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Individualização e processos de construção identitária na contemporaneidade: a perspectiva de François de SinglyI
Individualization and processes of identity construction today: the perspective of François de Singly
Educação e Pesquisa, vol. 43, núm. 2, pp. 585-617, 2017
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Entrevista


DOI: 10.1590/S1517-97022017430200201

Resumo: O texto apresenta as reflexões de François de Singly, considerado hoje uma das figuras mais influentes da sociologia francesa, professor de sociologia da Faculté des Sciences Humaines et Sociales – Sorbonne da Université Paris Descartes (França) e também pesquisador do Cerlis (Centre de Recherche sur les Liens Sociaux), ligado ao CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). A solidez da argumentação de Singly, a criatividade e consistência de suas análises, a amplitude das referências bibliográficas em que se apoia, o rigor de seu trabalho empírico e, sobretudo, a atualidade dos problemas que enfrenta, representam uma criativa interlocução com todos aqueles interessados em compreender a particularidade dos processos de formação do indivíduo contemporâneo inserido num contexto híbrido de múltiplas referências identitárias. Sua busca por construir um referencial teórico e analítico capaz de integrar as dimensões micro e macrossociológicas é, sem dúvida, notável, já que pode significar um apoio efetivo para o debate contemporâneo de temas candentes nas ciências humanas e sociais.

Palavras chave: Processos de individualização, Construção identitária, Sociedade contemporânea, Vínculo social, Sociologia do indivíduo relacional.

Abstract: This paper presents reflections by François de Singly, considered today one of the most influential character in French sociology, professor of sociology at the Faculté des Sciences Humaines et Sociales – Sorbonne of the Université Paris Descartes (France) and also a researcher of Cerlis (Centre de Recherche sur les Liens Sociaux), associated with CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). The strength of Singly´s argumentation, the creativity and consistence of his analyses, the breadth of the bibliographical references that support his views, the rigor of his empirical work and, especially, the up-to-dateness of the problems he deals with represent a creative intercommunication with all those interested in understanding the particularity of the processes of formation of the contemporary individual within a hybrid context of multiple references for identity construction. His efforts to build a theoretical and analytical framework capable of integrating micro and macro dimensions are undoubtedly remarkable as it turns out to be an effective support for today´s debate about burning issues in the human and social sciences.

Keywords: Processes of individualization, Identity construction, Contemporary society, Social bonds, Sociology of the relational individual.

Apresentação




Fonte: arquivos pessoais do entrevistado.

O texto a seguir apresenta as reflexões do sociólogo francês François de Singly, elaboradas a partir de uma entrevista concedida a Teresa Cristina Rego e a José Geraldo Vinci de Moraes, ambos da Universidade de São Paulo, em Paris entre 2015 e 2016.

As transformações (nas esferas da família, no mundo do trabalho ou nos meios de comunicação) que caracterizam a atual sociedade, bem como os efeitos desiguais dessas mudanças, instigam a adoção de novas perspectivas para as análises teóricas e os estudos empíricos. Como avaliam Peralva e Spósito (1997, p. 3): “Experimentamos hoje uma aguda consciência do novo, e da obsolescência de uma parte pelo menos das categorias através das quais várias gerações de cientistas sociais e educadores pensaram o mundo”. A obra do François de Singly é marcada por essa consciência.

Considerado hoje uma das figuras mais influentes no âmbito da sociologia francesa, François Singly é professor de sociologia da Faculté des Sciences Humaines et Sociales – Sorbonne da Université Paris Descartes (França). É também pesquisador do Cerlis (Centre de Recherche sur les Liens Sociaux), ligado ao CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), importante instituição voltada à investigação pública francesa. As áreas de pesquisa e ensino de Singly, além da teoria sociológica em geral, se concentram na sociologia do indivíduo (processos de individualização, construção da identidade pessoal, sociedade dos indivíduos e laço social), na sociologia do adolescente, na sociologia da família e da vida privada (em relação com a segunda modernidade) e na sociologia do gênero (feminino/masculino, relação social de sexo). Ou seja, questões intimamente relacionadas com o mundo contemporâneo. Atualmente sua preocupação mais específica tem sido a de fazer uma inflexão analítica rumo a uma “sociologia do indivíduo relacional”, procurando exatamente ultrapassar as percepções mais tradicionais e arraigadas sobre o indivíduo. Por essa razão tem ampliado e diversificado seu campo de interesses tratando de temas conectados à produção de um mundo comum na esfera privada e de tipos de apego afetivo.

A Université Paris Descartes, à qual Singly está vinculado, é uma instituição pública de referência no contexto universitário francês e internacional, que exerce liderança acadêmica em muitos campos. Organizada em nove unidades, ela abrange áreas do conhecimento relativos às ciências humanas e à saúde. A Faculté des Sciences Humaines e Sociales – Sorbonne, por sua vez, é composta por três departamentos: Departamento de Ciências da Educação, Departamento de Ciências da Linguagem e Departamento de Ciências Sociais. Apresenta uma ampla oferta de cursos de graduação e pós-graduação com reconhecido prestígio. Além de ser reconhecida pela alta qualidade de sua formação e da excelência de seu corpo docente, sua projeção na Europa e em todo o mundo decorre dos inúmeros programas de pesquisa e do intercâmbio com universidades de diversos países.

Singly está vinculado ao Cerlis, um dos laboratórios sediados no departamento de Ciências Sociais. O centro realiza pesquisas e discussões de aspectos teóricos e empíricos em torno da questão do vínculo social. O centro é considerado um dos principais polos universitários de investigação na França, tanto pelo número de linhas de pesquisa, como pela excelente qualidade alcançada nesse campo. Está organizado em três linhas de investigação: 1) laço social e categorização; 2) laço social e culturalização; e 3) laço social e individualização. Os estudos do professor François de Singly se concentram na terceira linha, que é coordenada por ele em colaboração com o sociólogo Danilo Martuccelli (2002, 2007). Juntos lideram pesquisas e estudos no campo daquilo que denominam “sociologia da individuação”, cujo objetivo central é traduzir fenômenos coletivos em experiências individuais e entender como diferentes processos de individuação produzem experiências individuais distintas (MARTUCCELLI; SINGLY, 2012). Martuccelli indica que seria necessário fazer da individuação e não do individualismo, e menos ainda do indivíduo (ou das figuras do sujeito), a chave destas interpretações. Para ele seria mais importante compreender como as diferentes sociedades, com seus distintos processos históricos, fabricam temporalmente seus indivíduos (MARTUCCELLI, 2010).

Nascido na França em 1948, Singly primeiramente graduou-se em psicologia e trabalhou no CNRS como psicólogo experimental. Renunciou dessa atividade em 1970, quando iniciou seu processo de formação na sociologia. Na pós-graduação, começou a se dedicar ao estudo da vida familiar e conjugal primeiramente sob a supervisão do sociólogo Jean-Claude Passeron (doutorou-se em sociologia em 1973, na Universidade de Paris VIII) e, em seguida, do demógrafo Alain Girard (concluiu seu segundo doutorado em 1984, em letras e ciencias humanas, na Universidade de Paris V). Suas investigações iniciais originaram uma série de publicações e, mais tarde, novas pesquisas. Antes de ser nomeado para a Université Paris Descartes, Singly lecionou na Universidade de Nantes (nesse período ele colaborou com Claude Thélot, então diretor regional do Institut National de la Statistique et des Études Économiques (Insee), realizando operações secundárias de pesquisas quantitativas) e Rennes 2.

Atualmente, além de membro do Haut Conseil de la Famille (conselho presidido pelo Primeiro-Ministro francês, cuja tarefa principal é elaborar subsídios e recomendações sobre a política familiar na França), François Singly preside a comissão Pour une stratégie nationale de l’enfance et de l´adolescente que visa a elaboração de estratégias para o desenvolvimento de ações unificadas junto a crianças e jovens no contexto francês.

É preciso registrar que, apesar de ser reconhecido internacionalmente, sua numerosa produção (parcialmente traduzida para diferentes idiomas), composta de aproximadamente duas dezenas de livros, um número expressivo de capítulos de livros e artigos em periódicos (como o leitor poderá constatar na relação das principais publicações de François de Singly apresentada ao final do artigo), ainda é muito pouco conhecida no Brasil e em países da América Latina. Isto é particularmente curioso, dada a importância e influência que a tradição da sociologia francófona (particularmente relacionada à educação) tem em nossos meios acadêmicos. Com exceção de alguns raros grupos de pesquisa com os quais ele vem interagindo nestes últimos anos, interessados especialmente nos seus trabalhos pioneiros no campo da sociologia da família, pode-se afirmar que suas reflexões ainda não foram suficientemente divulgadas no cenário nacional, o que justifica nosso interesse em socializar a riqueza de suas proposições.

Nesta entrevista, François de Singly analisa a individualização das relações familiares, especificamente na França, estabelecendo associações entre as mudanças da modernidade e seus efeitos na família (tema explorado no livro Sociologia da família contemporânea, um dos poucos textos de sua autoria traduzidos para o português). Uma série de acontecimentos, como a aceitação social do divórcio, o declínio da instituição do casamento e a baixa taxa de fecundidade, suscitaram o surgimento de novos modelos familiares, caracterizados, por sua vez, por mudanças nas relações entre os sexos e as gerações, dentre elas: controle mais intenso da natalidade, autonomia relativa da sexualidade referente à esfera conjugal, inserção massiva da mulher no mercado de trabalho, questionamento da autoridade paternal e atenção ao desenvolvimento das necessidades infantis e dos idosos. Em sua obra, Singly chama atenção para a dimensão relacional presente no processo constitutivo da identidade pessoal dos indivíduos, em que os outros significativos são, em geral e prioritariamente, o cônjuge ou o parceiro para um homem ou uma mulher, os pais para os filhos e reciprocamente. É por isso que ele defende que, no contexto da modernidade ocidental, a família, apesar das críticas legítimas dirigidas contra essa instituição, tem um papel específico, no qual todos podem idealmente ser reconhecidos, apoiados, cuidados por parentes ou por outros significativos.

Entre outros assuntos, Singly faz ponderadas reflexões sobre o tema dos adolescentes na contemporaneidade, assunto que abordou em Libres ensemble (2000), especialmente sobre as problemáticas de individualização e acesso à vida adulta e as tensões existentes entre a cultura geracional e a cultura herdada. Ele parte do pressuposto de que a adolescência é um tempo forte do processo de individualização, e que o adolescente é um indivíduo relacional, que se constrói em ligação com os outros.

Singly explora ainda um outro tema que merece ser destacado, trata-se da complexa relação entre os jovens, a escola, a família e o Estado. Na França, por exemplo, essas questões estão presentes atualmente nas discussões sobre a inserção do jovem no mundo do trabalho, no desemprego juvenil, nas diferenças entre os jovens dos banlieus e dos centros, na vida das famílias imigrantes, na “radicalidade” de seus jovens e assim por diante. No Brasil, certamente as questões são outras, mas essas relações institucionais e sociais estão presentes. No que diz respeito a esse espinhoso tema, são muito pertinentes seus comentários acerca dos traços que definem essa relação, bem como os principais desafios a serem enfrentados na atualidade.

A solidez da argumentação de Singly, a criatividade e consistência de suas análises, a amplitude das referências bibliográficas em que se apoia, o rigor de seu trabalho empírico e, sobretudo, a atualidade dos problemas que enfrenta, representam uma criativa interlocução com todos aqueles interessados em compreender a particularidade dos processos de formação do indivíduo contemporâneo inserido num contexto híbrido de múltiplas referências identitárias. Sua busca por construir um referencial teórico e analítico capaz de integrar as dimensões micro e macrossociológicas é, sem dúvida, notável já que pode significar um apoio efetivo para o debate contemporâneo de temas candentes nas ciências humanas e sociais. Nesse sentido, embora assumindo perspectivas teóricas diferentes, seus esforços se somam aos de outros importantes (e mais conhecidos no Brasil) autores clássicos e contemporâneos, de diversas áreas do conhecimento; intelectuais, que de modo mais ou menos indireto, se debruçam sobre o tema da construção identitária, como: Elias (1994), Dubet (1998), Mellucci (2004), Berger e Luckmann (2012), Martuccelli (2002), Larihe (2004), Bauman (2005), Ginzburg (1987) e Sennett (2009).

Esperamos que a leitura desta entrevista contribua para a reflexão sobre os modos de vida na contemporaneidade e, principalmente, para uma compreensão mais abrangente e refinada dos problemas sociais (e humanos!) em sua complexidade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. La construction sociale de la realité. Paris, Armand Colin, 2012.

DUBET, François. A formação dos indivíduos: a desinstitucionalização. Revista Contemporaneidade e Educação, Salvador, v. 3, p. 27-33, 1998.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. São Paulo: Jorge Zahar, 1994.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004.

MARTUCCELLI, Danilo. Cambio de rumbo: la sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM, 2007.

MARTUCCELLI, Danilo. Existe indivíduos en el Sur? Santiago de Chile: LOM, 2010.

MARTUCCELLI, Danilo. Grammaires de l’individu. Paris: Gallimard, 2002.

MARTUCCELLI, Danilo; SINGLY, François. Les sociologies de l’ individu. Paris: Armand Colin, 2009.

MELUCCI, Alberto. O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Unisinos, 2004.

PERALVA, Angelina; SPÓSITO, Marilia. Editorial. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 5/6, p. 222-233, 1997.

SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Autor notes

I - Esta entrevista foi realizada durante estágio pós-doutoral dos autores em Paris, desenvolvidos com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp), a quem agradecemos. Agradecemos também à valiosa colaboração de Danilo Martuccelli, professor de sociologia da Faculté des Sciences Humaines et Sociales – Sorbonne da Université Paris Descartes (França) e também pesquisador do Cerlis (Centre de Recherche sur les Liens Sociaux). Sem sua generosidade, competência e parceria esta entrevista não teria se concretizado. Finalmente, agradecemos à Marcia Vinci de Moraes pelo excelente trabalho de tradução do texto.


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