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Entre o ideal e o real: proposições do Currículo Básico Comum para o Ensino Fundamental de Minas Gerais e sua transposição para uso em sala de aula
Between the ideal and the real: propositions of the Basic Common Curriculum for the Elementary School of Minas Gerais and its transposition for use in the classroom
Entre lo ideal y lo real: proposiciones del Currículo Básico Común para la Enseñanza Primaria de Minas Gerais y su transposición para uso en clase
Acta Scientiarum. Education, vol. 40, núm. 2, e34747, 2018
Editora da Universidade Estadual de Maringá - EDUEM

FORMAÇÃO DE PROFESSORES


Recepção: 05 Janeiro 2017

Aprovação: 01 Novembro 2017

DOI: https://doi.org/10.4025/actascieduc.v40i2.34747

RESUMO.: O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados de uma pesquisa que buscou cotejar as concepções de letramento que permeiam o Currículo Básico Comum de Minas Gerais com as do material criado pela Secretaria de Educação do estado para atender crianças que não foram alfabetizadas até os oito anos de idade, a fim de analisar se este reflete as mesmas concepções de leitura e de escrita materializadas no documento gerador (CBC), à luz das premissas de pesquisadores que fazem parte dos Novos Estudos do Letramento - Barton e Hamilton (1998), Cook-Gumperz (1991), Gee (2005), Heath (1983), Lankshear (1999), Street (1984, 2014), Terzi (1997, 2000) e Tôrres (2003, 2009), Tôrres e Oliveira (2017). Esses autores propõem deslocar o foco da aquisição de habilidades técnicas e neutras, como tem sido feito em abordagens tradicionais, e veem o letramento como prática social. Nesse escopo, procurou-se verificar se as ideologias que perpassam os documentos atendem aos preceitos do modelo de letramento ideológico, como proposto por Street. De abordagem qualitativa, a pesquisa socorreu-se da observação e análise do objeto e de entrevista semiestruturada, como proposto por Lüdke e André (2013). Ao final da pesquisa, foi possível constatar que a transposição da teoria para a prática evidencia certa polaridade entre o que se pretende fazer em educação e o que efetivamente se tem feito.

Palavras-chave: letramento ideológico, Currículo Básico Comum de Minas Gerais, Programa de intervenção pedagógica.

ABSTRACT.: This study presents the partial results of a survey aiming to know the conceptions of literacy that permeate the Basic Curriculum for the elementary school of Minas Gerais, and check if these conceptions are reflected in the propositions of the material ‘Consolidating literacy in 60 lessons’, program created by the State Secretariat of Education, to assist children who failed to be literate in the proper age in the light of the assumptions of researchers who are part of the New Literacy Studies - Barton and Hamilton (1998), Cook-Gumperz (1991), Gee (2005), Heath (1983), Lankshear (1999), Street (1984, 2014), Terzi (1997, 2000), Tôrres (2003, 2009), Tôrres and Oliveira (2017). These authors propose shifting the focus on the acquisition of technical skills and neutral practices, as has been done in traditional approaches, and see literacy as a social practice. In that scope, we tried to verify if the ideologies that permeate the documents are aligned with the precepts of the ideological literacy model, as proposed by Street (1984, 2014), and revealed in the Basic Curriculum for the elementary school. The research fits the profile of a qualitative approach and used as instruments the researcher’s observation and analysis, and a semi-structured interview as proposed by Lüdke and André (2013). At the end of the research, it was pointed out that the transposition of theory to practice shows a certain polarity between what one intends to do in education and what has actually been done.

Keywords: Ideological literacy model, Basic Curriculum level for the elementary school, educational intervention program.

RESUMEN.: El objetivo de este trabajo es presentar algunos resultados de una investigación que buscó comparar las concepciones de alfabetización que están en el Currículo Básico Común de Minas Gerais con las del material creado por la Secretaría de Educación del estado para atender a niños que no fueron alfabetizadas hasta los ocho años de edad, a fin de analizar si este incide las mismas concepciones de lectura y de escritura materializadas en el documento generador (CBC), a la luz de las premisas de investigadores que hacen parte de los Nuevos Estudios de la Alfabetización - Barton y Hamilton (1998), Cook-Gumperz (1991), Gee (2005), Heath (1983), Lankshear (1999), Street (1984, 2014), Terzi (1997, 2000) y Tôrres (2003, 2009), Tôrres y Oliveira (2017). Estos autores proponen desplazar el enfoque de la adquisición de habilidades técnicas y neutras, como ha sido hecho en abordajes tradicionales, y perciben la alfabetización como práctica social. En este ámbito, se buscó verificar si las ideologías que van más allá de los documentos atienden a los preceptos del modelo de alfabetización ideológico, como propuesto por Street. De abordaje cualitativo, la investigación procedió de la observación y del análisis del objeto y de entrevista semiestructurada, como propuesto por Lüdke y André (2013). Al final de la investigación, fue posible constatar que la transposición de la teoría para la práctica evidencia cierta polaridad entre lo que se pretende hacer en educación y lo que efectivamente se ha hecho.

Palabras-clave: alfabetización ideológica, Currículo Básico Común de Minas Gerais, Programa de intervención pedagógica.

Introdução

A fase de alfabetização é considerada uma das mais polêmicas da escolarização, gerando nos governantes grandes investimentos nessa área nas últimas décadas. Desde 2007, o estado de Minas Gerais vem despendendo ainda mais esforços para cumprir seu lema: “Toda criança lendo e escrevendo até os oito anos de idade” (Programa de Intervenção Pedagógica, 2013, p. 11). Nesse contexto é que surge o material Consolidando a alfabetização em 60 lições - parte do Programa de Intervenção Pedagógica - Alfabetização no Tempo Certo (PIP/ATC), da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE-MG) -, que, no ano de 2013, se tornou um ‘coringa’ no trabalho com crianças que ainda não estavam alfabetizadas ao final do Ciclo Inicial de Alfabetização (3º ano) e também no Ciclo Complementar (4º e 5º anos). Até o ano de 2016, o material em questão vinha sendo oferecido pelas Superintendências Regionais de Ensino como referência para o desenvolvimento da intervenção pedagógica para crianças que não estão alfabetizadas até os oito anos de idade, bem como para o trabalho sistemático em sala de aula com crianças de seis anos, que ingressam no 1º ano do Ensino Fundamental.

Considerando-se que atualmente há uma legítima preocupação dos programas de ensino em enfatizar que se deve alfabetizar a criança ao mesmo tempo em que se promove o seu letramento, procuramos neste trabalho apresentar alguns dos resultados de uma pesquisa que objetivou cotejar as concepções de letramento que permeiam as ideologias veiculadas no documento oficial do Currículo Básico Comum (CBC) de Minas Gerais com as do material Consolidando a alfabetização em 60 lições, a fim de analisar se este reflete as mesmas concepções de leitura e de escrita materializadas no CBC.

O desejo de propor uma pesquisa que abordasse essa temática se deu pelo fato de termos observado, de uma maneira intuitiva apriorística, que as práticas de letramento desenvolvidas por alguns professores que trabalham com esse material não se alinham com os conceitos de escrita, de leitura e de texto como proposto no documento oficial do CBC. Neste, pode-se verificar que se valoriza, sobremaneira, um modelo de letramento que se coaduna com o modelo que Street (1984) definiu como Ideológico, por considerar que para a aquisição da escrita há de se levar em conta a variável social como o grande divisor de águas entre o ensino do código linguístico como mera aquisição técnica ou neutra e o ensino da leitura e escrita em que se consideram os variados e diferentes fatores de ordem social, econômica, política e cultural que incidem no processo de ensino/aprendizagem.

Essa nova perspectiva aponta para uma mudança epistemológica nos estudos sobre a aquisição da escrita e dá ensejo à composição de um núcleo de estudos formado por pesquisadores que comungam dessa concepção, isto é, consideram o letramento um fenômeno essencialmente social. A esse núcleo chamou-se de Novos Estudos do Letramento, composto por estudiosos como Barton e Hamilton (1998), Cook-Gumperz (1991), Gee (2005), Heath (1983), Lankshear (1999), Street (1984, 2014), Terzi (1997, 2000) e Tôrres (2003, 2009), Tôrres e Oliveira (2017). Em obra seminal, Street (1984) introduz nos estudos do letramento os modelos Ideológico e Autônomo e uma base heurística primaz para se compreender melhor questões que giram em torno da alfabetização, em que se vise uma real promoção do letramento do educando.

Para o autor, o modelo autônomo, ou per se, funciona partindo do pressuposto de que este terá efeitos em outras práticas sociais e cognitivas. Entretanto, o que se percebe é que esse modelo aponta serem tais práticas neutras e universais, mas que, na verdade, “[...] mascaram e silenciam as questões culturais e ideológicas subjacentes a elas” (Street, 2001, p. 7). Para corroborar essas afirmações, o autor cita sua experiência em um vilarejo do Irã, na década de 1970, em que, ao fazer pesquisas antropológicas, percebeu que a escrita era bastante usada pelos moradores locais, apesar de serem considerados analfabetos pela UNESCO. Street (2014) assevera, entretanto, que os programas de difusão do letramento têm um caráter de dominação, pois atendem a políticas colonialistas ocidentais, por meio de doutrinação a grupos sociais determinados, valendo-se do valor atribuído à escrita per se.

Nesse viés, podemos inferir que o letramento autônomo é nada mais que o domínio da alfabetização como conhecimento técnico da escrita, e não o conhecimento do uso da escrita consoante as funções que assume nas mais variadas atividades sociais. Essa concepção restrita de acesso à escrita, geralmente, se dá em ambientes de escolarização formal, dentre os quais se inclui a nossa escola atual. Para Street (2014), esse modelo de letramento compreende a leitura e a escrita como um produto completo e autônomo, que por si só se bastaria, independentemente de seu contexto de produção.

Partilhando das mesmas perspectivas conceituais, encontramos em Soares (2004) reflexões sobre as especificidades dos processos de alfabetização e letramento. Para a autora, enquanto a alfabetização se refere à aquisição e ao domínio do código escrito, ou sentido restrito, como propõe Street (1984), o letramento se refere ao uso desse código nas situações de comunicação social. A autora também assevera que a aproximação entre os fenômenos, ainda que para propor diferenças, “[...] tem levado à concepção equivocada de que os dois fenômenos se confundem, e até se fundem [...]” (Street, 1984, p. 8), afirmando que há uma relação inegável entre eles, mas que não se deve perder de vista as especificidades de cada um.

Ainda sobre a desconsideração da natureza social do letramento, como “[...] do caráter plural de suas práticas”, Terra (2013, p. 4) afirma que “[...] o modelo autônomo adota, outrossim, uma orientação que resulta em uma confusão das diversas manifestações sociais do letramento com a escrita como tal [...]”, levando, pois, à ideia de que “[...] a escrita não passaria de uma das formas de letramento [...]”, ou seja, o letramento pedagógico como estabelece Marcuschi (2001, p. 15). Pode-se inferir, então, que os autores levantam a hipótese de que a escola tende a desconsiderar as questões ideológicas, culturais e de poder que permeiam as concepções de letramento ali sancionadas.

No verso desse conceito, entretanto, encontra-se o modelo ideológico de letramento ou aquele que valoriza o desenvolvimento e a aquisição das práticas da escrita em seus usos e funções dentro dos contextos sociais. Em outras palavras, significa dizer que o conhecimento da escrita não se deve dar desvinculado de seus usos sociais, pois este estará sempre eivado dos valores, crenças, cultura e relações de poder dos contextos em que esses usos estão inseridos.

Partindo dos aportes epistemológicos sancionados pelos estudiosos que fazem parte dos Novos Estudos do Letramento, assumimos neste trabalho a concepção de letramento como a relação que os indivíduos estabelecem com a escrita no momento da comunicação social, relação esta permeada pelo conhecimento, pela valorização, pelas crenças e valores culturais que atribuem à escrita (Terzi & Ponte, 2006; Tôrres, 2009).

A difusão e os impactos da escrita

Nas últimas décadas, alguns estudiosos estrangeiros, como Goody e Watt (1968), Havelock (1963-1982), Eisenstein (1979) e Olson (1994), têm se preocupado em examinar os diversos papéis que a escrita e o letramento têm desempenhado na formação e evolução das instituições dominantes de poder no mundo ocidental. Na esteira dessa reflexão, têm também observado “[...] a evolução de uma forma particular de racionalidade incorporada aos elaborados procedimentos burocráticos e empregada na construção e evolução do conhecimento” (Olson, 2001, p. 4). Daí a afirmação do autor de que tanto nossa concepção de mundo, quanto a concepção de nós mesmos “[...] são resultados da invenção da palavra no papel [...]” (Olson, 2001, p. 4), ou seja, nossos modos particulares de pensar, agir e referenciar o mundo, pois, são grandemente influenciados pela escrita.

Entretanto, também nas últimas décadas, outros estudiosos se posicionaram criticamente em relação a essas teorizações, afirmando que nessa concepção não se leva em conta os contextos de uso, o que propiciou um abrir-portas para estudos que abordam a escrita como prática social. Em anos mais recentes, as discussões acadêmicas sobre o impacto da aquisição da escrita debruçaram-se menos nas consequências do letramento e mais no que o indivíduo faz com o letramento, ou seja, como ele usa a escrita, pois é de mais valia ele saber usá-la nas situações sociais, do que conhecer a sistematização do código escrito apenas como atividade cognitiva individual. Infere-se que a atribuição de valor ao letramento não passa de convenções culturais que foram sendo cristalizadas e até hoje se refletem nas práticas escolares. Essas práticas sugerem a superioridade dos conhecimentos ocidentais, revelando as relações de poder mesmo que implicitamente.

Um breve histórico da alfabetização

A alfabetização é um dos processos mais polêmicos da escolarização, causando grande ansiedade para pais, alunos e professores. Considerada como o ato de ler e escrever, a alfabetização vai além do conhecimento da decodificação de sinais gráficos da nossa língua e, como assevera Cook-Gumperz (1991, p. 11), “[..] é um fenômeno socialmente construído”. Isso ocorre porque ser/estar alfabetizado não consiste somente no ato de ler e escrever, pois, ao possuir e manejar essa habilidade, exercitam-se os talentos aprovados e aprováveis pelos grupos sociais para os quais a escrita seja considerada elemento de valor. Nesse sentido, em cada época histórica, o conceito de alfabetização toma formas atinentes com as demandas sociopolíticas vigentes.

A percepção da sociedade sobre a habilidade de leitura e escrita, nos primórdios do século XX, estava intrinsecamente ligada ao progresso da nação e, nesse sentido, uma sociedade de analfabetos estaria fadada ao fracasso, tornando-se, dessa forma, o analfabetismo uma ameaça social. Entretanto, mesmo com parte significativa da população europeia alfabetizada, o progresso tão esperado não aconteceu efetivamente, e aqui aparecem as primeiras evidências do primeiro fracasso da alfabetização escolarizada.

Historicamente, sempre se depositou na escola uma grande esperança para a resolução dos problemas sociais e econômicos das nações. Consequentemente, se esses problemas não são resolvidos, a culpa recai sobre a escola, ou seja, no fracasso da escolarização. Considerando-se a escola como instituição responsável pela alfabetização e os índices de alfabetização como indicativos de progresso da sociedade, se a alfabetização fracassa, consequentemente, a sociedade também fracassa. Sobre esse fenômeno, Kozol (1985) afirma que, se as instituições educacionais não conseguem lidar com a simples tarefa de ensinar habilidades básicas de codificação e decodificação, elas não podem preparar as gerações futuras para lidar com questões mais complexas da mudança tecnológica.

Algumas décadas do século XX foram necessárias para que se chegasse à conclusão de que, como cita Cook-Gumperz (1991, p. 46), “[..] o sucesso educacional, e não apenas a alfabetização, é que leva à oportunidade econômica”. Nesse sentido, “[...] a escolarização moderna transformou o aprendizado em uma habilidade técnica universal e estandardizada, a chamada escolarização profissional” (Cook-Gumperz, 1991, p. 46), o que não significou, entretanto, ter havido uma relação direta entre alfabetização e progresso social das nações.

A nosso ver, ser alfabetizado significa não apenas conhecer a tecnologia da escrita, mas saber fazer uso dela, levando-se em conta o conhecimento de mundo do indivíduo e seus modos particulares de compreender esse mundo, o que nos remete às concepções de letramento aqui compartilhadas por nós e que se alinham com o modelo de letramento ideológico. Na perspectiva dessa concepção, a aquisição de habilidades cognitivas individuais deve caminhar junto com a compreensão de que essa tecnologia desempenha funções nas práticas de escrita da sociedade e que saber usá-la é saber reconhecer essas funções nas diferentes situações de uso social em que a língua escrita seja referência de valor, para saber transitar pelas diversas esferas sociais letradas.

Mesmo considerando que a escola contemporânea não tem medido esforços em relação à promoção de letramento de seu alunado, ainda se tem verificado que um contingente expressivo de crianças e jovens saem da escola com habilidades restritas em relação à escrita. O que se pode observar é que, ao serem expostos a situações que exijam conhecimentos escriturais básicos para uma comunicação, não são bem sucedidos, principalmente quando solicitados a se expressar por escrito.

As concepções de letramento nos documentos oficiais e o Currículo Básico Comum de Minas Gerais

O documento que focaliza o processo de letramento nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, que compõem o chamado Ciclo Inicial de Alfabetização, em Minas Gerais, é fundeado no Currículo Básico Comum, que se baseia nas concepções de educação e currículo existentes na legislação e nas Diretrizes Curriculares Nacionais.

Segundo esse documento, a projeção feita é que as crianças que ingressam no 1º ano do Ensino Fundamental com seis anos de idade e que finalizam esse ciclo com oito anos de idade, no 3º ano, devem estar com as habilidades básicas de letramento consolidadas.

O currículo que subsidia o trabalho no estado de Minas Gerais é fruto de um intenso esforço coletivo que teve início no ano 2000, quando se instalou o SIMAVE (Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública), com a avaliação PROEB (Programa de Avaliação da Educação Básica), aplicada ao final do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio e, posteriormente, em 2006, ampliada para os anos iniciais, com o PROALFA (Programa de Avaliação da Alfabetização). Estabeleceu-se uma matriz curricular para direcionar o trabalho nas escolas públicas de Minas Gerais, que foi sendo reformulada até se concretizar, no ano de 2014, no Currículo Básico Comum (CBC) do estado.

Esse documento institui as competências e habilidades básicas a serem desenvolvidas pelos educandos em cada Ciclo de aprendizagem. Por tal razão, ficou estabelecido, por meio da Resolução SEE-MG nº 2197 de outubro de 2012, no artigo 61, que:

O Ciclo da Alfabetização, a que terão ingressado os alunos com seis anos de idade, terá suas atividades pedagógicas organizadas de modo a assegurar que, ao final de cada ano, todos os alunos tenham garantidos, pelo menos, os seguintes direitos de aprendizagem (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014).

São esses direitos:

I - 1º Ano: a) desenvolver atitudes e disposições favoráveis à leitura; b) conhecer os usos e funções sociais da escrita; c) compreender o princípio alfabético do sistema da escrita; d) ler e escrever palavras e sentenças. II - 2º Ano: a) ler e compreender pequenos textos; b) produzir pequenos textos escritos; c) fazer uso da leitura e da escrita nas práticas sociais. III - 3ºAno: a) ler e compreender textos mais extensos; b) localizar informações no texto; c) ler oralmente com fluência e expressividade; d) produzir frases e pequenos textos com correção ortográfica. § 1º Ao final do Ciclo da Alfabetização, todos os alunos devem ter consolidado as capacidades referentes à leitura e à escrita necessárias para expressar-se, comunicar-se e participar das práticas sociais letradas, e ter desenvolvido o gosto e apreço pela leitura (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014).

Sustentado em cinco eixos, o Currículo Básico Comum para Língua Portuguesa determina que o Eixo 1 se refira à Compreensão e valorização da cultura escrita; o Eixo 2 se refira à Apropriação do sistema de escrita; o Eixo 3, à Leitura; o Eixo 4, à Produção escrita; e o Eixo 5, ao Desenvolvimento da oralidade.

Em relação à produção de textos, o CBC enfatiza sobremodo que a criança deve ter contato com uma variedade de gêneros discursivos que circulam tanto na escola como na sociedade, por compreenderem os elaboradores do documento que esse conteúdo é fundamental para o processo de ensino-aprendizagem dos alunos. Dessa foram, o professor deve expor o aluno a diferentes formas de expressão como conto, fábula, receita, piadas, poemas, notícias e tantas outras, observando sempre que os textos devem ser compreendidos “[...] a partir de uma situação discursiva de onde o texto emergiu” (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 23).

Lê-se ainda que cabe ao professor selecionar os textos e as estratégias de leitura de acordo com a realidade de cada turma e de acordo com o contexto, para uma melhor consolidação das competências e habilidades requeridas pelo documento, como se observa na afirmação: “Os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental devem desenvolver a prática do ensino de leitura de forma criativa, dinâmica e contextualizada, que proporcione ao aluno oportunidade de refletir sobre a utilização da língua” (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 23).

Por fim, o documento realça a necessidade e importância de se alcançarem as metas ali estipuladas, como o domínio do sistema alfabético de representação da escrita, para que a criança possa se expressar por escrito com autonomia e boa compreensão na leitura de textos de variados gêneros, e saiba, principalmente, comunicar-se e participar das práticas de leitura e escrita da sociedade, além de ter desenvolvido o gosto pela leitura.

Uma leitura atenta à apresentação dos conteúdos publicados no CBC para o Ensino Básico de Minas Gerais nos revela que a proposta que orienta o estudo, as estratégias de ensino e modos de aprendizagem se alinha com a concepção de letramento ideológico, como abordada neste trabalho, pois todos os pressupostos elencados para o desenvolvimento das habilidades e competências que devem ser desenvolvidas pelos alunos são características prototípicas do letramento, como fenômeno que se configura como o acesso à tecnologia da escrita e ao conhecimento do uso da língua nas variadas práticas sociais letradas (Soares, 2004; Street, 1984).

Na continuidade do documento, fica claro que ao final do Ciclo Inicial de Alfabetização espera-se que as crianças sejam capazes de ler, escrever e produzir textos, considerando-os objetos que são utilizados para atingir determinados fins sociais, como uma carta para o presidente do bairro ou para o diretor do posto de saúde local, e que são usados de acordo com a cultura, com os modos de pensar e de agir das comunidades das quais fazem parte.

Partindo-se dessa premissa, há de se esperar que a escola vá além de ensinar práticas de escrita restritas ou neutras, como chama Street (1984, 2001), rompendo, portanto, com as barreiras impostas pelas práticas autônomas de letramento, e exponha o aluno a diferentes práticas dos Discursos Secundários, como proposto por Gee (2005), para que ele tome conhecimento dos modos de ser, de agir e de pensar de diferentes esferas da sociedade. Espera-se, assim, que a escola lhe propicie tornar-se um cidadão mais emancipado e atuante em seu grupo social.

O trabalho com a alfabetização e o letramento não se esgota quando finaliza o Ciclo Inicial de Alfabetização, mas, sim, é aprofundado no Ciclo Complementar, como se pode constatar no documento abaixo:

Os Ciclos da Alfabetização e Complementar devem se pautar no princípio da continuidade da aprendizagem dos alunos, sem interrupção, com foco na alfabetização e letramento, voltados para ampliar as oportunidades de sistematização e de aprofundamento das aprendizagens (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 10).

Partindo-se da asserção acima, entende-se que a alfabetização e o letramento são processos que caminham juntos, sendo a alfabetização um componente do letramento. Verifica-se que a língua é compreendida como instrumento semiótico constituído por regras e formas linguísticas vinculadas entre si para funcionar em seus contextos de produção, cuja “[...] interação verbal se dá por meio de discursos falados ou escritos” (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 22); produzir linguagem significa, portanto, produzir discursos. Como especificado no trecho a seguir:

[...] sendo um instrumento semiótico, sócio-histórico em um contexto ideológico que se materializa por meio de um código linguístico entre indivíduos socialmente organizados. Produzir linguagem significa produzir discursos: dizer alguma coisa; dizer de alguma forma; dizer em um contexto (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 22).

Fica claro ainda, no documento supracitado, a importância da promoção do letramento em sua missão alfabetizadora. Compreende-se, dessa forma, que cabe à escola ensinar o código da língua observando seus usos e funções. Em outras palavras, significa dizer que o documento acima preconiza a necessidade de se expor o aluno às variadas e diferentes práticas sociais da escrita. Nesse sentido, podemos considerar a concepção de letramento encontrada no documento oficial condizente com o que Street (1984) denomina de letramento ideológico, uma vez que concebe o letramento como a apropriação de práticas de escrita que se inscrevem nos contextos socioculturais em que a escrita desempenha uma referência de valor (Heath, 1983).

Há de se ver que o documento em questão valoriza as práticas sociais da cultura escrita no trabalho em sala de aula, bem como o respeito à diversidade cultural, procurando contemplar as capacidades necessárias para o educando falar, ouvir, ler e escrever em diferentes situações de comunicação social, como se pode ler no excerto: “Nesta perspectiva, o CBC de Língua Portuguesa valoriza o uso da língua nas diferentes situações sociais, com sua diversidade de funções e sua variedade de estilos e modos de falar” (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 22). E sobre a organização da aula, em consonância com a concepção de letramento por nós assumida, lê-se:

Para estar de acordo com essa concepção, o trabalho em sala de aula deve se organizar em torno do uso e privilegiar a reflexão dos alunos sobre as diferentes possibilidades de emprego da língua. Isso implica, certamente, a rejeição de uma tradição de ensino apenas transmissiva, isto é, preocupada em oferecer ao aluno conceitos e regras prontas, que ele só tem que memorizar, e de uma perspectiva de aprendizagem centrada em automatismos e reproduções mecânicas (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 22).

O Programa de Intervenção Pedagógica - Alfabetização no Tempo Certo (PIP/ATC)

Desde 2004 o estado de Minas Gerais tem dado atenção especial aos anos iniciais do Ensino Fundamental, principalmente à etapa de alfabetização, sendo o primeiro estado brasileiro a inserir as crianças de seis anos no Ensino Fundamental, antecipando, assim, o acesso ao ensino obrigatório, de acordo com a legislação vigente. Concomitantemente ao acesso das crianças de seis anos ao Ensino Fundamental, surge o Projeto de Intervenção Pedagógica (PIP) em 2008, que acabou por se tornar uma política pública denominada Programa de Intervenção Pedagógica/Alfabetização no Tempo Certo (PIP/ATC).

De acordo com o documento que institucionalizou o PIP, o programa foi planejado para atender, num primeiro momento, os anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano), “[...] com o objetivo de oferecer apoio pedagógico à equipe escolar e garantir a aprendizagem do aluno e a consequente melhoria do desempenho da escola” (Programa de Intervenção Pedagógica, 2013, p. 5). No ano de 2011, as escolas estaduais mineiras alcançaram bons resultados nas avaliações externas do SIMAVE e no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O PIP estendeu-se em 2013, através de uma parceria, que contou com a adesão dos municípios mineiros, atingindo todas as escolas da rede pública do estado.

Com o lema “Toda criança lendo e escrevendo até os oito anos de idade” (Programa de Intervenção Pedagógica, 2013, p. 11) - que pressupõe o final do Ciclo Inicial de Alfabetização, uma vez que a criança ingressa no 1º ano com seis anos e finaliza o 3º ano aos oito anos -, o PIP/ATC busca estratégias que proporcionem às crianças a aprendizagem da leitura e escrita nesses três anos iniciais. Segundo o mesmo documento (Programa de Intervenção Pedagógica, 2013, p. 12), o foco do PIP é o aluno. Assim, a escola deve trabalhar em equipe, com vistas a levar o aluno a alcançar o sucesso em seu desempenho escolar, como se pode observar no excerto abaixo:

Nessa rede de transformação, cada agente desempenha seu papel, de forma a garantir a articulação de todas as ações relacionadas ao processo de ensino e aprendizagem, inclusive a integração da comunidade escolar: um trabalho de equipe para a melhoria da aprendizagem do aluno (Programa de Intervenção Pedagógica, 2013, p. 12).

Nesse sentido, cada segmento da escola, assim como da Secretaria Municipal de Educação, Superintendências Regionais de Ensino (SREs) e Secretaria de Estado de Educação (SEE) têm o seu papel bem definido nos Guias de Orientação para a Implementação do PIP. A aplicação de avaliações diagnósticas internas e também da avaliação externa PROALFA norteia o trabalho da intervenção pedagógica, em que os professores agem com metodologias e recursos diferenciados na ânsia de consolidar as capacidades deficitárias nessas avaliações. Assim, é elaborado o Plano de Intervenção Pedagógica da escola, no qual são elencadas as capacidades em que os alunos apresentaram dificuldades, quem são esses alunos, as estratégias pedagógicas para a intervenção, quando essa intervenção será realizada e quem são as pessoas responsáveis por realizá-la.

Com esse instrumento elaborado, cabe à gestão escolar acompanhar e assegurar seu desenvolvimento com o auxílio dos Analistas Educacionais, que monitoram e sugerem atividades e estratégias de intervenção pedagógica (Programa de Intervenção Pedagógica, 2013). O Currículo Básico Comum de Minas Gerais (2014) define intervenção pedagógica como:

[...] interferência que se faz sobre o processo de desenvolvimento ou aprendizagem do aluno que apresenta problemas de aprendizagem. Entende-se que na intervenção o procedimento adotado interfere no processo, com o objetivo de compreendê-lo, explicitá-lo ou corrigi-lo. [...] no momento em que o professor verifica a não aprendizagem do aluno de determinada habilidade e retoma o processo para garantir que todos aprendam.

Diante da definição apresentada pelo CBC-MG, pode-se dizer que a intervenção pedagógica é uma maneira de se assegurar o direito de aprender a todos os alunos, respeitando-se suas diferenças individuais e seu contexto sociocultural. O CBC-MG ainda traz sugestões de estratégias de organização do processo, como oficinas, agrupamentos temporários e produtivos, divisão do tempo escolar, bem como a utilização de materiais pedagógicos disponibilizados pela SEE ou SREs. É nesse contexto que surge o material Consolidando a alfabetização em 60 lições, destinado às crianças que se encontram no 3º, 4º e 5º ano do Ensino Fundamental e ainda não têm consolidadas as habilidades básicas de leitura e escrita.

A metodologia e o levantamento e análise dos dados

A caracterização metodológica da pesquisa privilegiou a abordagem qualitativa, alinhando-se com a concepção de que o universo nesse tipo de pesquisa engloba significados, ideias, crenças, valores, atitudes emotivos que acontecem num processo complexo (Minayo, 2001). Para que se verificassem as ideias e conceitos de alfabetização e letramento que permeiam o material objeto de nossa pesquisa, lançou-se mão de uma entrevista semiestruturada por ser a uma “[...] das principais técnicas de trabalho em quase todos os tipos de pesquisa nas Ciências Sociais [...]”, como afirmam Lüdke e André (2013, p. 38). O outro instrumento utilizado foi a observação direta do pesquisador e a posterior análise feita à luz dos suportes teóricos que fundamentaram a pesquisa.

A entrevista se deu - após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em dia e hora previamente marcados - com a analista responsável pela elaboração do material Consolidando a alfabetização em 60 lições (Castro, 2013) e, a nosso ver, personagem central no desenvolvimento e sucesso do programa. Queríamos saber como e por que nasceu o programa, qual é a sua visão de aquisição da escrita e letramento, se o programa levava em conta os contextos socioculturais do educando. Em resposta às nossas perguntas, a analista educacional (ANE) nos disse que o surgimento e implantação do programa se deram depois de se constatar, pelas avaliações externas (SIMAVE), que

[...] um grande número de alunos do 3º ano do Ciclo da Alfabetização não estava alfabetizado. Durante as visitas dos Analistas às escolas, observou-se que os professores que realizavam a intervenção pedagógica com esses alunos tinham muita dificuldade em planejar atividades sequenciadas que possibilitassem a esses alunos a aquisição do Sistema de Escrita (ANE).

Ao ser indagada sobre sua concepção de letramento e se o material levava em conta os contextos socioeconômicos e culturais dos alunos, a analista respondeu que o programa contemplava esses itens e que os professores que nele atuavam, apesar de não medirem esforços para alfabetizar seus alunos, apresentavam certa dificuldade tanto em planejar, quanto em desenvolver atividades segundo as orientações (Cartilha de Orientações às Secretarias Municipais de Educação, 2014). Sobre sua concepção de letramento e sobre a questão de se considerar os contextos sociais dos alunos, a analista nos respondeu que “[...] o material contemplava isso tudo [...]” e que “[...] o professor tinha sempre uma certa autonomia para trabalhar com ele da forma que melhor lhe conviesse” (ANE). Quando enfatizamos a pergunta sobre sua concepção de letramento, a resposta foi “[...] conhecer as práticas sociais da escrita [...]”, e que ela compartilhava “[...] o mesmo pensamento do CBC”. (Estratégias)

A organização e a análise do material

O material é constituído de 60 planos de aula, daí seu nome 60 lições, com duração de uma hora e trinta minutos diários, que devem ser aplicados sem interrupção por 60 dias letivos. Esses planos têm sempre a mesma estrutura: inicia-se com uma leitura deleite, posteriormente trabalha-se a consciência fonológica, alfabeto, compreensão da natureza alfabética do sistema de escrita, a leitura e fechamento da aula. Para cada elemento da estrutura existe um tempo determinado de trabalho.

Além da estrutura de trabalho, o material traz planos de aula organizados, bem como a leitura deleite e os anexos a serem utilizados na aula. De acordo com as instruções contidas na apresentação do material, e pelo que é dito logo em suas páginas iniciais, o item leitura deleite (prática diária), que se justifica porque: “[...] ao ouvir a leitura do professor, a criança aprenderá a ouvir com atenção e compreensão, aprenderá a usar a expressividade e entonação adequadas quando for autônomo e puder ler textos diversos e desenvolver atitudes e disposições favoráveis à leitura” (Castro, p. 2). Assim, logo abaixo da justificativa, seguem as sugestões de leitura deleite, retiradas da coleção Nana Nenê - Uma História para Cada Dia.

São 60 textos, aqui chamados de leituras, uma para cada dia de trabalho com o material, restringindo-se a textos narrativos. Alguns textos trazem cantigas de roda, canções de ninar, músicas populares, parlendas inseridas nas narrativas. A grande maioria dos textos pertence à categoria do discurso do conto maravilhoso-fantástico, em que animais, bonecos e objetos têm vida própria, conversam entre si e com humanos. Há também algumas lendas e fábulas que fazem parte do acervo cultural brasileiro. A leitura deleite dá início às atividades propostas e tem duração de 15 minutos. Em sua apresentação, observam-se os seguintes objetivos: ouvir uma história com atenção; aprender a fazer leitura oral, com expressividade e entonação adequada; identificar os elementos da narrativa.

Entendendo-se que o material de intervenção pedagógica Consolidando a alfabetização em 60 lições deve também seguir as mesmas concepções de letramento do documento que norteia esse programa, nossas análises iniciais nos levam a verificar, entretanto, que as concepções de letramento que se podem ver consubstanciadas ao longo das atividades propostas no programa não se alinham com as concepções de letramento que ali se evidenciam, o que nos leva a constatar certa incoerência entre a teoria e a prática pedagógica. Em outras palavras, significa dizer que a ideologia que permeia o documento norteador do programa de alfabetização para Minas Gerais sanciona o ensino de práticas de escrita que valorizem aspectos do modelo de letramento ideológico, enquanto o material de apoio desenvolvido para as atividades de alfabetização reflete um alinhamento com aspectos do letramento concebido como elemento catalisador de práticas escolares de escrita e leitura que se restringem ao ensino do código da língua em sua materialidade física, deixando de expor a criança a outras formas de expressão do uso da língua.

Tomando-se como exemplificação as cinco primeiras atividades propostas para os textos, podemos observar, inicialmente, que estão dispostas em cinco blocos de atividades, assim distribuídas: (1) Leitura deleite (15 minutos); (2) Consciência fonológica (objetivo: trabalhar a noção de frase); (3) Trabalho com o alfabeto (objetivo: identificar o nome da letra do alfabeto); (4) Compreensão da natureza alfabética do sistema de escrita (objetivo: identificar a frase como unidade gráfica); (5) Leitura (objetivo: identificar rapidamente palavras em frases).

Sobre o primeiro item, Leitura deleite, ou de fruição, esta deve ser uma leitura que não contemple a aplicação da intervenção, sendo somente um momento de prazer e entretenimento (Guedes-Pinto, 2005). Ler para deleitar-se, ou seja, um prazer suave e prolongado, de acordo com o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda. Nessa perspectiva, a leitura deleite não deve ter outro objetivo que não seja o prazer em ler, não devendo ter a função de ‘pano de fundo’ para atender a objetivos didáticos de ensino. No desenvolvimento da atividade de escrita no material, a autora orienta que a leitura seja realmente um momento de prazer, quando diz que a professora deve: “[...] tornar a rotina de ouvir histórias em um momento de muito prazer. Falar com entusiasmo sobre a história a ser lida, esperar que todos olhem para a professora e ler com bastante expressividade e entonação” (Guedes-Pinto, 2005, p. 17).

Entretanto, no decorrer das orientações, observa-se que são propostos objetivos de ensino para a leitura, como o levantamento de hipóteses a respeito do que será lido, seguido de confirmação ou refutação e o uso de algumas perguntas a respeito do texto, fazendo com que a fruição da leitura se perca na obrigatoriedade da criança em encontrar as respostas adequadas (Cartilha de Orientações às Secretarias Municipais de Educação, 2014).

De igual modo, se considerarmos que as atividades sobre o texto se resumem ao trabalho com as atividades propostas nos três itens seguintes, podemos inferir que a proposta de alfabetização desse programa se resume à aprendizagem das letras e palavras, com o objetivo apenas de identificar sílabas como unidades gráficas, pois não se observa contextualização alguma dessa aprendizagem com os textos sugeridos como leitura para essa atividade de ensino. Tomando-se como exemplo uma das lições propostas para leitura, Fofinha, que é a historinha de uma nuvem no céu, percebe-se, de antemão, que o texto perde sua função de leitura deleite, que seria ler pelo simples prazer de ler, além de propiciar à criança o despertar para a ficcionalização, ao ser exposta à narrativa e a outros gêneros infantis que fazem parte do acervo de textos que circulam na sociedade da qual faz parte.

No texto seguinte observa-se que a proposta é fazer a decomposição das palavras em sílabas e letras, para se promover a alfabetização. Vê-se aí corroborada a afirmativa de Geraldi (1984) sobre o texto entrar em sala apenas como mero ‘pretexto’ para o reconhecimento de sons em letras, de letras em sílabas e de sílabas em palavras, ficando o objeto de ensino (o texto) decomposto, ementarizado, como afirma Rojo (2006). Essa observação se faz também no terceiro item da proposta, que é “[...] bater palmas [...]” para cada sílaba e “[...] quais letras formam a primeira sílaba do nome” (Rojo, 2006, p. 576). Pode-se aqui verificar que o que é construído como objeto de ensino é apenas uma mínima parte do todo textual, que tem como personagem central o nome de um macaquinho, personagem que entra em um supermercado e grita a palavra bananada, chamando a atenção de todos. Assim, a proposta é trabalhar com o reconhecimento da letra a partir dos nomes dos alunos da sala, aproveitando o nome do personagem principal do texto, deixando, entretanto, de mostrar aos alunos o texto narrativo, o que poderia ser de grande valia para se trabalhar com os momentos da narrativa, despertando nas crianças a curiosidade para as complicações, personagens e outras características desse tipo composicional de texto, que é o mais apreciado por elas.

Da perspectiva do modelo ideológico de letramento, considera-se, em primeira instância, que a seleção do texto já é um ato de cidadania. Uma escolha cuidadosa do texto que se quer levar ao aluno propiciará que ele entre em contado com assuntos de conhecimento geral, de conhecimento político, de conhecimento do mundo da ciência e tantos outros conteúdos, por demais interessantes e importantes, por dizerem respeito a eventos que se dão na sociedade e no mundo em que se insere.

Por isso, compreendemos que o professor deve mostrar diversos gêneros de texto aos alunos, como já citamos anteriormente, e que, ao mostrar o conteúdo desses textos, deve relacioná-los, de alguma forma, à realidade atual, como no texto ‘Supermaneco’, que tem personagens, ações e contexto bem próximos à vida comum de uma criança. Isso se torna necessário para que ela “[...] comece a tecer interpretações e vá construindo significados para o texto” (Tôrres, 2009, p. 131). Ainda sobre a seleção textual, é sobremodo primaz trazer à cena a Metáfora da Ecologia de Barton (1994), por chamar a atenção para que os textos, de alguma forma, entreteçam alguma ligação com a realidade do contexto social do aluno, já que, se o conteúdo textual estiver muito distante de uma realidade possível, certamente esse aluno não será afetado pelo texto, ou seja, ele pouco ou quase nada apreciará no texto, pois não construirá significados para ele, o que vai na contramão de um aspecto determinante do modelo ideológico de letramento, que é conceber a leitura como uma construção social. (Terzi, 1997).

Nessa linha de raciocínio, há de se ver que, ao se expor o aluno a diferentes práticas de escrita, ele passa a perceber o texto como um objeto que desempenha uma função dentro das práticas sociais da escrita, o que o leva a inferir, posteriormente, que a estrutura formal de qualquer tipo de texto está ligada diretamente à função que desempenha nas esferas sociais, e, assim, torna-se mais fácil entender o binômio Função X Forma dos textos (Carneiro, 2005 ).

No decorrer do trabalho proposto para uma aula, detectamos um novo momento de leitura, realizado ao final dos itens, com duração de 15 minutos. Esperava-se que, pelo menos nesse momento, a leitura fosse para o mero prazer de ler ou de adquirir conhecimento novo por meio de informações até então desconhecidas para os pequenos aprendizes. Entretanto, contrariando nossas expectativas, o que se viu foi a mesma prática dos itens anteriores: codificação, decodificação e sedimentação de práticas escolares de letramento, ou alfabetização em sentido restrito, em que predomina o ensino da tecnologia da escrita em detrimento do seu uso em situações reais de prática social.

Sobre a variedade dos gêneros textuais pode-se afirmar que é bem pouca e, mais ainda, que textos que fazem parte da vivência dos alunos e que deveriam ter sido selecionados para integrar a coletânea deixaram de ser veiculados no material. Outra questão importante, e que nos leva a perceber um forte hiato entre as concepções de letramento que subsidiam o Currículo Básico Comum (2014) e o Consolidando a Alfabetização em 60 lições (Castro, 2013), está no fato de em nenhum momento se ver mencionada a função social de cada texto, nem seu contexto real de utilização. E, ainda, como afirma Carneiro (2005), a utilização de textos relacionados diretamente às práticas sociais em situações concretas de comunicação constitui um elemento facilitador da aprendizagem, o que também não se observa na abordagem dos textos.

Para tratar da Compreensão da Natureza Alfabética do Sistema de Escrita, o material dedica 20 minutos de trabalho por dia. Essas atividades contemplam a escrita de palavras, formação de frases, identificação de sílabas, acréscimo, redução ou troca de letras e sílabas para a formação de novas palavras, atividades de ortografia visando à utilização do H, RR, S com som de Z, SS, uso do G, GU, QU, Ç, função do til, sons nasalados com m e n. Também visando à aquisição da escrita, o Trabalho com o alfabeto traz nas 60 lições uma atividade sistemática com as letras do alfabeto, buscando fixar o nome das letras, suas diferentes formas de apresentação gráfica das letras e a ordem alfabética.

Nossa observação nos faz enfatizar que o material proposto para alfabetizar crianças que não conseguiram ser alfabetizadas no tempo certo se alinha ao que Street (1984) chamou de modelo autônomo de letramento, por ser aquele tomado em sentido restrito, ou seja, aquele que valoriza a alfabetização como mera aquisição do código da escrita e habilidade técnica de codificar, que é a passagem do som para o símbolo gráfico e a passagem da identificação do símbolo para o som que ele representa.

Para Street (2014), esse fenômeno faz parte de um processo de ‘pedagogização do letramento’, que significa a categorização do que é certo e do que tem valor social em termos de linguagem, criando assim conflitos entre os grupos minoritários que não encontram sua identidade dentro de uma sociedade excludente, como se pode observar no registro abaixo:

O letramento pedagogizado que temos discutido se torna, então, um conceito organizador em torno do qual se definem ideias de identidade e valor social; os tipos de identidade coletiva a que aderimos e o tipo de nação a que queremos pertencer ficam encapsulados em discursos aparentemente desinteressados sobre a função, o propósito e a necessidade educacional desse tipo de letramento. O letramento, nesse sentido, se torna uma chave simbólica para vários problemas mais graves da sociedade: questões de identidade étnica, conflito, sucesso (ou fracasso) podem ser desviadas na forma de explicações sobre como a aquisição do letramento pode ser aperfeiçoada e como a distribuição do letramento pode ser ampliada; problemas de pobreza e desemprego podem ser transformados em questões sobre por que os indivíduos fracassam na aprendizagem do letramento na escola ou continuam, quando os adultos, a recusar atenção reparadora, desviando assim a culpa das instituições para os indivíduos, das estruturas de poder para a moral pessoal (Street, 2014, p. 141).

Ao observarmos a capacidade contemplada no eixo Leitura, ‘Desenvolver capacidades relativas ao código escrito, especificamente necessário à leitura’, e os descritores ‘ler frase’ e ‘ler palavras’, percebemos que tanto o diagnóstico, como as professoras concebem a leitura como o simples processo de decodificação. Quando a professora P1 diz “Uma criança que não tá alfabetizada não tem condições de ler essas frases. Ela ia falar só o nome dos desenhos. Se ela conhecesse todos os desenhos ela ia falar coelho, bola, menina, ela sabe por causa da imagem [...]”, deixa clara a ideia da leitura como habilidade técnica, relacionando-a ao conceito de estar ou não alfabetizada, devido à presença de palavras compostas por sílabas não canônicas.

A consideração de que para estar alfabetizada a criança deva conhecer as sílabas canônicas e não canônicas - com a sequenciação que prevalece no método silábico, primeiro o trabalho com as sílabas canônicas e posteriormente as não canônicas -, é algo arraigado no trabalho com a alfabetização para os professores participantes da pesquisa. Daí a consideração feita pela professora, pois se a criança não conseguiu ler o primeiro texto apresentado (piada), que é um texto composto por sílabas canônicas e não canônicas, também não conseguiria ler as frases com a mesma composição.

Quando o descritor ‘ler frases’ aparece na matriz de referência, a recomendação é de que, para avaliá-lo, deve-se “[...] observar se o aluno lê com entonação seguindo a pontuação” (Castro, 2013, p. 2). Levando em consideração que os desenhos presentes nas frases induzem a uma leitura incidental das frases, o que não significa que a criança tenha autonomia na leitura, as duas frases apresentadas são afirmativas, o que não possibilita avaliar se a criança lê realmente com a entonação adequada. Quanto ao descritor ‘ler palavras’, a orientação é que se observe, ao longo da leitura, se este consegue ler tanto as sílabas, como as não canônicas. Na frase ‘A menina toca piano’ não existem sílabas não canônicas, já na frase ‘O coelho brinca com a bola’, aparecem somente as palavras ‘brinca’ e ‘com’, o resto da frase é formado pelos desenhos. Assim, percorrendo a matriz de referência, nota-se que as frases tornam-se somente um pretexto para avaliar outras capacidades relativas a técnica de leitura e escrita.

Há de se dizer que não se propõe com este trabalho, em nenhum momento, descaracterizar o trabalho escolar e nem as práticas alfabetizadoras sancionadas pela escola. Elas dão resultado, certamente. O que se quer aqui investigar é se a concepção de letramento que permeia o documento oficial norteador do processo de escolarização inicial em Minas Gerais se materializa efetivamente em todas as fases do processo de alfabetização, inclusive no processo de intervenção pedagógica, como é o caso do material Consolidando a alfabetização em 60 lições, objeto de nossa análise.

As análises e reflexões aqui feitas não significam uma camisa de força no trabalho com a escrita e leitura no processo de alfabetização e letramento do educando que não conseguiu ser alfabetizado na idade certa.

Considerações finais

Ao final de nossa pesquisa, em que procuramos trazer à cena as concepções de letramento que permeiam o Currículo Básico Comum para o Ensino Fundamental de Minas Gerais, cotejando-as com as concepções de letramento que permeiam o material Consolidando a alfabetização em 60 lições, pudemos verificar que o governo de Minas Gerais tem dado passos largos em direção à promoção do letramento de suas crianças e tem despendido esforços para criar programas que atendam aquelas que não foram alfabetizadas na idade certa, como é o caso do Consolidando a alfabetização em 60 lições. Certamente esse programa tem trazido benefícios a um grande número de crianças, pois tem conseguido dar-lhes acesso à tecnologia da escrita. Entretanto, apesar desses esforços, pudemos observar que a educação escolar ainda reflete, em certa medida, a ideologia hegemônica no que se refere ao fenômeno do letramento, ao compreendê-lo como aquisição e desenvolvimento de habilidades cognitivas individuais, desvinculadas dos contextos de uso social.

Sobre esse aspecto, pesquisadores, como Tôrres (2009), afirmam que há ainda na escola uma pedagogização do letramento, em que se valorizam as práticas de escrita e leitura como aquisição da tecnologia do código da língua. Verificamos esse fenômeno em nossas análises: no cotejo do documento oficial, o CBC, com o programa Consolidando a alfabetização em 60 lições, observamos um desalinho das concepções refletidas no trabalho que efetivamente se faz em relação aos textos ali veiculados, bem como às práticas de escrita desenvolvidas a partir deles.

Alguns aspectos, como uma apropriada seleção dos textos a serem trabalhados em sala e a valorização dos diferentes letramentos que os alunos trazem do ambiente doméstico, não são considerados na abordagem do texto escrito, sendo negligenciados pelo programa. Além disso, algumas das atividades propostas para o texto refletem uma concepção de alfabetização que se resume à aprendizagem das letras, sílabas e palavras, cujo objetivo maior é levar o educando a identificar esses elementos tão somente como unidades gráficas, não havendo, porém, o estabelecimento de uma relação entre essa aprendizagem e a compreensão do significado dos textos sugeridos como leitura para tal atividade de ensino.

A nosso ver, esse fenômeno indica que há um apagamento do texto como objeto vivo no mundo e que desempenha uma função social, levando-nos a perceber que se trabalha o texto mais como pretexto para ensinar habilidades neutras ou técnicas, ficando seus usos sociais fora dos muros da escola. Pode-se exemplificar essa observação com o item Leitura deleite, que nos pareceu, em certa medida, ter a função de mero ‘pano de fundo’ para atender a objetivos didáticos de ensino. Em nosso entendimento, esse momento deveria propiciar à criança liberdade para fazer suas próprias escolhas em relação à seleção dos textos que deseja ler e seus modos particulares de abordar o texto escrito, levando a criança a refletir sobre as funções da sua língua materna. Compreendemos que esse seja um momento primaz para a criança dar os primeiros passos em direção à sua formação leitora e à promoção de seu letramento, o que, a nosso ver, atenderia a um dos princípios que norteiam o CBC: “Os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental devem desenvolver a prática do ensino de leitura de forma criativa, dinâmica e contextualizada, que proporcione ao aluno oportunidade de refletir sobre a utilização da língua” (Currículo Básico Comum de Minas Gerais, 2014, p. 23).

Verificou-se também que, em sua maioria, os textos que fazem parte desse material pouco ou quase nada dizem a respeito da realidade sócio-histórica dos alunos a ele expostos e, além disso, os poucos textos que poderiam ser relacionados ao universo desses alunos não são aproveitados para promoverem o seu letramento. A nosso ver, é importante frisar que nos parece não haver uma preocupação de se entretecerem relações entre os textos e a realidade do contexto social do aluno, e também entre realidades de outras esferas discursivas da sociedade, como teoriza Barton (2000), para que o educando seja afetado pelo texto, construindo significados a partir dele.

Observa-se também que há o que Rojo (2006) chama de ementarização do texto como objeto de ensino, que é o fenômeno do reconhecimento de sons em letras, de letras em sílabas e de sílabas em palavras, como se pode observar em uma das atividades desenvolvidas.

Ao final deste trabalho, concluímos que parece haver ainda um fosso entre as concepções de letramento instanciadas no documento norteador da educação em Minas Gerais, o Currículo Básico Comum, e as concepções que permeiam o material de intervenção, Consolidando a Alfabetização em 60 lições, no momento de transposição das atividades propostas. Sem dúvida, há pontos positivos na aplicação do programa, como o esforço e disponibilidade dos professores que atuam no programa e a efetiva alfabetização de alguns alunos, como nos revelou a analista educacional. Por outro lado, verificou-se que as concepções que permeiam o documento norteador do programa de alfabetização para Minas Gerais chancelam o ensino de práticas de escrita que valorizam aspectos do modelo ideológico de letramento, enquanto o material de apoio desenvolvido para as atividades de alfabetização reflete o desenvolvimento de práticas alinhadas com aspectos do letramento autônomo.

Observamos que, apesar de trazer um embasamento teórico condizente com o modelo ideológico de letramento, as práticas escolares propostas para o programa de intervenção pedagógica permanecem arraigadas ao que historicamente foi sendo construído e aprovado socialmente como correto, como a necessidade de se proporem questões sobre o texto nos momentos de leitura deleite, de modo que os alunos tenham de procurar as respostas a serem dadas, fazendo com que a fruição da leitura se perca pela obrigatoriedade da criança encontrar essas respostas.

Da perspectiva do modelo ideológico de letramento, considera-se em primeira instância que a seleção do texto já é um ato de cidadania, porque uma escolha cuidadosa do texto que se quer levar ao aluno propiciará que ele entre em contado com assuntos de conhecimento geral, de conhecimento político, de conhecimento do mundo da ciência e tantos outros conteúdos, por demais interessantes e importantes, por dizerem respeito a eventos que se dão na sociedade e no mundo em que se insere. Por esta razão, devem-se mostrar diversos gêneros de texto ao aluno, como já afirmamos anteriormente, e, por isso, compreendemos que é importante que o professor mostre o conteúdo do texto e o relacione à realidade atual, de alguma forma. No entanto, o que se tem visto, de modo geral, são textos anódinos, que não dizem nada da realidade da criança, fazendo com que esse aluno não seja afetado pelo texto, ou seja, ele pouco ou quase nada apreciará no texto, pois não construirá significados para ele. Proporíamos como sugestão aos professores que trabalham com esse material que procurem, na medida do possível, trazer os textos para os contextos sociais das crianças a eles expostas, a fim de que construam significados para os textos, partindo de seus letramentos familiares.

A variedade dos gêneros textuais trabalhados é, portanto, essencial para que os alunos conheçam e exerçam as muitas práticas da escrita. Ainda assim, percebemos um forte hiato entre as concepções de letramento que subsidiam o Currículo Básico Comum e o Consolidando a Alfabetização em 60 lições, uma vez que as atividades propostas por este não mencionam a função social de cada texto, nem seu contexto real de utilização.

No decorrer do trabalho proposto para uma aula, podemos detectar um novo momento de leitura, realizado ao final dos itens, com duração de 15 minutos. Esperava-se que, pelo menos nesse momento, a leitura fosse para o mero prazer de ler. Entretanto, contrariando nossas expectativas, o que acontece é a mesma prática dos itens anteriores: codificação, decodificação e sedimentação de práticas escolares de letramento.

Nossa sugestão aos órgãos competentes é que seja feita uma reflexão a respeito do grande fosso existente entre o que realmente propõe o documento norteador da educação em Minas Gerais (CBC) e a sua transposição para prática de sala de aula, em que o letramento ideológico visto enquanto prática social se transforma em letramento autônomo, conhecimento técnico da língua, como se isto bastasse à aplicabilidade da leitura e escrita em diversas situações sociais.

Observamos que a concepção do fenômeno do letramento ainda não é bem compreendida, como se pode observar nas falas da analista educacional, o que nos leva a pensar que há necessidade de que os especialistas se aprofundem mais no conhecimento do fenômeno do letramento, para que possam desempenhar seu papel na escola de modo efetivo, no sentido de valorizar um trabalho com o texto escrito que considere sua função e uso social.

Para finalizar nossas reflexões, consideramos que uma mudança de paradigma no ensino da língua, no sentido de torná-la um elemento emancipador e transformador das realidades sociais, não depende somente de teorias bem elaboradas, como as que observamos no CBC; é preciso atentar para que, quando forem transpostas de um programa para outro, as teorias sejam aplicadas adequadamente, para, de fato, promoverem o letramento do aluno.

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Autor notes

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Maria Emília Almeida da Cruz Tôrres: Mestre e doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem - IEL - UNICAMP. Professora da Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL-MG, onde é docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, atuando na linha de pesquisa Cultura, Práticas e Processos na Educação, com foco em estudos sobre os fenômenos da alfabetização e do letramento, privilegiando a pesquisa de natureza qualitativa e de perfil etnográfico. E-mail: almeidadacruz.mariaemilia@gmail.com ORCID: http://orcid.org/0000-0003- 4731-7163 Aline Ferreira Fonseca: Mestre em Educação pela UNIFAL-MG, com pesquisa na linha Cultura, práticas e processos na educação, com enfoque no tema Letramento, sob orientação da Profª Drª Maria Emília Almeida da Cruz Tôrres. Graduada em Normal Superior pelo Centro Universitário do Sul de Minas-UNIS-MG (2005), pós-graduação em Supervisão Escolar, pela FINOM (2006). Possui experiência na área de Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino. Professora da rede municipal de Paraguaçu-MG desde 1998, lecionando da Educação Infantil até o 5º ano do Ensino Fundamental. Atuou como tutora do programa Pró-letramento do MEC e coordenadora local do PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa). E-mail: alinezinha_1512@hotmail.com ORCID: http://otvif.oth/0000-0002- 6157-074X NOTA: As autoras Aline Ferreira Fonseca e Maria Emília Almeida da Cruz Tôrres foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo do presente manuscrito.


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