RESUMO: Segundo a ambiguidade constitutiva do Um que Lacan promove a partir da lógica e da matemática nos seminários O saber do psicanalista e ... ou pior, entre 1971 e 1972, o artigo busca fundamentar a teoria da sexuação desenvolvida nesse período e esclarecer que tal conceituação retoma a subversão freudiana do polimorfismo pulsional. Se a pulsão não tem qualquer determinação instintual quanto a seu objeto, constata-se que esse mesmo equívoco se deslinda como impossibilidade de proporção e relação sexual [rapport sexuel] para o ser falante, que se posiciona gramaticalmente na estrutura da linguagem a partir desse impasse. Nesse sentido, a bifididade do Um, entre conjunto e elemento, mesmidade e diferença, particularidade e universalidade, ex-sistência e relatividade, real e simbólico, reescreve a diferença (sexual) conforme a psicanálise. O sexo, portanto, é a própria ausência de qualquer referência que não seja a opacidade de princípio do significante, é a evasão fundamental do ser à verdade.
Palavras-chave: Sexualidade, psicanálise, significante.
RESUMEN: Basado en la ambigüedad constitutiva del Uno que Lacan promueve desde la lógica y de la matemática en los seminarios O saber do psicanalista e ...ou pior, entre 1971 y 1972, el artículo busca apoyar la teoría de la sexuación desarrollada en ese período y aclarar que tal conceptualización reanuda la subversión freudiana del polimorfismo de la pulsión. Si la pulsión no tiene ninguna determinación instintiva en cuanto a su objeto, parece que este mismo malentendido se revela como la imposibilidad de la proporción y la relación sexual [rapport sexuel] para el ser hablante, que se posiciona gramaticalmente en la estructura del lenguaje desde esta cuestión. Así, la bifidez del Uno, entre conjunto y elemento, igualdad y diferencia, particularidad y universalidad, ex-sistencia y relatividad, real y simbólico, reescribe la diferencia (sexual) según el psicoanálisis. El sexo, por lo tanto, es la ausencia misma de cualquier referencia que no sea la opacidad de principio del significante, es la evasión fundamental del ser de la verdad.
Palabras clave: Sexualidad, psicoanálisis, significante.
ABSTRACT: Based on the constitutive ambiguity of the One that Lacan promotes from logic and mathematics in the seminaries O saber do psicanalista e ...ou pior, between 1971 and 1972, the article seeks to support the theory of sexuation developed in that period and clarify that such conceptualization resumes the Freudian subversion of the drive polymorphism. If the drive does not have any instinctual determination as to its object, it appears that this same misunderstanding is revealed as the impossibility of proportion and sexual relationship [rapport sexuel] for the speaking being, who grammatically positions themselves in the structure of language from this impasse. Thus, the bifidity of the One, between set and element, sameness and difference, particularity and universality, ex-sistence and relativity, real and symbolic, rewrites the (sexual) difference according to psychoanalysis. Sex, therefore, is the very absence of any reference other than the constitutive opacity of the signifier, it is the fundamental evasion of the being from the truth.
Keywords: Sexuality, psychoanalysis, significant.
ARTIGO
O UM E A FUNÇÃO DO SEXO SEGUNDO A PSICANÁLISE
EL UNO Y LA FUNCIÓN DEL SEXO SEGÚN EL PSICOANÁLISIS
THE ONE AND THE FUNCTION OF SEX ACCORDING TO PSYCHOANALYSIS
Recepção: 05 Novembro 2020
Aprovação: 20 Fevereiro 2021
O sexo, em sua essência de diferença radical, permanece intocado e se recusa ao saber
Jacques Lacan (2006, p. 351)7.
O acefalismo pulsional, teorizado por Freud, desde muito cedo na psicanálise já desemparelhava não somente a suposta normalidade do casal heterossexual, mas rejeitava qualquer visada de instintividade e problematizava a busca pela harmonia. O genital não é inato, se constrói, a história individual conta e põe em relevo a singularidade. Embora Freud tenha preservado a organização genital como objetivo do desenvolvimento, a radicalidade da pulsão estava mais adiante que suas conclusões, o que geralmente ocorre com as grandes descobertas (Le Gaufey, 2014). A fonte, o impulso e a meta da pulsão se sobressaem, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em relação a seu objeto: “[...] somos levados a afrouxar a ligação entre instinto e objeto que há em nossos pensamentos. É provável que o instinto sexual seja, de início, independente de seu objeto, e talvez não deva sequer sua origem aos atrativos deste” (Freud, 2016, p. 38).
‘Não há relação sexual’: Le Gaufey (2014) condensa o aforismo lacaniano nesse marco do pensamento freudiano, ainda que Lacan não o tenha feito explicitamente; isto é, se qualquer objeto serve à única meta pulsional, a satisfação, não há nada de prescritível quanto à globalidade e à genitalidade desse objeto. O outro sexo fica a ser inventado para o ser falante: “Na concepção da psicanálise, portanto, também o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é um problema que requer explicação, não é algo evidente em si, baseado numa atração fundamentalmente química” (Freud, 2016, p. 35).
O interesse sexual é um problema, diz Freud. A limitação do catálogo das pulsões se liga ao real atestável como impossível, promovido na tentativa do ser falante em realizar a proporção/relação [rapport] sexual (Lacan, 2003a). Esse lugar a ser preenchido, esse vazio a ser contornado com as possibilidades significantes de cada um equivale à ausência do Outro para fazer união com o sujeito. Em Encore, Lacan (2010, p. 255) dirá, portanto, que “[...] o Outro é o Um-a-menos”. O (-1) do Outro é esse contorno, que se distingue radicalmente do Ser, da suposta essência sexual que a fantasia busca articular.
Nos seminários simultâneos que Lacan realizou entre 1971 e 1972, O saber do psicanalista e ...ou pior, a questão do Um é massivamente trabalhada. Partindo da “[...] curiosa vanguarda” (Lacan, 2003b, p. 544) localizada no Parmênides de Platão, isto é, a separação entre o Um e o Ser que expõe uma hiância de estrutura, Lacan (1997, p. 102) se apoia na lógica e na matemática para fundamentar o Um pela escrita matêmica, renovando a questão sobretudo pelo progresso matemático da teoria dos conjuntos, na medida em que nela “[...] se tentou dar conta da função do Um”.
Abordado em diferentes aspectos e implicações - conjunto, classe, elemento, diferença, atributo -, o Um desemboca em sua mesmidade, que se constata por correspondência biunívoca, na perspectiva conjuntista, como falta. Assim, na série dos números inteiros, “[...] cada número cardinalmente corresponde ao cardinal que o precede, acrescentando-se a ele o conjunto vazio” (Lacan, 1997, p. 103). Lacan chama a atenção para a tardia interrogação lógica das matemáticas, quando o Um assim surgiu “[...] como por efeito da falta” (p. 103).
Verdade, existência, universalidade, número, significante: é através dessa penetração epistemológica na psicanálise que tais noções renovam suas bases e permitem a formulação do aforismo desses seminários. A teoria dos números e a teoria do significante compartilham, portanto, a mesma razão. Há-um sintetiza a ambiguidade do Um, entre conjunto e elemento, mesmidade e diferença, particularidade e universalidade, ex-sistência e relatividade, real e simbólico, reescrevendo a diferença (sexual) conforme a psicanálise. Nesse limiar a verdade se conjuga duplamente, diz Lacan (2003a), mas jamais completamente.
Este artigo retoma a ambiguidade do Um nesses seminários para extrair a fundamentação da diferença sexual conforme esse período do ensino de Lacan.
Lacan (1997) questiona o que faz função do Um no discurso, também denominado, nos seminários 19, de lugar do semblante, furo do significante e “[...] gozo Um” (Lacan, 2003b, p. 548). A ‘unologia’ se opõe, portanto, à ontologia (Lacan, 1997); a positivação do ser da metafísica aristotélica se substitui pelo despimento da existência em relação à universalidade. O enfoque está no “Real ligado ao Um” (Lacan, 1997, p. 105), isto é, a unicidade do impasse do sexual, o impossível da identidade e do atributo que coage o sujeito a se decidir na estrutura. Assim, Lacan postula que o sexo é real e dual.
Trata-se de saber sobre isso a que retorno porque parecia-me ter aberto a coisa. É a relação de tudo isso que estou reenunciando, que lhes lembro com um breve toque, verdades de experiência, ‘trata-se de saber a função do sexo na psicanálise’. A esse respeito, penso, de todo modo, ter atingido as orelhas, mesmo as mais surdas, com o enunciado que merece ser comentado, que não há relação sexual. Seguramente merece ser articulado. Por que é que o psicanalista imagina que o que faz o âmago daquilo a que ele se refere é o sexo? ‘Que o sexo seja real, não tem a menor dúvida’. E sua própria estrutura é o dual, o número ‘dois’. De todo modo, não há senão dois, os homens, as mulheres, diz-se, e nos obstinamos a acrescentar aí os Auvergnats! É um erro. ‘No âmbito do real, não há Auvergnats’ (Lacan, 1997, p. 98-99, grifo nosso)8.
Para o psicanalista, o sexo se liga à impossibilidade do simbólico em forjar seu próprio acabamento, em multiplicar substâncias, à incongruência radical do Um ao imaginário local que o enreda, à impotência cultural em dar consistência ao racional; o sexo é a própria ausência de qualquer referência que não seja a opacidade de princípio do significante, é a evasão fundamental do ser à verdade. Há os homens e as mulheres diz-se; há os queer também, e o intersexo que borra as fronteiras do discurso científico. Os índices do sexual se transformam e talvez a anatomia um dia deixe de definir os usos de gênero na língua (Soler, 2018). A psicanálise se insere na pluralidade de saberes sobre o sexo que hoje tentam dar conta dos rearranjos nas coordenadas das mais diversas experiências sexuais (Ambra, Silva Jr., & Laufer, 2019). Cada vez mais se acrescentam multiplicidades às bandeiras identitárias que reivindicam participação política, o que é fundamental no espaço social onde o imaginário da distinção de grupos minoritários é o que permite a luta por direitos. Eidelsztein (2019) defende que a psicanálise é a favor da diferença, diferença do que não é, o que não nos isenta, secundariamente, de participar na revisão ou rechaço de certos fechos identitários alinhados a sofrimentos e exclusões de nosso tempo.
Metaforicamente, pode-se dizer que Lacan (1997, p. 94), em sua época, condensa a possibilidade da suposta pluralização identitária através do imaginário popular sobre os auvernenses, para advertir que todavia o sexo é real, que, para o discurso analítico, “[...] é essencial como tal a posição do significante” que “[...] se delineia por uma experiência”. Assim, uma psicanálise é “[...] a localização daquilo que se compreende como obscurecido [...] pelo feito de um significante que marcou um ponto do corpo” (p. 95). Imprecisão da qual se extrai “[...] a dose de gozo” (p. 95) da neurose: o império do significante-mestre se articula, portanto, ao Um que faz o ‘despedaçamento’ da sexualidade do ser falante: “[...] a sexualidade está no centro de tudo o que se passa no inconsciente. [...] posto que é uma falta, isto é, que no lugar do que quer que se pudesse escrever da relação sexual como tal, se substituem os impasses [...]” do gozo (p. 22).
Impasses do Um que organiza a fala tal como o “O Real é o que comanda toda a função da significância” (Lacan, 2003a, p. 25). Em relação ao saber do psicanalista, Lacan (1997, p. 96) interroga o que ele ensina sobre a função do sexo, na medida em que “[...] não se ensina senão o Um”. Assim, se o discurso histérico situa o amor ao pé do muro e produz um saber por sua divisão, é porque o amor serve para falar; a “[...] falação [parlage]”9 do analisando tenta fazer do amor a relação sexual, descoberta da experiência analítica (Lacan, 1997, p. 99).
A questão da partilha sexual é, no entanto, antiga. Para abordá-la, precisamos afastar o senso comum de nosso tempo e fazer vacilar nossas fantasias no confronto com concepções que remontam a outras épocas, para nos darmos conta da dificuldade lógica do assunto, sublinha Le Gaufey (2015). O problema mexe com noções básicas da cognição humana, e as tentativas de discriminar os sexos ao longo das eras expõem que a diferença sexual “[...] mistura [...] duas qualidades que o entendimento tem como heterogêneas: o discreto e o contínuo” (Le Gaufey, 2015, p. 34).
Diante disso, o discurso científico busca bipolarizar o sexo por seus atributos, segundo diferentes perspectivas e motivações conforme o contexto e a época (Laqueur, 2001). No Ocidente, o corpo biológico feminino só foi particularizado conceitualmente no século XVIII; a especificidade de seus órgãos, orgasmos e fluidos estava até então em continuidade com o gradiente androcêntrico (Laqueur, 2001). Assim, se hoje a ciência distingue anatomias separadas e define duas entidades que se querem independentes, o discurso comum também é nutrido pela oposição discreta que a genética aportaria no 23º cromossomo como evidência da individualização sexual (Le Gaufey, 2015). Entretanto, definir o sexo pelo binário biológico, seja por genes, hormônios ou a anatomia genital “[...] é uma simplificação. Muitas vezes, os cromossomos sexuais não se distribuem igualmente entre as células do embrião. Da desigualdade resultam homens com células XX em alguns órgãos e mulheres com cromossomos XY” (Varella, 2019).
Pensar a diferença sexual pelo modelo mítico animal, em que há tantos de um lado quanto do outro, é construir um sistema metafísico a partir da noção de indivíduo em sua concretude natural, conforme Aristóteles, que imaginava que bastava “[...] dizer que ‘alguns’, ‘alguns’ apenas, não todos, são assim ou assado para que isso os distinga; que é distinguindo-os daquilo que, ele é assim, se estas não o são, por exemplo, isso basta para assegurar sua existência” (Lacan, 2003a, p. 95, grifo do autor). Donde o impedimento de se conceber um ‘não todos’ na lógica clássica. Assim, “[...] é preciso liquidar também primeiro o seguinte, que nem mesmo a ideia do indivíduo constitui em nenhum caso o Um [...]”; quanto à relação sexual, não se vai “Um por Um” (p. 132).
A existência deve ser tomada como ex-sistência, neologismo que Lacan (2003a) introduz no dia 15 de março de 1972. O Um do sujeito ex-siste à cadeia simbólica: vazio que justamente promove a simbolização e o dizer, fazendo com que a verdade não seja outra coisa senão a própria articulação significante. A linguagem faz progredir a verdade e lhe dá uma estrutura de ficção (Lacan, 2019).
Freud ainda buscava objetificar o sexual e resolver a questão através da qualificação teórica do material inconsciente, ora pendendo para o ‘dualismo’ essencialista que tentava instanciar o próprio do masculino e o próprio do feminino, ora admitindo uma ‘duplicidade’ irredutível dessas qualidades, como extremos entre os quais haveria mistura (Le Gaufey, 2015). Assim, se a anatomia é o destino, parada obrigatória para o trabalho psíquico da diferença, e se óvulo e espermatozoide são de alguma forma diferenciáveis sob a perspectiva biológica, como então conceber que, psicológica e sociologicamente, conforme seu vocabulário, “[...] a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto” (Freud, 2011, p. 298). Onde situar o “[...] repúdio da feminilidade” (Freud, 1975, p. 287), obstáculo do fim da análise tributário do que, desde os Três ensaios, já se estabelecera, isto é, a libido lida apenas com o sexo masculino, donde se constatou que a primazia fálica não diferencia em nada a menina do menino? Sobre esse ponto, Le Gaufey (2015) observa que Freud participa desse empenho, embora falho, em ir da relatividade sexual para a substancialização de dois sexos, donde o problema da diferença se articula formalmente nestes termos: a diferença seria um relativo ou seria consequência da substância particular de cada entidade?
Freud não conseguiu resolver a questão da diferença, da proporção, da relação sexual. Em ‘Análise terminável e interminável’ (Freud, 1975), distante do que Real, Simbólico e Imaginário permitiria a Jacques Lacan avançar nesse impasse transferencial (o que remete a profundos abalos no plano epistemológico), resigna-se quanto a isso: “O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo” (p. 287). A subversão da pulsão estava além do que ele podia articular na clínica.
Assim, ao radiar o grande enigma do sexo para outros saberes e metonimizar a questão lógica em jogo, Lacan trabalha o dizer ‘não há relação sexual’, extraído dos enunciados de Freud sobre a sexualidade, segundo a constatação de que o sexo é real e dual. Não há homens e mulheres em sua suposta pureza identitária, não há auvernenses; a linguagem só pode imprimir nos corpos ‘ambiguidade’, e não ‘binariedade’. O Um impede que acessemos o Dois:
[...] o Um, quando é verídico, quando diz o que tem para dizer, vemos aonde isto leva, em todo caso, à total recusa de qualquer relação com o ser.
Há apenas uma coisa que se sobressai quando ele se articula, é exatamente esta, não há dois. Eu disse a vocês, é um dizer. E realmente, vocês podem encontrar assim, ao alcance da mão, a confirmação do que digo, quando digo que a verdade pode apensas se semidizer; porque só precisam quebrar a fórmula. Para dizer isto, ele só pode dizer ou há [y en a], como digo Yad’lun, ou então não dois [pas deux], o que se interpreta, é imediatamente interpretado por nós, não há relação sexual (Lacan, 2003a, p. 128-129).
Os fundamentos lógicos da diferença, segundo a abordagem de Lacan, não tomam, portanto, o dual do sexo pelo par sexual imaginário. Nosso entendimento da questão deve se inserir nos esforços de negatividade que caracterizam seu ensino.
A relatividade sexual, qualquer que ela seja, conflui para o Um: o buraco do argumento na proposição lógica, como nas fórmulas da sexuação, isola a mesmidade da ex-sistência que pode se determinar conforme o quantificador em jogo. A participação de x no campo simbólico é em todo caso isomórfica à operatividade vazia e passadiça do Um absoluto, insistência do real da pulsão no seio da linguagem.
Lacan (2003a, p. 104) serve-se de que o móbil da “[...] da teoria dos conjuntos se sustenta inteiramente nisso que o Um que há, do conjunto, é distinto do Um do elemento”. Nos dias 19 de abril e 4 de maio de 1972, aprofundou essa ambiguidade de princípio da conjuntização, na medida em que qualquer elemento equivale ao conjunto vazio, uma vez que este também é considerado elemento. A teoria dos conjuntos, nesse sentido, é a interrogação do Um. A questão é, portanto, a mesma que se inscreve na logicização da sequência dos números inteiros à maneira fregeana que é tão cara a Lacan: o que se transfere de 0 para 1 e realiza a repetição, isto é, por que e como Há-um, “[...] questão que é central quanto à verdade” (Lacan, 1997, p. 120).
Nos fundamentos da aritmética segundo Frege, Lacan se apoia na ambiguidade do zero, ao mesmo tempo uma ausência e uma presença, para exemplificar pela via lógica a reflexividade do simbólico. Isto é, a ausência de referente é justamente o que dá a inércia da simbolização. É da falta de objeto sob o conceito ‘desigual a si mesmo’, que só pode ter uma extensão nula, que Frege postula o conceito do número 1, ‘igual a zero’, quando iguala esse vazio a si mesmo, tornando o zero um objeto, isto é, introduzindo-o no campo da verdade, que é o registro da identidade: o número é uma unidade nomeada, define-se pela identidade a si mesmo; e a elisão do zero ao campo da verdade serve justamente para preservá-la, indicando que ela só pode se sustentar pela identidade, domínio do significante e do sentido (Miller apud Lacan, 2006). Seu semidizer se condensa, portanto, no Há-um, a duplicidade circular da significação, o que dá o dual e o real do sexo segundo o discurso analítico.
Na teoria dos conjuntos, é no nível do infinito atual, álef zero, que Lacan (2003a) situa a mola da unariedade e o obstáculo à bipolaridade simbólica: a mesmidade do Um (() em qualquer arquitetura conjuntista dá a cardinalidade do infinito numérico e atesta que o Um se constitui fundamentalmente como “[...] lugar de uma falta” (Lacan, 1997, p. 103). Assim, “[...] esse Um, o nada [nade - monade] na medida em que está no princípio do surgimento do Um numérico, do Um do qual é feito o número inteiro, é portanto algo que se coloca como sendo, originalmente, o próprio conjunto vazio” (Lacan, 1997, p. 107).
O que Lacan postula, então, é análogo ao movimento primeiro de instituição do significante como conjunto, na medida em que é por um traço que conta-por-um uma primeira multiplicidade, ainda que seja o mero vazio, nomeando-o como nada. Como um Fiat lux, o axioma do conjunto vazio diz, ‘haja o conjunto vazio’, escrito (, a partir de então devidamente nomeado, inscrevendo-o como significante (Rona, 2010, p. 103, grifo do autor).
Unicidade nomeada, o vazio torna-se operável como qualquer conjunto: “[...] como função de fechamento de um buraco, o nome próprio ‘conjunto vazio’ sugere, e em seu caso mais que explicitamente, o nível da falta, ou da inconsistência, a maior, suturando-a com e através de seu próprio nome” (Rona, 2010, p. 104, grifo do autor). A falta positivada no símbolo é circundada, mas não preenchida; a singularidade desse conjunto se articula ao que o nome próprio persegue em vão: “[...] ele é feito para ir preencher os buracos, para lhe dar sua obturação, para lhe dar seu fechamento, para lhe dar uma falsa aparência de sutura” (Lacan, 2006, p. 74). Da mesma forma, a inexistência é concebida somente a partir do significante que a designa, o que por si só já é suturante na medida em que a atestação da falta anda junto com a suposição de que se pode preenchê-la, preservando assim a coerência da estrutura. Nesse sentido, trata-se de inexistência, mas “[...] não no sentido de não ter existência, mas de não ser existência senão do símbolo que a faria inexistente e que, ele sim, existe, é um número, como vocês sabem, geralmente designado por zero” (Lacan, 2003a, p. 48). A falta vem acompanhada da possibilidade de complementação, tal como o zero é rechaçado porque se salvaguarda o princípio de identidade.
Assim, Lacan pareia a problemática crucial da teoria dos números com a questão do significante:
[...] o que se pressente ser este além da linguagem não pode ser senão matemático, imaginem, por causa do número, que se trata da quantidade. Mas talvez justamente [...] o número em toda sua realidade à qual a linguagem dá acesso, mas apenas por ser capaz de enganchar o Zero e o Um. Através disso seria feita a entrada desse real, único a poder estar mais além da linguagem, isto é, o único domínio em que pode ser formulada uma impossibilidade simbólica (Lacan, 1997, p. 86).
Tanto o número como o significante só podem desdobrar signos a partir da mesma ausência de fundamento externo a seu próprio domínio. O zero ou o vazio, entre simbólico e real, constituem um mesmo lugar de falta que sustenta a ‘simbolização unária’ e a ‘imaginarização múltipla’. Qualquer ‘enxame’ (Lacan, 2010) significante se reduz ao fato de que a linguagem só trabalha na engrenagem do 0 e do 1, isto é, a partir da inexistência que está no fundamento da necessidade lógica (Lacan, 2003a). Assim, Lacan (2003a) dirá, no dia 15 de dezembro de 1971, que o que existe é o significante - “Vocês existem como significante” (p. 31-32), mas precisamente na medida em que “[...] isso tem um sentido, um sentido precário” (p. 31), isto é, “[...] ‘a existência é a insistência’” (p. 160, grifo nosso). Cardoso (2010) precisa que essa reiteração da falta no cerne do simbólico se dá, metapsicologicamente, como insistência pulsional, inexistência da verdade suposta do sintoma (Lacan, 2003a, p. 136) que reclama simbolização: “[...] a insistência do Um pulsional é efetivamente a única substância própria e imanente ao registro da linguagem, este valor lógico indeterminado (pois contraditório), é um puro limite significante”.
No sistema fregeano, diz-se que se trata da entrada da falta no campo da verdade, enquanto paradoxo da presença ausente que promove a sequência cardinal: “[...] esta conquista permanece para nós preciosa na medida em que nos dá o 1 como sendo essencialmente [...] o significante da inexistência” (Lacan, 2003a, p. 55). Assim, “Frege não dá conta portanto da série dos números inteiros, mas da possibilidade da repetição. A repetição se coloca a princípio como repetição do 1, enquanto 1 da inexistência” (p. 58). O Um da unidade numérica é, portanto, repetição do Um da inexistência única contabilizada no devir simbólico: ( faz, portanto, “[...] existir algo organizado a partir do vazio” (Rona, 2010, p. 106).
O nome próprio do conjunto vazio representa a falta, mas não a apresenta, o que esfacelaria a noção mesma de conjunto (Rona, 2010). Esse contorno significante não é, apesar disso, mera etiquetação: “[...] é a própria inexistência contada como Uma, é uma ‘inércia positiva’ no seio do simbólico” (Cardoso, 2010, p. 136 e 140, grifo do autor), tal como o real engendra a significância. Nesse sentido, o Um essencialmente designa o limite do próprio simbólico, onde a suposição de mais Um significante circunscreve um lugar de falta. Rona (2010, p. 107) observa que ( é Outro com relação a qualquer outro significante [...], o que bem denota a impossibilidade de simbolização da alteridade que faria proporção com o sujeito. Esse real do qual falo e do qual o discurso analítico é feito para nos lembrar que seu acesso é o simbólico. O dito real, ao qual acedemos no e por esse impossível que somente o simbólico define (Lacan, 2003a, p. 92).
O Um fala e suporta a existência, única coisa em que o ser falante pode se suportar, diz Lacan (1997) no dia 3 de março de 1972, pois só podemos ser através do símbolo, “[...] esse ser sem ser [...]” que desassossega e situa a existência no “[...] mais fugaz do enunciável” (Lacan, 2003a, p. 95). O Um se perde e leva “[...] ao cume o que diz respeito à existência até confinar a existência como tal na medida em que surge do mais difícil a atingir” (p. 95). Tal como em Frege o 1 é forjado quando a falta demarcada (conjunto) surge concomitantemente a sua contagem como elemento, poderíamos também dizer que a hiância e a esquiva também dão o tom da estrutura moebiana do sexual, do ontológico e do sujeito: “[...] essa bipartição, sempre fugidia, [...] do homem e da mulher” (Lacan, 2003a, p. 121); “[...] o que eu oponho como ser [...] é o ser da significância” (Lacan, 2010, p. 148); “[...] o sujeito nunca é senão pontual e evanescente, ele só é sujeito por um significante e para outro significante” (Lacan, 2010, p. 272).
A mônada aqui levada em conta é a própria nulidade que equivale a qualquer esforço suturante da falta-a-ser; não é a indivisibilidade da unidade natural da coisa, é esse núcleo de ‘real’ que subjaz a qualquer ‘realidade’: “[...] a mônada [monade], portanto, é o Um que se sabe sozinho, ponto-de-real da relação vazia” (Lacan, 2003b, p. 547); mas “[...] não mais o chamemos de mônada, porém de Um-dizer, pois que é a partir dele que vêm a ex-sistir aqueles que insistem na repetição” (p. 548).
Lacan (1997) enfatiza que o Um enquanto reiteração da falta é correlato ao princípio da repetição. A “[...] bricolagem” (Lacan, 1997, p. 46, tradução nossa) que não cessa de se escrever se orienta pelo “[...] gozo Um [...]” que “[...] exerce a função do sujeito” (Lacan, 2003b, p. 548): o mesmo elemento que representa a ausência de elemento se repete a cada cauda associativa, a cada enxame de pensamentos, a cada efeito de fala que constitui o lugar do Outro. O que implica que a potencialidade de valor para o significante, saussurianamente falando, é infinita e desemboca na mesmidade do Um; isto é, a mesmidade da falta é a mesmidade da relatividade significante; qualquer arranjo simbólico onde se extraiam diferenças relativas e a consequente significação é tributária da diferença absoluta que preside à própria diferenciação.
A definição de ‘homem’, ‘mulher’ ou ‘auvernense’ parte, portanto, da mesma inércia centrípeta que organiza a possibilidade da relatividade simbólica; a identidade se forja no caso a caso das significações locais que tentam inteirar a verdade: “[...] distinto não quer dizer senão ‘diferença radical’, uma vez que nada pode assemelhar-se. Não há espécies. Tudo o que se distingue da mesma maneira é o mesmo elemento. É o que isso quer dizer” (Lacan, 1997, p. 107-108, grifo do autor).
A teoria psicanalítica vê indicar o Um em dois de seus níveis. O Um é o Um que se repete; ele está no fundamento dessa incidência maior no falar do analisante que ele denuncia com uma certa repetição, em relação a quê? A uma estrutura significante.
O que é, por outro lado, que se produz com o estabelecimento do sujeito no nível do gozo de falar, considerando o esquema que dei do discurso analítico? O que se produz é o que designo no plano dito do mais-de-gozar, é S1, isto é, uma produção significante [...] O que é a mesmidade da diferença? O que quer dizer que coisas que designamos no significante com letras diversas, sejam as mesmas? O que pode querer dizer ‘as mesmas’, senão justamente que é único, a partir mesmo da hipótese de onde parte, na teoria dos conjuntos, a função do elemento? (Lacan, 1997, p. 110, grifo do autor).
Se a mesmidade da variação significante equivale à radicalidade da diferença, pode-se, portanto, dizer que o significante-mestre é, a rigor, essa mesmidade do Um que comanda a fala e suas tentativas de criar o Dois, precisa Lacan (1997, p. 96): “É sempre, seguramente, do significante que eu falo quando falo do Há o um [Yad’l’un]. Para estender esse d’l’un na medida de seu império, uma vez que ele é seguramente o significante-mestre, é preciso aproximá-lo, ali onde foi deixado aos seus talentos, para colocá-lo ao pé do muro”.
Qualquer composição significante ou conjuntista se reduz, portanto, ao que essa mesmidade pode escrever de contrates. Há-um declara a própria diferença absoluta do sexo, sua esquiva fundamental que paradoxalmente suporta o dizer da diferença, traduzindo-a nos impasses do gozo, suplentes da relação. A única unidade assegurável é aquela do sujeito com o saber que produz a verdade e o gozo como resposta dupla ao problema da ex-sistência (Lacan, 2003a). O Um almeja ser verdadeiro e fazer relação com o Outro inscrevendo-se nesse lugar, mas “[...] o verdadeiro só existe faltando ao seu parceiro” (Lacan, 2003a, p. 118). O Outro falta, mas esse malogro não impede as tentativas de laço e a suplência no amor, exigência de estrutura denominada sexuação (Danziato, 2016).
Enquanto exprimível senão pela diferença, em sua funcionalidade de estranheza a qualquer conformação imaginária que se busque, a sexualidade não pode se definir por identidades. O Um faz o Ser e orienta a circulação do sujeito com o saber; “[...] o mais estranho dos engodos [...]” se dá quando, no imaginário cultural, interpretamos a significação fálica enquanto binário da metáfora biológica (Lacan, 2010, p. 109).
Do Um se funda o abismo que o separa do Dois: a ‘pequena diferença’ é percebida desde muito cedo, dispensando a fase fálica para se tornar visível, e o erro dessa dialetização se constitui pelos critérios possíveis, segundo a ordem simbólica vigente. Isto é, rejeitamos a bipolaridade sexual, estruturalmente falando, pelas identificações (Lacan, 2003a). Porque o ser é falante, há complexo de castração (Lacan, 2003a). O Dois imaginário ignora assim a unariedade que o constitui, falha primordial do simbólico que todavia o sustenta; o que faz com que o inconsciente só obtenha êxito por fracassar (Lacan, 2003a). Assim, lógica e sexualidade se enodam graças à ambiguidade auspiciosa da palavra rapport na língua francesa (Le Gaufey, 2014): cada um no seu lado, os parceiros se opõem, não se unem; não fazem relação pois não há ‘proporção’. Não há relação sexual porque a linguagem funciona no nível do gozo promovido pelo semblante, explica Lacan (1997, p. 35) no dia 2 de dezembro de 1971:
Não sabemos nada de real sobre estes homens e estas mulheres como tais, pois é disso que se trata; não se trata de cães e de cadelas. Trata-se, realmente, daqueles que pertencem a cada um dos sexos a partir do ser falante. Não há aí sequer uma sobra de psicologia. Homens e mulheres - isso é real.
A unariedade é eclipsada pela referência especular com o modelo animal que especifica o macho e a fêmea, dando a naturalidade que só os erros têm (Lacan, 2003a). Diferentemente do Eros freudiano, os parceiros não podem se somar: “Deles [D’eux] não está fundido em Um, nem Um fundado por dois [deux]” (p. 124). O próprio saber inconsciente em funcionamento, em homologia à teoria dos conjuntos, radica no Um que funda o equívoco, tanto aquele do significante em sua nulidade constitutiva quanto aquele da interpretação do ‘todos’ que estabelece a sex ratio atributivamente: “[...] a única coisa que interessa do significante são os equívocos que podem sair dele, isto é, algo da ordem do ‘fundir deles um’ Um, e outras idiotices desse tipo [...] o ‘todos’ é forçosamente semântico” (p. 130, grifo do autor).
O ‘todos’ que a cultura fabrica para fazer relação dá a ilusão de que há dois sexos, duas essências, segundo o modelo genitalista da ciência e da moralidade teológica. A suposição de harmonia na vida animal se esquece de que uma biologia jamais se aproximará do que seria a animalidade intocada. Mesmo o imaginário da natureza pode ser provocado, e Lacan (1997) também não se furta a isso. No nível do zigoto, como pensar uma relação no sentido matemático se de Dois não se forma um terceiro por completa fusão? Restam as metades genéticas que não entram na conta da meiose: “[...] o que é um, novo, faz-se com o que [...] cada um deles que largou um certo número de pedaços” (p. 101). Lacan (2003a) também lembra que a reprodução pelo sexo é uma modalidade entre outras; nas espécies mais primitivas, não há coito. Isto é, sempre imaginamos a binariedade sexual no nível animal, “[...] como se cada ilustração disto que, em cada espécie, constitui o tropismo de um sexo para o outro não fosse tão variável para cada espécie quanto sua constituição corporal” (p. 38).
O atributo mascara a ausência de fundamento da linguagem. Lacan (2003a) assinala que, até a teoria dos conjuntos, a partir da ideia de classe se distribuíam os indivíduos biunivocamente, conforme o atributo comum de cada universal da sex ratio; cada um com sua cada uma, efeito do semblante justamente por ele se dar a ver.
[...] é preciso liquidar também primeiro o seguinte, que nem mesmo a ideia do indivíduo constitui em nenhum caso o Um. Porque, é visível ao menos, isso poderia estar ao alcance, para o que concerne à relação sexual sobre a qual, em suma, não pouca gente imagina que se funda, e há tantos indivíduos de um lado quanto do outro, em princípio, pelo menos, no ser que fala, o número de homens e de mulheres salvo exceção, não é? (Lacan, 2003a, p. 132).
Nem mesmo a clássica dicotomia do ativo/passivo, com seu enunciado atributivo, pode servir para pensar o Dois: “[...] o homem, ele é ativo, o queridinho! Na relação sexual, então, parece-me que é mais a mulher quem joga duro!” (Lacan, 2003a, p. 179). Assim, no dia 17 de maio de 1972, Lacan (2003a) distingue o Um de diferença do Um do atributo. Este se serve da qualificação para fundar o universal, aquele é diferente da classe, pois desemboca no conjunto vazio em sua neutralidade material, que se conta nas partes do conjunto como elemento: “O Um, como diferença pura, é o que distingue a noção do elemento. O Um, pois, como atributo, lhe é distinto” (p. 134).
A classe se define atributivamente e deixa de existir ao se esvaziar, diferentemente do conjunto, que funciona mesmo enquanto vazio. Lacan apoia-se na teoria dos conjuntos para subverter o estatuto metafísico da universal e da existência, baseado na identidade, indivisibilidade e na validade do princípio de contradição. Nessa mesma lição, interroga esses pilares do aristotelismo no nível das fórmulas do lado homem. O Um de diferença, articulado à fórmula da exceção, sustenta a fantasia de um dizer que (x não é verdade; é “[...] o único elemento característico [...]” que funda o homem (Lacan, 2003a, p. 135). A universal se opõe à existência na medida em que “[...] não é menos verdade que a relação com ( de x é o que define o homem, aí, atributivamente, como ‘todo homem’” (p. 135, grifo do autor). Conforme o esclarecimento de Lacan (2019) no seminário anterior, ‘todo homem’ não garante nenhuma existência, é “[...] um significante, nada mais” (p. 178), o que implica que a questão da universal deva ser “[...] inteiramente recolocada a partir da função que se articula Yad’lun” (Lacan, 2003a, p. 135).
Se “[...] o homem é função fálica na medida em que ele é ‘todo homem’” (Lacan, 2019, p. 178, grifo do autor), trata-se do fato de que a proposição em si não adquire significação senão quando a existência do referente, ao ocupar o lugar vazio do argumento, dá à dita proposição seu valor de verdade. A ex-sistência aqui objeta a universal, diferentemente do quadrado lógico da particular mínima conforme Aristóteles, em que as proposições particulares positivam concretamente o conceito da universal. O quadrado lógico pela particular máxima como Lacan o constrói implica que a existência se distingue da universalidade, tal como o Um não se confunde com o Ser, segundo a leitura lacaniana do Parmênides. Não se trata de “[...] o Um é [...]”, mas de “[...] é Um [...]” (Lacan, 2003a, p. 85), isto é, esvazia-se o ser, a exceção deve ser tomada qualitativamente, enquanto existência plástica que encarna os traços (Le Gaufey, 2015). Assim, “[...] o homem de ‘todo homem’, quando ele é o sujeito, impõe uma função de uma universal que não lhe dá por suporte [...] senão seu estatuto simbólico” (Lacan, 2019, p. 171, grifo do autor).
A um sexo se articula, assim, a unidade fálica que encerra o gozo na significação; ao outro, a unidade não determina necessariamente a experiência sexuada. Na medida em que o significante só pode trabalhar sob o regime da falta e obstaculiza outras possibilidades simbólicas, Um gozo é tocado pela linguagem, o que implica que a heteridade - e não deuteros, isto é, a secundariedade - ex-sista a seu compasso. À existência e à universal do lado masculino se opõem a inexistência de outra existência e a ausência de Outra universal do lado feminino:
Assim, as escritas à esquerda/direita, homem/mulher, ambicionam dizer o fato da não-relação colocando lado a lado um x cujo funcionamento permite pensar uma essência ((x) e uma existência ((x), e um x cujo funcionamento não autoriza nenhuma essência, mas repousa inteiramente sobre uma existência que permanece intratável por qualquer unidade que seja.
[...] Sem mergulhar em uma concepção demasiado substancialista, que faria desse x alguma coisa de pré-sexual, é-se assim levado a conceber que a bipartição sexual ‘resulta’ de disposições enunciativas: o x que se excetua do todo que ele coloca como o lugar de seu pertencimento será dito homem; o x que existe sem pertencer a nenhum todo será dito mulher (Le Gaufey, 2015, p. 197-198, grifo do autor).
Nesse sentido, a inacessibilidade do Dois simbólico não implica que Zero negue Um; o princípio de contradição não se aplica aqui pois não se trata de decisão quanto a um verdadeiro e um falso (Lacan, 2003a). Como vimos, é no que entre simbólico e real pode se articular a partir do Um que se funda o “[...] fracasso fundador do gozo sexual” (p. 115), com suas modalidades de malogro incomensuráveis entre si. A fantasia da relação se apoia na suposta consistência de entidades; a reflexividade do simbólico, por seu turno, faz do verdadeiro a própria equilibração significante no equívoco de sua nulidade: “0 não é a negação da verdade 1, mas a verdade da falta que consiste em que ao 2 falte 1 [...] 0 não é a negação de coisa nenhuma [...] Ele desempenha seu papel na edificação do número” (Lacan, 2003a, p. 118). Assim, o quadrado lógico lacaniano repousa nessa “[...] ponta bífida” (Le Gaufey, 2015, p. 127) em que o impossível orienta a significância e gera efeitos de verdade.
A partir dos dizeres de Lacan quanto à diferença sexual, podemos formular que a função fálica denota uma ‘função Há-um’. O “[...] isolamento na proposição, ou mais exatamente da falta, do vazio, do buraco, do oco” (Lacan, 2003a, p. 40) implica que a própria divisão do sujeito, essa presença hiante que gira o simbólico, define a dualidade do real do sexo, entre uma existência que se conforma precariamente ao traço que governa a diferença e uma dispersão existencial própria de um gozo “[...] radicalmente Outro” (Lacan, 2010, p. 173). Dois lados da mesma moeda, homólogos aos lados das fórmulas da sexuação; “[...] uma dupla maneira de não ser: não-ser-um (ao menos-um) e não ser Outro (não-uma-que não)” (Dunker, 2017).
Outro sexo se articula assim ao fato de que o Um não se inscreve no Outro: “[...] é somente a partir de ser ‘uma mulher’ que ela pode se instituir no que é inscritível por não sê-lo, isto é, restando hiante no que se refere à relação sexual” (Lacan, 2019, p. 179, grifo do autor). Lacan (2019) diz que é como toda mulher que a histérica pode se decidir como sujeito, participando da unitarização fálica da representação de um significante para outro significante. Mas própria significação do falo, fundada na demarcação de Uma falta, é contradita pelo não advento dessa unidade que, como o zero fregeano, é o envelopamento mesmo da impossibilidade de identidade. A decisão histérica pelo Um convive com a fantasia da Alteridade que satisfaria seu desejo de “[...] mais-ser” (Soler, 2005, p. 52). Se o homem lacaniano insiste no seu ‘gozo do idiota’, acreditando que cria a mulher, esta lhe opõe como ‘hora da verdade’ disjuntando gozo e semblante (Lacan, 2010, 2019). Estruturalmente é a mesmidade do Um revelado em sua falta de conteúdo, em sua forçação de unidade a despeito de sua diferença sobre si mesmo. A disformidade do gozo feminino, “[...] entre o centro simbolizado pelo falo e a ausência mais radical [...]”, é a indeterminação que cada marcha significante prolonga como miticidade de plenitude, fato único do Um formalmente impossibilitado de concluir o Todo fantasístico (Bassols, 2017, p. 8).
‘Inscritível por não sê-lo’ é pois a unariedade da recusa do corpo ao que se pode escrever de sexual. Foraclusiva ou discordancialmente, os posicionamentos sexuados expõem modos de constrangimento discursivo a partir do fato de haver Um: “[...] a linguagem traça em sua própria gramática os efeitos ditos de sujeito” (Lacan, 1997, p. 100).
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