Entrevista
DOI: 10.1590/S1517-97022015410400201
Resumo: Em tempos tão sombrios para a pesquisa educacional em várias partes do mundo, em que educadores e pesquisadores estão submetidos a uma cultura de auditoria cada vez mais implacável, tivemos o privilégio de entrevistar um dos poucos filósofos que, de uma perspectiva filosófica, questionam esse tipo de gestão educacional: Paul Standish, professor e diretor do Centro de Filosofia da Educação do Instituto de Educação da Universidade de Londres (University College London Institution of Education). Uma de suas principais críticas incide sobre o transporte abusivo de procedimentos contábeis, característicos do campo da administração, para a proposição de políticas educacionais que visariam a uma equivalente “transparência contábil”. Recorre a filósofos como Wittgenstein e Austin, entre outros, para desconstruir o mito da transparência da prestação de contas no campo da educação quando são adotadas medidas avaliativas e de gestão pretensamente objetivas e eficientes, mas que, na verdade, têm tido como resultado a imposição de modelos empíricos de comportamento e de pensamento extremamente reducionistas e dogmáticos. Segundo ele, boa parte desses modelos é oriunda da psicologia, a qual, mesmo tendo alterado substancialmente seus aparatos teóricos como também suas práticas ao longo das últimas décadas, trouxe crenças iniciais que deixaram o que Paul Standish denomina de trail-effects* no imaginário do senso comum, os quais agem sub-repticiamente na base da cultura de auditoria que vem se instaurando no campo da educação. Ao longo da entrevista, Standish também aborda questões relativas ao lugar da filosofia analítica na educação, com suas diferentes vertentes; questiona o modo como o pós-estruturalismo tem sido apropriado pela pesquisa educacional; critica o uso da expressão ciência da educação, quando se desconsidera o fato de que as questões mais fundamentais da educação não podem ser resolvidas empiricamente; reflete sobre a formação do professor e as diferentes maneiras de se transmitir conhecimento; e enfatiza a importância e a fecundidade das ideias de Wittgenstein tendo em vista esclarecer as confusões filosóficas em que nos enredamos quando a linguagem “entra em férias”.
Palavras chave: Filosofia da educação, Avaliação escolar, Gestão educacional, Teoria e prática educacionais, Wittgenstein.
Abstract: In times so grim for educational research in various parts of the world, where educators and researchers are subjected to an increasingly ruthless audit culture, we have had the privilege of interviewing one of the few philosophers who question this type of educational management from a philosophical perspective: Paul Standish, Professor and Head of the Centre for Philosophy of Education at University College London Institution of Education. One of his main criticisms focuses on the abusive transport of accounting procedures, characteristic of the field of administration, to proposing educational policies that supposedly aim at an equivalent accounting transparency. He refers to philosophers like Wittgenstein and Austin, among others, to deconstruct the myth of accounting transparency in education, when evaluative and management measures are adopted. Such supposedly objective and efficient measures have actually resulted in the imposition of empirical models of behaviour and thinking which are extremely reductionist and dogmatic. According to him, most of these models come from the field of psychology, which, despite having substantially changed its theoretical apparatus as well as its practices over the past few decades, has brought initial beliefs which have left trail-effects in the imaginary of common sense, acting surreptitiously on the basis of the audit culture that has established itself in the field of education. Throughout the interview, Standish also addresses issues relating to the place of analytic philosophy in education, with its various approaches, questions how post-structuralism has been appropriated by educational research, criticizes the use of the term science of education when one disregards the fact that the most fundamental issues of education cannot be resolved empirically, reflects on teacher education and the different ways of transmitting knowledge, and emphasizes the importance and fecundity of Wittgenstein’s ideas aiming at the clarification of the philosophical confusions that we become entangled with when language “goes on vacation”.
Keywords: Philosophy of education, School evaluation, Educational administration, Educational theory and practice, Wittgenstein.
Apresentação

Paul Standish é professor e diretor do Centro de Filosofia da Educação do Instituto de Educação da Universidade de Londres (University College London Institution of Education). Suas áreas de maior interesse abrangem questões de ética e educação, democracia e cidadania, as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e o ensino superior. Ao longo de sua extensa obra, tem discutido as relações entre a filosofia analítica e a filosofia continental, com foco nas tensões produtivas que são geradas ao longo do embate dessas vertentes filosóficas, tendo como referenciais teóricos centrais as ideias de Wittgenstein, Heidegger, Lyotard, Derrida, Scheffler, Levinas, Cavell, entre outros, transitando, assim, entre as filosofias da linguagem e da existência, com incursões também na filosofia política e no pós-estruturalismo.
Mais recentemente, Standish tem se ocupado em desvendar as relações entre a filosofia e as práticas educacionais. Em sua obra Beyond the self: Wittgenstein, Heidegger and the limits of language (1992), o filósofo explora as concepções divergentes sobre os limites da linguagem, traçando paralelos entre os dois grandes filósofos da área do século passado, Wittgenstein e Heidegger, tendo em vista uma crítica ao positivismo que ainda prevalece na linguagem do planejamento curricular e na elaboração de políticas públicas na educação. Essa crítica foi retomada em um artigo mais recente, “Concepciones rivales de la Filosofía de la Educación” (2007), em que apresenta exemplos de como a filosofia da educação pode incidir na política e nas práticas educativas, esclarecendo equívocos e apontando novos rumos. Segundo Standish, grande parte da política educativa das últimas décadas inclinou--se fortemente em direção ao desenvolvimento de habilidades e competências, em detrimento da aquisição de conhecimento e compreensão. Sua hipótese é a de que essa nova linguagem das habilidades é um sintoma de uma nova forma de behaviorismo, profundamente em desacordo com os aspectos mais significativos da obra educativa. Propõe, então, como meta filosófica, explicitar a natureza dessa conexão com o behaviorismo e o tipo de metafísica nela pressuposto ( STANDISH, 2007).
Standish esteve em setembro do ano passado pela primeira vez no Brasil, a convite da recém-criada Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação. Aproveitando sua passagem pelos trópicos, a área de Filosofia e Educação da Pós-Graduação da Faculdade de Educação da USP convidou-o a apresentar uma palestra. Tendo como tema o estado da arte da filosofia da educação, o pesquisador surpreendentemente nos remeteu às origens da filosofia, aos seus legados mais ilustres, como os de Platão, Aristóteles e Heráclito, com suas diferentes perspectivas teóricas, tecendo relações inusitadas entre eles e apresentando, por fim, sua própria concepção de filosofia da educação: uma forma de investigação com fronteiras porosas, mas fundamentalmente ligada às questões de valores, que não podem ser evitadas no campo da prática educacional e que tampouco são passíveis de investigação empírica. Basta que o professor na sala de aula ou o gestor de políticas educacionais seja confrontado com problemas e tenha que lidar com eles em profundidade para que se deparem necessariamente com questões filosóficas.
No dia seguinte à palestra, Standish concedeu esta entrevista ao grupo de pesquisa Filosofia, Educação, Linguagem e Pragmática (FELP) 1, que recentemente traduziu o artigo “‘THIS is produced by a brain-process!’: Wittgenstein, transparency and psychology today” 2 ( STANDISH, 2012), no qual ele discute, a partir de uma perspectiva wittgensteiniana, questões de avaliação educacional, em particular quando esta ocorre numa cultura de auditoria. A entrevista foi realizada com a participação de alguns membros do grupo – dentre os quais gostaria de agradecer especialmente a meus então orientandos Isabel Villalobos Hrdlicka e Rafael Ferreira de Souza Mendes Pereira –, e contou também com a presença de dois professores pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): o filósofo Arley Ramos Moreno (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), coordenador do grupo de pesquisa Filosofia da Linguagem e do Conhecimento, e o linguista e teórico da tradução Paulo de Oliveira (Centro de Ensino de Línguas).
O interesse do grupo por esse texto de Standish deu-se, entre outras razões, pelo fato de estarmos vivendo no Brasil a adoção generalizada de exames padronizados para avaliar todos os níveis de ensino, gerando rankings de escolas e diretrizes educacionais fundamentadas nesses resultados. Em particular, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) passou a servir não só como instrumento de entrada para todas as universidades federais, mas também como modelo de currículo para todo o ensino médio no país, induzindo mudanças curriculares e alterações nos livros didáticos fornecidos pelo governo a todo o sistema público de ensino, com base numa matriz de competências e habilidades fundamentada em teorias das ciências cognitivas (AZANHA, 2006a, GOTTSCHALK, 2012). A reflexão de Standish a respeito d os trail-effects da psicologia sobre as políticas educacionais de avaliação e as suas implicações nas práticas pedagógicas fez com que boa parte das questões endereçadas a ele fosse no sentido de esclarecer alguns aspectos de sua crítica à cultura de auditoria já entranhada em nossas práticas pedagógicas.
Como se verá ao longo da entrevista, Standish considera que há um transporte abusivo de procedimentos contábeis, característicos do campo da administração, para a proposição de políticas educacionais que visariam a uma equivalente “transparência contábil”. Sua crítica é extremamente esclarecedora não só por possibilitar a desnaturalização de determinadas crenças, mas também por nos instigar a pensar outros modos de enfrentar os desafios do ensino e da aprendizagem, para além dos modelos reducionistas da tarefa educativa que têm assolado nosso país nas últimas décadas. De modo original, Standish recorre à concepção de linguagem de Wittgenstein (1997, 1998) para desvelar mecanismos obscuros que operam a partir de áreas como as da psicologia e de algumas ciências cognitivas e que deixam rastros no senso comum, gerando patologias do pensamento com consequências nefastas nos mais diversos campos do conhecimento. Assim, dessa perspectiva wittgensteiniana, chega à conclusão de que a necessidade dessas áreas de terem acesso a um conhecimento oculto, que estaria além de nossas práticas cotidianas fundamentadas apenas na confiança humana, transformou a economia ordinária de nossas vidas em uma “economia do conhecimento”, na qual o conhecimento passa a ter o estatuto de mercadoria, tendo-se como finalidade tornar nossas práticas mais explícitas e supostamente mais passíveis de prestação de contas do que nossa linguagem ordinária permite.
De fato, estamos presenciando essa transformação não só no Brasil, mas também em diversos outros países, com práticas educacionais tais como as de avaliação do aprendizado escolar, que têm intensificado a produção de testes para verificar se os resultados de aprendizado pretendidos foram alcançados, com a ilusão de se ter encontrado um sistema de inspeção que possa substituir as avaliações que se baseiam na experiência acumulada do professor e no julgamento fundado em sua autoridade. Como já observava José Mário Pires Azanha em meados da década de noventa (AZANHA, 2006b), a avaliação “ganhou agora um vulto tão exagerado que talvez não seja exorbitante afirmar que muito do que se faz ou se tenta fazer nas escolas, de um modo geral, e nas universidades, de um modo muito especial, é feito com a preocupação quase neurótica e o temor angustiante de futuras avaliações”. Tal previsão tem se confirmado em várias partes do mundo e tomado proporções alarmantes. Para atender as exigências dessa nova onda avaliativa regida por uma cultura de auditoria, o professor se torna algo muito próximo de um operador técnico flexível e, portanto, substituível, enquanto que as práticas anteriores vão sendo cada vez mais desconsideradas. Imagina- -se, assim, ter-se encontrado maior rigor e transparência em avaliações fundamentadas em dados, transformação que, segundo Standish, já teria ocorrido nos sistemas de avaliação no Reino Unido. E o pior de tudo, ressalta ele, é que os próprios estudantes passam a acreditar que a tarefa da educação seria o alcance de metas no interior desse sistema mecanizado. Standish lembra que crianças com oito anos de idade já se preocupam agora em saber se cumpriram os critérios para uma lição dada ou se satisfizeram seus “objetivos de aprendizagem”, atitudes inimagináveis nas gerações anteriores.
Enfim, a palavra de ordem nesta nova cultura educacional passa a ser transparência: deve-se prestar contas e, para isso, criam-se técnicas especiais aplicadas ao mundo da escola, o que tem como resultado a negação de suas práticas anteriores e impede a possibilidade de se avançar em questões que envolvem prioritariamente confiança e competências profissionais. No mundo globalizado, há uma tendência ao planejamento central orientado por indicadores de desempenho, a partir dos quais se prevê punições e recompensas, alimentando-se a desconfiança mútua e instaurando-se, assim, uma cultura da suspeita. Isso não significa de modo algum que Standish seja contrário à aplicação de exames padronizados, como esclarece ao longo da entrevista concedida. São alguns de seus aspectos por ele criticados que levam a essa espécie de cultura em que tudo é quantificado e automatizado. Tais trail-effects deixam de lado temas fundamentais, abordados durante a entrevista, como a importância de ter diferentes estilos de ensino, de resgatar a nossa tradição filosófica de mais de 2.000 anos para olhar de outro modo os problemas educacionais contemporâneos e, com o auxílio de filósofos como Wittgenstein e Heidegger, entre outros, percebermos que os grandes problemas da educação são essencialmente problemas filosóficos.
Referências
AZANHA, José Mário Pires. A pedagogia das competências e o ENEM. In: AZANHA, José Mário Pires. A formação do professor e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006a.
AZANHA, José Mário Pires. Avaliação escolar: algumas questões conceituais. In: AZANHA, José Mário Pires. A formação do professor e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006b.
GOTTSCHALK, Cristiane Maria Cornelia. A natureza dos fundamentos do conhecimento em Wittgenstein – e suas implicações em processos de avaliação escolar. In: SILVA, João Carlos Pires da (Org). Certeza. Salvador: Quarteto, 2012. p. 71-84.
STANDISH, Paul. Beyond the self: Wittgenstein, Heidegger and the limits of language. Tokyo: Hosei University Press, 2012.
STANDISH, Paul. Concepciones rivales de la filosofía de la educación. Encounters on Education, v. 8, p. 17-27, Fall 2007.
STANDISH, Paul. “THIS is produced by a brain-process!”: Wittgenstein, transparency and psychology today. Journal of Philosophy of Education, v. 46, n. 1, p. 60-72, Feb 2012.
WITTGENSTEIN. Ludwig. Philosophical investigations/philosophishe untersuchungen. Translated by Gertrude Elisabeth Margaret Anscombe. Oxford: Blackwell, 1997.
WITTGENSTEIN. Ludwig. Remarks on the philosophy of psychology. In: ANSCOMBE, Gertrude Elisabeth Margaret; WRIGHT, Georg Henrik von (Org.). Bemerkungen über die philosophie der psychologie. Oxford: Basil Blackwell, 1998.
Notas