RESUMO: O objetivo deste trabalho foi descrever como os profissionais operacionalizam os projetos terapêuticos singulares (PTS) em Centros de Atenção Psicossocial. Para isso, foi desenvolvida uma pesquisa de abordagem qualitativa de caráter descritivo e exploratório com 58 profissionais de sete Centros de Atenção Psicossocial situados em três municípios do Estado de Goiás, Brasil. A coleta de dados foi feita por meio de grupos focais e registros em diário de campo submetidos à análise temática de conteúdo. A análise dos dados revelou as seguintes categorias temáticas: processos de trabalho relacionados ao Projeto Terapêutico Singular; Influência da lógica ambulatorial no Projeto Terapêutico Singular. Sendo assim, foi revelada a percepção da importância dos PTS para os profissionais, mas a falta de organização e sistematização dos mesmos, sendo que a sua realização sequer existia em alguns dos serviços pesquisados. Concluímos que os profissionais reconhecem a lógica dos projetos terapêuticos singulares como importante para refletir cuidado psicossocial, entretanto a elaboração ainda é precária, médico-centrada e as ofertas de atividades terapêuticas restritas ao interior dos Centros de Atenção Psicossociais. A realidade evidenciada aponta para a necessidade de investimento em Educação Permanente em Saúde para qualificar os processos de trabalho nos CAPS desenvolvidos pelos diversos profissionais que neles atuam, por meio da sistematização dos PTS, de modo a garantir cuidado psicossocial como promotor de cuidado em liberdade. Isso possibilitará maior efetividade de reinserção social e, ainda, a avaliação dos resultados obtidos.
Palavras-chave: Centros de Atenção PsicossocialCentros de Atenção Psicossocial,competência profissionalcompetência profissional,intervenção psicossocialintervenção psicossocial.
RESUMEN.: El objetivo de este trabajo fue describir cómo los profesionales operan proyectos terapéuticos singulares (STP) en los Centros de Atención Psicosocial. Para ello, se desarrolló una investigación cualitativa de carácter descriptivo y exploratorio con 58 profesionales de siete Centros de Atención Psicosocial ubicados en tres municipios del Estado de Goiás, Brasil. La recolección de datos se llevó a cabo por intermedio de grupos focales y registros de diarios de campo sometidos a análisis de contenido temático. El análisis de datos reveló las siguientes categorías temáticas: procesos de trabajo relacionados con el Proyecto Terapéutico Singular; Influencia de la lógica ambulatoria en el Proyecto Terapéutico Singular. Así, se reveló la percepción de la importancia del STP para los profesionales, pero la falta de organización y sistematización de los mismos, y su realización ni siquiera existía en algunos de los servicios encuestados. Llegamos a la conclusión de que los profesionales reconocen la lógica de proyectos terapéuticos singulares como importantes para reflejar la atención psicosocial, sin embargo, la preparación aún es precaria, centrada en lo médico y la oferta de actividades terapéuticas restringidas al interior de los Centros de Atención Psicosocial. La realidad evidenciada apunta a la necesidad de invertir en Educación Permanente en Salud para calificar los procesos de trabajo en los CAPS desarrollados por los diversos profesionales que trabajan en ellos, por intermedio de la sistematización de STP, para garantizar la atención psicosocial como promotor de la atención en libertad. Esto permitirá más efectividad de la reintegración social y también la evaluación de los resultados obtenidos.
Palabras clave: Centro de atención psicosocial, competencia profesional, intervención psicosocial.
ARTIGO
DESAFIOS NA OPERACIONALIZAÇÃO DOS PROJETOS TERAPÊUTICOS SINGULARES NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL1
DESAFÍOS EN LA OPERACIONALIZACIÓN DE PROYECTOS TERAPÉUTICOS EN CENTROS DE ATENCIÓN PSICOSOCIAL
Recepção: 17 Setembro 2019
Aprovação: 03 Junho 2020
No Brasil, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são dispositivos de base comunitária / territorial para atenção à saúde das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e ou com problemas decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Esses serviços representam o componente especializado e estratégico da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) sendo, portanto, os articuladores do cuidado integral àquelas pessoas e seus familiares. Nos CAPS o cuidado baseia-se no modelo de atenção psicossocial que é oposto ao modelo tradicional psiquiátrico, conhecido por ser hospitalocêntrico, biomédico e segregador. A mudança de um modelo para o outro é complexa e busca alterações em várias esferas: política, institucional, educacional, assistencial, social e cultural (Vargas & Campos, 2019)
O modelo de atenção psicossocial sustenta as transformações ocorridas com o campo da atenção em saúde mental considerando as dimensões teórico-assistencial que se relacionam à construção do conceito de existência-sofrimento em contraposição ao binômio doença-cura; jurídico-político, que envolve controle social e aparatos legais que normatizam os serviços substitutivos e reorientam a assistência em saúde mental no país; técnico-assistencial, que é evidenciado pela construção de uma rede de serviços articulados como espaços de cuidado, diálogo e interlocução e dispõem de equipe multiprofissional cuja prática deve ser pautada no conceito de integralidade e considera a necessidade de elaboração de propostas terapêuticas singulares; no campo sociocultural, as atividades estão relacionadas a transformar o imaginário coletivo acerca da loucura (Amarante, 2015).
No processo de cuidado dos CAPS estão previstas atividades como acolhimento, atendimentos individuais e em grupos, atendimento familiar, visitas domiciliares, ações de educação em saúde, oficinas terapêuticas e de criação, atividades físicas, prescrição e dispensação de medicação, manejo em situações de crise, reinserção pelo trabalho, oferta de apoio matricial a outros pontos de atenção à saúde, assembleias, coordenação e participação em atividades inclusivas e de convivência intra e extramuros, além de ações de articulação da rede de serviços e de pessoas (Pinho, Souza, & Esperidião, 2018).
Para sistematizar o cuidado dos usuários nos CAPS as equipes de saúde mental devem elaborar o Projeto Terapêutico Singular (PTS) que pode ser compreendido como uma ferramenta de gestão do cuidado que busca reunir, organizar e registrar, diversas possibilidades terapêuticas, nas múltiplas dimensões do processo-saúde-doença. Sugere-se que a construção do PTS ocorra por meio do diálogo entre profissionais de distintas áreas de formação e atuação, com vistas a alcançar a singularidade de um indivíduo, de sua família e ou grupo social, devendo contar com apoio matricial, se necessário (Deschamps & Rodrigues, 2016; Rocha & Lucena, 2018), favorecendo a promoção da autonomia, cidadania e participação social dos usuários (Deschamps & Rodrigues, 2016).
Sendo assim, o PTS requer uma avaliação de âmbito orgânico, psicológico e social com o objetivo de identificar elementos de vulnerabilidade do usuário; uma definição de metas terapêuticas e redefinição das linhas de intervenção terapêutica; a definição de tarefas e encargos dos vários especialistas, ocasião em que se deixa explícito as atribuições de cada um dos envolvidos no cuidado, e, por fim, a reavaliação das metas terapêuticas para averiguar o progresso do usuário e estabelecer mudanças que terão que ser realizadas (Deschamps & Rodrigues, 2016; Rodovalho & Pegoraro, 2016).
Entretanto, apesar do PTS ser uma estratégia potente de cuidado do modelo de atenção psicossocial, tem-se evidenciado alguns desafios relacionados à sistematização do processo de elaboração, monitoramento e avaliação das propostas terapêuticas (Lockley, Soares, Pereira, Domanico, & Oliveira, 2019; Mororó, Colvero, & Machado, 2011; Pinho et al., 2018; Rocha & Lucena, 2018; Santos, Pessoa Júnior, & Miranda, 2018).
Assim, o objetivo deste trabalho foi descrever como os profissionais operacionalizam os Projetos Terapêuticos Singulares nos Centros de Atenção Psicossocial pesquisados. Este estudo está fundamentado nos referenciais de clínica ampliada e no modelo de atenção psicossocial em saúde mental. A clínica ampliada considera a singularização do atendimento em saúde mediante o esforço dos profissionais em cada caso específico. Considera fundamental a ampliação do grau de autonomia dos usuários e valoriza recursos terapêuticos como a escuta, a educação em saúde e o apoio psicossocial (Campos & Amaral, 2007).
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa de caráter descritivo e exploratório. O cenário do estudo contemplou sete CAPS localizados em três municípios diferentes do Estado de Goiás, habilitados por mais de dois anos, sendo eles caracterizados como II, III, AD, Infantil, e AD III.
A escolha dos serviços foi feita de forma aleatória, para encontrar questões distintas e peculiares, considerando os diferentes tipos de CAPS, a disponibilidade dos serviços em participar da pesquisa e as características populacionais e territoriais dos municípios onde estavam inseridos. Participaram do estudo 58 profissionais de diferentes categorias profissionais que prestavam algum tipo de atendimento há pelo menos seis meses nos CAPS e que estavam em exercício profissional na ocasião da coleta de dados, excluindo consequentemente aqueles que estavam em afastamento oficial do serviço, por férias e licença; e os profissionais que não possuíam disponibilidade de tempo para participar dos grupos.
A coleta de dados foi feita por meio de grupos focais, com duração aproximada de 45 minutos em cada encontro. As discussões foram registradas por meio de gravação digital de áudio. Os grupos foram realizados nos CAPS, em ambiente reservado, que possibilitava a disposição circular das cadeiras. Os participantes se sentaram em roda, para facilitar o contato visual e incentivar a interação verbal entre todos. No início da atividade grupal foi feita a verbalização do contexto do estudo, apresentação dos objetivos e questões éticas para os participantes. Posteriormente utilizou-se um roteiro com as seguintes questões disparadoras: 1 - Como vocês constroem o PTS de cada usuário? 2 - Compartilhem um caso e as ações realizadas e ou planejadas no PTS deste usuário? 3 - Como vocês registram o planejamento do PTS e as atividades desenvolvidas?
Os grupos focais foram conduzidos por duas facilitadoras, sendo uma enfermeira, mestre em enfermagem, na condução do grupo e uma psicóloga especialista em Educação Permanente em Saúde (EPS) no papel de observadora. Ambas registraram os fenômenos mais relevantes que emergiram da interação grupal em diário de campo.
Após a coleta de dados, os áudios transcritos e as anotações do diário de campo foram incluídos no processo de análise temática de conteúdo realizada em quatro etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretação (Bardin, 2018); com o auxílio do software ATLAS.ti 6.2.
A fase de pré-análise consistiu na organização e leitura das transcrições das entrevistas. Para seguir a etapa de exploração do material, procurou-se identificar palavras e frases que tinham maior frequência de citação e que pudessem ser agrupadas por semelhanças de sentido, que deu origem às unidades de registro. As entrevistas foram codificadas com as unidades de registro de forma a descobrir as unidades de contexto que compõem a comunicação, trecho de falas, relato e cuja frequência de aparição pode apresentar alguns significados com o objetivo analítico escolhido (Bardin, 2018).
Após a codificação, com o auxílio da construção de redes de relações entre as unidades de registro, no Atlas.ti, foi possível categorizar as unidades de registro em duas categorias temáticas: processos de trabalho relacionados ao Projeto Terapêutico Singular e Influência da lógica ambulatorial no Projeto Terapêutico Singular. As unidades de contexto que compuseram a comunicação (trechos de falas, relatos) foram ilustradas para favorecer o entendimento e a interpretação.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, parecer com número/ano de aprovação: 1.502.429/2016, visando atender aos quesitos éticos e legais referente às pesquisas realizadas com seres humanos, considerando as exigências da Resolução nº 466 (2012) do CNS/MS. Todos os participantes envolvidos no estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), tendo a sua identidade preservada através do anonimato dos relatos dos participantes que foram identificados pela codificação do CAPS e do profissional participante em questão.
Ao questionar sobre o PTS, os profissionais manifestaram compreendê-lo como ferramenta fundamental de planejamento do cuidado ao usuário, segundo o modelo de atenção psicossocial, e consideram alguns dos princípios da clínica ampliada, como a avaliação de forma abrangente e o envolvimento multiprofissional. Como vemos nos dizeres a seguir: “[...] aproveitamos para perguntar sobre a família, nesse grupo de integração, se ela pode participar e como é a vida lá fora? Como podemos te ajudar? O que você tem vontade de fazer de novo?” (CAPS4 P2).
A avaliação psicossocial do sujeito envolve a identificação da demanda apresentada quando o usuário acessa o serviço, a presença de sinais e sintomas evidentes e um olhar amplo para o usuário no território com suas redes de apoio. Para se efetivar esta avaliação é necessário o trabalho articulado entre vários profissionais e serviços para identificar as reais necessidades, desejos e vontades da pessoa, da família e do território.
Para tanto, ressalta-se a importância de uma escuta qualificada para favorecer o vínculo e, assim, para a compreensão da trajetória e dos significados presentes nos caminhos percorridos pelos usuários para atender suas demandas e enriquecer a construção dos PTS (Deschamps & Rodrigues, 2016). Por escuta qualificada compreende-se o exercício de escutar o outro numa relação interativa, sendo concebida como ferramenta essencial para a integralidade do cuidado que possibilita a construção de vínculos e o respeito à singularidade no encontro entre quem cuida e quem recebe o cuidado (Maynart, Albuquerque, Brêda, & Jorge, 2014).
Se o projeto terapêutico relaciona uma dinâmica entre o passado e presente, para desenhar uma possibilidade de futuro, o conhecimento acerca dos itinerários terapêuticos pode trazer ricas contribuições ao planejamento e para o desenvolvimento de linhas de cuidado (Deschamps & Rodrigues, 2016; Rocha & Lucena, 2018; Silva, Sancho, & Figueiredo, 2016).
Entretanto, apesar de compreenderem o PTS como estratégia de planejamento do cuidado, foi possível identificar que em cinco serviços dos serviços pesquisados foi possível identificar a elaboração de PTS, embora tenha ficado evidente que não era feito de maneira coletiva e sistematizada, muito ilustrada pela ausência de registro, de estabelecimento de metas terapêuticas e de avaliações periódicas. Em outros dois CAPS, o PTS não era realizado. Como vemos nas falas dos participantes, a seguir: “O PTS acontece muito informalmente” (CAPS3 P6), “Porque às vezes marca só para passar o tempo mesmo” (CAPS7 P5).
Durante os grupos focais, quando questionados sobre as ações realizadas e planejadas no PTS dos usuários do serviço, à medida que os participantes apresentavam as intervenções realizadas para cada caso, problematizou-se sobre a finalidade terapêutica que determinava as necessidades de cuidado identificadas para fazer as intervenções. A maioria dos trabalhadores não conseguiu responder com clareza sobre o alinhamento entre as metas terapêuticas e as atividades planejadas, ficando então evidente que muitas intervenções feitas não correspondem às demandas do usuário e sim as conveniências da equipe e ou unidade de saúde, além de nos surpreender a afirmação de agendamento de atividades ‘só para passar tempo’.
Ainda, foi possível inferir que o PTS é pensado a partir de um ‘cardápio’ de atividades que o CAPS oferece e não a partir da necessidade terapêutica do usuário/família. Como vemos nos dizeres dos colaboradores: “De acordo com o quadro de atividades que nós temos, nós inserimos o usuário. Caso seja usuário que não se encaixa em nenhuma, nós procuramos pensar em outras possibilidades” (CAPS1 P8).
A gente acaba não fazendo projeto do jeito que a gente quer porque, às vezes, as oficinas estão muito lotadas! Na quarta-feira não tem cadeira para o pessoal sentar de tão lotado que aqui é. Então, às vezes a gente evita colocar em alguns dias da semana mesmo sabendo que vai trazer algum benefício, mas acaba que a gente não coloca por conta disso (CAPS3 P1).
A gente apresenta o que o CAPS tem para oferecer, quais as atividades que a gente tem. Então, a gente fala para eles tentarem escolher uma atividade que eles percebam que vai trazer benefícios e bem-estar. Algo que contemple as demandas que eles têm (CAPS2 P11).
Uma das consequências da prática dos profissionais em planejar atividades para os usuários sem definir metas terapêuticas é a proposição de ações e atividades para os usuários que não contemplam as demandas e necessidade deles. Exemplo disso é a proposição no PTS do usuário a participação contínua em diversos grupos e oficinas ofertadas dentro do CAPS, sem que questões concretas do cotidiano, que envolvem relações com atores de seu território de existência, sejam inseridas no plano assistencial. As falas de alguns participantes retratam essa realidade, como podemos ver: “Eu percebo que muita doença mental tem como base doença orgânica e isso não é avaliado com disciplina. Têm muitas doenças que passam batido. Então, esse paciente tem que ser visto como um todo” (CAPS7 P5). E também:
A principal queixa atual dele é essa que ele não tem amigo, que ele não consegue ter esses laços. Aí, nesse caso, a primeira coisa que a gente pensou foi na higiene que está precária e afasta as pessoas, ele precisa de autocuidado e higiene (CAPS4 P6).
Os resultados deste estudo corroboram com os relatados em uma revisão de literatura, apontando para a ausência do debate crítico para elaboração do PTS e que em alguns serviços o PTS ‘existe’ de forma idealizada (Rodovalho & Pegoraro, 2016).
Sobre a avaliação do PTS, foi possível perceber que esta ocorre apenas se há adesão ou não à atividade proposta e, não, em decorrência de uma meta terapêutica ou evolução do caso. A não adesão às atividades propostas no PTS está muito relacionada a essa falta de planejamento e inclusão do usuário na elaboração do PTS. Muitas vezes, a atividade não atende a demanda ou necessidades do usuário ou ele desconhece a finalidade terapêutica daquela atividade do PTS que está fazendo e, portanto, não faz sentido a sua participação.
Também, tem a relação dela com esse namorado que sempre ela traz para cá para gente poder resolver. Aí a gente fala que aqui não é o lugar para resolver esses conflitos com namorado e que os dois têm que sentar e conversar, mas ela traz bastante coisa para gente, bastante demanda das relações pessoais (CAPS1 P1).
Ela (a usuária) dizia que estava sendo a extensão da casa dela, estava acontecendo a roda de conversa e ela sentava lá depois ia embora, aí na outra oficina ela vinha novamente. Então, ela entrava tirava todo mundo do foco e saia e ninguém sabia dizer ao certo qual era a oficina que ela participava realmente (CAPS4 P6).
Para favorecer a elaboração do PTS, sugere-se a utilização de algum roteiro ou guia porque esses instrumentos podem direcionar as ações necessárias, da equipe e do usuário, para que sejam atingidos os objetivos (Boccardo, Zane, Rodrigues, & Mângia, 2011), apresentar a dimensão de programação para o futuro, em que ações de inclusão social dos usuários sejam prioridades (Rodovalho & Pegoraro, 2016) e facilitar o registro das ações (Silva, Camargo, & Bezerra, 2018).
Entretanto, o PTS não cabe em simples formulários, por sua imensidão e potência (Kinker, 2016). Ainda, fluxogramas e protocolos de atenção à saúde podem ser limitante para as possibilidades de diálogo e de responsabilização dos profissionais e serviços do território, se não forem suficientemente claros ou permeáveis às diferentes lógicas que perpassam o processo de cuidado à saúde (Silva et al., 2016).
Esse instrumento não está separado por profissão, cada um teve seu olhar diante do instrumento para saber se ele tinha resposta para aquilo que precisávamos ver de uma forma geral (CAPS3 P6).
O registro do PTS pode ajudar na organização do processo, mas não representam o processo na sua totalidade. Isso porque precisa considerar a dinâmica do projeto terapêutico (Silva et al., 2016) e o fluir das transformações que ocorrem na vida e no contexto dos usuários, familiares e equipes (Kinker, 2016).
Sendo assim, quando se trata da necessidade de sistematização e planejamento do cuidado, pode-se considerar a necessidade de se utilizar de mecanismos de registro-memória (Kinker, 2016). Esse registro, considerado potente, viabiliza a gestão do cuidado ampliado com compartilhamento de informações e corresponsabilização dos envolvidos, favorecendo ações inventivas e criativas para a produção do cuidado (Grigolo, Peres, Garcia Junior, & Rodrigues, 2015).
A ausência de estabelecimento de metas terapêuticas, anterior à proposição de intervenções, dificulta a vinculação e a adesão dos usuários às atividades. E, ainda há um prejuízo na avaliação dos resultados terapêuticos e na evolução do prontuário porque a meta terapêutica não estava clara e a atividade proposta não atende à demanda ou à necessidade do usuário.
As oficinas terapêuticas nos CAPS têm se instituído como práticas de intervenção, ora como múltiplas experiências conectadas ao território, ora como intervenções a serem aplicadas como remédios para os usuários. Mais uma vez, tem-se um impasse epistemológico de compreensão do modo psicossocial de cuidado por parte dos profissionais. A forma de conceber as oficinas está vinculada a determinado modo de compreender o fenômeno da vida e do sofrimento psíquico (Kinker & Imbrizi, 2015).
O acolhimento é um dos principais processos de trabalho de um CAPS, permeia toda terapêutica e deve ser uma ação de escuta qualificada fundamental para a vinculação do usuário ao serviço, mas os relatos dos profissionais refletem ações de acolhimento mais parecidas com triagem. Os profissionais parecem estar mais atentos na avaliação do encaminhamento para outro serviço, do que fazer uma escuta qualificada e um cuidado com a vinculação com o usuário.
Na consulta compartilhada, com presença de todos os profissionais, a profissional de referência passa todo o caso. Aí se discute e faz as perguntas. Se não for paciente do CAPS já fazemos um encaminhamento; se ele é um paciente nosso, já fazemos o projeto singular dele com o profissional que fez o acolhimento (CAPS2 P2).
Aí o técnico já senta com o usuário e, enquanto vai fazendo as perguntas preenche o instrumento. Se ele verificar que usuário não é do CAPS, ele faz o encaminhamento (CAPS3 P6).
O objetivo do acolhimento deve ser a vinculação terapêutica, apresentação do serviço, esboçar hipótese diagnóstica e iniciar o processo de corresponsabilização pelo cuidado (Deschamps & Rodrigues, 2016; Diniz, 2017; Jalles, Santos, & Reinaldo, 2017). Para favorecer a condução dos PTS e a vinculação entre o usuário e o serviço, recomenda-se definir o(s) técnico(s) de referência para o usuário e familiares para acompanhá-los em seus PTS. A escolha deve estar pautada em possíveis relações vinculares estabelecidas no processo terapêutico (Boccardo et al., 2011).
Entretanto, nos CAPS onde a pesquisa foi realizada, o profissional de referência é indicado no momento do primeiro contato, ou seja, o profissional de referência é quem faz a primeira escuta do usuário ou é indicado de forma sistemática para que haja divisão equânime de usuários por profissional. Essas estratégias podem não considerar a maior proximidade de diálogo com o usuário, mas, uma organização para facilitar o serviço.
O profissional referente tem a obrigação de preencher o roteiro no prontuário, então tem lá o espaço para ele colocar todas as observações feitas. Quando chega nesse ponto, três profissionais já ouviram o usuário e a gente tem mais condições de fechar o projeto terapêutico singular e o referente faz o retorno para o usuário (CAPS4 P7).
O acolhimento é importante para estabelecer vínculo com o usuário, mas pode ser que, ao longo do acompanhamento, a conexão seja melhor com outro profissional da equipe, diferente do que fez o primeiro contato ou do designado por causa da divisão do trabalho.
O profissional faz o acolhimento e marca as boas vindas e, lá, a gente constrói o projeto terapêutico junto com o usuário e a família (CAPS7 P11).
Depois de passar pelo acolhimento ele vem para o grupo de integração. Nesse grupo é onde vem a parte burocrática da coisa porque nós fazemos o registro das ações com locais definidos. Fazemos o PTS que já começou no acolhimento e discutimos com a equipe e com o usuário e entregamos um cartãozinho para ele e marcamos o profissional de referência (CAPS5 P5).
O relato de CAPS5 P5 ilustra um processo burocratizado de elaboração do PTS, evidencia a ausência de participação do usuário e a definição do profissional de referência a depender da organização dos serviços e não da vinculação entre profissional e usuário. Não foi possível perceber efetivo envolvimento dos usuários e familiares na construção dialógica, de negociação e de corresponsabilização dos PTS entre equipe/usuário/familiar. No contexto estudado, a participação deles está restrita ao conhecimento do que foi planejado pelo profissional ou equipe de referência. Comportamento similar foi percebido por pesquisadores que alertam que a insuficiente participação dos usuários e seus familiares na negociação das atividades terapêuticas nos CAPS tem sido um entrave para a realização do PTS (Vasconcelos, Jorge, Catrib, Bezerra, & Franco, 2016), além de interferir no comprometimento do usuário no serviços e com seu tratamento (Diniz, 2017).
A atenção psicossocial não pressupõe práticas enrijecidas e fechadas num modelo de cuidado, mas, sim, um processo social complexo que sofre alterações por diversos fatores e se transforma, assumindo outras conformações diferentes das idealizadas (Vasconcelos et al., 2016), por isso a necessidade de avaliação terapêutica constante. Porém, a literatura aponta a ausência de registros do técnico de referência sobre os PTS que acompanha, dificultando a reavaliação dele. Ainda, a equipe tem dificuldade para visualizar o PTS, pois faltam conversas sistemáticas sobre os mesmos para além das especificidades de cada profissional (Rodovalho & Pegoraro, 2016).
Na realidade estudada, os profissionais compreendem a importância da elaboração de PTS para garantir cuidado ampliado em contextos tão complexos, mas não conseguem sistematizar a elaboração com base na identificação das necessidades de saúde, sendo a prática ainda médico-centrada, com foco no diagnóstico médico e na remissão de sintomas.
Foi recorrente a necessidade que muitos profissionais dos CAPS pesquisados têm de conhecer o diagnóstico médico que foi estabelecido para, depois, construir o PTS. Ainda, destacaram-se relatos da existência de vinculação dos usuários com o CAPS, apenas para a troca de receitas médicas, como podemos ver nas falas que seguem: “Eu, que estou com agenda vazia, estou me encarregando de ir atrás desses pacientes que não estão indo, ou que está indo só para renovar a receita e comecei a repensar, junto com ele o PTS” (CAPS7 P5).
Você sabe que não deve vincular o usuário a consulta médica, mas sabe também que a sociedade e a família acham que ele deve sair dali com uma consulta agendada. Se ele não sair com consulta agendada a assistência social já te liga, cobrando (CAPS5 P8).
Muitos profissionais têm dificuldade para compreender que o acolhimento não se resume a um único encontro de avaliação de sinais e sintomas de transtornos mentais. O modo como os profissionais se referiram a algum instrumento utilizado para realizar o acolhimento remete a um protocolo de anamnese tradicional onde o foco principal é o recolhimento de informações em detrimento da criação de vínculo, e construção da empatia terapêutica. Considerando isto, foi recorrente a dependência do estabelecimento de um diagnóstico médico para elaboração de PTS. Ainda, foram recorrentes relatos da existência de vinculação dos usuários com o CAPS, apenas para a troca de receitas médicas, denunciando práticas médico-centradas tanto dos usuários quanto dos serviços.
A compreensão ampliada das necessidades das pessoas ainda está em construção nas ações dos profissionais de saúde e na rede intra e intersetorial, porque alguns relatos revelam avaliações psiquiátricas, com foco em sinais e sintomas e no diagnóstico médico. A prática de elaborar um PTS a partir do diagnóstico médico prejudica uma avaliação global considerando os aspectos psicossociais das demandas do usuário e de suas potencialidades, além do que as intervenções podem ser estabelecidas a partir ‘de um rótulo’ e não para o atendimento das necessidades.
Apesar da instituição de uma Política Nacional de Saúde Mental legitimada por lei (Lei nº 10.216, 2001) e que considera o modelo de atenção psicossocial, o paradigma biomédico persiste e, muitas vezes, os próprios atores que questionam esse paradigma demandam intervenções nele pautadas (Kinker, 2016). As formas de cuidado ainda refletem uma clínica centrada no médico, no medicamento, de caráter estritamente biológico e curativista, sem avaliação de forma ampliada do processo-saúde-doença mental, desvalorizando as ações de reabilitação psicossocial e se aproximando da lógica ambulatorial (Boccardo et al., 2011; Fiorati & Saeki, 2013; Jorge, Diniz, Lima, & Penha, 2015; Silva et al., 2016).
A centralidade no trabalho médico, pouco poroso às trocas de saberes e fazeres com outros trabalhadores da equipe, e menos disposto, ainda, a um trabalho em redes harmônicas de cuidado, inviabiliza a construção de projetos terapêuticos integrados com os núcleos de saberes dos vários profissionais que compõem as equipes, desconsiderando assim que outros trabalhadores são decisivos no acompanhamento de usuários com transtornos mentais (Jorge et al., 2015; Vasconcelos et al., 2016).
Uma questão que apareceu e que fragiliza a vinculação do usuário e a efetividade de cuidado é não considerar o território para propor atividades. A ocupação e a produção de outros territórios existenciais e de novas relações sociais são pouco consideradas, mesmo que muitas demandas e necessidades dos usuários envolvam pessoas, lugares para além do CAPS, como vemos na fala de um colaborador:
Pensando aqui vejo que nós fazemos o projeto terapêutico, mas com o nome de relatório. Nós estamos nesse processo de reorganizar. Então, nesse primeiro momento, a gente vai atrás de documentos de serviços na rede, academias. Hoje ele já consegue trazer para a gente aquilo que a gente quer. É um trabalho que temos feito diariamente para que eles consigam sair dos muros, mas alguns têm muita resistência ainda (CAPS6 P2).
Na maioria das vezes, as atividades propostas aos usuários são as ‘intramuros’ dos CAPS e não possuem metas terapêuticas estabelecidas, nem planejamento e avaliação sistemática dos resultados alcançados. As ações são oferecidas como um ‘cardápio’ porque não há avaliação psicossocial, portanto, sem considerar a singularidade de cada usuário.
Esse ‘cardápio’ também é entendido como uma ‘grade de atividades’ e os autores destacam que pode se tornar um dispositivo de controle tão rígido como o são as grades das celas do presídio e do manicômio. As grades estão postas quando os profissionais têm dificuldade ou pouca disponibilidade para identificar possibilidades de existência em territórios de vida dos usuários assim como para lidar com a angústia que a vivência do sofrimento mental produz (Kinker & Imbrizi, 2015). O PTS entendido como um cardápio, grade ou cronograma exposto ao usuário, apontando os dias e horário da semana nos quais ele deve ir ao CAPS para fazer atividades, não funciona como um instrumento que possa auxiliar o usuário a pensar outras possibilidades de vida (Rodovalho & Pegoraro, 2016). O PTS é potente quando deixa de ser um conjunto de procedimentos com a intencionalidade de buscar a normalização dos sujeitos, e passa a operacionalizar práticas que façam mediações nos territórios de vida pautadas nas necessidades reais e cotidianas dos usuários dos serviços (Kinker & Imbrizi, 2015).
Para garantir integralidade do cuidado, o acesso de usuário a outros serviços da RAPS também deve ser considerado na construção do PTS, o que implica no reconhecimento de que os pontos de cuidado existentes na rede de saúde devem estar articulados para a promoção, proteção e recuperação da saúde (Rodovalho & Pegoraro, 2016), além de ser parte de um projeto de intervenção social (Kinker & Imbrizi, 2015). Assim, o PTS se efetiva somente se houver incorporação e valorização das singularidades dos usuários no modo como lidam com as diferentes situações envolvendo sua saúde e a doença, e não apenas atuar sob a forma de prescrições protocoladas e pouco sensíveis a essas particularidades (Silva et al., 2016).
Está contemplado na RAPS o componente de reabilitação psicossocial, entendido como potentes estratégias para promoção de desinstitucionalização e reinserção social, entretanto foi possível identificar ações incipientes relacionadas nesta direção nos PTS. Isso posto, considera-se importante a constatação de que, para as atividades de cultura e trabalho e geração de renda, não foram definidos recursos orçamentários o que indica pouco significado estratégico atribuído a tais iniciativas (Amarante & Nunes, 2018).
O desafio da construção de PTS comprometidos com as dimensões da atenção psicossocial e com o ideal de integralidade do SUS vai além da instituição CAPS, precisam abranger o olhar e estabelecer relações sólidas com a comunidade, com a rede assistencial e social de apoio, de forma a considerar as singularidades dos sujeitos (Vasconcelos et al., 2016), além de considerar o território e seus dispositivos sociais e culturais.
Assim, ainda muitos desafios são enfrentados pelos profissionais de saúde para a realização do PTS como a dificuldade na comunicação, articulação e integração entre a equipe multiprofissional de turnos de trabalho distintos no CAPS; dificuldade para a construção de um momento para desenvolvimento e reavaliação dos projetos de forma coletiva entre todos os componentes da equipe de saúde interdisciplinar e deficiências nas anotações nos prontuários, dificultando o acesso da equipe do serviço a informações do processo terapêutico dos usuários proposto pelas outras categorias profissionais, trazendo prejuízos para a integralidade da assistência (Lockley et al., 2019; Mororó et al., 2011; Rocha & Lucena, 2018; Silva et al., 2018).
Apesar de todos os desafios, os profissionais reconhecem a importância da elaboração do PTS de acordo com os princípios da atenção psicossocial, tendo a percepção dos fatores que restringem essa prática de acordo com a realidade de cada serviço. Essa consideração é fundamental para a transformação dos processos de trabalho por meio de um processo crítico e reflexivo da prática profissional. Os resultados deste estudo subsidiam o planejamento de estratégias de Educação Permanente em Saúde (EPS) visando superar fragilidades para uma construção mais efetiva do PTS nos CAPS ao apontar, dentre outros aspectos, a ausência de proposição de metas de cuidado e do registro sistematizado dos PTS.
Vale esclarecer que se trata de um processo de educação que supera ações pontuais, fragmentadas, com pouca ou nenhuma conexão com a realidade dos locais. A EPS compreendida aqui propõe atualização cotidiana das práticas estando inserida em uma necessária construção de relações entre seus agentes, às práticas organizacionais, e às práticas interinstitucionais e/ou intersetoriais (Campos, Cunha, & Figueiredo, 2013; Ceccim, 2004/2005).
A limitação do estudo está relacionada à impossibilidade de generalizações acerca dos resultados, dada a característica qualitativa da pesquisa. Vale dizer também que não foi possível mobilizar todos os profissionais dos CAPS para participarem dos grupos focais, na medida em que cumpriam jornada em outros lugares, estavam realizando acolhimento ou estavam afastados do trabalho o que não possibilitou a reflexão conjunta de todos os profissionais dos serviços.
Os profissionais que atuam nos CAPS pesquisados reconhecem o PTS como importante para refletir sobre o cuidado psicossocial e superar a lógica ambulatorial, entretanto a elaboração ainda é precária, médico-centrada e baseada em um ‘cardápio’ de atividades oferecidas dentro do CAPS. Apesar disso, as poucas iniciativas de cuidado ampliado e no território se mostram extremamente potentes.
Considera-se como recente o nascimento do modelo de atenção psicossocial, bem como de seus instrumentais de trabalho, não há dúvidas do quão benéfico pode ser um cuidado coletivamente construído por meio do PTS e das articulações intra equipe, intrasetorial e intersetorial que dele decorrem.
A realidade evidenciada aponta para a necessidade de investimento em educação permanente em saúde, como possibilidade de formação significativa que considera o contexto de trabalho. É preciso qualificar os processos de trabalho desenvolvidos nos CAPS pelos diversos profissionais que lá atuam, por meio da sistematização dos PTS. Assim será possível garantir um cuidado psicossocial e promotor de liberdade. Junte-se a isso o alcance de maior efetividade de reinserção social e criação de evidências para avaliação dos resultados obtidos.
Sugere-se que novos estudos sejam implementados com vistas a evidenciar o impacto da EPS para efetiva elaboração de PTS pelas equipes dos CAPS bem como de investigar outros motivos que podem levar os profissionais a não realizarem PTS.
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