Resumo: O texto apresenta entrevista com Alain Coulon, pesquisador francês responsável pelo desenvolvimento dos estudos em etnometodologia aplicados à educação na sociologia francesa. O caráter inovador de sua linha de investigação, inspirada nas formulações de Garfinkel e Cicourel, permitiu um conjunto de pesquisas sobre os estudantes universitários em momento de transformação do ensino superior francês. A partir dos anos 1980, a universidade francesa sofreu processo intenso de abertura de oportunidades de acesso, reunindo um público amplo e heterogêneo de estudantes que demandava novas abordagens para a compreensão de sua experiência acadêmica. Esse universo de investigação eleito por Alain Coulon constituiu o material empírico que permitiu ao autor a produção não só de novas metodologias de pesquisa como a formulação de novas categorias de análise, elucidativas dessas novas realidades. Dentre elas destaca-se a ideia de afiliação. Sua influência teórica disseminou-se por vários países, mediante tradução de seus principais trabalhos para o alemão, inglês, japonês, dentre outros idiomas. No Brasil, seu diálogo com pesquisadores ofereceu apoio à criação de observatórios da vida estudantil em diferentes universidades, bem como ações sistematizadas de afiliação e sucesso acadêmico, revelando-se um caminho promissor para a pesquisa. Diante da expansão recente do ensino superior brasileiro, sobretudo a partir das políticas afirmativas, os desafios para a pesquisa são significativos e podem ser enfrentados de maneira mais densa se forem fortalecidos os diálogos com pesquisadores que se voltaram para a compreensão dessas novas realidades, tendo em vista a superação das desigualdades estruturais e persistentes que configuram historicamente a universidade.
Palavras chave: EtnometodologiaEtnometodologia,Estudantes universitáriosEstudantes universitários,AfiliaçãoAfiliação,Sociologia francesaSociologia francesa.
Abstract: The paper results from an interview with Alain Coulon, French researcher responsible for the development of the studies in ethnomethodology applied to education within French Sociology. The innovative character of his line of investigation, inspired by the ideas of Garfinkel and Cicourel, has fostered a host of studies about university students, in a time of transformations in the French higher education system. Since the 1980s French universities have gone through intense expansion of opportunities in their access, and have received a wide and heterogeneous population of students, which in turn have demanded new approaches to understand their academic experience. The field of investigation chosen by Alain Coulon was the empirical material that allowed him not only to put forward new research methodologies, but also to formulate new categories of analysis in the effort to clarify these new phenomena. Among them, the concept of affiliation has taken special relevance. His theoretical influence has reached several countries after his main works were translated into many languages including German, English, and Japanese. In Brazil, his dialogue with local researchers gave support to the creation of Observatories of student life in several universities, as well as to systematized initiatives of affiliation and academic success, which turned out to be a promising direction for future studies. The recent growth experienced by the Brazilian higher education system has given rise to significant research challenges, and these will be dealt with more forcefully through the dialogue with researchers that are attempting to understand this new reality, with the purpose of overcoming the persistent and structural inequalities that have historically shaped Brazilian university.
Keywords: Ethnomethodology, University students, Affiliation, French Sociology.
Entrevista
Por uma sociologia dos etnométodos para compreender o mundo da educação: contribuições de Alain Coulon
For a sociology of ethnomethods to understand the world of education: Alain Coulon’s contributions

Herdeiro da rica tradição sociológica francesa que se iniciou nos anos 1960, Alain Coulon tem seu nome fortemente associado entre nós à etnometodologia, tendo sempre se dedicado ao tema da universidade e seu público. A associação maior que dele se faz com a etnometodologia se deve, principalmente, à tradução e publicação no Brasil, em meados da década de 1990, de três livros nos quais Coulon trata de questões teóricas e metodológicas da pesquisa sociológica na educação. Num deles, ele examina as origens, os métodos e a herança deixada pela Escola de Chicago (COULON, 1995a); nos outros dois aborda a etnometodologia e os impactos dessa teoria e das metodologias de pesquisa que defende no âmbito das ciências sociais (COULON, 1995c) e seu uso na educação (COULON, 1995b)1.
Alain Coulon foi professor de ciências da educação na Universidade de Paris 8, uma instituição inovadora em suas origens, onde trabalhou por trinta anos, assumindo diferentes responsabilidades acadêmicas, tais como diretor da Faculdade de Educação. Além de conhecedor das entrelinhas das salas de aula da universidade, ele acumulou, ao longo de sua dinâmica e produtiva carreira, uma importante experiência na gestão do ensino superior na França, atuando como diretor da Estratégia do Ensino Superior e da Inserção Profissional, o que lhe permitiu ampliar e aprofundar a compreensão sobre o fenômeno da transição entre o ensino médio e a universidade, bem como evidenciar a importância de uma pedagogia da afiliação voltada, sobretudo, para os novos universitários. Como consultor internacional, tem colocado sua experiência a serviço da implantação de programas voltados à estruturação das instituições de ensino superior em países do norte da África. Ao longo dos últimos vinte anos, tem estreitado sua parceria com a universidade brasileira mediante a realização de pesquisas, conferências, assessorias, que têm permitido uma aproximação estreita com a realidade do ensino superior no Brasil.
Sua formação se deu em meio à efervescência de ideias que marcaram o contexto acadêmico de seu país nos anos 1960, tendo sido aluno de Jean Duvignaud, Georges Lapassade, Roger Establet, Lacan, dentre outros mestres que ousadamente perscrutaram novos horizontes para a investigação nas ciências humanas. Por meio deles, Alain Coulon enveredou por temas e metodologias até então pouco conhecidos, ou de desinteresse por grande parte dos sociólogos daquele período. Tal é o caso da questão da universidade e seu público, tema que ele abraçou desde os primeiros anos de sua carreira, e da abordagem etnometodológica, que provocou intensos debates e grandes reviravoltas no campo das ciências sociais, em vários países (COULON, 1995c, p. 7).
Em sua trajetória Coulon mostra interesse precoce em estudar a temática da universidade e seu público, antes mesmo de sua descoberta da etnometodologia. Em sua primeira tese acadêmica, ele examinou a reforma do ensino superior na Argélia, e suas pesquisas subsequentes permitiram um grande acúmulo de dados estatísticos sobre o desempenho acadêmico dos estudantes. Diante das transformações operadas no acesso ao ensino superior na França, realidade presente na sociedade brasileira contemporânea, Alain Coulon observa a formação de um novo público estudantil, heterogêneo e distante do ethos prevalecente na cultura acadêmica. As maiores oportunidades de acesso produziram novos problemas e desafios, traduzidos nos elevados índices de fracasso e do abandono de cursos.
Os parâmetros dominantes no interior da sociologia tornaram-se insuficientes para aprofundar a análise sobre esse novo quadro do ensino superior. Nesse momento, em meados dos anos 1980, o pesquisador encontra-se com a etnometodologia, vendo nela uma forte inspiração para o desenvolvimento de novas pesquisas que culminam com sua tese de doutorado, defendida em 1990 (COULON, 1990). O acompanhamento dos ingressantes e a utilização de estratégias diversas de levantamento de dados permitiram construir novas categorias de análise que certamente dão conta de uma realidade dinâmica e processual que caracteriza o aprendizado do ofício de estudante: afiliação, membro e regra.
A afiliação é, para Coulon, uma categoria que poderá completar a noção de habitus desenvolvida por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 2000; 1980). Recorre, para tanto, às análises que marcaram a ruptura com a noção de membro, cunhada pelo funcionalismo parsoniano, e volta-se às formulações de Howard Becker (1985) e David Matza (1969) para situar sua perspectiva e o modo como ela opera no estudo sobre os estudantes universitários. A categoria regra está estreitamente ligada à afiliação uma vez que os processos que a possibilitam estão vinculados à capacidade dos atores de seguir as regras dos novos universos a que se integram.
Além das contribuições na produção de conhecimentos sobre os novos públicos estudantis, seus trabalhos posteriores reúnem importantes intervenções e propostas para a atividade acadêmica de estudantes universitários. A experiência do diário que opera no desenvolvimento da escrita e a análise documental certamente amplia as possibilidades de compreensão desse intenso trabalho que os novos estudantes do ensino superior podem desenvolver e reverter trajetórias condenadas ao fracasso ou à evasão.
Sua adesão à etnometodologia se deu tão logo Coulon entrou em contato com os trabalhos dos pioneiros dessa abordagem, em particular, os textos de Harold Garfinkel reunidos em Studies in Ethnometodology, publicado originalmente em 1967. Quando esses trabalhos começaram a chegar à França, nos anos 1980, Alain Coulon sentiu-se imediatamente atraído pela proposta teórica e metodológica que portavam, sobretudo, pela ideia de investigar a racionalidade que orienta os atores sociais em suas ações na vida cotidiana. Isso lhe abria caminhos para a compreensão das práticas empregadas no senso comum e os sentidos que os indivíduos atribuem a suas ações, sejam elas triviais ou eruditas. Ao tratar da reviravolta etnometodológica em seu livro Etnometodologia e Educação, ele esclarece que
Essa metodologia leiga – constituída pelo conjunto do que vamos designar por etnométodos – utilizada, de forma banal, mas engenhosa, pelos membros de uma sociedade ou grupo para viverem juntos, constitui o corpus da pesquisa etnometodológica. (COULON, 1995b, p. 15).
Para o sociólogo, um dos méritos dessa abordagem reside na possibilidade que oferece para se estabelecer uma relação entre os níveis micro e macro na análise sociológica, algo que não era compartilhado pela maioria dos sociólogos de tradição clássica. Tal perspectiva se fazia possível mediante a imersão do pesquisador na vida cotidiana dos atores sociais, conforme propunha Garfinkel (1984). Porém, abraçar essa perspectiva significava enfrentar a recusa ao novo e ao inusitado por parte de seus pares, similarmente ao que havia ocorrido com os antropólogos que, em décadas passadas, adotaram a etnografia como forma privilegiada para o estudo de grupos apartados das sociedades urbanizadas. Talvez, essa similaridade se deva, primeiramente, ao fato de as duas abordagens romperem com os padrões estabelecidos em suas disciplinas de origem – a sociologia num caso, e a antropologia no outro – além de guardarem entre si vários pontos comuns, que se explicitam pelo próprio radical ethnos de ambas. Tanto uma como outra se voltam ao estudo do outro, o ethnoi, por meio do contato direto e da interlocução com ele em sua vida cotidiana, para focalizar as práticas empregadas por esses atores sociais, na tentativa de desvendar os sentidos que atribuem a suas próprias ações.
A premissa central da etnometodologia repousa no pressuposto de que os agentes sociais são construtores dos processos de interação que se sucedem continuamente na vida cotidiana, e não meros reprodutores das regras que regem a normatividade social. Trata-se, assim, de uma ação reflexiva e interpretativa, tal como entendida por Garfinkel (1984). Essa compreensão foi fruto do amálgama que Garfinkel teceu com três referências fundamentais: as ideias de Parsons contidas em sua teoria da ação social, o interacionismo simbólico da Escola de Chicago e a fenomenologia de Schütz e Husserl. Para o sociólogo americano, o caráter ativo da ação social é o que permite aos agentes dar sentido a suas ações.
O contato com os etnométodos permitiram a Coulon imprimir novos direcionamentos a suas pesquisas sobre a universidade e seus públicos, conforme conta em sua entrevista:
Então comecei uma grande pesquisa junto aos estudantes que ingressavam no primeiro ano, mas não obtive resultados verdadeiramente interessantes. Eu mesmo comecei voluntariamente a assumir unidade de ensino oferecida no primeiro ano. Comecei a fazer entrevistas com os estudantes que fracassavam, mas eles não tinham nada de interessante para dizer sobre seus fracassos. Diziam frequentemente que não estavam muito motivados, ou então que não tinham escolhido bem a área de formação ou ainda não entendiam de que lhes serviriam os estudos universitários. Desse modo, constatei a impotência da sociologia clássica da educação para explicar e compreender os fenômenos massivos de fracasso e abandono dos estudantes, em especial dos novos estudantes particularmente vulneráveis e frágeis. (p. 10-11).
A entrevista registrada neste número de Educação e Pesquisa, somada ao artigo “Le métier d’étudiant: l’entrée dans la vie universitaire”, que exprime com lucidez teórica e competência sua trajetória no interior da sociologia francesa, oferece ao leitor um conjunto significativo de possibilidades que podem e devem ser exploradas para a formulação de novas perguntas para a pesquisa no interior da sociologia da educação e, mais especialmente, da sociologia do ensino superior.
Como afirma o autor, os problemas de adaptação aos estudos superiores são transnacionais e transgeracionais, afetam os países desenvolvidos e aqueles que, como o Brasil, iniciaram um processo de abertura de possibilidades de acesso que precisa ser intensificado ao lado de estudos e propostas que examinem os desafios da permanência.
