a questão da incongruência); os aspectos sociais e comportamentais (i.e., a questão da superioridade vs. depreciação), e finalmente, as que enfatizam os aspectos psíquicos (i.e., a questão da catarse) (Carrell, 2008; Martin, 2007). Nas últimas décadas, no entanto, estudos sobre o desenvolvimento da compreensão e da apreciação do humor têm se tornado cada vez mais frequentes (Bosacki, 2013; Hoicka, 2016; Hoicka & Akhtar, 2011, 2012; Hoicka & Gattis, 2008; Loizou, 2005; Loizou & Kyriakou, 2016; McGhee, 1989; Mireault et al., 2015; Mireault, et al., 2014).
Embora o humor venha sendo estudado há séculos (Carrell, 2008), McGhee (1989) talvez tenha sido o primeiro psicólogo do desenvolvimento a propor uma teoria, inspirada na teoria de desenvolvimento cognitivo de Piaget, sobre os diferentes estágios de humor na infância. Para esse autor, tanto a compreensão como a apreciação do humor dependem diretamente do nível de desenvolvimento cognitivo do indivíduo: “[...] à medida que o desenvolvimento cognitivo subjacente e progressivo capacita a criança a compreender novas formas de humor, essas novas formas são preferidas a outras formas já bem compreendidas pela criança há algum tempo” (p. 115). A pesquisa de McGhee foi, portanto, pioneira e abriu caminho para novas e importantes linhas de investigação sobre humor, em uma perspectiva do desenvolvimento.
Muitos estudos, por exemplo, têm demonstrado que o humor já está presente nos primeiros anos de vida. Em um estudo observacional, Loizou (2005) registrou bebês de 15 a 22 meses produzindo humor por meio de expressões faciais, gestos, ações, ou brincando com palavras ou sons. Por exemplo, em uma sessão de observação, o bebê mais novo do estudo, Akiko (15 meses), jogou seus brinquedos de cozinha (pratos, xícaras e talheres) no chão, sentou-se em cima deles e olhou para a mãe com um sorriso. Hoicka e Gattis (2008) demonstraram que bebês de 19 a 36 meses imitavam comportamentos ambíguos que eram consequenciados por risadas (i.e., uma brincadeira ou piada), mas corrigiam as ações ambíguas que eram seguidas pela exclamação “Woops!” [“Opa!”], indicando erro acidental. Em um estudo mais recente (Hoicka & Akhtar, 2011), bebês de 2 ½ a três anos demonstraram ser capazes de distinguir o “fazer errado” intencionalmente e o “fazer errado” para produzir humor.
Em relação às crianças de idade pré-escolar e escolar, há evidências da associação entre a compreensão do humor e o desenvolvimento da cognição social. Por exemplo, Kielar-Turska e Bialecka-Pikul (2009) pediram para 60 crianças de dois grupos de idade (5 e 9 anos) fazerem um desenho engraçado. Dois meses depois, elas eram solicitadas a escolher os mais engraçados e explicar porque os desenhos eram engraçados. Um número significativamente maior de crianças de nove anos, em comparação às de cinco anos, compreendeu corretamente as intenções de quem havia desenhado, quando solicitadas a interpretar os desenhos. As autoras sugerem que essa diferença está relacionada ao desenvolvimento da teoria da mente. Na mesma direção, Bosacki (2013) avaliou um grupo de crianças de dez anos em dois momentos distintos, com uma diferença de tempo de dois anos entre as duas avaliações. Os resultados revelaram correlações significativas entre medidas de teoria da mente, autopercepção e percepção de humor.
Samson e Hegenloh (2010), por sua vez, testaram indivíduos diagnosticados com síndrome de Asperger em comparação a um grupo controle (de desenvolvimento típico), em duas tarefas de processamento de humor: uma envolvendo um trocadilho visual (visual puns) e outra envolvendo tiras que induziam o participante a fazer atribuição de crença falsa. Embora nenhuma diferença significativa tenha sido encontrada entre os dois grupos na apreciação de visual puns, os participantes com síndrome de Asperger apresentaram muito mais dificuldade para compreender e apreciar as tirinhas que exigiam uma teoria da mente mais desenvolvida. Estes dados foram coletados com adolescentes e adultos, mas sugerem a possibilidade de que a teoria da mente pode estar associada à (ou ser um pré-requisito para a) apreciação de certos tipos de humor.
Considerando as evidências de existência de uma relação entre humor e teoria da mente, é surpreendente que o número de estudos que investigam o tema seja ainda limitado. Como Hoicka e Akhtar (2012, p. 586) argumentam:
O humor é tanto cognitivo como social em sua natureza. Produzir humor envolve criar incongruência (e.g., McGhee, 1979; Shultz, 1976), o que requer uma compreensão cognitiva de normas e de como essas normas podem ser violadas (e.g., colocar uma xícara na cabeça de alguém, e chamar uma xícara de “cachorro”, viola normas de ação e de linguagem, respectivamente). O humor é também social em sua natureza. Piadas são direcionadas a uma audiência (e.g., Hoicka & Gattis, 2008; Leekam, 1991) e precisam ser compartilhadas. Portanto, o humor pode ser um bom índice de desenvolvimento sociocognitivo, já que um piadista de sucesso precisa usar sua compreensão de incongruência na interação social (e.g., Hoicka & Gattis, 2008).
Finalmente, é importante destacar que uma compreensão mais elaborada da relação entre teoria da mente e humor pode ser muito útil no planejamento de intervenções voltadas para indivíduos com dificuldades ou comprometimentos na área social, em especial, porque há evidências na literatura de que o humor contribui de forma positiva para o desenvolvimento da competência social (McGhee, 1989).
Considerando, portanto, o número ainda limitado de estudos com uma perspectiva do desenvolvimento sobre o tema, bem como a relevância científica e social dessa linha de investigação, o presente estudo pretende contribuir nessa direção ao investigar se crianças que já possuem uma teoria da mente mais desenvolvida apresentam melhor compreensão de humor do que as crianças que ainda não desenvolveram essa competência. Além disso, pretendeu-se investigar possíveis diferenças em relação às preferências por diferentes tipos de humor, isto é, se crianças que já obtêm sucesso em tarefas de teoria da mente mais elaboradoras apresentam preferências por tipos diferentes de humor do que as crianças mais novas, que ainda não possuem essa habilidade.
Participaram da pesquisa 41 crianças de quatro a 11 anos (M idade = 7 anos e 11 meses, DP = 23,8 meses), sendo 23 do sexo feminino e 18 do sexo masculino. Os participantes foram recrutados em uma escola de ensino particular em um município localizado no interior de São Paulo. Os pais dos alunos receberam uma carta contendo uma descrição do estudo e o termo de consentimento solicitando a autorização para que seus (suas) filhos (as) participassem da pesquisa. A participação na pesquisa foi condicionada à apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelos pais. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (parecer no 149/2011, CAAE: 6677.0.000.135-10).
A coleta de dados ocorreu na escola onde os participantes foram recrutados, em uma sala previamente preparada para este fim. Os materiais utilizados foram uma caixa de bombons, pedaços de folha sulfite cortados, caixa pequena de papelão, uma bolsa pequena, um relógio de pulso, uma carta de papel, pano e figuras coloridas impressas representando os personagens e os locais mencionados nas histórias.
Para a avaliação de teoria da mente, foram utilizadas duas tarefas de crença falsa de primeira ordem e duas de segunda ordem. Para ter sucesso em uma tarefa de crença falsa de primeira ordem, a criança deve ser capaz de atribuir uma crença falsa a um personagem (e.g., "ele acha que...") (Wimmer & Perner, 1983). Já nas tarefas de crença falsa de segunda ordem, a criança deve ser capaz de atribuir uma crença falsa a uma pessoa sobre a crença de um terceiro (e.g., "ele pensa que ela acha que...") (Coull, Leekman, & Bennet, 2006). Para a avaliação de compreensão de humor, foram utilizados quadrinhos e piadas voltados para o público infantil.
Tarefas de crença falsa de primeira ordem. A primeira tarefa utilizada é uma adaptação da tarefa original criada por Perner, Leekman e Wimmer (1987). Em um primeiro momento, a pesquisadora mostrava uma caixa de bombons fechada para a criança e perguntava: “O que você acha que tem aqui dentro?”. Em seguida, a pesquisadora abria a caixa e mostrava que a caixa continha pedaços de papéis cortados e não bombons. A embalagem era fechada novamente e a pesquisadora então perguntava à criança: “O que você pensou que tinha aqui dentro, antes de eu abrir a caixa?”. Em seguida, a pesquisadora fazia algumas perguntas controle: “O que há mesmo dentro da caixa?” e “O que você pensou que havia na embalagem quando a viu pela primeira vez?”. Após as perguntas controle, a pesquisadora mostrava a figura impressa de um personagem e dizia: “Este é o Henrique. Ele não viu o que há na caixa. Se eu perguntar para ele o que tem dentro dela, o que ele vai responder?”. Depois de fornecida a resposta, a pesquisadora terminava perguntando: “Por que você acha que o Henrique pensa isso?”. Para ter sucesso na tarefa, a criança participante deveria ser capaz de atribuir uma crença falsa ao personagem, isto é responder que o personagem, assim como ela mesma, diria que a caixa continha bombons.
A segunda tarefa foi uma adaptação da tarefa de Maxi (Wimmer & Perner, 1983), envolvendo deslocamento de um objeto. A pesquisadora mostrava a figura colorida de uma menina e dizia o seguinte: “Essa é a Ana. Ela estava em casa quando resolveu brincar de bola com os seus amigos. Ela estava usando seu relógio novo. Para evitar que ele quebrasse durante o jogo, Ana o guardou dentro de sua bolsa”. Na sequência, a pesquisadora dizia que Ana então saiu de casa para brincar e deixou sua bolsa no quarto. E complementava: “Ao arrumar a casa, a mãe de Ana encontrou seu relógio dentro da bolsa e logo pensou: ‘Vou guardar o relógio da Ana nessa caixa para que ela não se esqueça dele amanhã”. Em seguida, a pesquisadora perguntava: “Onde a Ana guardou mesmo o relógio?”. Após fornecida a resposta para essa pergunta controle (resposta correta era bolsa), a pesquisadora continuava a história. O participante observava Ana voltando para casa e então respondia a seguinte pergunta: “Qual será o primeiro lugar onde Ana vai procurar seu relógio? Por quê?”. Para ter sucesso nessa tarefa, a criança participante deveria responder que Ana procuraria seu relógio no local onde o deixou quando saiu de casa, ou seja, na sua bolsa.
Tarefas de crença falsa de segunda ordem. A primeira tarefa é uma adaptação da tarefa original criada por Perner e Wimmer (1985). A seguinte história foi contada (com a ajuda das figuras coloridas):
Esta é a história de Clara e Marcos, que moram no mesmo bairro. Esta manhã, os dois foram juntos a um parque próximo dali. No parque, há um sorveteiro com seu carrinho de sorvetes. Clara está com vontade de tomar um sorvete, mas ela deixou o dinheiro em casa. Então, ela está muito triste. ‘Não fique triste’, diz o sorveteiro; ‘você pode buscar o seu dinheiro e comprar um sorvete mais tarde; eu vou estar aqui no parque a tarde toda. ‘Ah, que bom’, diz Clara. ‘Eu volto à tarde para comprar sorvete. Eu vou pra casa pegar meu dinheiro, então.’ Então, Clara vai para casa. Ela mora nesta casa (a pesquisadora apontava para a figura que representava a casa de Clara).
Agora, Marcos ficou sozinho no parque. Para sua surpresa, ele vê o sorveteiro deixando o parque com seu carrinho. ‘Para onde você vai?’, pergunta Marcos. O sorveteiro diz: ‘Eu vou levar meu carrinho para a igreja. Não há ninguém aqui no parque para comprar meus sorvetes. Lá perto da igreja, eu acho que terei mais clientes’. O sorveteiro vai então para a igreja. No caminho, ele passa em frente à casa de Clara. Clara está olhando para fora da janela e vê o sorveteiro passando. ‘Onde você está indo?’, pergunta ela. ‘Eu estou indo para a igreja. Eu conseguirei vender mais sorvetes lá’, responde o homem. ‘Que bom eu ter te visto passar’, diz Clara.
Marcos não sabe que Clara conversou com o sorveteiro. Ele não sabe disso. Agora, Marcos tem que ir para casa. Após o almoço, ele está fazendo sua lição de casa. Ele não consegue fazer uma das tarefas. Então ele vai até a casa de Clara para pedir ajuda. A mãe de Clara abre a porta e Marcos pergunta: ‘A Clara está?’. ‘Nossa, ela acabou de sair’, diz a mãe de Clara. ‘Ela disse que estava indo comprar um sorvete. ’ Então Marcos corre para ver Clara”.
A pesquisadora então perguntava aos participantes: “Onde é que Marcos acha que Clara foi?”. Em seguida, fazia a seguinte pergunta: “Por que ele acha que ela foi ao ...?”. Além disso, três perguntas controle eram feitas: 1. “Será que Clara sabe que o carrinho de sorvete está na igreja?”; 2. “O Marcos sabe que o sorveteiro falou com Clara?”; 3. “Onde é que Clara vai para pegar seu sorvete?”. Para obter sucesso na tarefa, o participante tinha que responder que Marcos acharia que Clara foi procurar o sorveteiro no parque, atribuindo assim uma crença falsa de segunda ordem ao personagem.
Na segunda tarefa, a seguinte história, baseada na tarefa original criada por Astington, Pelletier e Homer (2002), era contada:
Este é o Júnior e esta é a Lisa. Eles estão brincando na sala. Júnior ganhou uma carta de um colega. Lisa quer muito saber o que a carta diz, mas Júnior não quer que Lisa a leia. A mãe de Júnior o chama, e Júnior coloca a carta embaixo do cobertor e sai da sala. Enquanto Júnior está com sua mãe, Lisa pega a carta, lê e a coloca depois na caixa, mas, nesse meio tempo, Júnior termina de falar com sua mãe e volta para a sala. Ele vê Lisa colocando a carta na caixa. Júnior vê Lisa, mas Lisa não vê Júnior. Depois, Júnior se aproxima de Lisa e diz: ‘Certo, eu lerei a carta para você’. E ele vai pegar a carta”.
A pesquisadora perguntava então: “Onde Lisa pensa que Júnior vai procurar pela sua carta? Por que Lisa pensa isto?”. Para obter sucesso na tarefa, o participante deveria atribuir corretamente uma crença falsa ao personagem. Como critério de sucesso em cada nível (1ª e 2ª ordem), a criança precisava fornecer respostas corretas às perguntas alvo em ambas as histórias.
Para a avaliação da compreensão de humor, foram utilizados três quadrinhos da Turma da Mônica (Sousa, 1996) e três piadas do livro Rá, ré, ri, ró...ria - Novas piadas para crianças (Tadeu, 2009). Em ambos, quadrinhos e piadas, havia personagens do sexo feminino e masculino. As piadas e quadrinhos foram divididos pelas autoras em três categorias de acordo com seu conteúdo: a) incongruência (e.g., “O que os cachorros preguiçosos fazem para se divertir? Eles perseguem carros estacionados!”); b) engano intencional (e.g., Mônica usar argumentos enganosos para convencer Cascão de que ela (Mônica) não está usando uma câmera fotográfica falsa) e c) engano não intencional (e.g., Joãozinho dizer que perdeu sua bolinha, deixando a impressão de que se trata de um brinquedo e não muco nasal). Foram utilizados um quadrinho e uma piada de cada categoria. O quadrinho 1 e a piada 1 são da categoria “contradição”; o quadrinho 2 e piada 2 são da categoria “engano intencional” e o quadrinho 3 e piada 3 são da categoria “engano não intencional”. A pesquisadora gravou a narração de cada piada, usando entonação semelhante para todas, a fim de evitar o viés de uma narração feita por pessoas diferentes para cada criança.
Os participantes eram encaminhados individualmente pela pesquisadora à sala de coleta. Cada sessão durava aproximadamente 30 minutos e o procedimento foi igual para todas as crianças. Os instrumentos foram utilizados sempre na seguinte ordem: tarefas de crença falsa de primeira ordem, tarefas de crença falsa de segunda ordem, tarefa de humor com piadas e com quadrinhos.
Após a apresentação de cada quadrinho e cada piada, a pesquisadora fazia perguntas para averiguar a compreensão dos mesmos. Em seguida, a pesquisadora apresentava novamente as piadas gravadas, e ao final de cada uma, pedia para que a criança dissesse se a piada era “engraçada” (2 pontos), “mais ou menos engraçada” (1 ponto) ou “nada engraçada/sem graça” (0 pontos). O mesmo procedimento foi utilizado para a avaliação dos quadrinhos. O escore total para apreciação de piadas e de quadrinhos variou, portanto, de 0 a 6 para cada.
As seguintes análises foram conduzidas: a) análises de distribuição de frequência das respostas de apreciação das piadas e dos quadrinhos; b) Testes Kolgomorov-Smirnov para averiguar se a distribuição dos escores nas tarefas de Teoria da Mente (TM) e de Humor eram normais; b) teste de correlação de Spearman para investigar possíveis associações entre as variáveis de interesse (i.e., escores de TM; avaliação das piadas; avaliação dos quadrinhos); e c) o teste Kruskal-Wallis para avaliar possíveis efeitos de teoria da mente na apreciação das piadas e quadrinhos.
Inicialmente, uma análise de qui-quadrado foi realizada para verificar a distribuição de frequência das respostas fornecidas pelos participantes na avaliação das piadas e quadrinhos (i.e., “Quão engraçada/o é essa piada/esse quadrinho?”. Escores 0 ou 1 classificados como “não/pouco engraçados” e o escore 2 foi categorizado como “engraçado”. Em relação aos quadrinhos, não foi encontrada uma diferença significativa na distribuição de frequência das respostas, χ2 (2) = 0,84, (p = 0,96), ou seja, nenhum quadrinho foi particularmente rejeitado pelos participantes. No entanto, uma diferença significativa foi encontrada na distribuição da frequência das respostas às piadas, χ2 (2) = 11,38, (p = 0,003). Como pode ser observado na Tabela 1, a piada 2 (categoria engano intencional) parece ter sido rejeitada pela maioria dos participantes, sendo que 65,9% dos participantes a consideraram nada ou pouco engraçada.

Para verificar a normalidade das distribuições dos escores nas três medidas de interesse (Teoria da Mente, apreciação de piadas e apreciação das tirinhas), testes Kolmogorov-Smirnov foram realizados. O KS revelou, no entanto, que nenhuma das distribuições era normal (ps < 0,05). Dessa forma, as análises subsequentes foram também não paramétricas. Um teste Wilcoxon revelou uma diferença significativa entre a apreciação das piadas e dos quadrinhos, Z = -3,079, p = 0,002. Mais especificamente, as crianças gostaram significativamente mais dos quadrinhos (M = 4,90) do que das piadas (M = 3,92), lembrando que os escores variavam de 0 a 6 pontos.
Em seguida, os participantes foram agrupados de acordo com o seu desempenho nas tarefas de crença falsa: a) um grupo (G1) que não obteve sucesso nas tarefas de crença falsa de primeira e segunda ordem (n = 14); b) um grupo (G2) que passou nas tarefas de primeira ordem, mas não nas de segunda ordem (n = 18); e c) um grupo (G3) que obteve sucesso nos dois níveis (n = 9). Análises de qui-quadrado foram realizadas para investigar possíveis diferenças no padrão de preferência de cada grupo pelas piadas, mas a única diferença significativa encontrada foi em relação à piada 3 (engano não intencional). Enquanto a maioria das crianças do G2 e do G3 considerava a piada “engraçada” (88,3% e 88,9%, respectivamente), apenas 42,9% das crianças do primeiro grupo (que não passavam nas tarefas de 1ª ordem) a indicaram como “engraçada”. Em relação à apreciação dos quadrinhos, a análise não revelou nenhuma diferença significativa entre os três grupos de teoria da mente.
Uma análise de correlação de Spearman foi conduzida para testar possíveis associações entre o desempenho nas tarefas de TM e os escores de apreciação das piadas e dos quadrinhos. Uma associação significativa foi encontrada entre TM e a apreciação das piadas, rs = 0,378, p = 0,015 e uma tendência a uma associação significativa foi encontrada entre TM e o escore total na avaliação dos quadrinhos, rs = 0,301, p = 0,056. Finalmente, o teste Kruskal-Wallis revelou uma diferença significativa entre os três grupos na apreciação das piadas, H(2) = 9,04, p = 0,01, mas não na apreciação dos quadrinhos, H(2) = 4,37, p = 0,11. Como pode ser observado na Tabela 2, enquanto a maioria das crianças do G1 indicou que as piadas eram “pouco” ou “nada” engraçadas (71,3%), apenas 22,2% do G3 não gostaram das piadas. O G2 mostrou um padrão de preferência dividido entre considerar as piadas “pouco/nada” engraçadas (55,6%) e engraçadas (44,4%).

O presente estudo pretendeu contribuir para o campo de estudos sobre desenvolvimento sociocognitivo para investigar a relação entre o humor e o desenvolvimento da teoria da mente em uma amostra de crianças brasileiras. Para tanto, investigamos possíveis diferenças em relação à apreciação de piadas e quadrinhos (todos voltados para o público infantil) entre três grupos de crianças que se encontram em estágios distintos no desenvolvimento da teoria da mente. Os resultados evidenciaram associação significativa entre teoria da mente e apreciação de humor, o que é consistente com os achados de estudos prévios realizados em outros países (Bosacki, 2013; Kielar-Turska & Bialecka-Pikul, 2009; Samson & Hegenloh, 2010). Mais especificamente, o padrão de preferência pelas piadas apresentado pelos participantes parece ter sido influenciado pela capacidade de atribuir crenças falsas de primeira e segunda ordem a outros indivíduos. As crianças com uma teoria da mente mais avançada (G2 e G3) apreciaram mais as piadas do que as crianças do grupo de crianças que não obtiveram sucesso nas tarefas de crença falsa de primeira ordem. Uma hipótese explicativa possível é de que as limitações em teoria da mente do G1 dificultaram a compreensão e, consequentemente, a apreciação das piadas. As piadas 2 e 3 (categorias engano intencional e engano não-intencional), em particular, demandam minimamente a habilidade de diferenciar os estados mentais (i.e., pensamentos, crenças e emoções) de cada um dos personagens, ou seja, um repertório mínimo em teoria da mente parece ser necessário para que elas sejam compreendidas.
Uma análise das justificativas das crianças do G1 para as avaliações da piada 3 (engano não intencional), por exemplo, podem ilustrar bem esse argumento. Em resumo, a piada conta como Joãozinho começou a perturbar uma sessão de cinema, alegando que estava procurando sua “bolinha”. A sessão foi interrompida para que ele achasse a sua bolinha e, como ela não foi encontrada, ele disse: “Não tem importância. Eu faço outra!”, encolhendo os ombros e enfiando o dedo no nariz. Para que a piada fosse, portanto, apreciada, era minimamente necessário entender que todas as pessoas pensavam que ele procurava uma bola de brinquedo, quando, na verdade, Joãozinho procurava pela sua bolinha de meleca. Quando perguntadas “Porque você achou a piada (nada/pouco engraçada ou engraçada)?”, algumas crianças do G1 forneceram respostas que evidenciavam a ausência dessa compreensão: “Porque dá vontade de rir a hora que ele enfia o dedo no nariz”; “Porque ele fala que vai fazer outra bolinha no nariz”; “Porque ele perdeu a bolinha e não achou.”; “Porque ele encolheu os ombros e enfiou o dedo no nariz”. Em contraste, crianças do G2 e G3 ofereceram explicações que indicavam a compreensão da diferença entre o que o Joãozinho queria e o que as outras pessoas no cinema achavam que ele queria: “Porque todo mundo achou que era bolinha de brinquedo, e no final, era bolinha de nariz”; “Porque a bolinha era meleca do nariz dele”; “Porque ele perdeu a bolinha e todo mundo parou para achar porque eles achavam que a bolinha era de papel”.
Em contraste aos dados referentes à apreciação das piadas, não foram encontradas diferenças significativas entre os três grupos de TM no que diz respeito à avaliação dos quadrinhos. O teste de correlação de Spearman também indicou apenas uma tendência a uma associação significativa entre teoria da mente e apreciação dos quadrinhos. De fato, como indicado pelos resultados do teste Wilcoxon, as crianças gostaram muito mais dos quadrinhos do que das piadas, independentemente do seu repertório em teoria da mente. Essa diferença pode ser explicada pelo tipo de recurso utilizado para as piadas e para os quadrinhos. Os participantes tinham acesso apenas ao áudio das piadas, enquanto os quadrinhos eram mostrados na forma impressa colorida em folhas de papel. Segundo Ramos (2005), os quadrinhos, por usarem um recurso visual, não se limitam às estratégias verbais para provocar humor. A imagem pode atuar como fonte de comicidade e ajuda na passagem do modo “sério” de leitura para o “não sério”. Sugere-se, portanto, que estudos futuros considerem a técnica ou recurso de humor utilizado como uma variável a ser controlada ou mais bem investigada.
Embora esses resultados corroborem os estudos estrangeiros que têm evidenciado a relação entre o desenvolvimento da teoria da mente e a compreensão/apreciação do humor, o presente estudo apresenta algumas limitações que precisam ser mencionadas. Em primeiro lugar, é importante lembrar que existem diversas formas e técnicas para se produzir humor (Martin, 2007; Ruch, 2008; Stein & Carmelino, 2013) e a nossa pequena amostra de três piadas e três quadrinhos não reflete essa diversidade. Os critérios utilizados para a seleção do material foram os de serem manifestações de humor direcionadas para o público infantil e incluírem uma narrativa que convida o leitor a fazer atribuições de estados mentais aos personagens. Estudos futuros, no entanto, devem incluir uma amostra mais diversificada de piadas para crianças para que seja possível testar quão generalizável é o efeito. Outra sugestão é que estudos futuros façam comparações com participantes adolescentes e adultos. Uma pergunta importante que o presente trabalho suscita é se indivíduos que já possuem uma teoria da mente avançada (e.g., já são capazes de atribuir crenças falsas de 2ª ordem) apresentarão padrões de preferência semelhantes ou se variáveis individuais (como predisposição a se engajar em humor ou estado de humor), assim como variáveis ambientais (e.g., contexto familiar que encoraja o uso do humor) podem explicar diferenças na apreciação do material humorístico.
Finalmente, é importante destacar que o presente trabalho representa um passo importante, mas ainda inicial na compreensão da exata relação entre humor e cognição social. Os dados aqui apresentados são congruentes com a proposta de que o humor é um bom índice de desenvolvimento sociocognitivo (Hoicka & Akhtar, 2012), mas a relação pode ser bidirecional. Por um lado, parece plausível assumir que uma teoria da mente bem desenvolvida contribui para a compreensão e apreciação do humor e esse, por sua vez, torna-se um recurso importante nas interações sociais (Martin, 2007; McGhee, 1989; Ruch, 2008). Por outro lado, também é possível supor que o uso (ou o encorajamento) do humor possa ter efeitos positivos sobre o desenvolvimento sociocognitivo. Se, de fato, há uma relação (uni ou bidirecional) entre teoria da mente e compreensão/apreciação do humor, compreender a natureza dessa relação pode ser muito útil para o planejamento de intervenções que utilizem recursos de humor com populações específicas (e.g., crianças de desenvolvimento típico e atípico que apresentam atrasos em cognição social ou crianças que se encontram em situações de adversidade ou sofrimento psíquico).
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino (INCT-ECCE).
* E-mail: stephaniecnogueira@gmail.com



