Resumo: A entrevista aborda as relações atuais entre medicina, pedagogia, psicologia em torno do trabalho com crianças que apresentam problemas graves de desenvolvimento, que tendem a ser classificadas como TEA (transtornos do espectro autista), bem como apresenta um balanço da experiência do professor Pierre Delion na universidade e no serviço público francês. Em nosso mundo atual, num momento em que uma tensão significativa se estabeleceu em torno da questão da conceituação e do trabalho com o autismo, em seguida a decisões governamentais polêmicas, ocorridas em vários países, notadamente Brasil e França, procuramos interrogar o professor Delion acerca de sua experiência como médico, acostumado há décadas com o trabalho conjunto com educadores, psicólogos e cuidadores em geral dessas crianças. Se, de um lado, podemos notar em nosso contexto atual uma tendência do meio pedagógico em direção à lógica medico-psicológica, que se pretende dominante no caso específico do trabalho com as crianças autistas, por outro, torna-se curioso acompanhar as reflexões de um médico fazendo o caminho inverso e sublinhando a importância de não se perder de vista o caráter educativo na abordagem com essas crianças. O objetivo principal dessa entrevista é colocar em relevo os elementos fundamentais para compreender o autismo e o trabalho com ele, partindo de uma experiência consolidada por meio de pesquisas e de trabalho diário em instituição, sem sucumbir a polêmicas ideológicas que disputam campos a partir de posições previamente estabelecidas.
Palavras chave: AutismoAutismo,EducaçãoEducação,EnsinoEnsino,TratamentoTratamento,PsicanálisePsicanálise.
Abstract: The interview discusses the current relations between medicine, pedagogy, and psychology concerning the work with children who have pervasive developmental disorders and tend to be classified as ASD (autism spectrum disorders), and also gives an overview of the experience of Professor Pierre Delion at university and in public service in France. In today’s world, in such a specific moment when a significant tension settled around the matter of the conceptualization and the work with autism, after controversial government decisions that occurred in several countries, notably Brazil and France, it is aimed to interrogate Professor Delion about his experience as a doctor, for decades accustomed to working together with educators, psychologists and general caregivers of these children. If on the one hand, it is possible to notice in our present context a trend of pedagogical means to tilt towards the medico-psychological logic that is to be dominant in the specific case of dealing with autistic children, on the other it is curious to follow the thoughts of a doctor doing the opposite approach and stressing the importance of not losing sight of the educational character in dealing with these children. The main objective of this interview is to stand out the key elements to understand autism and the work with it, from a consolidated experience through research and daily work in an institution, without succumbing to ideological controversies that dispute fields from positions previously established.
Keywords: Autism, Education, Teaching, Treatment, Psychoanalysis.
Entrevista
Tratar e educar o autismo: cenário político atual – entrevista com Pierre Delion
Treat and educate autism: a current political scene - interview with Pierre Delion

O percurso intelectual e profissional de Pierre Delion demonstra de forma exemplar a atitude ética recomendável em toda produção científica, composta, basicamente, de duas premissas fundamentais. A primeira é a de preservar a complexidade dos problemas estudados, evitando o caminho, tão em voga nos dias de hoje, das compreensões simplificadoras e reducionistas, que visam fins essencialmente pragmáticos. A segunda é a de não admitir conclusões que deturpem e/ou ultrapassem os limites do que a pesquisa revela.
A visita do professor Delion à Universidade de São Paulo, ocasião em que concedeu esta entrevista, se deu no contexto de um colóquio organizado pelo laboratório de estudos e pesquisas psicanalíticas e educacionais sobre a infância (Lepsi), em parceria com a pré-escola terapêutica Lugar de Vida, no mês de outubro de 2015. Tal colóquio foi organizado no escopo de uma pesquisa financiada pela Fapesp1 em torno da questão do tratamento e educação de autistas, e ocorreu numa época ainda tomada pelos efeitos de uma deliberação do poder público paulista (em sintonia com decisões idênticas em outros lugares do mundo) que restringia o trabalho institucional com crianças autistas a uma determinada perspectiva teórica, entendida como a única com bases científicas (cf. “A batalha do autismo da clínica à política”, 2014).
Segundo essa deliberação, só as instituições que provassem trabalhar com o método cognitivo comportamental poderiam receber apoio financeiro do Estado. O trabalho de vários profissionais da psicologia com outras orientações teóricas, da educação e de outros campos afins, com larga experiência de atendimento e de pesquisa com crianças autistas, centenas de teses, artigos, livros sobre o tema, linhas de pesquisa estruturadas nas universidades brasileiras e outras em universidades no mundo inteiro se viram, da noite para o dia, excluídos automaticamente do trabalho com crianças autistas, rotulados como não científicos, simplesmente por não aderirem a essa metodologia de trabalho.
O primeiro espanto causado por tal decisão do poder público veio do fato de que ela se deu sem exposição prévia à comunidade do teor da medida, impedindo qualquer possibilidade de debate.
A reação imediata a essa medida, construída por uma série de setores representativos da sociedade, sobretudo científicos e profissionais, que avaliaram nela um equívoco tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto à forma, centrou-se fundamentalmente sobre o argumento de que o debate científico sobre o autismo está longe de estar esgotado e que uma série de questões permanecem em aberto, desde aquelas sobre a própria pertinência do diagnóstico de transtornos do espectro autista até outras sobre sua etiologia, modalidades de trabalho etc.
Se há ainda em curso perspectivas de trabalho de diferentes matizes teóricos, respaldadas em pesquisa científica séria e que continuam a acontecer, com resultados significativos, qual poderia ser o suporte para afirmar que só uma delas possuiria resultados cientificamente comprovados?
Além disso, em princípio, como poderia o Estado, sem a competência específica para opinar e decidir sobre o que é verdadeiro ou não em ciência, decidir sobre o debate científico? Não correríamos o risco aqui de ver restabelecida a ideia de ciência oficial, tal como já se viu em situações históricas como o nazismo, por exemplo, cujos efeitos negativos já foram avaliados?
Nesse contexto, que mais uma vez recoloca o velho problema da ciência e da ideologia, o debate sobre o autismo, seu diagnóstico, tratamento e educação, tornou-se uma pedra fundamental. Que seja o autista a desempenhar o papel principal na querela entre os profissionais da medicina e da psicologia, assim como a histeria o fez na época de Freud, não é fato aleatório. Enquanto na Europa freudiana a histeria era o emblema do caráter trágico de uma sociedade que começava a dar sinais de sua falência, o autista parece representar, na sociedade de hoje, o emblema do homem com comportamento, mas sem sujeito, tão caracterizados pela figura do robô (cf. Voltolini, 2014).
Toda a obra do professor Delion, em particular seu livro L’enfant autiste, le bebe et la Sémiotique (2000), serve de base para uma discussão crítica dessa medida governamental enquanto ela restringe a uma possibilidade de trabalho, o que a criança poderia ganhar tendo à sua disposição várias possibilidades. A posição do autor é a de que o próprio termo espectro autista indica pluralidade e de que, embora alguns traços gerais possam sempre ser encontrados na criança autista, seus desenvolvimentos, suas capacidades, responsividades variam enormemente, podendo também variar, com proveito para a criança, as possibilidades de tratamento. Assim, ele faz a singularidade da criança retornar ao primeiro plano, por trás da generalização que todo diagnóstico médico implica.
Na mesma perspectiva de retomar a complexidade da discussão do quadro autista, Delion publicará Seminaire sur l’autisme et la psychose infantile (2009), no qual traçará distinções importantes entre os quadros de psicose e autismo. Reconsiderará também a importância fundamental da observação direta dos bebês para se compreender o autismo em seus livros L’Observation directe du bébé selon Esther Bick: son intérêt dans la pédopsychiatrie aujourd’hui (2004) e La Consultation avec l’enfant: approche psychopathologique du bébé à l’adolescent (2010).
Na mesma linha de retomar a complexidade da questão do tratamento e de defender a pluralidade das propostas de trabalho e a colaboração entre eles, Delion abordará, em seu livro La fonction parentale (2007), o papel que os pais dessas crianças desempenham frente ao quadro.
Sabemos que grupos organizados de pais de crianças autistas tiveram um papel também importante e decisivo, desde sua influência política, na decisão tomada pelo Estado nessa medida. Preocupados em buscar o melhor para seus filhos, tomaram parte do debate, fator a ser considerado positivamente, uma vez que impede que a discussão fique restrita a especialistas, mas que deve, segundo o Delion, ser considerado com relatividade. A razão para essa posição é bastante clara: a experiência dos pais, em geral, é com seu próprio filho, o que dificulta, seja pela parcialidade inevitável nesse caso, seja pela singularidade que essa criança representa, toda e qualquer tomada de posição geral.
Longe do preconceito dos tempos iniciais da investigação psiquiátrica (KANNER, 1943) e psicanalítica (BETTELHEIM, 1987), no qual as mães das crianças autistas foram responsabilizadas como parte da causa do quadro de seus filhos, Delion trabalha a ideia de função parental como elemento estrutural da constituição do sujeito. Nessa perspectiva, a relação entre pais e filhos é pensada com muito mais complexidade e interdependência, sem desembocar em linearidades causais simplistas, pouco afeitas ao estudo da mente humana.
Nos tempos em que os avanços indiscutíveis e bem-vindos da ciência médica em torno do autismo acabaram sucumbindo a um cientificismo que reduz, simplifica, em nome de achados científicos2, o trabalho com a criança autista, torna-se ainda mais pertinente acompanhar as formulações de um médico cujo trabalho e pesquisa é representativo de um número, ao que parece, cada vez menor de profissionais preocupados em manter a ciência nos limites do que sua pesquisa pode concluir, não cedendo a simplificações e reducionismos pragmáticos.
Médico que, em suas formulações, demonstra a importância crucial para o desenvolvimento da criança autista do trabalho institucional, da função da educação e do ensino, reeditando a importância da ideia de constituição do sujeito, que dinamiza a noção rígida e causalista de síndrome ou espectro, relativizando a própria noção de doença. E isso, quando a maior parte dos médicos parece se dirigir para a prática de reabilitação de funções comprometidas supostamente de maneira automática pela doença. Boa ocasião para lembrar uma lição que parece esquecida, a de que a noção de doença não deve desconhecer o que ela comporta de fatores históricos em sua definição e que de maneira alguma pode ser reduzida a uma entidade em si mesma que supostamente refletiria diretamente um estado lesado do corpo.
Nesse sentido, Delion não restringiu sua pesquisa apenas às crianças autistas. Com efeito, há uma série de diagnósticos dados à crianças, bastante conhecidos no universo escolar, e que seguem o mesmo vício de origem que ele aponta a propósito do autismo.
Em seu livro L’Enfant hyperactive, son développement et la prédiction de la délinquance (2006), o autor trabalha, na mesma perspectiva, os diagnósticos de hiperatividade e de delinquência. Em outro livro, L’enfant difficile (2014) trabalhará essa fórmula também tão conhecida do universo escolar: a criança difícil.
A larga experiência de atendimento, como médico psiquiatra infantil, e de gestão, como chefe de serviço de atendimento público em hospital, lidando com crianças com graves problemas de desenvolvimento, colocou Delion em contato com um fluxo massivo de situações que exigiam respostas rápidas e consistentes, situações para as quais nem sempre havia instrumentos teóricos e técnicos, o que implicava criar, inventar e pesquisar. Mas o colocou também em contato com o entrecruzamento de várias perspectivas de compreensão, profissionais ou não, num trabalho comum com a criança atendida (família, escola, os vários profissionais técnicos envolvidos etc.), o que exige o equacionamento de uma perspectiva comum.
O modo como Delion resgata, tanto em seu ofício como em sua pesquisa, o trabalho em rede, envolvendo os vários agentes comprometidos em aliar os instrumentos técnicos desenvolvidos pela perspectiva científica aos aspectos relacionais, demonstra bem a diferença entre uma concepção multiprofissional, na qual vários profissionais portam suas contribuições desde suas especialidades (a especialidade precede o problema), e outra mais transprofissional, na qual todos os envolvidos são convocados a pensar a partir de um problema comum (o problema precede a especialidade).
Sua teorização em torno do conceito de constelação transferencial (DELION, 2005), elaborado a partir de conceitos psicanalíticos, mostra que o trabalho em rede não se justifica apenas pelas várias necessidades (fator quantitativo) que a criança autista teria em decorrência de seus vários comprometimentos, mas, sobretudo, pelo fato de que para elas, em função de sua questão central com a simbolização, o apoio de uma constelação de pessoas resulta mais proveitoso à sua constituição (fator qualitativo). A palavra constelação, escolhida para metaforizar esse instrumento de trabalho, é propícia para mostrar a interdependência intrínseca dos envolvidos na lida com a criança, assim como ocorre no movimento dos astros, tal como o demonstra a teoria da gravitação dos corpos.
Buscando recursos na semiótica (DELION, 2005) pôde colocar em primeiro plano a ideia de que a doença não deve ser compreendida como um em-si, mas que, ao contrário, sua definição bem como os efeitos dela sobre o sujeito diagnosticado dependem de como os vários envolvidos leem o problema e que essa leitura não é externa à doença. Nessa concepção, a doença não é só um problema médico, tampouco a abordagem dela deveria ser exclusivamente medicamentosa e/ou terapêutica.
Será por essa brecha teórica que sua concepção de trabalho se aproximará com interesse da educação e da instituição escolar, não apenas para tomá-las como instituições complementares ao tratamento, hierarquizando medicina e educação, mas, ao contrário, para tentar estabelecer os justos lugares de cada uma delas.
É nesse ponto também que a proposta de Delion encontra-se com a proposta de trabalho da educação terapêutica (KUPFER; PINTO, 2010), praticada pelo Lugar de Vida e por pesquisadores do Lepsi, na qual o tratamento e a educação também estão conjugados. Essa aproximação conceitual entre o grupo brasileiro e o trabalho de Delion motivou o convite a ele dirigido e movimentou intensamente, por ocasião de sua passagem pelo Brasil, os trabalhos teórico-clínicos do Lugar de Vida e do Lepsi.
Enfim, aproximando-nos da relevância que essa proposta de trabalho tem para a educação e para a instituição escolar, encontramos sua fórmula: educar sempre, ensinar se possível, tratar se necessário.
Nessa fórmula, pode-se verificar não só um lugar de destaque, até mesmo de primazia, dado à intervenção educativa e escolar para a criança autista, mas também uma maneira de pensar a articulação entre essas várias funções e suas respectivas instituições.
Em sua entrevista, construída essencialmente na ocasião de sua visita à USP, mas aprofundada por conversações posteriores, mensagens etc. vemos desdobrar-se uma reflexão que entende a educação como tendo um papel fundamental na constituição do sujeito, da qual se espera muito enquanto efeito que auxilia o desenvolvimento da criança autista. A escola não aparece, como habitualmente se pensa nesses casos, apenas como uma instituição de socialização – conceito, aliás, frequentemente reduzido a simples circulação em ambiente social –, mas com um papel central na função da aprendizagem e com efeitos disso sobre o quadro geral da criança.
Invertendo a tendência bastante difundida nas instituições escolares atuais, nas quais os professores esperam da intervenção direta do médico, em geral diagnóstica e medicamentosa, o estabelecimento das condições de trabalho com a criança autista, vemos desdobrar-se na perspectiva de Delion um ponto de vista no qual a coordenação do tratamento dessas crianças espera muito do que o trabalho escolar tem a oferecer a elas. No centro do trabalho não estaria uma suposta ignorância a ser resolvida pelo saber médico, mas, ao contrário, um enigma e uma aposta a ser potencializada pela rede de trabalho.
A entrevista com Delion aborda, em primeiro lugar, elementos de sua formação como médico psiquiatra infantil, passando aos poucos a considerar conceitos, impasses, experiências, debates e propostas de trabalho que toda sua experiência consubstanciou.
Talvez, à primeira vista, possa soar estranho a presença de uma entrevista com um médico, psiquiatra infantil, no contexto de discussões sobre a educação. Não seria isso um deslocamento impróprio, e já muitas vezes criticado, de discussões clínicas para a educação? Parafraseando o adágio romano, por que não deixar simplesmente à educação o que é da educação e à medicina o que é da medicina?
Mas tal estranhamento se desfaz rapidamente quando percorremos suas respostas e elaborações, que se encontram sim muito próximas das preocupações de todo educador que trabalha com o cenário da educação inclusiva.
