Entrevista
Sociologia da educação, reprodução das desigualdades e novas formas de dominação
Sociology of education, reproduction of inequalities and new forms of domination
Sociologia da educação, reprodução das desigualdades e novas formas de dominação
Educação e Pesquisa, vol. 42, núm. 3, pp. 821-834, 2016
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Resumo: Jean-Pierre Faguer tem se dedicado à análise dos processos de reprodução e reprodução das desigualdades sociais e já foi professor convidado no Brasil em diferentes ocasiões. Nesta entrevista, o autor, que foi colaborador de Pierre Bourdieu no Centre de Sociologie Européenne, discute sua trajetória como pesquisador, o processo de constituição de seus objetos de pesquisa e alguns resultados de suas investigações, bem como apresenta suas reflexões sobre como a sociologia da educação contribui para o adensamento dos estudos da sociologia do trabalho e da sociologia econômica.
Palavras chave: Desigualdades, Escola, Habitus, Reprodução social, Trabalho.
Abstract: Jean-Pierre Faguer has dedicated himself to the analysis of reproduction processes and of reproduction of social inequalities and has been a guest professor in Brazil on several occasions. In this interview, the author, who was Pierre Bourdieu’s collaborator at Centre de Sociologie Européenne, discusses his career as a researcher, the process of defining his research objects and some results of his investigations. The author also presents reflections on how sociology of education contributes to the consolidation of the studies of labor sociology and economic sociology.
Keywords: Inequalities, School, Habitus, Social reproduction, Work.
Apresentação

Jean Pierre Faguer é membro do Centre Européen de Sociologie et de Science Politique da Université Paris-Panthéon-Sorbonne e da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Foi professor convidado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) em 2012, quando ofereceu, em parceria com a Profa. Kimi Tomizaki, a disciplina “Por uma sociologia das rupturas biográficas: intelectuais e militantes de origem popular no campo econômico e intelectual”, no quadro do programa de pós-graduação em educação da FEUSP, além de ter participado como conferencista convidado na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) do mesmo ano. Vale destacar que, antes disso, o autor em questão já havia sido convidado e havia participado de atividades de pesquisa em ensino em diversas universidades brasileiras, tais como o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Nascido em 1943, em Paris, Jean-Pierre Faguer tem se dedicado às pesquisas empíricas e reflexões teóricas que colocam em relação as contribuições advindas da sociologia da educação, sociologia do trabalho e sociologia econômica. Graduado em filosofia pela Sorbonne, onde foi orientado por Raymond Aron, Jean-Pierre Faguer se converteu ao campo da sociologia muito cedo, tendo defendido sua tese de Habilitation à diriger des recherches, sob a orientação de Jean-Claude Combessie, quando já trabalhava com Pierre Bourdieu, Christian Baudelot, Alain Chenu e Emmanuèle Raynaud. Como pesquisador no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), no Centre d’Etudes de l’Emploi (CEE) e no Centre de Sociologie Européenne/École des Hautes Études en Sciences Sociales (CSE/EHESS), desenvolveu diferentes projetos de pesquisa, que redundaram na publicação de vários artigos na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales e outros periódicos de destaque, inclusive no Brasil. Além disso, é autor do livro Khâgneux pour la vie: une histoire des années soixante e coautor de A miséria do mundo, obra coletiva dirigida por Pierre Bourdieu, e desenvolveu atividades de ensino e pesquisa tanto na EHESS quanto na Université Paris 5.
De acordo com o depoimento do autor, ele pertence a uma geração que se formou em um momento em que o ofício de sociólogo não estava ainda profissionalizado: a sociologia dos anos 1960 é marcada pela reconversão de aprendizes de filósofos em direção às ciências sociais, graças à Khâgne (classe preparatória para o ingresso na École Normale Supérieur). Ele conheceu Pierre Bourdieu muito jovem, quando ainda tinha incertezas em relação à sua vocação de sociólogo como profissão, e entrou para o Centre de Sociologie Européenne (CSE) com 23 anos, em setembro de 1966, depois de ter sido beneficiado com uma bolsa de estudos na Unversidade de Tübingen (Alemanha) sob orientação do filósofo Ernst Bloch,1 período durante o qual concluiu seus estudos superiores sobre o jovem Lukács.
Assim, entre os trabalhos de campo realizados no CEE, pesquisas que contavam com financiamento estatal abundante e tempo adequado para sua realização, e os trabalhos reflexivos desenvolvidos no CSE e na EHESS, Faguer desenvolveu estudos que poderiam ser classificados em três grandes eixos.
O primeiro deles é o da sociologia da educação, em que Faguer fez pesquisa sobre jovens desempregados sem qualificação em Paris, depois um estudo longitudinal realizado entre 1971 e 1976 sobre uma geração de estudantes de liceus e de ensino técnico que entraram na vida ativa entre 16 e 20 anos, mais precisamente uma pesquisa sobre 6 mil antigos alunos de todos os estabelecimentos escolares (públicos e privados) de quatro departamentos da França (Loir-Atlantique, Ardennes, Hérault e Isère), notadamente na cidade de Grenoble, para conhecer sua situação escolar e profissional quando tinham 16 anos (1972), 18 anos (1974) e 20 anos (1978). O segundo eixo é o da sociologia do trabalho e sociologia econômica, em que o entrevistado fez pesquisas que tinham como objetivo central a análise de biografias para compreender as conexões entre escola, trajetória profissional e vida privada. Em suma, nesse eixo, o pesquisador assumiu como objeto de pesquisa a “entrada na vida ativa” em diálogo com os processos de mobilidade social entre os anos 1968 e 2000, com destaque para três sub-objetos: a precariedade, os trabalhadores de nível técnico e os operários de uma grande empresa (Merlin Gerin) e de uma multinacional da área de informática (Hewlett Packard). E, finalmente, um terceiro eixo, que se desdobra e dialoga diretamente com as pesquisas anteriormente citadas, o da sociologia das formas de reconversão ligadas ao surgimento de novas tecnologias no interior do setor de informática. De acordo com o autor, todos esses trabalhos são essencialmente pesquisas de longa duração realizadas em equipe: inicialmente com Gabrielle Balazs, em Paris, depois em Grenoble, ainda com Gabrielle e também com Michel Gollac e François Bonvin.
De acordo com Jean-Pierre Faguer, a partir do fim da década de 1960, alguns elementos foram fundamentais na concepção, organização e consolidação de suas pesquisas e reflexões em torno dos processos de reprodução social: a aprendizagem do trabalho de sociólogo ao lado de Pierre Bourdieu; o trabalho com a equipe do CSE; os cursos de Bourdieu na EHESS sobre reprodução social, estratégias matrimoniais, grandes escolas e classes preparatórias, para citar alguns temas.
A proposta desta entrevista com Jean-Pierre Faguer é discutir, por meio da construção dos seus objetos de pesquisa e resultados de investigações, como os principais conceitos cunhados por Pierre Bourdieu, de quem foi colaborador, constituem menos que respostas ou soluções teóricas, mas sobretudo modos de se interrogar os fenômenos sociais, “modos de se construir questões”, como Faguer diria, especialmente no que diz respeito aos processos de dominação e reprodução das desigualdades sociais.
No centro desta entrevista, que é a síntese de uma longa discussão, que data de mais de uma década, mas foi organizada nos últimos meses, por ocasião do meu pós-doutoramento em Paris, encontram-se os processos de formação do habitus, que, para Faguer, é o “produto da origem social” (habitus primário), que se expressa em gestos, gostos, categorias de percepção e avaliação do mundo, que é retrabalhada pela escola (habitus secundário), pelo trabalho e por outras experiências ou instâncias educativas, no sentido largo dessa expressão. Diante das recorrentes críticas ao caráter excessivamente determinista da noção de habitus, vale sublinhar que as pesquisas de Faguer contribuem muito para pensar esse conceito em sua potencialidade analítica, visto que nelas o autor concebe um modo de operacionalizar a interrogação sobre como se constituem determinadas posições sociais, no qual as noções de habitus e de campo estão sempre ligadas à ideia de ruptura biográfica e reconversão. Além disso, suas reflexões dão ênfase à expansão do sistema de ensino escolar francês, aos desafios da inserção no mercado de trabalho e ao desenvolvimento de novas e cada vez mais sutis formas de dominação. Nesse sentido, em um contexto social, econômico e político marcado por alterações profundas que, por sua vez, exigem múltiplas adaptações por parte dos indivíduos, o habitus pode ser pensado também como um processo de invenção e reinvenção, um princípio gerador de ideias, ações e sentimentos que são novos e, ao mesmo tempo, coerentes em relação aos efeitos dos processos educativos como um todo.
Nesse sentido, nessa entrevista, Faguer discute os efeitos inesperados de um aparelho de reprodução social que rejeita, do mundo do trabalho, não somente indivíduos marginalizados, mas frações inteiras de classes sociais que conseguiram alongar suas trajetórias escolares, por vezes até o ensino superior. Para tais grupos, como desempregados ou trabalhadores precários, não há um lugar e nem tampouco há futuro. E, diante dessa constatação, o autor lança a desafiadora questão de caráter político: como uma sociedade que sacrifica uma parte dela mesma para se reproduzir pode sobreviver e em quais condições ou contradições? E, mais especificamente, como pensar o conjunto das formas de dominação às quais estão sujeitados os trabalhadores precários não qualificados (ou considerados como tal) e os intelectuais precários?
Assim como outros sociólogos próximos de Bourdieu, Faguer esteve sensível às transformações no modo de reprodução social que deslocam as disputas em torno das desigualdades sociais do mundo da escola em direção ao mundo do trabalho: as pesquisas desse autor demonstram que a seleção social se tornou progressivamente mais severa no momento de entrada na vida ativa e depois vai se estender ao longo de toda a vida profissional. Desse ponto de vista, a sociologia da educação torna-se um instrumento essencial para compreender a função social das novas formas de dominação que se apoiam sobre um “habitus econômico” produzido pela escola, como, por exemplo, o estabelecimento de procedimentos de avaliação de determinadas competências relacionados a critérios escolares.
Referências
BALAZS, Gabrielle; FAGUER, Jean-Pierre. A l’école de l’entreprise, bac d’entreprise et transformation de l’esprit maison. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 69, p. 86-92, 1987.
BALAZS, Gabrielle; FAGUER, Jean-Pierre. Jeunes sans avenir et petit patronat en déclin, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 26-27, p. 49-55, 1979.
BALAZS, Gabrielle; FAGUER, Jean-Pierre. L’évaluation, une nouvelle forme de management, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 114, p. 68-78, 1996. Versão na língua portuguesa: “Uma nova forma de gerenciamento: a avaliação, Veritas, Porto-Alegre, p. 411-426, jun. 1997.
BLOCH, Ernst. Le principe espérance: première, deuxième et troisième parties. t. 1. Trad. de l’allemand par Françoise Wuilmart. Paris: Gallimard, 1976. Título original: Das Prinzip Hoffnung, 1923. (Bibliothèque de philosophie).
BLOCH, Ernst. L’esprit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977. (Bibliothèque de philosophie) Edição de 1923, revista e modificada.
BLOCH, Ernst. Thomas Munzer, théologien de la revolution. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2012. Correspondente à edição alemã: Suhrkamp Verlag de 1964. A obra data de 1921.
FAGUER, Jean-Pierre. Khâgneux pour la vie, une histoire des années soixante. Dossiers du Centre d’Études de l’Emploi, n. 5. La Documentation Française, Paris, 1995.
FAGUER, Jean-Pierre. Os khâgneux de 68, objetos e leitores de Os herdeiros. Educação & Sociedade, Campinas, n. 130, p. 35-45, jan./mar, 2015.
FAGUER, Jean-Pierre. Epouse et collaboratrice. In: BOURDIEU, Pierre (Org.). La misère du monde. Paris, Seuil, 1993. p. 809-822. Versão portuguesa: “FAGUER, Jean-Pierre. Esposa e colaboradora In: BOURDIEU, Pierre (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, 1997.
Notas