Artigo Original
Recepção: 10 Novembro 2017
Aprovação: 21 Maio 2018
DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v23.e40425
RESUMO: Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) é um transtorno do neu- rodesenvolvimento caracterizado por desatenção, hiperatividade e impulsividade. A preva- lência aumentou nos últimos tempos e sua origem permanece sob investigação. A susce- tibilidade genética em interação com fatores ambientais, principalmente a vida em família, é considerada componente importante da etiologia. Diante disso, este estudo buscou com- preender a experiência materna de mulheres com filhos diagnosticados com TDAH. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa empregando o método clínico-qualitativo e as Narrativas Transferenciais como estratégia metodológica. O Teste de Apercepção Temá- tica Infantil, forma Animal - CAT-A foi utilizado como mediador na entrevista. A Psicanálise Winnicottiana foi adotada como referencial teórico para a interpretação dos resultados. As participantes foram quatro mães de crianças diagnosticadas com TDAH. A análise interpre- tativa mostrou que as mães experimentaram angústias desde a gestação e nascimento das crianças; elas tiveram dificuldades para entrar em sintonia com os filhos no início da vida e não tiveram condições objetivas e emocionais para experimentar a devoção e manifesta- ram limitações para vincular-se com eles e oferecer-lhes holding. Essas dificuldades no re- lacionamento inicial eram decorrentes de vivências depressivas latentes ou manifestas das mães, que lhes dificultavam auxiliar os filhos a alcançarem a capacidade para as experiên- cias transicionais, para o brincar e para a simbolização; estes pareciam responder à apatia materna pelo seu gesto criativo por meio de uma motricidade exacerbada e sem objetivos. O artigo alerta para a necessidade de atenção e acompanhamento psicoterapêutico para a mãe e não apenas para a criança com TDAH.
Palavras-chave: Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, psicanálise, relações mãe-filho.
ABSTRACT: Attention-Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) is a neurodevelopmental disorder characterized by inattention, hyperactivity and impulsivity. Its prevalence has increased recently and the origin remains under investigation. Genetic susceptibility combined with environmental factors, especially family life, are important components of the etiology. Therefore, this study aimed to understand the maternal experience of women with children diagnosed with ADHD. For that, we developed a qualitative research by using the clinical-qualitative method and the Transferential Narratives as methodological strategy. The Children’s Apperception Test, animal figures - CAT-A was used as a mediator in the interview. Winnicottian Psychoanalysis was adopted as a theoretical reference for the interpretation of the results. Participants were four mothers of children diagnosed with ADHD. Interpretive analysis showed that mothers experienced distress from the gestation and birth of the children. They had difficulties in connecting to their children early in life, did not have objective and emotional conditions to experience devotion and manifested limitations in bonding with them and offering them holding. These difficulties in the initial relationship were due to mothers’ latent or manifest depressive experiences, which made it difficult for them to help their children reach the capacity for transitional experiences, for the play and for symbolization. The children seemed to respond to maternal indifference through their creative gesture by means of an exacerbated and aimless motricity. The article alerts to the need for attention and psychotherapeutic follow-up for the mother and not only for the child with ADHD.
Keywords: Attention-deficit hyperactivity disorder, psychoanalysis, mother-child relations.
RESUMEN: El Trastorno por Déficit de Atención con Hiperactividad (TDAH) es un trastorno del neurodesarrollo caracterizado por desatención, hiperactividad e impulsividad. Su origen permanece bajo investigación, indicando la susceptibilidad genética en interacción con factores ambientales, principalmente la vida en familia, como componentes importantes de la etiología. En este estudio se buscó comprender la experiencia materna de mujeres con hijos diagnosticados con TDAH. Para tanto, se desarrolló una investigación cualitativa empleando el método clínico-cualitativo y las Narrativas Transferenciales como estrategia metodológica. La prueba Apercepción Temática Infantil, forma Animal - CAT-A fue utilizada como mediador en la entrevista. El psicoanálisis Winnicottiana fue adoptado como referencial teórico para la interpretación de los resultados. Las participantes fueron cuatro madres de niños diagnosticados con TDAH. El análisis interpretativo mostró que las madres experimentaron angustias desde la gestación y nacimiento de los niños, ellas tuvieron dificultades para entrar en sintonía con los hijos al inicio de la vida y no tuvieron condiciones objetivas y emocionales para experimentar la devoción y manifestaron limitaciones para vincularse con ellos y ofrecerles holding. Esas dificultades en la relación inicial eran derivadas de vivencias depresivas latentes o manifiestas de las madres, que dificultaban ayudar a los hijos a alcanzar la capacidad para las experiencias transicionales, para el juego y para la simbolización; estos parecían responder a apatía materna por su gesto creativo por medio de una motricidad exacerbada y sin objetivos. El artículo alerta sobre la necesidad de atención y acompañamiento psicoterapéutico para la madre y no sólo para el niño con TDAH.
Palabras clave: Trastorno por déficit de atención con hiperactividad, psicoanálisis, relaciones madre-hijo.
Introdução
Às vezes eu falei que a mãe de uma criança hiperativa tem que ter muito... muito... vontade de viver... muito pulso, porque não é fácil. Eu já cheguei a ter dia de chorar. ‘Por que ele é assim? O quê que tá acontecendo?’ Porque eu não ‘tô’ aguentando mais e não sei cuidar do meu próprio filho. (Carla2, mãe participante da pesquisa)
O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é um tema muito debatido, principalmente com relação a crianças em idade escolar. Esse diagnóstico refere-se a um transtorno neurobiológico que surge na infância e pode acompanhar o indivíduo por toda a vida. O TDAH suscita muita preocupação e estresse na vida dos pais e ocupa lugar de destaque entre os profissionais de saúde, sendo considerado o principal distúrbio psicológico em crianças (Rodrigues & Leite, 2016).
É um quadro composto por sinais e sintomas comportamentais relacionados à desatenção, hiperatividade e impulsividade, que devem acarretar algum tipo de dificuldade ou impedimento para a realização de tarefas e prejuízo nos relacionamentos. Existem, atualmente, dois principais conjuntos de critérios diagnósticos para o TDAH de uso corrente, um baseado na Classificação Internacional de Transtornos Mentais e Comportamentais, 10ª revisão - CID-10 (OMS, 1993), e outro baseado nos critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais - DSM 5ª edição (APA, 2014). Esta última versão do DSM 5 (APA, 2014) permite classificar o TDAH em leve, moderado ou grave, de acordo com o grau de comprometimento e determina três subtipos de TDAH: de apresentação combinada, quando ambos os critérios de desatenção e hiperatividade são preenchidos; de apresentação predominantemente desatenta e de apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva, sendo que em todos os casos os critérios devem ser apresentados nos últimos meses. A definição desses critérios percorreu um longo caminho, dadas às dificuldades de descrição desse transtorno em termos de seus sintomas e de sua etiologia.
Estudos populacionais mostram que o TDAH está presente na maioria das culturas em cerca de 5% das crianças e 2,5% dos adultos (APA, 2014). Para Cheida e Monteiro (2014), as taxas de prevalência são bastante variáveis, mas estima-se que de 8 a 12% das crianças no mundo sofrem desse transtorno; entre elas, 0% a 85% permanecem com esse quadro na adolescência. A proporção da incidência entre meninos e meninas varia de 4:1 a 9:1. A explicação para esta diferença parece ser a de que os meninos são encaminhados mais frequentemente para tratamento do que as meninas por desenvolverem também problemas de conduta e, assim, preocuparem mais seus professores e familiares (Benczik, 2010).
O TDAH é um transtorno complexo, cuja etiologia não está bem definida. As evidências científicas sugerem que fatores ambientais e genéticos estão associados ao aumento da suscetibilidade a ele. Os fatores ambientais estão geralmente relacionados com o contexto familiar e socioeconômico. Outros fatores afetam processos cerebrais específicos como a exposição fetal ao álcool, tabagismo materno, baixo peso ao nascer, os quais comprometem os processos de atenção e motivação. Há também uma elevada participação da hereditariedade no surgimento do transtorno (Dumas, 2011; Hora, Silva, Ramos, Pontes, & Nobre, 2015), sendo que as estimativas nesse sentido se aproximam de 80% (Kappel, 2016).
Com relação aos fatores familiares envolvidos na etiologia do TDAH, Pires, Silva e Assis (2012) constataram que o ambiente familiar dessas crianças era menos organizado e com mais conflitos do que o do grupo controle; eles enfatizam o ambiente como promotor, mantenedor ou desencadeador do quadro. Harvey, Metcalfe, Herbert e Fanton (2011) encontraram uma associação entre a depressão dos pais durante os anos pré-escolares da criança e presença do TDAH, confirmando os achados de Takeda, Ambrosini, Berardinis e Elias (2012), que vinculam a psicopatologia parental ao aumento do risco desse distúrbio. Gau e Chang (2013) também verificaram a existência de prejuízos no relacionamento do bebê com o ambiente e manifestação do TDAH quando a mãe apresentava sintomas
depressivos.
As interações entre pais e filhos com TDAH se caracterizam por mais conflitos, coerção e estresse; todavia, a disciplina também pode ser mais lânguida em comparação com as famílias sem essas queixas (Benczik & Casella, 2015). No entanto, grande parte dos conflitos familiares parece originar-se por conta do TDAH das crianças e de seu impacto sobre o funcionamento da família, em vez de constituir seu agente etiológico. Mesmo assim, Benczik (2010) afirma que o comportamento dos pais, as suas características e o seu padrão ocupacional contribuem para a ocorrência desses relacionamentos problemáticos.
Schicotti (2013) analisou mães de crianças com TDAH a partir da perspectiva psicanalítica. Ele concluiu que elas ora ofereciam uma vivência de separação brusca e violenta, ora se colocavam como fonte inesgotável de alimento e afeto para os filhos, o que gerava descontrole dos impulsos e evasão das situações que deles exigiam esforço, pensamento e concentração. Schicotti também observou a existência de uma fusão da criança com a mãe, aliada a um sentimento de desamparo paterno. Essas descrições destacam os psicodinamismos individuais e familiares presentes na promoção e na manutenção desse quadro, bem como o sofrimento emocional por ele provocado.
O tratamento do TDAH requer uma abordagem ampla e multidisciplinar. Os enfoques terapêuticos mais utilizados incluem a educação sobre o transtorno para os familiares e professores, uso de fármacos para a criança e intervenções psicoterápicas com ela e com a família. Os fármacos são prescritos na maioria dos casos para crianças em idade escolar, adolescentes e adultos (Mattos, Rohde, & Polanczyk, 2012).
De um ponto de vista psicodinâmico, Couto e Castro (2015) e Laidlaw e Howcroft (2015) defendem que é importante considerar o caso em sua singularidade, e que a intervenção psicanalítica necessita focalizar os efeitos das relações familiares, institucionais e sociais do ambiente escolar na posição subjetiva da criança diagnosticada com TDAH.
Considerando que o TDAH tem a sua aparição e perpetuação favorecidas pela vida familiar da criança, neste trabalho elegemos a teoria winnicottiana para a sua compreensão. Esta opção se fundamenta na característica dessa vertente da psicanálise de que a constituição subjetiva do indivíduo (Self) depende de um ambiente facilitador que promova um sentimento de continuidade com o mundo. É na troca de experiências nos relacionamentos com o outro que a criança se torna capaz de existir no mundo de forma criativa e prazerosa, usufruindo do que ele lhe oferece e também contribuindo para o seu desenvolvimento.
Winnicott (1986/2005) atribui ao Self a criatividade primária e o gesto espontâneo do indivíduo. Sua manifestação é possível em estágios mais avançados do amadurecimento, pois no início o que existe é um Self em potencial. Para que este se torne central, é necessário um ambiente facilitador do desenvolvimento da criança, capaz de possibilitar que ela adquira um sentido de continuidade consigo mesma e com o mundo. No início da vida esse ambiente seria representado na maioria das sociedades e culturas pela mãe.
Winnicott (1958/2000) nomeou a mãe que consegue exercer suas funções de modo a atender as necessidades do bebê como “mãe suficientemente boa”. Ele desenvolveu o conceito de “preocupação materna primária” para nomear o estado psicológico que atua sobre as mulheres entre algum momento antes do parto e algumas semanas após o nascimento do bebê. A mãe suficientemente boa, no início da vida da criança, oferece a ela uma devoção que permite a adaptação quase total às suas necessidades, produzindo a sensação de onipotência no bebê, fazendo com que ele acredite que o seio que o alimenta foi criado por ele: essa experiência é denominada de ilusão. Posteriormente, a tarefa da mãe será a de desiludir o bebê; nessas condições, ele vai desenvolvendo recursos para não depender totalmente dela. Esse processo de ilusão-desilusão favorece a percepção de si como um ser criador e, posteriormente, a diferenciação entre o eu e o não eu.
Winnicott (1979/2007) divide as funções maternas em três campos distintos: o holding,
o handling e a apresentação de objetos. O holding é um aspecto do cuidado materno que inclui especialmente o suporte físico e emocional do lactente. Ele é descrito como uma forma de amar que necessita ser consistente e que implica a empatia materna, e não apenas a provisão ambiental concreta. O handling pode ser entendido como o conjunto de cuidados físicos que auxiliam no processo de integração, que ajudam no assento da personalidade no corpo, para a formação de uma unidade psicossomática. Sobre a terceira função, a mãe auxilia a criança a entrar em contato com a realidade, apresentando os objetos que dela fazem parte e contribuindo para o desenvolvimento do sentido de realidade (Saldanha, 2017).
As conclusões da literatura médica e da psicanalítica sobre o papel da família no surgimento e manutenção do TDAH evidenciam a necessidade de conhecer em profundidade os grupos familiares onde vivem as crianças com esse diagnóstico para propor estratégias de intervenção dirigidas a elas e também aos pais. É nesse aspecto que a teoria winnicottiana faz sua maior contribuição, na compreensão do modo como o ser humano é humanizado na relação com o outro (no início, a mãe) para, a partir daí, trilhar o caminho do retraimento narcísico primário rumo ao mundo compartilhado, cultural. No caso do TDAH, as graves consequências individuais, familiares e sociais que ele acarreta, aliadas à sua importante prevalência, tornam esse tipo de estudo não apenas necessário, mas também urgente.
Diante desse panorama, este estudo teve como objetivo compreender a experiência materna de mulheres com filhos diagnosticados com TDAH, em termos das suas dificuldades, necessidades e angústias, mas também dos seus recursos emocionais.
Método
Esta é uma pesquisa clínico-qualitativa (Turato, 2008), pautada no método psicana- lítico, que visa à produção de novos sentidos ao invés de realizar inferências generalizáveis para a amostra ou população (Pacheco-Filho, 2000). A estratégia metodológica empregada foi a das narrativas transferenciais, que são compostas por três momentos: o encontro com o participante, a redação do acontecer clínico desse encontro (a narrativa propriamente dita) e, na terceira etapa, a interlocução da narrativa com a literatura científica, a partir da sua leitura equiflutuante3 pelo pesquisador (Aiello-Vaisberg, Machado, Ayouch, Caron, & Beaune, 2009). Na redação do acontecer clínico, o pesquisador faz um relato autoral do encontro, narra o que se passou entre ele e o participante e suas impressões pessoais e con- tratransferenciais. No terceiro momento, essa narrativa é relacionada a conceitos teóricos, fundamentados na psicanálise. Dessa forma, as narrativas transferenciais são confiáveis como estratégia metodológica, pois os acontecimentos são descritos com transparência (Aiello-Vaisberg et al, 2009).
Participantes
Quatro mães, de nível socioeconômico médio, cujos filhos do sexo masculino4, foram diagnosticados como apresentando TDAH por uma psiquiatra infantil do Ambulatório de Saúde Mental de um município de pequeno porte do Estado de São Paulo. Os critérios de exclusão referiram-se à existência de membros nas famílias com histórico de alcoolismo, psicopatologia com internação psiquiátrica, drogadição, tentativa de suicídio e violência doméstica, além de suspeita de déficit intelectual profundo na criança ou na mãe. As participantes foram Carla (29 anos), Maria (29 anos), Júlia (34 anos) e Sônia (34 anos). Escolaridades entre ensino fundamental incompleto e pós-graduação. Todas elas tinham mais de um filho, três eram casadas e uma divorciada.
Instrumento, procedimento e análise dos dados
No encontro com as participantes foi realizada uma entrevista psicológica mediada por uma técnica projetiva, o Teste de Apercepção Temática Infantil, forma Animal - CAT-A (Bellak & Bellak, 2010/1952). O uso do CAT-A como mediador (e não como teste psicológico) na entrevista com pais já foi objeto de outros estudos, em que ele se mostrou capaz de atingir os objetivos propostos de investigação da experiência parental (Heck, 2014; Bonfim, 2015; Barbieri, 2015). Foram utilizados cinco cartões do CAT-A, os de números 1, 2, 3, 4 e 8, selecionados de acordo com as temáticas latentes que evocam: oralidade e relação com a figura materna; conflito edípico, percepção das figuras parentais e relação com a autoridade; rivalidade fraterna; percepções diante da dinâmica familiar. Cartões considerados como mais significativos para a apreensão da experiência da maternidade.
As entrevistas foram realizadas individualmente. Nelas, os cartões do CAT-A foram apresentados às mães, um por vez, mediante a seguinte solicitação: “Vou te mostrar alguns quadros e gostaria que você, olhando-os, me contasse como foi e como é ser mãe do (nome da criança) nessas situações”. Os relatos das mães aos cartões do CAT-A foram audiogravados em formato MP3 e transcritos posteriormente.
Na análise dos resultados, após a redação da narrativa sobre o acontecer clínico vivido com cada uma das mães e as respectivas interlocuções com a literatura, foi realizada uma síntese final do grupo, buscando compreender a experiência materna dessas mulheres em termos de suas semelhanças e singularidades.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CAAE 45378215.3.0000.5407), de acordo com as exigências da resolução 4/12 do Conselho Nacional de Saúde. Cada encontro teve 01 hora de duração, aproximadamente. Os casos serão brevemente apresentados na próxima seção, seguidos de uma síntese final.
Resultados e discussão
Carla: 29 anos, é casada oficialmente há seis anos, mas encontra-se em união estável com o marido há 14. Sua escolaridade é ensino médio completo e sua profissão é comerciante e do lar. Ela faz tratamento psiquiátrico para ansiedade/depressão há quatro meses (há 05 anos fez o mesmo tratamento e o interrompeu por conta própria). Teve três gestações, mas perdeu a primeira no início. Ela é mãe de dois filhos, sendo que o mais velho tem sete anos e o mais novo, quatro anos. O primogênito se chama Davi e frequenta o 2o ano do ensino fundamental. Ele foi diagnosticado com TDAH e usou Ritalina5 por dois anos, mas há dois meses mudou para Concerta5. Apresenta dificuldades escolares.
Carla e a maternidade: A narrativa revela um desejo intenso de ter um filho, acompanhado do medo de perder o bebê durante a gestação, o que muitas vezes a deixou literalmente paralisada, em repouso absoluto e com receio de se mexer. Após o nascimento, a maternidade passou a ser vivida por Carla como exigindo demandas acima de suas capacidades e às quais ela tem muita dificuldade para responder. O filho é visto como invasivo, opositor, uma criança que solicita muita atenção, a expõe ao julgamento alheio e à vergonha:
Na casa dos outros ele tem que fuçar em tudo. Pode ser na casa de qualquer pes- soa, ele tem que fuçar em t-u-d-o, tem que ver o que tem ali dentro, meter a mão, mexer. E é muito ruim pra gente, né? (tom de tristeza)... Todo lugar que vai, sai briga, sai confusão. Nem um lugar se tira pra descansar, de jeito nenhum.
Ela interpreta a agitação dele como agressividade. Na dinâmica da díade, ela se vê como indefesa e a criança se torna um objeto persecutório do qual ela é vítima:
Vou te falar que fácil não é. Eu já fiquei depressiva por causa dele, já briguei muito com meu marido por causa dele. Ele é uma criança que enfrenta a gente, que nada tá bom pra ele, nada faz ele feliz, sabe? Você tenta, mas....
Essa confusão de identidade entre os dois é mantida pela mãe, que impede que o pai ingresse no relacionamento dela com o filho e ajude a impor limites identitários entre eles:
Meu marido faz de tudo, nossa é um marido ótimo, mas também ele quer que o Davi vire um homem de bem, ele não gosta de coisa errada. Se ele vê o Davi ‘tei- mosiando’, respondendo, ele já fica nervoso, às vezes ele dá ‘uns tapa’ no Davi, às vezes eu tive que ficar no meio: eu sou mãe, eu vejo ele batendo, e ele é um homem grandão, aí, eu entro no meio, daí acabo brigando com ele, brigo com o meu marido, e acolhendo o Davi.
Por conta das identificações projetivas, a díade estabelece uma relação de dependência mútua e Carla pode se comprazer dos sentimentos e atitudes do filho (que atua os conteúdos que ela projetou), ao mesmo tempo em que se sente ameaçada por eles.
Maria: 29 anos e está casada há 12. Ela tem o ensino fundamental incompleto, é do lar e tem três filhos, um de dez anos, outro de três anos e um mais novo de dois. Pedro, o filho mais velho recebeu o diagnóstico de TDAH; ele usa Ritalina há dois anos, somente quando vai à escola, e metade de um medicamento à noite antes de dormir (a mãe não soube dizer o nome). Já apresentou dificuldades de aprendizagem, mas atualmente está melhor, pois uma cuidadora começou a ajudá-lo na sala de aula.
Maria e a maternidade: Maria vive a maternidade em meio a dúvidas sobre a sua capacidade de amar e de se fazer amar:
Eu não sei o quê que acontece comigo pra eu não dar carinho nele, eu queria muito dar, mas eu não vou mentir para você não, é eu dar carinho e ele montar em cima de mim, porque ele é aquele menino que se você dá liberdade, ele toma conta da sua vida.
Ela revelou que, em sua infância, nunca sentiu ter ocupado um lugar especial junto aos pais, principalmente à mãe: “Acho que eu também não tive amor de mãe e de pai. Meu pai me batia muito...(chora). Então não consigo dar amor, carinho ‘pros meu filho’.”
As repercussões dessas experiências infelizes sobre a experiência da maternidade são intensas. Valendo-se de sua posição de mais forte e de adulta, Maria, em vários momentos humilha o filho, mas ao perceber o quanto o machuca com essa atitude, sofre profundamente: “Eu perco a paciência com ele e já começo a bater, porque eu acho que se eu chegasse e conversasse, eu acho que o Pedro melhorava bastante, muito.”
A área dos fenômenos e das experiências transicionais é demasiado restrita e o mundo lhe faz pouco sentido: ela não consegue apropriar-se criativamente dele, modificá-lo e modificar-se a partir dessa interação. Dessa forma, não existe espaço para o brincar, visto que a criatividade encontra-se abafada por um falso Self protetor.
Maria refere que gostaria de mudar, mas não consegue, porque o único modelo de mãe que tem introjetado e com o qual se identifica é o de alguém incapaz de oferecer holding e compreensão. Ela vive um desencontro com o mundo, inclusive com o filho, em que ora o magoa, ora é por ele magoada. Para protegê-lo e proteger-se, ela se retrai, acentuando ainda mais o sentimento de existência de uma lacuna entre si e o mundo.
Júlia: 44 anos e é divorciada. Ela tem pós-graduação e é inspetora de alunos em uma escola privada. Tem dois filhos, Bia, de 24 anos e Vinícius, de oito anos. Ele foi diagnosticado com TDAH e faz uso de Ritalina há dois meses.
Júlia e a maternidade: A maternidade de Vinícius, conforme vivida por Júlia, encontra- se estreitamente associada à sua experiência conjugal mal sucedida, situação que sua pouca maleabilidade e restrita expressão criativa não lhe permitem ultrapassar. A rigidez e o encolhimento da área da transicionalidade pouco permitem experiências de relaxamento e de elaboração criativa do luto pelo objeto amado, além de acarretarem dificuldades para regredir e compreender o filho:
Na hora da tarefa ou na hora que ele está brincando, eu viro pra ele e digo que não é assim, que ele vai quebrar o brinquedo, pra ele ter mais cuidado, então, às vezes eu exijo dele não brincar, não quebrar, mas é coisa de criança, né? (...)
Ela é pouco capaz de realizar introjeções e identificações, de simbolizar e tem dificuldades para iniciar novos relacionamentos. Sua rigidez a impede de moldar-se aos objetos criativamente imaginados pelo filho e ao seu gesto; por isso, não pode promover nele um sentimento de continuidade consigo mesmo e com o mundo. Seu relato é permeado pela culpa e pela autoacusação, porque reconhece o quanto a sua impaciência, rigidez e intolerância comprometem o seu relacionamento com o filho: ela sofre por si e por ele:
(...) eu acho que pelo fato de eu não ter aceito a gravidez, fiquei muito emotiva com isso, porque eu não queria que fosse assim, eu queria ter aceitado, ter tido uma gra- videz boa pra não prejudicar ele, (...). Toda aquela emoção que eu senti por causa dos problemas com o pai dele, toda aquela revolta que eu senti, de prejudicar ele...
Por conta de encontrar-se bloqueada pelos sofrimentos relativos à separação, o relacionamento que Júlia estabelece com o filho oscila entre a empatia quase simbiótica, em que ele representa a encarnação do seu sofrimento (pois também sofreu com o abandono), e a separação abrupta; em suma, o vínculo vacila entre a indiferenciação e a indiferença, como percebe-se nas falas que seguem:
Olha o que for pra falar com a Bia (filha mais velha), você fala diretamente, porque ela já tem idade suficiente pra isso. Agora, quanto ao Vinícius, eu sempre vou inter- vir e sempre vou falar com vocês, porque ele não tem idade pra responder por ele, então, eu vou fazer isso sempre! (Explicando como ela se dirige ao pai e à madrasta do menino).
Que nem, domingo passado teve o aniversário do filho do meu sobrinho... e ele tira muito sarro (do Vinícius), e o Vinícius (...) não consegue lidar com aquela situação, então, ele vem pra mim, e eu tentei mostrar pra ele que ele tem que resolver com ele, que eu não tive que ficar entrando no meio disso, porque eles são pequenos e eles tem que se entender.
Ela consegue orientá-lo e educá-lo, pois conhece, do ponto de vista intelectual, o que é necessário para o desenvolvimento de uma criança, mas fica perturbada e exasperada quando ele expressa sua fragilidade de criança e solicita holding. Ao mesmo tempo em que não consegue acolhê-lo, também não permite que ele busque conforto em outra pessoa:
Toda hora que acontecia alguma coisa, ao invés de vir em mim, como ele sabia que eu não ia ajudar, ele ia na mãe do menino pra ela dar bronca nele. Aí, eu chamei a atenção dele nisso também, falei que isso é chato, que as pessoas vieram no ani- versário pra se divertir.
Sônia: 34 anos e é casada há dez. Ela tem ensino médio completo e é do lar. Ela já sofreu de hipertensão arterial, mas perdeu peso e o problema normalizou. Ela tem dois filhos, Marcos, de nove anos e Henrique, de três. Marcos foi diagnosticado com TDAH há dois anos e faz uso da substância Imipramina desde então. Segundo Sônia, os sintomas iniciaram por ocasião de sua segunda gravidez; logo depois desse evento, a avó materna de Marcos faleceu e ele se tornou mais agitado. No ano seguinte, a avó paterna faleceu e por último o avô paterno, eventos que contribuíram para intensificar os sintomas.
Sônia e a maternidade: A experiência de Sônia como mãe de Marcos é marcada por uma série de sofrimentos e pela negação deles e de sua gravidade. Ela parece apresentar um Self precariamente constituído e com fronteiras pouco consistentes, oscilando entre uma simbiose completa e uma separação abrupta e prematura da criança, que tem como um de seus exemplos as dificuldades de relacionamento afetivo por ocasião do aleitamento materno:
Como eu estava tendo crise de hipertensão, eu não tinha tanta paciência pra ficar dando leite. Eu tentava dar e se ele não pegasse, eu tirava um pouco na chuquinha, pra ele não ficar sem as vitaminas e a proteção que tem no leite. Depois ele não quis mais mesmo, então eu deixei só na mamadeira e nem forcei muito mais, porque uma vez eu fui colocar o peito na boca dele e ele fez ânsia de vômito, sabe, então já passei pra mamadeira direto.
Ela não parece experimentar um sentimento de confiança no mundo, que ora é sentido como indiferente a ela (o marido é descrito como ausente e pouco compreensivo), ora como hostil (a diretora da escola do filho suspeitou de uma deficiência intelectual do menino, o que a magoou e encolerizou). Nessas condições, a área das experiências transicionais não pode se desenvolver ou, ao menos, se expandir. Os relacionamentos são vividos como invasões e, por conta disso, ela tolera pouco a simbiose com o filho, a ponto de a gravidez ter-lhe provocado uma descompensação depressiva acompanhada de sintomas psicossomáticos:
A minha gravidez foi difícil porque eu tive obesidade mórbida, diabetes gestacional, e aí no final da gravidez foi muito difícil e ele teve que ser tirado com três semanas. Ele estava em sofrimento fetal. Aí foi difícil, eu tinha medo de morrer no parto e dele morrer no parto, (...). Eu era casada e foi planejado, mas mesmo assim foi difícil, porque eu não esperava engordar tanto, fiquei compulsiva (...). Quando ele nasceu, eu tinha crise de hipertensão e dava aquelas apagadas, então minha mãe cuidava dele, então ela teve contato direto com ele.
Assim, a experiência materna de Sônia é marcada por padecimentos profundos, enraizados em momentos primitivos do seu desenvolvimento emocional, que se atualizam no relacionamento com Marcos e que foram agravados pelas sucessivas perdas familiares que a díade sofreu, em especial a da avó materna da criança. O Déficit de Atenção para Sônia seria uma patologia de natureza ambiental, cuja etiologia repousa na sua dificuldade de oferecer holding ao filho pelo seu próprio sofrimento emocional, e de não poder mais contar com ninguém para apoiá-la ou fazer isso em seu lugar:
Aí eu falei que ele tinha déficit de atenção e ele faz essas coisas pra poder chamar a atenção, ele não aceitou bem o nascimento do irmão, teve a perda da avó, e depois disso ele mudou completamente o comportamento dele.
Essa é a sua fantasia de enfermidade do menino, a cura consistindo em uma aproximação afetiva genuína e espontânea que ela, embora tente, não consegue alcançar devido às suas dificuldades para relaxar e brincar.
Síntese das narrativas
As descrições dos casos revelam que as mães experimentam a maternidade da criança com TDAH como árdua e desgastante, tanto por conta de comprometimentos emocionais delas próprias, exteriores ao vínculo com o filho (Júlia e Sônia), quanto por ser a criança um fator desintegrador da família (Carla e Maria). Elas mostraram dificuldades já no período de gestação. Essas tensões não foram dissipadas após o nascimento e prosseguiram na forma de prejuízos na capacidade de devoção materna no início da vida da criança, seja no sentido da insuficiência (Maria, Júlia e Sônia) seja no do excesso (Carla).
As dificuldades de devoção se manifestaram também nos problemas relativos à alimentação da criança no início da vida. Menos vinculados à nutrição em si mesma, esses prejuízos referem-se principalmente ao contexto em que ela ocorre, pois não há possibilidade de usufruir dos relacionamentos nesses momentos de partilha amorosa.
No nível psicodinâmico, as experiências das mães foram marcadas, unanimemente, por dificuldades para auxiliar o filho a realizar um trânsito gradual e contínuo entre o relacionamento simbiótico e a aquisição da autonomia relativa. Nessas circunstâncias, as mães, por suas dificuldades pessoais, não puderam promover o brincar a criança, nem realizar essa atividade com elas.
Nos casos de Carla e Júlia, embora o relacionamento com a criança oscilasse entre a dependência e a imposição abrupta da autonomia, o que prevalecia era uma simbiose estendida da díade. Mesmo assim, as necessidades de ilusão dos filhos não eram genuinamente supridas, dadas as deficiências das mães para se adaptarem ao gesto criativo e se moldarem aos objetos imaginativamente elaborados por eles. O gesto do filho, quando não era completamente abafado pela mãe, não encontrava limite algum, no sentido de não lhe ser oferecida uma resistência física que propiciasse a sua adaptação e conformação em uma forma real que legitimaria a sua existência. Portanto, o gesto não era confirmado e inserido no mundo humano e a motricidade não podia expressar-se dentro de limites precisos, esculpida em harmonia com os objetos reais a eles endereçada. Ao contrário, essa demanda motora ilimitada ou reprimida da criança somente encontrava formas de expressão de maneira exagerada e transbordante.
Em termos de diagnóstico estrutural da personalidade, as narrativas sugeriram que as quatro mães apresentavam uma organização limítrofe de personalidade que originou, em algum momento, sintomas de natureza depressiva, com angústias de perda do objeto. A presença de um apoio ambiental, de alguém de confiança da mãe capaz de oferecer holding a ela e à criança pareceu fazer uma diferença importantíssima tanto em termos da evolução do caso como das comorbidades relacionadas ao TDAH. Em dois dos casos estudados, as mães contavam com esse apoio (Júlia e Sônia) e seus filhos, ao contrário das outras duas díades, não desenvolveram comportamentos excessivamente agressivos e opositores, segundo o relato das mães. Todavia, este é um resultado que necessita de maiores confirmações.
As dificuldades emocionais parentais que sustentam e promovem o TDAH foram enfatizadas pelas mulheres em seus relatos, demonstrando a necessidade de atenção psicoterápica para as mães e não apenas para a criança. Nessa direção, embora a literatura científica sobre a etiologia do TDAH afirme a atuação conjunta da suscetibilidade genética (Martins et al., 2014; Hora et al., 2015) e das dificuldades ambientais (Takeda et al., 2012; Gau & Chang, 2013), todas as mães, em suas narrativas, situaram as origens do transtorno nas experiências da criança junto à família e no relacionamento dela com o filho. As hipóteses de origem genética foram recusadas por elas, embora fossem capazes de identificar a existência do TDAH em outras crianças da família.
Embora a maioria das mães compreendesse os sintomas dos filhos como vinculados a experiências de angústia da parte deles e delas próprias que se atualizavam no relacionamento da díade, essas dificuldades nos vínculos eram agravadas pelos comportamentos disruptivos da criança, que agiam como fatores desintegradores da família. Nesse sentido, Benczik (2010) também demonstrou que o nível de estresse, de conflitos e de problemas das pessoas que convivem com crianças com TDAH é elevado. Essas dificuldades não se restringem ao relacionamento com a mãe, mas se estendem a todos os familiares: as mães descreveram os momentos em família como de muita “bagunça”, agitação, oposição e “birra”. Essas ocasiões não eram vividas com satisfação, mas com temor, vergonha e angústia, com as mães sendo incapazes de descansar na presença dos filhos.
Os comportamentos disruptivos das crianças repercutiam com maior intensidade nas mães participantes desta pesquisa porque, em todas elas, uma depressão, latente ou manifesta se fazia presente. Gau e Chang (2013) e Takeda et al. (2012) também verificaram a associação entre prejuízos no relacionamento do bebê com o ambiente e a manifestação do TDAH quando a mãe apresentava sintomas depressivos.
As dificuldades depressivas ocasionam prejuízos por parte dos pais para lidar com conflitos, insatisfações pessoais, lutos decorrentes de separações conjugais e morte de entes queridos, contribuindo para o comportamento disruptivo das crianças com TDAH (Gau & Chang, 2013; Benczik & Casella, 2015). Essas circunstâncias foram mencionadas por todas as mães desta pesquisa, que revelaram dificuldades marcantes para elaborar suas perdas: o processo de luto era vivido por elas como permanente e, indiretamente, também pelos filhos.
A pouca consolidação das fronteiras do Self das mães estudadas e o seu constante medo de serem invadidas pelo outro comprometiam o seu senso de autonomia; com isso, o processo regressivo necessário para alcançar o estado da “preocupação materna primária” era visto como uma ameaça, pois ele as deixaria ainda mais vulneráveis à possibilidade de perderem-se de si mesmas e terem o Self tomado e usurpado pelo filho. Por essa razão, esse estado foi alcançado por elas de modo apenas parcial, prejudicando o desenvolvimento de um nível de sensibilidade que as habilitasse a fornecer um ambiente singular, individualizado e propício para o desenvolvimento emocional do filho, deixando-se moldar pela criatividade primária dele (Winnicott, 1958/2000). Desse modo, elas não puderam auxiliar a criança a desenvolver um sentimento de continuidade consigo e com o mundo e o relacionamento alternava-se entre uma simbiose indiferenciada e um hiato intransponível entre a díade, provocado pelo retraimento defensivo das mães. A comunicação da criança era precariamente compreendida pelas mães e, como o gesto espontâneo do filho não era acolhido, ele não chegava a conhecer e reconhecer os objetos externos nem o próprio corpo. Dessa maneira, a excitação pulsional não encontrava continência na expressão motora e não podia ser assim humanizada, mas transbordava no corpo por meio de uma motilidade impulsiva, irrefreada, sem objetivos e inadaptada ao objeto.
Em suma, a fragilidade dos Selves das mães estudadas, cujas fronteiras são pouco consolidadas, comprometeu as possibilidades de devoção e de uma simbiose genuinamente sustentadora do processo de ilusão-desilusão; em consequência, a confiança da criança de existir um mundo capaz de acolher a sua criatividade primária e de dispor de um corpo capaz de expressá-la não pode se estabelecer.
Em alguns dos casos estudados (Júlia e Sônia), a deficiência do holding materno pode ser compensada por outras figuras, como a irmã, o pai ou a avó da criança. Se essa reparação (parcial) não foi impeditiva do surgimento do TDAH, ela parece ter contribuído para a ausência ou o abrandamento das comorbidades psicológicas associadas a esse transtorno como as patologias de natureza antissocial.
Os resultados deste estudo mostram que o TDAH não deve ser compreendido como um transtorno unicamente da criança, mas também como uma patologia do relacionamento entre a mãe e o filho, cuja etiologia reside em uma insuficiência do meio familiar no suporte à díade em dificuldades. A necessidade de um apoio ambiental que sustente a mãe em sua função, por parte de uma pessoa de sua confiança e que apresente constância, parece prover uma parte importantíssima da terapêutica desse transtorno. Concomitante a esse holding ambiental, os resultados revelam a necessidade de uma terapêutica clínica stricto sensu dirigida à mãe e à criança, visando ampliar a área das experiências transicionais da díade, promovendo o brincar e o faz-de-conta.
Considerações finais
O presente estudo objetivou compreender a experiência materna de mulheres com filhos diagnosticados com TDAH. As mães narraram angústias vivenciadas durante a gestação e após o nascimento dos filhos, além de dificuldades importantes no relacionamento inicial da díade. Elas tiveram dificuldades para entrar em sintonia com os filhos e manifestaram limitações para vincular-se com eles e oferecer-lhes holding, deficiências estas que persistiram ao longo da vida da criança. Essa situação ocasionou prejuízos no estabelecimento do processo de ilusão-desilusão da díade, com as mães sendo pouco capazes de ecoar a criatividade dos filhos e de ajustar-se aos objetos por eles criados, significando o seu gesto espontâneo. As dificuldades de devoção eram decorrentes de patologias depressivas latentes ou manifestas que acometiam as mães. Elas experimentavam uma profunda solidão e o seu sentido de Self era construído sobre bases bastante frágeis. O viver criativo delas próprias não tinha lugar e a constituição da área das experiências transicionais não estava assegurada. As fronteiras do Self eram estabelecidas de maneira precária e, por isso, o relacionamento com o filho oscilava entre experiências de invadi-lo emocionalmente e de ser por ele invadida. Esses relacionamentos conduziam a um abafamento do gesto espontâneo do filho, que se tornava inadaptado aos objetos do mundo real e passava a ser expresso de uma forma ansiosa e sem objetivos ou limites. Diante disso, os resultados sugerem a necessidade de um acompanhamento psicoterapêutico não apenas para a criança, mas também para a mãe, com o intuito de facilitar o desenvolvimento e a recuperação da capacidade criativa da dupla e sua ação espontânea no mundo. A existência de um suporte ambiental que sustente a díade em sofrimento também se mostra relevante para atenuar as psicopatologias de natureza antissocial, frequentemente associadas ao TDAH. O apoio e o olhar atento para as dificuldades advindas do TDAH se estendem para além da criança, mas para sua mãe e para o entorno familiar, desde o início do desenvolvimento da vida.
Este estudo mostra também a pertinência da teoria winnicottiana para a compreensão
de um transtorno cuja prevalência vem aumentando nos últimos tempos. Espera-se que este trabalho seja um incentivo para o desenvolvimento de outras investigações sistematizadas sobre esse quadro na perspectiva teórica da psicanálise.
Agência de fomento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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Notas
Autor notes
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