RESENHA
| Stetsenko A. The transformative mind: expanding Vygotsky’s approach to development and education. 2017. New York, NY. Cambridge University Press |
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Recepção: 18 Abril 2019
Aprovação: 09 Abril 2020
A obra The transformative mind: expanding Vygotsky’s approach to development and education, de autoria de Anna Stetsenko (2017), publicada pela Cambridge University Press, NY, abrange a temática da Psicologia Soviética, aquela que tem em Lev Vygotsky a sua grande matriz teórica, tendo presente a sua releitura e seus desdobramentos teórico-práticos. O livro dá conta das temáticas de Psicologia do Desenvolvimento, Teoria Crítica, Educação e Filosofia. Aborda a transição da visão de mundo baseada no éthos sociopolítico genético-adaptativo para a visão de mundo transformadora baseada no espírito de solidariedade e igualdade, noções que tem como base as concepções Vygotskyanas. O foco desta transição e transformação está ligado à noção de que as pessoas criam conjuntamente a história e a sociedade enquanto são co-criadas interativamente por sua própria agência transformadora. A respeito da autora, Anna Stetsenko é Professora do Center of The City University of New York, EUA. Ela é reconhecida mundialmente por contribuições e sua pesquisa relacionadas à Psicologia Histórico-Cultural, para teorias socioculturais e teoria da atividade. Trabalhou em universidades e centros de pesquisa nos Estados Unidos, Alemanha, Suíça, Áustria e Rússia. Também estudou e colaborou com alguns estudos de importantes representantes desta abordagem, incluindo Alexander R. Luria, Alexey N. Leontiev, Alexey A. Leontiev, Daniil B. Elkonin, Vassily V. Davydov, entre outros. Suas obras foram publicadas em vários idiomas, apresentando especialidade interdisciplinar em Psicologia, Filosofia e Educação.
O livro está organizado da seguinte maneira: introdução; cinco partes principais, cada uma subdividida em subcapítulos - que totalizam onze -; conclusão; lista de referências [esta resenha não apresenta uma visão linear do livro, tal como um resumo]. O livro inclui índex (name index; subject index).
Toda a obra de Stetsenko ressalta a ideia abrangente de composição social e política como tema central na teorização do desenvolvimento humano e mental. Ela esclarece que embora ‘mente’ seja uma palavra que chame a atenção no título do livro, o foco do estudo está centrado “[...] na dinâmica mais ampla do desenvolvimento humano e nas práticas sociais das quais a mente é parte integrante e uma dimensão inerente. No entanto, o título é escolhido para desafiar intencionalmente aquelas abordagens cada vez mais poderosas que entendem a mente em termos totalmente internalistas, individualistas e reducionistas - como um indivíduo estritamente” (Stetsenko, 2017, p. 10, tradução nossa)4. Uma das ideias centrais com aplicações sociopolíticas é a seguinte:
[...] a premissa-chave de uma natureza político-ideológica é que todos os indivíduos são dotados de igual potencial para realização social, inteligência, criatividade e outras capacidades e faculdades. Ou seja, todos os indivíduos são verdadeiramente considerados iguais, não apenas em seus direitos legais e morais, nem apenas em oportunidades, mas em suas capacidades e habilidades fundamentais - embora apenas quando estas podem e devem ser realizadas dentro de práticas colaborativas compartilhadas das comunidades, por meio de contribuições autorais e individualmente exclusivas e com o apoio de ferramentas e mediações culturais inventadas coletivamente e continuamente reinventadas (Stetsenko, 2017, p. 27, tradução nossa)5.
Essa ‘premissa-chave’ pode ser melhor compreendida com a base teórica discutida nos capítulos ‘Vygotsky’s project: methodology as the philosophy of method’, ‘Vygotsky’s project: relational ontology’ e ‘Vygotsky’s project: from relational ontology to transformative worldview’.
O livro de Stetsenko foi escrito dentro da tradição Vygotskyana, porém, vai além, criticando e reavaliando essa posição, adaptando-se ao nosso tempo. Para tanto, utiliza-se da abordagem que denominou the transformative activist stance (TAS), que contém premissas dialéticas do projeto de Vygotsky e seus fundamentos mais amplos na filosofia marxista, criticando e expandindo estas concepções teóricas, o que considera fundamental para uma melhor aplicação prática e teórica destas concepções para revigorá-las, especialmente utilizando suas premissas fundamentais localizadas no contexto político atual. A TAS é discutida profundamente nos capítulos ‘Ontology and epistemology’, ‘Transformative activist stance: agency’ e ‘Encountering the future through commitment to change’. Stetsenko propõe uma expansão das proposições de ensino-aprendizagem em Vygotsky com base na TAS. A autora argumenta que o compromisso de alunos e professores com a transformação social é um elemento muito importante para o ensino e a aprendizagem, característica que define os sujeitos em relação à sua posição atual, em relação ao passado e ao futuro - em um mundo que é compartilhado com outros.
Em ‘Concluding remarks: toward democracy and a pedagogy of daring’, a autora argumenta que a TAS propõe que a mudança social depende de todas as ações das pessoas e que cada ser humano contribui para essa mudança. Ela destaca o papel fundamental da educação como prática transformadora, a necessidade de uma “[…] ‘pedagogia da ousadia’, que poderia complementar as pedagogias da esperança e do desejo, é talvez a expressão mais curta do que se pode tirar da discussão como conclusão principal” (Stetsenko, 2017, p. 262, grifo do autor, tradução nossa)6.
A autora destaca, constantemente, com o apoio da psicologia Vygotskyana, que o desenho da nossa sociedade é dado por sua organização, o que significa que estamos todos envolvidos com tudo o que o ser humano faz ou não faz ‘na’ cultura e ‘como’ cultura - e nesse caso, o que é considerado positivo para a vida humana, como o trabalho, como colaboração com outros etc., e também o que é negativo, representado pela exploração do trabalho, pela colaboração que privilegia alguns grupos hegemônicos em detrimento de outros, etc. É importante ressaltar que esse projeto de sociedade que construímos [mencionado anteriormente] interfere na constituição da psique das pessoas. Vygotsky já chamava a atenção para esse aspecto (embora, como Stetsenko afirma, ele nunca o explicou diretamente), salientando que:
[…] cada função mental superior aparece duas vezes no processo de desenvolvimento da conduta: primeiro, em função da conduta coletiva, como forma de colaboração ou interação, como forma de adaptação social, ou seja, como categoria inter-psicológica; e, em segundo lugar, como um modo de conduta individual da criança, como um meio de adaptação pessoal, como um processo interno de conduta, ou seja, como categoria intra-psicológica (Выготскмй, 1983, p. 197, tradução nossa) 7.
A sociedade do capital mostrou que seu enriquecimento é circunstanciado pela perda das capacidades individuais dos trabalhadores. Por exemplo, Marx (2013) discute o impacto social do trabalho técnico de manufatura, destacando que, como força produtiva de capital, causa uma série de consequências na vida dos trabalhadores envolvidos nesse cenário. Uma das descobertas de Marx é que a produção industrial mutila o trabalhador, converte-o em um ser humano limitado, promovendo artificialmente sua habilidade de detalhamento ao reprimir um mundo de impulsos e capacidades produtivos. Aqui observa-se a profunda oposição na formação do trabalhador no capitalismo: como um ser humano completo, busca-se uma formação omnilateral, que permita a apropriação de ser omnilateral; no entanto, o processo produtivo da manufatura está longe do desenvolvimento integral, pois ele fraciona o sujeito para que satisfaça ao trabalho de montagem (Selau & Oliveira, 2017). É por isso que Marx continua explicando que “[n]ão só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial” (Marx, 2013, p. 434). A partir da compreensão da divisão de trabalho industrial como um modo específico de produção capitalista, entende-se que o desenvolvimento da psique também depende dessas ocupações diárias dos trabalhadores: o sujeito que passa seus dias realizando a mesma tarefa, repetida e mecanicamente, prejudica as condições do desenvolvimento omnilateral [incluindo as capacidades de desenvolvimento intelectual] (Selau & Oliveira, 2017).
Stetsenko (2017) entende que a sociedade de capital é promotora de uma série de danos humanos, mas a autora não trabalha com um círculo restrito de análises baseadas na economia [exemplos: ver Vygotsky (1997), para a discussão em Psicologia; ver Chayanov, (1981), para discussão em Agricultura e Agronomia]. Nesse sentido, destaca-se o aspecto fundamental do livro, que se concentra em importantes pontos teóricos da Psicologia, Educação e neurociência. Neste momento, o esforço de compreensão do leitor pode representar uma contribuição que evoca a repensar a prática pedagógica [a prática do psicólogo, as concepções teóricas do neurologista, etc.] como ação transformadora da sociedade, voltada para uma sociedade mais justa, quando elementos de áreas específicas devem ser discutidos juntamente com a situação política e o contexto que co-criam essas áreas. No Brasil, esta é uma noção bastante difundida nos escritos de Paulo Freire [para a Educação], embora haja, com a instalação de um novo governo federal em 2019, neste país, uma compreensão [por parte de lideranças do partido do governo] de que Freire seria, por seus escritos, um doutrinador, e de que sua obra deveria ser retirada das pautas escolares.
Os princípios de diálogo entre estudantes e professores calcados em uma pedagogia crítica - que tem na Educação (e escola) uma das principais ferramentas para a emancipação individual social e política [na compreensão de que a profissão docente é fundamental para esta emancipação] - baseada em Freire (1987), vai ao encontro da compreensão de Stetsenko (2017, p. 22, tradução nossa)8 de que “[s]omos todos atores que contribuem para as práticas sociais, concretizam sua realização histórica e contribuem para o futuro que está por vir e, além disso, um futuro que sempre está sendo feito, por nós, agora”.
The transformative mind: expanding Vygotsky’s approach to development and education é uma leitura essencial para pesquisadores, estudantes e professores universitários das áreas de Educação, Psicologia e Medicina Neurológica. Costall (2019, p. 2-3, tradução nossa)9 foi muito competente em apontar que “[a] mensagem [do livro] é extremamente importante: a psicologia não como descrição/reapresentação, mas uma ciência do possível. Este livro não é apenas uma contribuição para a psicologia. Ele apresenta uma estrutura para o que a própria psicologia poderia se tornar”. O livro da professora Anna Stetsenko propõe que a contribuição de todas as pessoas no processo de escolarização (dependendo da concepção de homem e de mundo em que a atividade de ensino se baseia e da compreensão sobre o procedimento de ensino que deve ir além do nível de desenvolvimento real dos estudantes, até zonas de desenvolvimento próximas) podem mudar a maneira do estudante de ver e de agir no mundo, para uma visão além do presente (Marx, 2013), à medida em que o pensamento evolui para o pensamento por conceitos, que é mais dialético do que os pseudo-conceitos, dentro e além das formulações do que Vygotskij (1962) havia proposto.
Referências
Chayanov, A. V. (1981). Sobre a teoria dos sistemas econômicos não-capitalistas. In J. G. Silva & V. Stoleke. A questão agrária(p. 133-163). São Paulo, SP: Brasiliense. Publicado originalmente em 1924.
Costall, A. (2019). A manifesto for a transformational Science. Theory & Psychology, 29(4), 559-561. doi: https://doi.org/10.1177/0959354319830223
Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política (Livro I: o processo de produção do capital). São Paulo, SP: Boitempo.
Selau, B.; Oliveira, A. R. (2017). Marx, os idiotas e os imbecis. Revista Thema, 14(1), 01-07. doi: http://dx.doi.org/10.15536/thema.14.2017.1-7.440
Stetsenko, A. (2017). The transformative mind: expanding Vygotsky’s approach to development and education. New York, NY: Cambridge University Press.
Vygotskij, L. S. (1962). Myšlenie i reč. New York: Pergamon Press & M.I.T. Press. Publicado originalmente em 1934.
Vygotsky, L. S. (1997). The historical meaning of the crisis in psychology: a methodological investigation. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky (Vol. 3: problems of the theory and history of psychology(p. 233-343). New York, NY: Plenum.
Выготский, Л С.. (1983). Коллектив Как Фактор Развития Дефективного Ребенка. In Основы дефектологии(p. 196-218). Москва: Педагогика. Publicado originalmente em 1931.
Notas
Autor notes
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