Artigo Original
O DISCURSO DO CAPITALISMO E OS EFEITOS DE SEGREGAÇÃO: UMA PRÁTICA
THE DISCOURSE OF CAPITALISM AND THE EFFECTS OF SEGREGATION: A PRACTICE
EL DISCURSO DEL CAPITALISMO Y EFECTOS DE SEGREGACIÓN: UNA PRÁCTICA
O DISCURSO DO CAPITALISMO E OS EFEITOS DE SEGREGAÇÃO: UMA PRÁTICA
Psicologia em Estudo, vol. 23, pp. 1-15, 2018
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 11 Dezembro 2017
Aprovação: 17 Maio 2018
Resumo: Este artigo parte da articulação entre o Discurso do Capitalismo e os progressos da tecnicização da ciência como engrenagem de efeitos de segregação que teriam como consequência a produção de um indivíduo eficaz. A formulação dessa questão tem por objetivo geral conceituar o estatuto de abolição da divisão do sujeito viabilizada pelos efeitos de segregação. Recorre-se ao ensino de Lacan, no período do final da década de 1970, apontando a substancialização e a articulação da noção de efeitos de segregação enquanto processo subsidiado tanto pelos progressos científicos quanto por uma lógica mercadológica. Sustenta-se que este aporte possa ser aferido no ensino de Lacan por meio da formalização do discurso do capitalismo. Dessa maneira, a articulação entre o discurso do capitalismo e os progressos da tecnicização da ciência promove, por meio dos efeitos de segregação, a abolição da divisão em um processo de acoplagem entre sujeito e objeto de gozo. É desde a abolição da divisão que se produziria um indivíduo eficaz, categoria derivada dos efeitos de segregação e caracterizada por sua disponibilidade ao consumo e docilidade às métricas avaliativas.
Palavras-chave: Capitalismo, Lacan, segregação, laço social.
Abstract: This article is based on the articulation between the Discourse of Capitalism and the progress of the technicization of science as a gear of segregation effects that would have as a consequence the production of an effective individual. The formulation of this question has the general objective to conceptualize the abolition statute of the subject’s division made possible by the effects of segregation. We refer to Lacan’s teaching in the late sixties, pointing to the substantiation and articulation of the notion of segregation effects as a process subsidized both by scientific progress and by a market logic. It is maintained that this contribution can be assisted in Lacan's teaching through the formalization of the Discourse of Capitalism. In this way, the articulation between the Discourse of Capitalism and the progress of the technicization of science, through the effects of segregation, the abolition of division in a process of coupling between subject and object of jouissance. It is from the abolition of division that an effective individual would be produced, a category derived from the effects of segregation and characterized by its availability to consumption and docility to evaluative metrics.
Keywords: Capitalism, Lacan, segregation, social bond.
Resumen: Este artículo se basa en la articulación entre el Discurso del Capitalismo y el progreso de la tecnificación de la ciencia como un engranaje de efectos de segregación que tendría como consecuencia la producción de un individuo efectivo. La formulación de esta pregunta tiene el objetivo general de conceptualizar el estado de abolición de la división del sujeto, hecho posible por los efectos de la segregación. Nos referimos a la enseñanza de Lacan a fines de los años sesenta, apuntando a la sustanciación y articulación de la noción de efectos de segregación como un proceso subsidiado tanto por el progreso científico como por una lógica de mercado. Se mantiene que esta contribución se puede medir en la enseñanza de Lacan por intermedio de la formalización del Discurso del Capitalismo. De esta forma, la articulación entre el Discurso del Capitalismo y el progreso de lo que la tecnificación de la ciencia promueve, por intermedio de los efectos de la segregación, la abolición de la división en un proceso de acoplamiento entre sujeto y objeto de goce. Es a partir de la abolición de la división que se produciría un individuo efectivo, una categoría derivada de los efectos de la segregación y caracterizada por su disponibilidad para el consumo y la docilidad para las métricas evaluativas.
Palabras clave: Capitalismo, Lacan, segregación, vínculo social.
Introdução
Este artigo tem início a partir de um questionamento que se insere no âmbito do ensino de Lacan, no período do final da década de 1970, e toma como problemática a intersecção entre os progressos da tecnicização da ciência e o Discurso do Capitalismo como viabilizadora do que é referido por Lacan em um caráter de processo (1967a/2003, 1967b/2003) e como efeito de segregação (1967/inédito). Trata-se de uma noção que não adquire estatuto de conceito no ensino de Lacan. Interrogamos aqui de que modo os efeitos de segregação, associados à intersecção acima situada, teriam como consequência a promoção de um indivíduo eficaz. A condição para isso, segundo nossa hipótese, que remeteria ao campo de uma prática, é a abolição da divisão do sujeito. Sustentamos que o isolamento de um sujeito puro como fundamento da ciência moderna (Lacan, 1967/inédito) torna-se uma prática passível de aplicação a partir dos meandros do discurso do capitalismo.
Parte-se, assim, da proposta de uma articulação entre o discurso do capitalismo e a tecnicização da ciência como engrenagem da produção de um indivíduo eficaz que operaria pela via dos efeitos de segregação. Temos como objetivo geral a conceituação do estatuto de abolição da divisão do sujeito como processo viabilizado pelos efeitos de segregação promovidos pela intersecção entre os progressos da tecnicização da ciência e o discurso do capitalismo, a qual, por sua vez, dá fundamento à proposição de um indivíduo eficaz como produção dela decorrente.
Tendo que “a prodigiosa fecundidade de nossa ciência deve ser interrogada em sua relação com o seguinte aspecto, no qual a ciência se sustentaria: que, da verdade, como causa, ela não quer-saber-nada” (Lacan, 1966/1998, p. 889), partimos da ideia de que a ciência traz em seu âmago a exclusão fundamental do sujeito que, acolhido pela psicanálise, porta uma dimensão incompleta da verdade em uma divisão com o saber articulado ao encadeamento significante. O nada querer saber coincide com a exclusão fundamental do sujeito pela ciência e mantém com a psicanálise uma relação epistemológica, pois, “ao operar sobre o sujeito sem qualidades e sem consciência de si, correlato antinômico da ciência moderna, a psicanálise é, a um tempo, prova e efeito do corte da ciência” (Iannini, 2013, p. 215).
Se a ciência exclui e nada quer saber sobre a verdade do sujeito, é em nome de sua constituição enquanto campo que encontra limites e fronteiras. Entretanto, a articulação da ciência com o discurso do capitalismo permite a ampliação de um ilimitado. Sobre o ilimitado derivado da conjunção entre capitalismo e ciência, Alemán (2013) afirma que “a técnica é a introdução do ilimitado. Enquanto a ciência teria como limite aquilo que necessitava excluir para alcançar sua própria constituição como âmbito, a técnica nem inclui nem exclui, nem se refere a limite algum” (p. 148). Este progresso técnico rumo ao ilimitado encontra na praticabilidade a abolição daquilo que já se exclui no fundamento da ciência.
Se a ciência é a ideologia da supressão do sujeito que encontra na tecnicização uma abolição deste, não podemos deixar de destacar a importância fundamental do discurso da Universidade (Lacan, 1969-70/1992) neste processo. Segundo Darriba (2015), “a conjunção do capitalismo com a ciência se apoia, então, na formalização do discurso universitário, o que o vincula à problemática do saber” (p. 89). A relevância do discurso da Universidade reside no decurso em que o saber é embutido ao discurso do capitalismo que, por seu turno, o aplica como técnica no campo do ilimitado. O saber elaborado pelo discurso da Universidade passa a ocupar um lugar de objeto de consumo sendo, desde então, reivindicado como ilimitado. O saber como objeto de consumo deve ser completo em seu alcance técnico. É pelo progresso do ilimitado da ciência que a tecnicização promove a abolição da divisão do sujeito. A partir desta abolição, como acompanharemos, a seguir, se erige um indivíduo eficaz sob as engrenagens de um efeito de segregação. Tratamos aqui desse efeito como uma operação que se contrapõe à causação do sujeito e sublinharemos que o ilimitado da tecnicização da ciência ambiciona a universalização de um sujeito puro fabricado pelo discurso do capitalismo em um processo que conjuga sujeito e objeto e do qual se extrai um indivíduo.
Este processo regido pelo efeito de segregação tem como esteio o que definiremos como consumação de um encontro entre sujeito e objeto, conforme a formalização por Lacan de um discurso do capitalismo. Este encontro coincide com a abolição da divisão do sujeito que é segregado tal como objeto à categoria de indivíduo eficaz. A otimização de um processo no qual se objetaliza e se destitui de singularidade se torna praticável pelas engrenagens do discurso do capitalismo em uma gestão orientada pela eficácia. Dessa maneira, propomos que a abolição da divisão produz um indivíduo eficaz arquitetado a partir da universalização e constituído desde um processo de segregação.
Os efeitos de segregação
Sobre o termo segregação, Askofaré (2009) afirma que é “progressivamente imposto como uma noção a que recorremos e que colocamos em operação cada vez mais desde que esteja em questão circular os efeitos do discurso da ciência na civilização contemporânea” (p. 345). Os efeitos do discurso da ciência na atualidade estão vinculados ao estatuto dado ao sujeito (Lacan, 1966/1998) e, a partir disto, a segregação emerge como discussão que não pode ser driblada. O autor divide, assim, duas categorias para o exame do termo: a segregação como princípio e o efeito de segregação. A primeira refere-se à segregação em seu aspecto estrutural que traz em sua fundamentação o processo de separação e de extração de um gozo na constituição do sujeito. Neste trabalho, apenas nos ateremos ao que se define como efeito de segregação por meio de seu caráter de prática e seu atrelamento ao discurso do capitalismo.
Propor uma reflexão a respeito da noção de segregação faz com que se observe a circunscrição temporal e a pontualidade com a qual Lacan trabalha o tema. É possível reunir os trabalhos Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola (1967a/2003) e Alocução sobre as psicoses da criança (1967b/2003), datados de outubro de 1967, como substancializadores da noção de segregação em seu caráter de processo; enquanto que no inédito Breve discurso aos psiquiatras (1967/inédito), proferido em novembro do mesmo ano, é observável maior ênfase sobre o efeito de segregação em sua articulação aos progressos científicos da universalização. Destacaremos, a seguir, este percurso entre a substancialização e a articulação do efeito de segregação.
No trabalho intitulado Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola (1967a/2003), Lacan acentua a problemática da segregação ao asseverar: “nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (p. 263). Isto que se configura como mercado comum corresponde ao que indicaremos adiante como uma gestão desde a qual decorre o que Lacan determina como processos de segregação. Um equilíbrio mercadológico se tornará factível num futuro em que a segregação será ampliada com base em uma lógica de produção. A vinculação entre os progressos da ciência e o futuro de mercado comum será característica deste período do ensino de Lacan (1968-69/2008, p. 40).
A menção do autor ao mercado comum equivale àquilo que os progressos da ciência engendram na ordem social. A este respeito, em alusão ao horror dos campos de concentração, Lacan (1967a/2003) afirma que “o que vimos emergir deles [campos de concentração], para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz” (p. 263). A universalização promovida pelo progresso científico é o meio pelo qual se estabelecem os remanejamentos sociais e coletivos. Ferramentas forjadas por meio de parâmetros científicos avaliam e classificam massas homogeneizadas. Com essa citação, Lacan nos remete a uma gestão que opera em uma dinâmica mercadológica que se equilibra pela ampliação de processos segregatórios pautados e viabilizados pelos progressos científicos ocupados de uma universalização massificante, ilimitada e que sobre a divisão nada quer saber. A universalização é crucial nesta intersecção entre os progressos da ciência e o futuro de mercado comum visto ser a medida daquilo que se coloca em prática.
Em A locução sobre as psicoses da criança (1967b/2003), Lacan inicia uma discussão em torno da liberdade e da loucura como algo pertinente àquele momento em que se elevavam, desde o progresso científico, questionamentos às estruturas sociais. Se questionar as estruturas sociais pela via do progresso científico compõe uma ideia de liberdade, Lacan (1967b/2003) é bastante enfático ao não colaborar com tal posição, pois entende que, neste meandro, o que figura são efeitos segregatórios. Segundo o autor:
Os homens estão enveredando por uma época que chamamos planetária, na qual se informarão por algo que surge da destruição de uma antiga ordem social, que eu simbolizaria pelo Império, tal como sua sombra perfilou-se por muito tempo numa grande civilização, para ser substituída por algo bem diverso e que de modo algum tem o mesmo sentido - os imperialismos, cuja questão é a seguinte: como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas? (Lacan, 1967b/2003, p. 361).
Esta época planetária coincide com a destituição de um Império, símbolo de uma antiga ordem social, em nome daquilo que o psicanalista propõe como imperialismos encarregados da tarefa de manter a separação das massas situadas em um mesmo lugar. O processo segregatório dos imperialismos não deixa de ser atrelado por Lacan aos progressos da ciência e sua prática no âmbito social deriva daquilo que se limita para a ciência, mas que é operacionalizado pelo mercado.
O que é indicado por Lacan (1967b/2003) como imperialismo se ordena como uma desintegração que acarretará a ampliação dos processos de segregação no âmbito social. Estes processos destacados pelo autor encontram na psiquiatria pontos de ebulição quanto às práticas de privação de liberdade aplicadas nos tratamentos da loucura. A notoriedade dos progressos científicos e as ressonâncias que se mostram sobre o campo médico ao final da década de 60 podem ser conjugadas ao imperialismo que se instala. Em um comentário sobre a mudança na função do médico a partir da aceleração quanto ao lugar da ciência no mundo, Lacan (1966/2001) assinala a função do mercado que elabora produtos terapêuticos, químicos e biológicos disponibilizando-os ao público e solicitando ao médico, “assim como se pede a um agente distribuidor, que os coloque à prova” (p. 10). Isto que Lacan antecipa sobre a indústria farmacêutica e o uso dos serviços médicos, em nome de um afã cada vez mais amplo de avaliação e de testagem, incorre na edificação de critérios e exigências mundiais de produtividade: “pois se a saúde tornar-se objeto de uma organização mundial, vai tratar-se de saber em que medida ela é produtiva” (p. 14).
Estes trabalhos datados de outubro de 1967 permitem observar uma substancialização da noção de segregação enquanto um processo que envolve tanto os progressos científicos quanto uma lógica mercadológica. Esse processo tem um caráter prático e de aplicabilidade dirigido ao âmbito social e particularmente ao da psiquiatria. Ter esta área médica como ponto de ebulição de práticas segregatórias dirigidas à loucura corresponde a uma época em que se generalizam coordenadas cujo fundamento imperialista deriva de um entrecruzamento entre os progressos científicos e exigências de produtividade. Esta intersecção pode ser observada ao longo dos comentários de Lacan sobre a segregação.
Será em seu Breve discurso aos psiquiatras (1967/inédito) que Lacan sublinhará a segregação enquanto efeito. Para além de um processo prático, o efeito de segregação é tributário de uma articulação entre os progressos da ciência e a universalização que se efetiva, como destaca o autor, sobre o sujeito. Isto que se perfaz como uma prática tem, nas observações de Lacan, um foco sobre a loucura enquanto objeto de uma ciência especializada. Afirma o autor que “todos esses loucos foram tratados, tratados da maneira que se chama humanitária, a saber: foram trancafiados. Esta operação não está absolutamente desprovida de interesse” (Lacan, 1967/inédito). O encarceramento da loucura, que não está desatrelado dos progressos científicos, teve na causa humanitária e no saber psiquiátrico suas bases de ação. Esta operação, não desprovida de interesses, encontra na “dinâmica farmacêutica” (Lacan, 1967/inédito) um crivo desde o qual se produzem novas terminologias e operações sem que se saiba sobre aquilo que se modifica, para onde apontam as modificações e os sentidos das mesmas.
Ao reportar-se à loucura a partir do esteio psicanalítico, Lacan (1967/inédito) não o deixa de fazer em sua articulação ao campo da linguagem. A constituição da estrutura psicótica diferencia-se na medida em que a função de sujeito como efeito do significante não mantém com o Outro da linguagem uma demanda do objeto a. Este objeto irredutível ao significante permanece acoplado ao sujeito que se relaciona com isto, por exemplo, pela manifestação de vozes. Lacan pontua tal acoplagem como da ordem da liberdade quanto aos impasses da neurose na linguagem. Esta liberdade é o que, segundo o autor, angustia os psiquiatras na prática com seu objeto de estudo. Segundo o psicanalista:
é precisamente por vocês serem psiquiatras que poderiam ter algo a dizer sobre os efeitos da segregação, sobre o verdadeiro sentido que isso tem. Porque saber como se produzem as coisas permite certamente dar a estas uma forma diferente, com um impulso menos brutal e, se querem, mais consciente (1967/inédito).
Lacan se pronuncia a respeito do encarceramento da loucura no hospital psiquiátrico delimitando como prática que tem suas raízes na ascensão científica e na depuração de um sujeito caracterizado pela neutralidade. Entretanto, o próprio fato de que o psiquiatra toma a loucura como objeto de estudo seria uma forma de segregação que não depende da prática de trancafiar e que tem como motivação o isolamento que responde ao não querer saber da psiquiatria enquanto ciência. Esse objeto que a loucura coloca em cena motiva o trancamento da mesma assim como vem a motivar a tomada do louco como objeto de estudo. Sobre isto, Laia e Aguiar (2017) afirmam que “a psiquiatrização da loucura, sua objetivação como ‘doença mental’, mesmo quando não se faz mais apenas na clausura de um hospício, poderá ser concebido como o reforçamento da construção de barreiras, de outras formas de muralhas” (p. 19). Trancafiar o louco não é o que isola um sujeito, a própria tomada deste como objeto já é suficiente para tanto. A segregação é uma prática que amplia uma abolição pelas técnicas que não se resumem apenas ao encarceramento.
O isolamento de um sujeito puro visado pelo saber científico anula a divisão expressa pela estrutura fantasmática ($◊a) em nome da universalização. Assevera o autor que “a partir deste momento nasce a ciência, se posso dizer, correlativa a um primeiro isolamento do sujeito” (1967/inédito). Este isolamento é fundamental para a ciência moderna, embora, como apontaremos adiante, sua universalização alcança as estruturas sociais definindo uma época em que a divisão do sujeito é anulada. Dessa forma, a psiquiatria é ilustrativa do que Lacan estende para o campo da ciência: o isolamento do sujeito como pilar originário. Queremos discutir aqui, entretanto, como este isolamento se propaga em forma de prática pautada na universalização do sujeito puro cuja promoção encontra nos progressos da ciência o fundamento de efeitos de segregação.
Em sua intervenção, Lacan (1967/inédito) articula o efeito de segregação ao progresso científico que tem em sua base um isolamento do sujeito. Não passa despercebido como este efeito se evidencia na estrutura social e também que certa mercadologia é referida em uma visão de futuro massificador. Este futuro de mercado atrelado ao progresso científico é bastante peculiar nestes trabalhos de Lacan sobre a segregação. Como já destacamos, uma alusão aos campos de concentração se faz presente diante desta articulação. Quando se dirige aos psiquiatras, Lacan (1967/inédito) faz a seguinte afirmação:
Os progressos da civilização universal vão se traduzir não apenas por certo mal-estar como já o Sr. Freud havia se dado conta, mas também por uma prática que verão se tornar mais estendida, e que não mostrará sua verdadeira face imediatamente, mas que tem um nome com o qual, mude ou não, sempre irá dizer o mesmo e vai ocorrer: a segregação. Aos senhores nazis, vocês poderiam ter por tais práticas um considerável reconhecimento, pois foram precursores e até mesmo tiveram, um pouco mais ao Leste, imitadores no que diz respeito a concentrar pessoas, é o preço desta universalização, na medida em que apenas resulta do progresso do sujeito da ciência (Lacan, 1967/inédito).
Os progressos civilizatórios já tinham, sob a pena de Freud (1930 [1929]/1996a), o mal-estar gerado a partir das exigências de renúncia pulsional. Lacan faz acréscimo ao propor os efeitos da segregação como um além do mal-estar que tem como marca uma ultrapassagem, um acréscimo, na medida em que não se configura pela via do laço social. É neste ponto que o psicanalista francês remete aos campos de concentração como precursores de tais práticas. Esta prática de segregação é designada como um preço pago pela universalização resultante dos progressos da ciência.
Além do mal-estar: o discurso do capitalismo e os efeitos de segregação
Acompanhando o processo que designamos como substancialização e articulação dos efeitos de segregação nos trabalhos anteriormente indicados, percebemos que o atrelamento destes efeitos aos progressos científicos não é suficiente para fundamentar uma prática. Sobre este tópico, observamos que a referência aos campos de concentração é lançada por Lacan para aludir à prática da universalização. É assim que esta prática não é destituída de interesses que a engendram. O futuro de mercados comuns e os imperialismos que se equilibram a partir dos efeitos de segregação podem ser entendidos como o aporte necessário à praticabilidade da universalização pautada na tecnicização da ciência. Propomos que este aporte possa ser aferido no ensino de Lacan por meio da formalização de um discurso do capitalismo.
Inicialmente, partiremos das orientações freudianas a respeito do mal-estar e da impossibilidade e insuficiência que permeiam os laços sociais, para chegar aos princípios do discurso no ensino de Lacan, em seu Seminário, livro 17 - o avesso da psicanálise (1969-70/1992). Objetivamos, desde aí, acentuar a organização do discurso do capitalismo para, então, reunir recursos em torno da problemática entre sujeito e objeto que é particular a esta modalidade discursiva. Propomos que o entrecruzamento dos progressos da ciência com o discurso do capitalismo possibilite a ampliação dos processos de segregação ao fazer vigorar a relação entre sujeito e objeto nos termos deste discurso. Esta tríade entre progressos técnicos, discurso do capitalismo e efeitos de segregação tem sobre o sujeito uma incidência que procuraremos diferenciar como uma abolição da divisão (Lacan, 1966/1998), uma consumação desde a qual sujeito e objeto não se diferenciam.
Freud questiona, em seu Mal-estar na civilização (1930 [1929]/1996a), sobre o que ambiciona o ser humano em seus propósitos em relação à própria vida. Embora se trate de uma pergunta bastante pertinente e de difícil resposta, o psicanalista não hesita ao propor que a felicidade e a permanência desta é o que encerra tal questão. Dada a felicidade como propósito para a vida, é possível compreender que sua engrenagem se sustenta a partir de um programa orientado pelo princípio de prazer. Todavia, por uma condição própria a esse princípio, o fracasso em atingir tal meta é inevitável e a impossibilidade atravessa o prospecto da felicidade, impondo o sofrimento como um contraste premente.
Freud (1930 [1929]/1996a) propõe que os progressos da cultura envolvem um preço a ser pago por aquele que nela se insere. Este preço se caracteriza como uma subtração daquilo que, de maneira ideal, poderia compor a felicidade e se apresenta como um sentimento de culpa derivado das restrições ao campo pulsional. Esse mal-estar é basal na constituição da cultura e sua incidência é indicada por Freud a partir da distinção de patamares, desde os quais o sofrimento pode se originar, sendo a mais penosa das fontes de sofrimento a que provém dos relacionamentos humanos. Esta fonte de sofrimento pode ser entendida como de ordem social, pois compreende a mutualidade em sociedade como gênese para o mal-estar.
O mal-estar escancara a insuficiência dos regimentos sociais para dar conta do sofrimento humano, visto que a edificação deste se sustenta pela renúncia pulsional. A perda referente à satisfação é fundamental no estabelecimento da mutualidade e no funcionamento disto que remete a uma impossibilidade, já que os relacionamentos sociais não são garantidores da restituição daquilo que se perdeu, são insuficientes para tanto.
Este encontro entre a impossibilidade, basal no fracasso da felicidade como objetivo, com a insuficiência que se organiza em torno do mal-estar promovido pelo relacionamento mútuo em sociedade é um arranjo que pode ser destacado na célebre assertiva freudiana a respeito dos ofícios de educar, governar e analisar. Segundo Freud (1937/1996b),
quase sempre parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo (p. 265).
O insucesso desses ofícios destacados por Freud fundamenta a forma de enlaçamento que se firma entre aquele que governa, educa e analisa e o que é governado, educado e analisado. A impossibilidade e a insuficiência que permeiam os relacionamentos e que fomentam o mal-estar podem ser destacadas como profissões impossíveis que incluem certo fracasso em sua constituição. Será preciso recorrer a Lacan, em seu Seminário, livro 17 - o avesso da psicanálise (1969-70/1992), para compreender que estes arranjos entre a impossibilidade e a insuficiência são as engrenagens de um aparelho considerado como discurso. Os discursos, segundo Lacan (1969-70/1992), “nada mais são do que a articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem palavra, que vem em seguida alojar-se neles” (p. 177). Sem revogar a premissa da estruturação do inconsciente como linguagem, Lacan (1969-70/1992) passa a designar como discurso os modos de estruturação do laço social.
Desde a relação fundamental do significante (S1) com outro significante (S2), aparelho a partir do qual o sujeito ($) é efeito e o objeto a é o que causa o desejo do mesmo, é que o discurso se estabelece como meio da articulação entre linguagem e gozo. Segundo uma definição do próprio Lacan: “o discurso é o quê? É aquilo que, na ordem, no ordenamento daquilo que pode se produzir pela existência da linguagem, faz função de laço social” (1972, inédito). Assim, é possível afirmar que o discurso é o que estrutura o laço social a partir de elementos e de um ordenamento específico. Dessa maneira são coordenados quatro elementos - a, $, S1 e S2 - que são distribuídos por quatro lugares distintos - Agente, Outro, Produção e Verdade (Figura 1). A rotatividade entre a sequência desses elementos nos lugares especificados gera quatro matemas distintos de discursos: o Discurso do Mestre, o Discurso da Histérica, o Discurso da Universidade e o Discurso do Analista. Adiante acompanharemos a definição de Discurso do Capitalismo como um derivado do Discurso do Mestre.

Cada discurso, portanto, é resultante de posicionamentos distintos da sequência de elementos nos lugares não cambiáveis. Destaquemos de antemão que o lugar da verdade, abaixo do agente, funciona como uma propulsão que move o aparelho discursivo. Dessa maneira, entre os lugares são forjadas relações: a seta que parte do lugar de Agente em direção ao Outro é compreendida por Lacan (1969-70/1992) como o impossível da relação que se estabelece em cada discurso. Esta impossibilidade remete aos ofícios indicados por Freud (1937/1996b) e permite traçar um paralelo entre o governar, o educar e o analisar e, respectivamente, os Discursos do Mestre, da Universidade e da Psicanálise. Já entre os lugares de Produção e Verdade o que se instala é uma obturação, nomeada por Lacan (1969-70/1992) como “impotência” (p. 185), uma proteção da verdade.
Retomando pontualmente estes detalhes da proposta lacaniana sobre os discursos é possível assinalar que é pela via da exigência da cultura por uma renúncia pulsional que se estabelece o laço social. É pela perda real de gozo que os discursos se fundam pelo significante enquanto “aparelho de gozo” (Lacan, 1969-70/1992, p. 50) que funciona como o modelo termodinâmico da entropia em que um excesso se perde.
Com fins ilustrativos e com o objetivo de diferenciar o discurso do capitalismo, detenhamo-nos no Discurso do Mestre. Este discurso traz em seu bojo a herança filosófica da dialética hegeliana e, também, a definição estrutural do inconsciente a partir do significante. É um discurso privilegiado que demonstra o funcionamento da lógica do significante em cadeia desde onde o sujeito é efeito. Sobre esse discurso, Lacan (1969-70/1992) afirma que o S1 é “o significante, a função de significante sobre a qual se apoia a essência do senhor. Por outro lado, (…) o campo próprio do escravo é o saber, S2” (pp. 19-20). S1 é que ocupa o lugar de agente e, como tal, torna o poder como dominante neste discurso. O lugar do escravo é o de outro e sua posição é de suporte do saber. Neste discurso refere-se, portanto, à busca feita pelo senhor para a recuperação de um gozo não pela via do saber, mas pela produção do escravo. Eis que se configura a impossibilidade frente ao ordenamento imposto pelo S1 em direção ao S2 em busca de recuperar no produto algo que se perdera desde o princípio.
Lacan (1969-70/1992) diferencia, a partir da produção gerada no discurso do mestre, um mestre antigo de um mestre moderno, o capitalista. É pela especificação marxista de mais-valia como excedente da não equiparidade entre o valor de uso e o valor de troca da força de trabalho enquanto produto e pela denúncia da espoliação que se promove por este mecanismo que, segundo Lacan (1969-70/1992), “a sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de humano se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é produto de nossa indústria, um mais-de-gozar - para dizer de uma vez - forjado” (p. 84). A mais-valia resultante da diferença entre o valor do trabalho humano e o valor de troca passa a ser tomada pelo senhor moderno como objeto a ser forjado para consumo. Este mais-de-gozar, fetichizado como mercadoria pelo capitalismo industrial, revela um gozo que não está fadado à entropia e à perda, mas como resultado que se dá como produto.
A partir destes elementos que evidenciam um produto fetichizado, Lacan (1969-70/1992) localiza uma “mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista” (p. 178). Esta mutação que confere ao discurso do mestre um estilo específico aponta para a redução do mais-de-gozar como uma mercadoria apta ao consumo. A consequência disto é dada no matema do Discurso do Capitalismo (Figura 1) como uma alteração de lugares entre os dois elementos da esquerda no matema do discurso do mestre.
Neste discurso o saber está reduzido ao trabalho com vistas à produção do mais-de-gozar em forma de lucro para o senhor e de objeto de gozo para o consumidor. É assim que o sujeito se encontra no lugar de Agente, como dominante na cena do consumo, tendo deixado de ocupar o lugar de verdade com o qual o discurso do mestre mantinha relação de exclusão. É deste lugar de dominante que o sujeito é incitado ao consumo desenfreado dos objetos forjados pela indústria e pelos progressos técnicos da ciência. Uma constituição fantasmática pode ser compreendida no meandro desta relação entre o sujeito ávido e o objeto com o qual se erige a ilusão de uma recuperação de gozo. É assim que o discurso do capitalismo consegue manter um circuito fechado, em que desaparecem as dimensões da impossibilidade e da impotência, no qual o sujeito é guiado pelo objeto de acordo com as leis do consumo. Sobre este discurso Lacan (1972/1978) afirma:
Eu definitivamente não lhes disse que o discurso do capitalista seja feio, ao contrário é algo freneticamente astucioso, não? Freneticamente astucioso, mas condenado a ser furado. Isto que é insustentável, algo que eu poderia lhes explicar, pois, o discurso do capitalista está lá, vocês o veem com uma pequena inversão apenas entre o S1 e o $ que é o sujeito. É o suficiente para que isto funcione como uma roleta. Isto não poderia ter melhor funcionamento e, por isso, funciona muito rápido. Isto se consome, é consumido enquanto se consuma (1972/1978, p. 41).
Caracterizado como freneticamente astucioso, o discurso do capitalismo se consuma na medida em que consome. Isto aponta para o fato de que este discurso não promove o laço social, já que a relação que se estabelece é entre o sujeito ordenado pela falta de gozo e o objeto de consumo acessível, o gadget. Diferentemente do discurso do mestre em que o laço se estabelece entre o senhor e o escravo nos moldes hegelianos da consciência-de-si, o senhor moderno tende a desaparecer do lugar dominante e tornar agente o sujeito voraz e ganancioso que consome o produto de maneira insaciável. Assim, compreende-se que “a mais-valia, é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insaciável, da falta-de-gozar” (Lacan, 1970/2003, p. 434). O gadget, na função de mais-de-gozar, é o fundamento de uma economia que, em larga escala, se torna uma gestão na qual o sujeito padece disto que é fabricado para ser consumido, bem como, procuramos sustentar, em um processo no qual há uma acoplagem entre sujeito e objeto. Esta acoplagem é o que abole a divisão e ratifica a consumação entre sujeito e objeto.
O indivíduo eficaz e sua gestão
O encontro entre sujeito e objeto proporcionado pelo discurso do capitalismo é fundamental para o desenvolvimento de nosso objetivo. Este é o ponto que nomeamos como consumação, em que um falso reencontro com um gozo perdido se consuma pela via do consumo do objeto produzido em larga escala. Propomos que este momento corresponde ao da abolição da divisão do sujeito e que, também, tem sua colocação em prática na gestão orientada pela propaganda de complementaridade entre sujeito e mais-de-gozar. Esta via é o que promove, assim, a consecução da praticabilidade do efeito de segregação. A respeito dessa complementaridade, afirma Alemán (2014),
o gozo tampona ou obtura a divisão do sujeito, tornando-o um ‘indivíduo’, que inserido em meio à miséria mais atroz, se converte ou em um empreendedor de si, em um empresário de sua própria vida ou em um devedor, capturado em uma rede sem saída (p. 36).
Ter a mais-valia localizada como causa do desejo lança este indivíduo insaciável tanto à exploração quanto à inadimplência. Explorador ou inadimplente são caracterizações de uma só condição de miséria que se perpetra na proporção em que o mercado de objetos aloca uma gestão pautada na consumação. Esta gestão coloca em prática a universalização do sujeito puro, isolado de sua divisão.
Trata-se de uma gestão que o discurso do capitalismo difunde com a ascensão do mercado, a qual não é despercebida por Lacan (1968-69/2008) ao afirmar que “o capitalismo introduz algo que nunca se vira, isso que é chamado de poder liberal” (p. 232). Observa-se, assim, que esta gestão não se ocupa apenas de um plano econômico em que o mercado exerce suas práticas livres. Há uma interferência dessa gestão sobre a normatização da vida cotidiana1 e a imposição de uma competição generalizada. De acordo com Dardot e Laval (2016), cada membro da sociedade deve “conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa” (p. 16). Reafirmamos que essa gestão coincide com o que destacamos, a partir de Lacan, como uma relação de consumação entre sujeito e objeto em um processo que acontece pela empresarização. A empresa chancelada como um indivíduo se funda na gestão de acordo com a qual os esforços e resultados devem ser intensificados e os gastos minimizados em função de uma determinada eficácia.
A política do discurso do capitalismo não se faz pelo laço social e este fator o diferencia dos discursos que inicialmente Lacan formalizara, como uma degradação, particularmente na incidência de sua gestão que acontece pela ampliação do livre mercado e pela expansão do capital. Esta gestão aponta para um indivíduo eficaz que tem como causa o gadget produzido em larga escala pelos progressos tecnocientíficos. Propomos que a relação de consumação do sujeito com este objeto, de acordo com as coordenadas de tal gestão, gera como efeitos as possibilidades de estratificação de uma divisão em nome de um indivíduo que responde a um processo avaliativo criado sob um projeto de eficácia. Este indivíduo é então tomado como nada além de um gadget a partir dos projetos de eficácia e de aperfeiçoamento tecnológico. Lacan (1972/2011) favorece essa reflexão ao afirmar
O que distingue o Discurso do Capitalismo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei - rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamamos, simplesmente, de coisas do amor, meus bons amigos. Como vocês veem, não é pouca coisa, certo? (p. 88).
Podemos compreender que a astúcia frenética do discurso do capitalismo se firma na Verwerfung da castração. O ilimitado que compõe o gozo da ilusão de complementaridade no encontro com o gadget deixa de lado o laço social e o amor à verdade. Esta rejeição pode ser entendida como uma exclusão daquilo que Freud (1937/1996b) denominava de impossível e insuficiente em relação ao governar, educar e analisar e tem como ilustração, no matema lacaniano do discurso do capitalismo, a ausência das setas entre os lugares superiores e inferiores. Entendemos que a assertiva lacaniana sobre a ausência de laço social como característica deste discurso é bastante peculiar para o que aqui procuramos reconhecer como uma gestão, pois esta ausência diferencia de uma relação de produção aquilo que é um indivíduo eficaz constituído a partir de um efeito de segregação. O futuro de mercado comum associa-se ao progresso técnico da ciência em um itinerário que tem como alvo o ilimitado da consumação. É por uma gestão aí pautada que se produz um indivíduo passível às escalas que avaliam sua motivação e adaptabilidade apregoando-o como blindado ao que é da ordem do impossível. Este é um produto astuciosamente elaborado sobre a abolição da divisão que constitui o sujeito.
Considerações finais
Partimos de uma questão relativa à abolição da divisão do sujeito como resultante dos efeitos de segregação associados à intersecção entre os progressos da tecnicização da ciência e o discurso do capitalismo. É possível indicar que essa intersecção concede o estatuto de prática à ampliação dos processos de segregação que Lacan situara como um dos efeitos da universalização que é própria à ciência. Universalização esta propagada em larga escala, em direção ao ilimitado, pela tecnicização da ciência e apoiada pela praticabilidade cujo fundamento encontra-se na abolição da divisão do sujeito. Frisamos, nos trabalhos de Lacan datados do final da década de 1970, que os progressos da ciência são intimamente emparelhados à segregação e que Lacan toma como paradigmático o campo de concentração em sua fatualidade, que remete a um extremo do efeito segregatório. Sublinhamos que nisto figura um processo baseado no isolamento de um sujeito puro, como fundamento da ciência, que aponta para uma operação que se contrapõe à causação do sujeito.
Com a abolição da divisão do sujeito este é relegado à categoria de indivíduo. Esta categoria se caracteriza como tributária do efeito de segregação na medida em que uma acoplagem faz coincidir sujeito e objeto. Assim, a intersecção entre os progressos da tecnicização da ciência e o discurso do capitalismo é a otimização de um processo no qual se objetaliza e se destitui o sujeito em sua divisão. Se pela tecnicização da ciência é possível vislumbrar as engrenagens do discurso do capitalismo em funcionamento, buscamos destacar como a miséria coincide com o lançamento do sujeito na direção da acoplagem com o mais-de-gozar. Esta relação de consumação caracteriza um encontro, que é facilitado pela intersecção que temos salientado, e adquire o caráter de praticabilidade por meio de uma gestão. Esta gestão operacionaliza o indivíduo, tornando-o um empreendedor de si e o docilizando diante das avaliações de eficácia.
As coordenadas arrojadas por esta gestão apontam para uma eficácia que perpassa tanto os âmbitos sociais e institucionais quanto os subjetivos. Diante deste contexto, já indicado por Lacan (1968-69/2008) como um poder introduzido pelo discurso do capitalismo, são desenvolvidas ferramentas de avaliação do desempenho e da eficácia. A avaliação é fundamental para uma gestão preocupada com a potencialização de seus resultados e metas. Esta agenda visa o que podemos denominar de um indivíduo eficaz que, dentre algumas características, pode ser reconhecido por sua disponibilidade ao consumo e docilidade às métricas avaliativas. O indivíduo eficaz é, segundo nossa conclusão, produto da intersecção entre os progressos da tecnicização da ciência e o discurso do capitalismo, engendrado pelos efeitos de segregação. A aplicação desses efeitos acontece pela abolição da divisão do sujeito que se acopla ao mais-de-gozar. Pela consumação entre sujeito e objeto que surgiria, então, o empreendedor de si, motivado por uma gestão que ambiciona resultados e eficácia
Agência de fomento:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
Referências
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Notas
Autor notes
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