Artigo Original
PREOCUPAÇÕES E COMPORTAMENTOS RELACIONADOS À APARÊNCIA FÍSICA NA INFÂNCIA: UMA ABORDAGEM QUALITATIVA
PHYSICAL APPEARANCE CONCERNS AND BEHAVIORS OF CHILDREN: A QUALITATIVE APPROACH
PREOCUPACIONES Y COMPORTAMIENTOS RELACIONADOS A LA APARIENCIA FÍSICA DE LOS NIÑOS: UN ENFOQUE CUALITATIVO
PREOCUPAÇÕES E COMPORTAMENTOS RELACIONADOS À APARÊNCIA FÍSICA NA INFÂNCIA: UMA ABORDAGEM QUALITATIVA
Psicologia em Estudo, vol. 23, pp. 1-16, 2018
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 01 Novembro 2017
Aprovação: 23 Abril 2018
RESUMO: A criança elabora mecanismos internos para formação de referências do próprio corpo, desde a tenra idade, tornando-se uma fase da vida relevante para estudiosos. Objetivou-se investigar atitudes relacionadas à imagem corporal sob o ponto de vista de crianças. Esta pesquisa qualitativa descritiva foi conduzida em quatro grupos focais. Participaram 19 crianças (10 meninas e 9 meninos), de 6 a 11 anos (M=8,36±1,42 anos), estudantes de escolas públicas da cidade de Juiz de Fora-MG. Os dados obtidos foram tratados mediante análise de conteúdo categórica. Três categorias emergiram a partir das falas das crianças: preocupações com aspectos específicos do corpo; preocupações com aspectos gerais do corpo; e comportamentos relacionados ao corpo. Conclui-se que as crianças avaliadas apresentaram atitudes que indicam preocupação com o corpo em aspectos gerais e específicos, além de comportamentos relacionados com a imagem corporal. Recomendam-se a elaboração e a adoção de estratégias de terapia e intervenção no sentido de promover uma imagem corporal positiva em crianças.
Palavras-chave: Imagem corporal, infância, pesquisa qualitativa.
ABSTRACT: The child develops internal mechanisms for forming references of the body itself, from an early age, becoming a relevant stage of life for researchers. The aim was to investigate attitudes related to body image from the point of view of children. This descriptive qualitative research was conducted in four focus groups. Nineteen children participated (10 girls and 9 boys), aged 6 to 11 years (M=8.36 ±1.42 years old), students of public schools of the city of Juiz de Fora, State of Minas Gerais. The data obtained were treated by categorical content analysis. Three categories emerged from children’s report: concerns about specific aspects of the body; concerns about general aspects of the body and body-related behaviors. It is concluded that the evaluated children presented attitudes that indicate concern with the body in general and specific aspects, besides behaviors related to body image. The development and adoption of therapy and intervention strategies in order to promote a positive body image in children are recommended.
Keywords: Body image, child, qualitative research.
RESUMEN: El niño elabora mecanismos internos para la formación de referencias del propio cuerpo, desde tierna edad, convirtiéndose en una fase de la vida relevante para estudiosos. Se tuvo por objetivo investigar actitudes relacionadas a la imagen corporal desde el punto de vista de los niños. Esta investigación cualitativa descriptiva se produjo en cuatro grupos focales. Participaron 19 niños (10 niñas y 9 niños), de 6 a 11 años (M=8,36±1,42 años), estudiantes de escuelas públicas de Juiz de Fora-MG. Se trataron los datos obtenidos mediante análisis de contenido categórico. Tres categorías indicaron: preocupaciones con aspectos específicos del cuerpo; preocupaciones con aspectos generales del cuerpo; y comportamientos relacionados con el cuerpo. Se concluye que los niños evaluados presentaron actitudes que indican una preocupación con el cuerpo en aspectos generales y específicos, además de comportamientos relacionados a la imagen corporal. Se recomienda la elaboración y adopción de estrategias de terapia e intervención para promover una imagen corporal positiva en niños.
Palabras clave: Imagen corporal, niño, investigación cualitativa.
Introdução
A infância compreende o período desde o nascimento até o início da puberdade/ adolescência (Papalia & Feldman, 2013). Esta fase compreende três estágios: primeira infância (nascimento até os 03 anos); segunda infância (de 03 a 06 anos) e terceira infância (de 06 até o início da adolescência) (Papalia & Feldman, 2013). Na terceira infância, período entre os 6 e 11 anos (Papalia & Feldman, 2013), o senso de identidade do indivíduo torna-se mais complexo (Papalia & Feldman, 2013). Assim, a criança consegue estabelecer comparações entre si mesma e muitas outras crianças, influenciando sua imagem corporal (Smolak, 2011).
A imagem corporal pode ser entendida como a representação mental do corpo (Schilder, 1999). Esse construto complexo e multifacetado (Cash & Smolak, 2011; Ferreira, Castro, & Morgado, 2014) envolve a imagem que o indivíduo tem do tamanho, da forma e do contorno de seu próprio corpo, bem como os sentimentos, pensamentos e comportamentos em relação a essas características (Cash & Smolak, 2011). A infância emerge como uma fase especialmente relevante para pesquisadores e estudiosos da imagem corporal, já que a construção desta se inicia na mais tenra idade. De acordo com Fortes et al. (2014) e Smolak (2011), é durante a infância que atitudes relacionadas ao corpo, tais como crenças, preocupações com o peso e forma corporal e comportamentos direcionados à melhora da aparência física podem ter início.
Cumpre destacar que se essas atitudes forem elaboradas na direção da imagem corporal negativa, tem-se um quadro caracterizado por uma profunda depreciação do próprio corpo, que pode causar angústia, sofrimento e depressão (Ferreira et al., 2014). O desenvolvimento desse quadro em idade precoce pode configurar fator de risco para o desenvolvimento de psicopatologias em idades tardias, o que torna fundamental a realização de estudos que enfoquem a imagem corporal no público infantil. Não obstante, a imagem corporal na infância tem sido comumente avaliada com instrumentos quantitativos. Investigações qualitativas que objetivem verificar com profundidade o entendimento das crianças sobre a importância atribuída a aspectos da imagem corporal ainda são escassas (Neves, Cipriani, Meireles, Morgado, & Ferreira, 2017). Dessa forma, o presente estudo realizou uma investigação qualitativa sobre as atitudes relacionadas à imagem corporal sob o ponto de vista de crianças entre 6 a 11 anos de idade.
Método
Esta pesquisa caracteriza-se por ser qualitativa descritiva, conduzida por meio da
técnica de grupo focal.
Participantes
A amostra foi composta por crianças de 6 a 11 anos de duas escolas públicas da cidade de Juiz de Fora/MG. No total, foram realizados quatro grupos focais, sendo dois em cada escola separados por idades e sexos. A seleção das escolas deu-se por conveniência, ou seja, aquelas em que as pesquisadoras tinham abertura para a realização da pesquisa. Optou-se pela separação por sexo, pelas diferenças na imagem corporal entre meninos e meninas já demonstradas por pesquisadores renomados na área (Cash & Smolak, 2011; Ferreira et al., 2014; Neves et al., 2017). Quanto à idade, Papalia e Feldman (2013) ressaltam que pode haver diferenças nas atitudes de crianças de diferentes idades (por exemplo: a elaboração dos pensamentos de crianças de 06 anos podem diferir daquelas de 11 anos). Por isso, é recomendada na literatura específica de grupos focais a realização de encontros com indivíduos tão homogêneos quanto possível em suas características essenciais, tendo em vista a não formação de subgrupos.
Os alunos foram selecionados por sorteio, através da lista de chamada de cada turma. Como critérios de inclusão na pesquisa, as crianças deveriam estar matriculadas e frequentando regularmente as aulas nas escolas selecionadas; saber ler e escrever; entregar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelo responsável e assentir com sua própria participação voluntária.
Assim, participaram do estudo 19 crianças, sendo 10 meninas e nove meninos, de 6
a 11 anos (média = 8,36 anos; desvio-padrão = 1,42 anos).
Procedimentos de coleta de dados
Estabeleceu-se contato com a direção das escolas selecionadas para a explicação dos objetivos e métodos do estudo. Após o consentimento, realizou-se um sorteio a fim de compor a amostra. As crianças elegidas levaram para casa o TCLE para autorização dos responsáveis, bem como um informativo agendando a realização do encontro.
Todos os grupos focais aconteceram em salas disponibilizadas pelas escolas, com a presença de quatro pesquisadoras: duas moderadoras, uma observadora e uma auxiliar da pesquisa. Foi realizada uma breve explicação da pesquisa às crianças, e foram distribuídos os Termos de Assentimento Livre e Esclarecido (TALEs) para que elas consentissem sua participação voluntária. Um roteiro semiestruturado previamente planejado serviu como guia para fomentar questões relativas à imagem corporal de crianças e orientar a discussão, mas com certa flexibilidade para modificações que pudessem surgir no momento de cada encontro. Algumas perguntas podem ser destacadas como exemplos: “Quais as partes do seu corpo que vocês mais gostam? Por quê?”; “Quais vocês menos gostam? Por quê?”; “Para vocês, como é um corpo bonito?”. A duração média dos encontros foi de aproximadamente 70 minutos. As crianças e seus responsáveis foram informados da necessidade de gravação em áudio e vídeo.
Análise dos dados
Todas as gravações de áudio e vídeo referentes aos encontros foram transcritas na íntegra. A técnica de Análise de Conteúdo, proposta por Bardin (2011), foi utilizada para analisar os dados dos grupos focais. As três etapas de análise propostas pela autora foram seguidas (pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados e interpretação). Foi utilizada a análise de conteúdo categórica e do tipo temática (Bardin, 2011).
Ressalta-se que, a fim de preservar a identidade das crianças participantes, seus nomes foram ocultados, e, ao invés deles, cada participação recebeu um código de identificação composto pelo número do grupo (G1, G2, G3, ou G4); seguido pelo número da criança (P1, P2, P3, (...) a P19); pela identificação do sexo da criança (♂ para meninos e ♀ para meninas); e por fim a idade do participante. O código completo pode ser exemplificado como: “G1, P1, ♀, 7 anos”.
Considerações éticas
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), por meio do parecer número
1.402.233. Todas as crianças e seus responsáveis assinaram o TALE e TCLE, respectivamente.
Resultados e discussão
Após a análise de conteúdo, três grandes categorias emergiram a partir das falas das crianças. São elas: (1) preocupações com aspectos específicos do corpo, (2) preocupações com aspectos gerais do corpo, e (3) comportamentos relacionados ao corpo. Cada uma dessas categorias é descrita e discutida separadamente a seguir.
Preocupações com aspectos específicos do corpo
Preocupar-se significa o estado de quem se encontra absorvido por uma ideia; com pensamento dominante, ou ainda importar-se, incomodar-se, inquietar-se. De acordo com Thompson, Heinberg, Altabe, e Tantleff-Dunn (1999), a preocupação com o corpo é multidimensional e pode estar relacionada a diferentes aspectos corporais. As crianças do presente estudo apresentaram uma tendência a relatar preocupações com aspectos específicos do corpo, separadamente.
Uma das partes corporais de maior destaque foram os cabelos, sendo mencionados por participantes de todos os quatro grupos realizados. Em estudo qualitativo com grupos focais, Tatangelo e Ricciardelli (2013) apontaram que as meninas de oito a dez anos frequentemente se engajaram em conversas sobre a aparência, e um dos focos dessas conversas é o cabelo. No presente estudo, os cabelos foram apontados: na descrição da própria aparência; entre as partes do corpo que as crianças mais gostam e também as que menos gostam; na descrição de como deve ser uma menina bonita (nos grupos masculinos); e até nas comparações da aparência com os demais participantes dos grupos. Dentre os adjetivos utilizados para caracterização dos cabelos estão: liso, cacheado, curto, longo, bonito, feio, entre outros. As falas a seguir são alguns exemplos dessas alusões: “O meu cabelo é longo. Desde pequena eu nasci com muito cabelo. Aí se eu não fizer cachinho, o meu cabelo fica igual uma bruxa de desenho (G1, P4, ♀, 7 anos)”; “Ah! Eu amo o meu cabelo também. Mas eu queria um cabelo cacheado. Assim, se ele tivesse um cacheado pelo menos eu iria ficar feliz (G2, P5, ♀, 10 anos)”; “A minha sobrinha é uma menina bonita. O cabelo dela é bonito demais. Ela tem um cabelo mais liso e bem longo mesmo (G3, P13, ♂, 10 anos)”; “Tem que comparar. Tem que olhar para o colega para ver se o colega é igual. Ele parece comigo. Porque o cabelo parece (G4, P15, ♂, 6 anos)”.
Outro aspecto que as crianças também deram ênfase foi a aparência do rosto. Schilder (1999) já apontava a importância especial que o rosto tem para a imagem corporal como um todo. Isso porque, segundo o autor, o rosto é a parte mais expressiva do corpo, já que é aquela que pode ser vista por todos (Schilder, 1999). Assuntos relacionados ao aspecto do rosto surgiram em três dos quatro grupos realizados. As falas dos participantes 2 e 11 representam com clareza o quanto as crianças consideram marcantes os traços do rosto, embora elas ainda não saibam expressar o motivo dessa importância: “[parte do corpo que mais gosta] O rosto porque... sei lá. Porque o rosto é importante (G1, P2, ♀, 8 anos)”; “Eu acho bonita uma pessoa com os traços do rosto bonito. Aí eu acho que tem que ser igual as coisas, não pode ser uma coisa muito diferente da outra. Os traços do rosto são importantes (G3, P11, ♂, 10 anos)”.
Nesse mesmo sentido, diversas características faciais também foram mencionadas. Dentre elas estão os olhos, o nariz, a boca, os dentes, a bochecha e as orelhas. A partir das falas dos participantes, foi possível identificar que eles se preocupam com essas características, pois têm claro quais são os estereótipos de beleza associados a essas partes. De acordo com Murnen (2011), o ideal de beleza, especialmente feminino, inclui olhos claros, cílios alongados, lábios carnudos e nariz fino. Seguem alguns relatos das crianças do presente estudo exemplificando essas questões: “[como é uma pessoa bonita] Com olho azul (G2, P6, ♀, 9 anos). Tem um na minha sala que tem olho verde (G2, P7, ♀, 9 anos).”; “Vamos supor, não querendo ofender as pessoas, mas assim... as pessoas que tem o nariz muito grande, a boca muito grande... Aí não fica bom. (G3, P11, ♂, 10 anos)”; “Eu não gosto do meu dente. Porque o meu dente é muito torto... (G1, P1, ♀, 7 anos)”; “Eu acho que eu tenho muita bochecha (G4, P15, ♂, 6 anos)”; “O meu rosto é (...) não é muito cheinho assim... Só as minhas bochechinhas de quando eu era pequena. Minha bochecha até caía de tão grande (...) as minhas bochechas já são rosadinhas. (G1, P4, ♀, 7 anos)”; “Eu não gosto da minha orelha porque ela é grande. (G2, P5, ♀, 10 anos)”.
A cor da pele também foi um atributo corporal bastante destacado pelos participantes, principalmente durante a descrição de sua própria aparência. Máximo, Larrain, Nunes e Lins (2012) identificaram que crianças de 9 a 12 anos apresentaram tendência ao branqueamento na autocategorização racial. Os resultados obtidos por esses pesquisadores apontaram que 71% das crianças negras se descreveram como morenas e 23%, como brancas. De acordo com os autores, isso ocorreu pela atribuição de características socialmente favoráveis (beleza e comunicabilidade) associadas às figuras brancas; e de características desfavoráveis socialmente (desonestidade) ligadas às figuras morenas e negras. A tendência apresentada por Máximo et al. (2012) não foi verificada na presente investigação. A descrição do tom de pele ocorreu a partir das próprias crianças, já que o tema do grupo focal era o corpo. Palavras como “branco”, “preto”, “café com leite” e “moreno” foram utilizadas como adjetivos da cor da pele, sem uma conotação pejorativa ou uma intenção de autobranqueamento. As falas a seguir exemplificam a autodescrição do corpo com relação a essa característica: “A cores podem ser diferentes. Ela é mais branca e eu sou morena (G2, P9, ♀, 10 anos).”; “Cada um tem uma cor diferente (G2, P6, ♀, 9 anos).”; “Eu tenho os olhos pretos. Eu sou preto. Meu cabelo é preto. Minha perna é preta. Meu nariz é preto. Minha boca é preta. Eu sou preto. Ah, eu sou alto. Mais nada (G4, P19, ♂, 8 anos)”; “A minha cor é café com leite. Eu tenho olho preto. Cabelo castanho. Meu cabelo tem parte que é branca. Tem fios que é branco. Mas o resto é preto. As pernas é café com leite escuro. As costas está queimado. (G4, P15, ♂, 6 anos)”.
Nos grupos focais femininos, características corporais relacionadas à magreza foram enaltecidas. De forma semelhante, no estudo de Tatangelo e Ricciardelli (2013) com grupos focais, a maioria das meninas discutiu a importância da magreza. Na presente investigação, as meninas relataram preocupar-se com o peso corporal e com o tamanho da barriga e cintura. Elas ainda identificaram que “ter barriga grande” ou “pancinha”, como de seus pais, seria um atributo corporal negativo. Expressões como “cintura boa” e “barriga de tanquinho” também surgiram em seus depoimentos como características positivas: “Eu gosto de ver quanto que eu estou pesando. Para ver se eu engordei um pouquinho, se minha cintura está boa (G2, P8, ♀, 10 anos)”; “Eu fico puxando a barriga [para dentro] para olhar no espelho. Eu gosto de ter barriga de tanquinho (G2, P7, ♀, 9 anos)”; “O meu pai tem uma barriga grande (G1, P4, ♀, 7 anos)”; “O meu pai também. Só que ele fala que eu sou gordinha que nem ele. Mas, no caso, ele é gordo, né?! Eu sou gordinha (G1, P2, ♀, 8 anos)”; “Tem uma pancinha, igual assim o meu pai (G1, P4, ♀, 7 anos)”.
Além de atributos relacionados à magreza, os seios e as nádegas volumosos também foram apontados pelas meninas durante a descrição de como seria um corpo bonito. Na sua linguagem, elas denominaram essas partes corporais como “peitão”, “bundão” ou “bundona”: “Eu queria um peitão que parece que colocou silicone, tia (G2, P8, ♀, 10 anos)”; “Eu gosto da Anita. Ela tem um peitão e um bundão. (G2, P7, ♀, 9 anos)”; “Eu queria ser a minha irmã. Ela tem um peitão que nem essa menina aí que elas estão falando. E uma bundona também, tia (G2, P6, ♀, 9 anos)”.
Já, em um dos grupos realizados com meninos, as expressões “peito bombadão” e “peito bombadasso” foram frequentes. Os meninos falaram sobre “ter peito bombadasso” como uma característica corporal valorizada pelo sexo oposto. Além disso, a “barriga de tanquinho” também foi destacada pelos meninos. Os relatos a seguir exemplificam essa questão: “Elas [as mulheres] gostam de homem forte. Com peito bombadão (G4, P16, ♂, 8 anos).”; “Peito bombadasso é bonito (G4, P16, ♂, 8 anos)”; “Eu gosto de ter barriga de tanquinho (G2, P13, ♂, 8 anos)”.
De acordo com Murnen (2011), o corpo ideal para mulheres, preconizado nas sociedades ocidentais, é fortemente associado à magreza e, mais especificamente, a aspectos que reforçam um corpo sexy. Os seios grandes, o quadril largo e a cintura fina estão entre essas características (Murnen, 2011). Já entre os meninos, o corpo ideal enfatiza a muscularidade, estruturado por ombros largos afilando a uma cintura fina (“forma de V”), músculos abdominais bem definidos (“six pack abs” ou “barriga de tanquinho”) (Murnen, 2011). Sendo assim, a musculatura peitoral bem definida reforça esse padrão corporal. Tendo isso em vista, é possível que os meninos e as meninas participantes do presente estudo tenham exaltado essas características corporais pelo desejo de alcançar esse corpo ideal (belo e bem sucedido) que é cada vez mais propagado pela mídia e pela sociedade do consumo.
Os membros inferiores também foram citados pelas crianças, entretanto, com menor destaque. As pernas, os joelhos e pés surgiram em alguns grupos focais ligados às partes do corpo que as crianças mais gostam e menos gostam e também entre as coisas que elas gostariam de alterar em seu corpo. Isso pode ser observado nas falas a seguir: “Eu gosto da minha perna porque com a perna dá para fazer muitas coisas. Dá pra ficar em diferentes posições (...). Eu não gosto do meu joelho. Eu gosto dele, mas eu sempre tenho uma coisa em relação ao joelho. Quando eu vou esticar a minha perna, eu não consigo esticar muito (G3, P12, ♂, 10 anos)”; “Eu queria que os meus dois joelhos fossem mais resistentes porque eu sempre caio de joelho e machuca (G3, P11, ♂, 10 anos)”; “O meu pé é grande. É de família mesmo. Eu queria ter um pé menor. Queria calçar exatamente como uma criança calça (G1, P2, ♀, 8 anos)”; “Eu queria mudar meu pé. Eu queria que meu pé fosse pequeno (G2, P10, ♀, 9 anos)”. Nesse sentido, quanto às pernas e aos joelhos, em alguns momentos, as falas das crianças não se referiam a características estéticas, mas à funcionalidade das mesmas, diferindo das menções realizadas das demais partes do corpo. Dessa forma, observou-se que a função esteve mais forte do que a estética quando o enfoque são membros inferiores.
Preocupações com aspectos gerais do corpo
Além das preocupações com partes corporais específicas, as crianças também demonstraram estar atentas ao aspecto do corpo no geral. Thompson et al. (1999) descrevem que a preocupação com o corpo pode estar direcionada ao peso corporal ou à aparência de uma forma geral. A categoria “preocupações com aspectos gerais do corpo” engloba as preocupações das crianças relacionadas à aparência global, à muscularidade, à gordura, ao peso e à altura.
Em relação à preocupação com a aparência geral, não foi observado consenso nas falas das crianças. Alguns participantes relataram estar satisfeitos e gostar de seus corpos, enquanto outros tiveram opiniões divergentes desta, como pode ser observado a seguir: “Eu não gosto de ser assim não (G4, P17, ♂, 7 anos)”; “Eu acho que do jeito que eu sou já está bom. Eu não preciso mudar não. Cada um gosta de ser do jeito que é (G3, P12, ♂, 10 anos)”; “Não tem nada que eu queria fazer que eu precise mudar o meu corpo. Eu gosto do meu corpo (G3, P11, ♂, 10 anos)”. Essa incongruência também foi observada em diferentes estudos na literatura da área. Ao perguntar diretamente para crianças a respeito de sua satisfação com o próprio corpo, Patalay, Sharpe e Wolpert (2015) encontraram baixa frequência de imagem corporal negativa em meninas e meninos. Por outro lado, a partir dos estudos de Leite, Ferrazzi, Mezadri e Höfelmann (2014) e Ling, McManus, Knowles, Masters e Polman (2015), os quais se valeram de escalas de silhuetas, a maioria das crianças avaliadas estava insatisfeita com algum aspecto da sua aparência. Salienta-se que a imagem corporal é um construto lábil que é reelaborado constantemente pelos indivíduos, o qual pode ser influenciado por relações sociais, econômicas e culturais (Cash & Smolak, 2011). Somado a isso, a imagem corporal de crianças encontra-se em desenvolvimento, podendo alterar de acordo com as descobertas diárias realizadas por elas (Papalia & Feldman, 2013).
A muscularidade foi um aspecto que chamou a atenção das crianças, especialmente entre os meninos, sendo ressaltada como um fator positivo entre eles e, também, entre algo valorizado pelo sexo oposto. Estudo realizado por Skelton, Irby, Guzman e Beech (2012) corrobora essa ideia já que, para os meninos de 8 a 12 anos que participaram de grupos focais, a saúde parecia estar ligada a noções pouco realistas sobre muscularidade. Dessa forma, ser musculoso foi considerado como sinônimo de ser saudável. Para os autores, essa compreensão limitada e superficial da saúde aponta a necessidade de maior educação e medidas de informação e esclarecimento para essa faixa etária. Na presente investigação, as falas dos meninos ilustram a ideia da muscularidade como um fator positivo da aparência corporal: “Elas [as meninas] gostam de homem forte. Tem peito bombadão (G4, P16, ♂, 8 anos)”; “Eu acho com certeza que é legal ser assim [musculoso]. Para poder ficar se exibindo. Se eu fosse fortão assim, eu ia com certeza. Eu acho que é legal ser assim (G3, P13, ♂, 10 anos)”; “Tem gente que é forte. É músculo. Ser forte é bom (G4, P14, ♂, 8 anos)”.
Durante as falas das crianças participantes do presente estudo, foi possível observar uma aversão à gordura. De forma semelhante, Martin (2015) verificou que crianças acima de dez anos viram como uma das principais desvantagens da gordura a menor capacidade de crianças obesas de jogar com os demais. De fato, a capacidade de fazer esportes com os colegas foi a razão mais citada por ambos os sexos nesta faixa etária para querer perder peso (Martin, 2015). Na presente investigação, a ideia de que a gordura é um aspecto negativo foi reforçada pelos meninos, estando atrelada a ideia de capacidade inferior: “Eu não gosto de ser gordo não (G4, P19, ♂, 8 anos)”; “Porque corre menos (G4, P18, ♂, 7 anos).”; “É, porque a pança fica pesada e você corre menos (G4, P15, ♂, 6 anos)”; “Se tem a pança, se um carinha vier te bater, você cai na hora. Aí você não consegue, você já está no chão. Se você for gordo (G4, P18, ♂, 7 anos)”; “Gordo não corre muito. Eu gosto de ser pequeno porque eu corro muito (G4, P15, ♂, 6 anos)”.
Todavia, aspectos negativos da gordura direcionados à estética corporal também foram apontadas: “Eu não gosto de pessoa gorda (G4, P19, ♂, 8 anos)”; “Tia, pessoa gorda não tem nada a ver (G4, P18, ♂, 7 anos)”; “Porque é esquisito. É muito gordo (G4, P19,
♂, 8 anos)”. Concernente a esse achado, Martin (2015) apontou opiniões negativas, consistentes e enfáticas, de crianças acerca de ser gordo. Segundo o autor, para as crianças de cinco anos, existiu uma clara visão de que ser gordo é o mesmo que ser feio. Assim, a gordura foi considerada um aspecto negativo tanto por conta da funcionalidade quanto por fatores estéticos.
Além disso, comentários negativos de outras pessoas a respeito da gordura foram relatados pelas crianças do presente estudo. Garousi (2014) já havia identificado atitudes lipofóbicas relacionadas significativamente ao elevado IMC em meninas. Harrison, Rowlinson e Hill (2016) investigaram as preferências das crianças entre os personagens de histórias infantis que variavam em peso. Os resultados apontaram que os julgamentos das crianças foram afetados pela gordura, com clara preferência às figuras magras e rejeição àquelas obesas, estando, assim, relacionados à satisfação com a aparência e aceitaçãosocial. As falas dos participantes retratam que os comentários a respeito da aparência afetam os sentimentos das crianças com relação ao seu corpo: “Tem um menino que fica chamando meu primo de baleia. Porque meu primo é um pouco gordinho. Ele não faz nada para cuidar do corpo. Ele se sente mal (G4, P14, ♂, 8 anos)”; “Tia, teve uma vez que o meu colega. Ele humilhou o meu outro colega. Fez ele chorar. Ele zuou. Falou que ele era gordo. Falou que parecia uma baleia assassina (G4, P18, ♂, 7 anos)”.
A magreza foi apontada como um fator positivo, especialmente para o sexo feminino. Já entre os meninos, alguns deles relataram medo de serem demasiadamente magros. Essa atitude demonstra uma tendência à adequação do que é considerado corpo ideal para os diferentes sexos, tendo em vista que a magreza é preconizada para o sexo feminino, mas não para o sexo masculino (Murnen, 2011). Sendo assim, enquanto as meninas valorizaram esse padrão corporal, os meninos demonstraram uma tendência ao equilíbrio, ou seja, não tinham vontade de ser muito magros, mas só um pouco. “Eu fico puxando [para dentro] a barriga para olhar no espelho, aí depois eu solto (...) Eu gosto de parecer magrinha... (G2, P7, ♀, 9 anos)”; “A minha sobrinha é uma menina bonita (...) O corpo dela é bonito. Ela é magra. Acho que só (G3, P13, ♂, 10 anos)”; “Meu primo me chama de magrelo e eu falo assim: ‘Você também é’. Eu não gosto de ser magrelo. Eu queria ser um pouquinho magrelo só (G4, P18, ♂, 7 anos)”.
Ainda no sentido da preocupação em ser gordo, algumas crianças relataram estarem atentas ao seu peso corporal. É interessante apontar que tanto meninos quanto meninas disseram controlar essa medida, demonstrando preocupação com o quanto pesam. Entretanto, pesquisadores apontam que as meninas podem apresentar maior dificuldade em lidar com o julgamento do seu peso e suas dimensões corporais do que os meninos (Fortes et al., 2014; Smolak, 2011). A preocupação com o peso corporal também esteve presente em meninas e meninos australianos avaliados por Fairweather-Schmidt e Wade (2015). As falas a seguir podem exemplificar que a preocupação com o excesso de peso pode afligir as crianças, independentemente do sexo: “Eu gosto de me pesar para ver se eu estou gordo ou estou magro (G4, P19, ♂, 8 anos)”; “Eu gosto de ver quanto que eu estou pesando. Para ver se eu engordei um pouquinho, se minha cintura está boa (G2, P8, ♀, 10 anos)”; “Eu gosto de me pesar para ver se eu engordei um pouco porque até agora está 30 quilos só. Por enquanto. E eu queria engordar pelo menos um pouco. (G3, P13, ♂, 10 anos)”.
Além do peso corporal, a estatura também chamou a atenção das crianças. Ao se-
rem perguntadas sobre o desejo de mudar alguma coisa em seus corpos, elas relataram vontade de serem “mais altas” ou “maiores” ou ainda “grandes”. De forma semelhante, “ser mais alto” foi apontado como uma vantagem entre as crianças de cinco anos no estudo de Martim (2015). As falas das participantes cinco e dez exemplificam essa questão: “Eu mudaria. Eu queria ser grande. Grande, bem grande mesmo. Porque pequena eu não alcanço nada. (G2, P5, ♀, 10 anos)”; “Eu queria mudar a minha altura e o meu pé (G2, P10, ♀, 9 anos)”.
Comportamentos relacionados ao corpo
A terceira categoria que emergiu, a partir das falas das crianças, foi a de “comportamentos relacionados ao corpo”. Em geral, comportamento significa um conjunto de ações que o indivíduo adota face às interações propiciadas pelo meio onde está envolvido. Os comportamentos de cada pessoa podem ser a expressão encarnada de alguns aspectos da identidade corporal e, por isso, podem expressar conflitos ou angústias do indivíduo, merecendo atenção especial (Cash & Smolak, 2011; Ferreira et al., 2014). No conceito de imagem corporal, os comportamentos direcionados ao corpo fazem parte do seu componente atitudinal (Cash & Smolak, 2011; Ferreira et al., 2014), e como alguns exemplos destacam-
-se: evitação da exposição corporal, a checagem corporal, a comparação do corpo com o de outros indivíduos, a prática de exercícios com o intuito de modificar o corpo (emagrecer ou ganhar músculos), a adoção de alterações na alimentação com a mesma finalidade, entre outros. Alguns desses comportamentos foram verificados nas falas das crianças e, sendo assim, a criação desta categoria é justificada.
Durante a realização dos grupos focais, constatou-se que a checagem corporal é um recurso frequentemente utilizado pelas crianças. Esse comportamento inclui ações constantes de autoavaliação do corpo, tais como a verificação periódica do peso corporal, exame do tamanho e da forma corporal (através de espelhos ou outras superfícies reflexivas); toque do corpo em busca de gordura corporal “indesejável”; entre outros (Mountford, Haase, & Waller, 2006; Shafran, Fairburn, Robinson, & Lask, 2004). Algumas falas dos participantes podem ser exemplos: “Eu me peso uma vez por dia. Eu gosto de me pesar (G4, P17, ♂, 7 anos)”; “Todo dia que eu olho no espelho, eu estou igualzinha um bambu (G2, P9, ♀, 10 anos)”; “Eu tenho bochecha grande [apertando a bochecha]. (G4, P17, ♂, 7 anos)”.
De acordo com Cash e Smolak (2011), caso os comportamentos de checagem corporal sejam repetidos compulsivamente, consumindo tempo e energia do indivíduo, isso pode indicar uma imagem negativa do corpo. Em estudo realizado com jovens universitários, Carvalho, Filgueiras, Neves, Coelho e Ferreira (2013) apontaram que a checagem corporal esteve associada às atitudes alimentares inadequadas e à insatisfação corporal, independentemente do sexo do indivíduo. No público infantil, estudo de Neves et al. (2017) não identificou investigações que buscassem avaliar a checagem corporal em crianças, e por isso, os autores ressaltaram a necessidade de novas pesquisas com essa intenção.
Somado a isso, o uso de determinadas vestimentas foi destaque nas falas das crianças. Estudo de Jellinek, Myers e Keller (2016) buscou determinar o efeito das roupas de bonecas (roupa de banho ou social) e do tipo de corpo (magro ou com sobrepeso) sobre a insatisfação corporal de meninas de seis a oito anos. Os autores identificaram que o tipo de corpo das bonecas influenciou a insatisfação corporal de meninas, tanto com trajes de banho quanto com roupas sociais. Neste estudo, ao serem questionadas sobre o que pensam que uma pessoa tem que ser para ser bonita, algumas meninas relataram usar “roupas bonitas” como estratégias adotadas: “(...) É só se maquiar e pronto (...) Colocar uma roupa bonita e pronto. Melhor ser bonita e ser normal. (G1, P4, ♀, 7 anos)”; “Colocar uma roupa bem bonita, colocar uns brinquinhos bonitinhos. (G1, P2, ♀, 8 anos)”. Essas falas demonstram a importância que meninas atribuem às vestimentas, possivelmente pela influência midiática com relação à moda.
O uso de roupas também esteve associado à imitação de celebridades. Em estudo qualitativo, realizado por Tatangelo e Ricciardelli (2013), tanto meninas quanto meninos relataram copiar celebridades os quais têm prestígio quanto ao estilo de roupa utilizada, corte de cabelo etc. Segundo os autores, as meninas tiveram tendência a copiar atrizes e cantoras famosas, enquanto os meninos buscavam comportamentos semelhantes aos de ídolos do esporte. No presente estudo, dois diálogos nos grupos focais femininos a esse respeito podem ser citados como exemplos: “Mc Guimê. Ele é muito lindo. (...) Ele tem um boné. Ele usa um boné. Acho que se ele tivesse aqui na escola eu iria desmaiar (G2, P6, ♀, 9 anos)”; “A Anitta. Eu acho ela bonita. (...) As roupas dela são bonitas. (G2, P10, ♀, 9 anos)”; “A Mc Tati Zaqui. Eu amo a Mc Tati. Eu queria ter o cabelo dela. Azul (G2, P5, ♀, 10 anos)”; “Eu acho a Larissa Manuela linda! (...) Porque as vezes que eu vejo ela na revista eu adoro tudo que ela usa. Aí eu acho ela muito bonita, até na TV (G1, P4, ♀, 7 anos)”.
Em um dos grupos masculinos, foi identificado que os meninos apresentam certa vaidade ao se arrumar e ao escolher as roupas que vão usar. Além da escolha da roupa, eles demonstraram estar atentos a marcas de roupas (por exemplo All Star, Nike e Polo), com o intuito de atingir o “estilo playboy”. O diálogo a seguir comprova essa questão: “Eu tirei foto de estilo playboy. Foto de playboy com tênis bonito. Jaqueta preta. Cordão grandão. E um boné (G4, P14, ♂, 8 anos).”; “Eu fui para roça ontem e eu fiquei de jaqueta, calça, tênis All Star e um cordaozão aqui que tem aquele “S” assim... que tem um risco no meio (G4, P15, ♂, 6 anos)”; “Eu gosto de ser metido. Eu gosto de escolher a roupa que vou sair (G4, P19, ♂, 8 anos)”; “Eu gosto de Tênis da Nike e da Polo (G4, P16, ♂, 8 anos)”.
Questionamentos a outras pessoas sobre a própria forma e aparência física são descritos como outros exemplos de comportamento de checagem corporal (Mountford et al., 2006; Shafran et al., 2004), os quais podem estar presentes em jovens e adultos (Carvalho et al., 2013). No presente estudo, esse comportamento esteve presente nos relatos dos participantes 2 e 12. Suas falas demonstram a tendência de verificar a opinião de outras pessoas significativas com relação à aparência: “Quando eu vou me arrumar, eu pergunto para a minha avó se está bom. Vai que eu coloco um short que a minha avó não gosta?! Eu falo assim: ‘Está bom vó?!’ Quando não está bom, ela fala assim: ‘Ah, vamos colocar outra coisa. Essa não está boa’. (G1, P2, ♀, 8 anos)”; “Às vezes, eu pergunto. Por exemplo, um dia eu estou sentindo que eu fiquei mais alto, aí eu vou e pergunto. Se eu engordei mais ou emagreci mais” (G3, P12, ♂, 10 anos)
A ação de comparar a forma e a aparência física ou partes específicas do corpo com outras crianças também foi verificada nas falas dos participantes do presente estudo. É importante ressaltar que relatos direcionados à comparação social surgiram nos quatro grupos realizados e tanto as meninas quanto os meninos disseram ou demonstraram adotar esse comportamento. Festinger (1954) já havia apontado que existe, no organismo humano, um impulso para avaliar suas opiniões e suas habilidades. Nesse sentido, as falas das crianças do presente estudo confirmam que o ato de comparar está presente mesmo em indivíduos da mais tenra idade: “Tem que comparar. Tem que olhar para o colega para ver se o colega é igual (G4, P15, ♂, 6 anos)”; “[Quando alguém está] olhando com olhar reparador. Ela está com uma amiga e ela fica olhando para a gente (G2, P8, ♀, 10 anos)”; “As cores podem ser diferentes. Por exemplo: ela é mais branca. Eu sou mais morena (G1, P2, ♀, 8 anos)”.
As comparações podem ocorrer de maneira espontânea e não intencional (Mussweiler, Ruter, & Epstude, 2004), ou de maneira estratégica e deliberada com a escolha intencional de um padrão de comparação (Festinger, 1954). Dependendo da intensidade e frequência que um indivíduo se engaja em um processo de comparação e também com o padrão o qual é utilizado para tal (o padrão pode ser superior ou inferior ao indivíduo na característica em questão), esse processo pode ocasionar consequências negativas na imagem corporal das pessoas.
A prática de exercícios físicos para modificação corporal foi mais um comportamento relatado pelas crianças. Tanto meninos quanto meninas disseram que atividades como Zumba, academia e musculação podem ser utilizadas para “ficar mais magro”, “acabar com a barriga”, ganhar “mais corpo e mais bunda”, dentre outros. As falas a seguir demonstram essa questão:
“Se o mais gordinho quisesse ficar mais magro, era só ele ficar mais diferente. Exercitar mais (...) Não ficar mais parado... que pra ficar mais bonito tem que se exercitar. O corpo. (G3, P12, ♂, 10 anos)”; “Fazer exercício para ficar com corpo bonito. Porque se não ficar vai ficar fraquinho. O exercício faz a gente ficar mais forte e mais resistente (G3, P13, ♂, 10 anos)”; “Academia também dá mais corpo, dá mais bunda (G2, P9, ♀, 10 anos)”; “Fazer exercício é muito legal. Deixa o corpo bonito (G2, P6, ♀, 9 anos)”; “A minha mãe faz Zumba também para acabar com a barriga. A Zumba queimou umas gordurinhas. A Zumba queima (G2, P8, ♀, 10 anos)”.
Ainda com relação à prática de exercícios, Skelton et al. (2012), ao investigar a percepção de meninos de oito a 12 anos sobre saúde, apontaram que esta se baseia na aparência muscular e na frequência de exercício. Os meninos consideraram que a aptidão física é importante, e ter six-pack abs (expressão no português: barriga de tanquinho) era indicativo de saúde. Além disso, quando solicitados a fornecer exemplos de indivíduos saudáveis, eles listaram principalmente celebridades ou pessoas que eles conheciam com físicos musculares, reforçando a ideia de que, para eles, indivíduos engajados em “exercitar todos os dias” e que tinham “muitos músculos” eram modelos de saúde.
Já na investigação de Tatangelo e Ricciardelli (2013), o termo fit foi frequentemente adotado por meninas e meninos para descrever um corpo ideal. Esse termo apresentou-se atrelado à prática de exercícios físicos e à manutenção de características e habilidades físicas desejáveis pelas crianças. Entre os meninos, o esporte foi apontado como um meio de atingir o corpo ideal. Nesse sentido, eles apontaram que seriam mais felizes se fossem mais musculosos. Já entre as meninas, elas disseram que gostariam de ter mais músculos, mas não um corpo muito musculoso, pois não seria atraente. Elas ressaltaram a importância da magreza como o melhor tipo corporal. Dessa forma, as falas das crianças do presente estudo corroboram os achados de Skelton et al. (2012) e Tatangelo e Ricciardelli (2013) já que dão importância à pratica de exercícios físicos em prol da estética corporal.
Tendo em vista à alimentação, as práticas alimentares foram associadas com uma estética corporal, no sentido em que comer exageradamente pode engordar. Como exemplos, ressaltam-se os seguintes trechos: “Ah, porque eu não gosto muito de comer porque eu me acho gorda (G1, P2, ♀, 8 anos)”; “Eu acho que eu sou magrinho. Às vezes, eu acho que eu sou um pouco gordinho, eu gosto de comer as coisas (...) se quiser ficar gordo é só comer [risos] (G3, P12, ♂, 10 anos)”; “Eu sou gordo, como demais (G4, P14, ♂, 8 anos)”. Assim, as crianças do presente estudo também perceberam que a alimentação pode contribuir com a modificação do corpo.
Destaca-se ainda que ao tratar desse assunto, os participantes mencionaram a influência dos pais, reconhecendo seguir os padrões estabelecidos dentro das suas próprias casas. O relato a seguir exemplifica essa questão: “A minha mãe é muito magrinha. Na verdade, ela come muito pouco. Eu sou mais igual ao meu pai. O meu pai come muito. Eu como muito igual o meu pai (G1, P3, ♀, 6 anos)”. A influência familiar na alimentação das crianças já foi demonstrada em estudos anteriores (Damiano et al., 2015; Michael et al., 2014; Swaminathan, Selvam, Pauline, & Vaz, 2013). De acordo com Goodell, Johnson, Antono, Power e Hughes (2017), o papel que os pais desempenham no desenvolvimento de hábitos alimentares em crianças em idade pré-escolar é fundamental, pois eles são os “guardiões de alimentos”. Sendo assim, possivelmente, as falas das crianças relacionadas à alimentação sofre grande influência dos pais.
Somado a isso, em adolescentes, Banna, Buchthal, Delormier, Creed-Kanashiro e Penny (2016) objetivaram compreender as influências socioculturais na alimentação utilizando métodos qualitativos. Os autores identificaram que essas influências ocorrem nos níveis individual (intrapessoal), social (interpessoal) e ambiental (comunidade). As influências individuais sobre o comportamento incluíam o conhecimento relacionado à nutrição, à falta de recursos financeiros para comprar alimentos e às preocupações com a imagem corporal. No nível social, os pais promoveram uma alimentação saudável, fornecendo conselhos sobre a seleção de alimentos e refeições caseiras. O ambiente físico também influenciou a ingestão, com os alimentos disponíveis nas escolas sendo predominantes.
Apesar das contribuições do presente estudo para o conhecimento da área, o mesmo apresenta limitações que devem ser apontadas. Inicialmente, todos os grupos focais foram conduzidos por pesquisadoras mulheres, inclusive os masculinos. Assim, os meninos participantes poderiam ter se sentido inibidos ao falar do corpo caracterizando essa questão como um fator limitante. No entanto, eles não se intimidaram e relataram sua opinião sincera a respeito do tema abordado. Outra limitação decorre do fato de que as crianças incluídas nesse estudo foram de duas escolas do setor público da educação de uma mesma cidade por conveniência. Assim, os achados não devem ser generalizados. Contudo, a presente investigação buscou avaliar em profundidade as opiniões de crianças a respeito dos aspectos relacionados à sua imagem corporal. Por fim, apesar de compreender que os pais influenciam nas falas das crianças, não foram desenvolvidas entrevistas com os familiares para entender em profundidade se os relatos são apenas reproduções. As relações sociais têm grande importância durante o desenvolvimento infantil, já que o contexto social imediato para uma criança normalmente é a família (Papalia & Feldman, 2013). Assim, não é possível medir até que ponto as falas dos participantes são opiniões próprias ou apenas repetições dos adultos.
Conclui-se que sob o ponto de vista das crianças avaliadas neste estudo, as principais atitudes relacionadas à imagem corporal direcionam-se às preocupações com partes específicas do corpo, às preocupações com aspectos gerais do corpo e comportamentos direcionados à própria aparência física. Esses resultados são importantes na medida em que crianças de seis a 11 anos já podem internalizar padrões de beleza considerados ideais difundidos pela mídia e, potencialmente, valorizados pelos próprios familiares, impactando negativamente na sua imagem corporal.
Considerando que uma imagem corporal negativa durante a infância pode ser fator de risco para o desenvolvimento de psicopatologias mais tarde durante a adolescência ou idade adulta, esse público deve estar sob foco de atenção e intervenção. Tendo em vista a saúde mental infantil, recomenda-se a promoção de uma imagem corporal positiva como estratégia de prevenção. Em adição, sugere-se o desenvolvimento de pesquisas quantitativas a fim de avaliar o maior número de crianças, bem como a criação de instrumentos psicométricos específicos para o público infantil.
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Autor notes
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