RATES – Reserva das cooperativas brasileiras em prol dos cooperados: há incentivo para a sua realização?
RATES - Reserveof brazilian cooperatives for members: is there an incentive for its realization?
RATES – Reserva das cooperativas brasileiras em prol dos cooperados: há incentivo para a sua realização?
Enfoque: Reflexão Contábil, vol. 39, núm. 3, pp. 19-36, 2020
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 19 Dezembro 2018
Corrected: 06 Agosto 2019
Aprovação: 26 Setembro 2019
Resumo: Dois dos princípios do cooperativismo que moldam a natureza e o funcionamento das cooperativas são destacados no presente trabalho: o Princípio da Educação, Treinamento e Informação Cooperativa; e, o Princípio da Preocupação com a Comunidade. A existência desses princípios corrobora o objetivo social das cooperativas. Com base nisso, no Brasil, a Lei nº 5.764/71 determina a criação do Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES-RATES) para cooperativas, uma reserva de constituição obrigatória, sendo destinada à prestação de assistência técnica, educacional e social aos associados e seus familiares. Contudo, a inexistência de determinações legais sobre a realização da RATES tem feito com que haja um aumento desenfreado dessa reserva em algumas cooperativas brasileiras. O objetivo da pesquisa foi analisar e discutir os possíveis fatores e consequências associadas à redução da utilização dos recursos vinculados à reserva de assistência técnica, social e educacional nas sociedades cooperativas brasileiras. A metodologia da pesquisa é desdobrada em uma análise quantitativa dos dados das cooperativas listadas na edição das 400 Melhores e Maiores do setor agropecuário, publicados pela Revista Exame 2016 e na análise de 21 entrevistas com partes interessadas envolvidas no processo de constituição e realização da RATES. Os dados da demonstram que 76% das cooperativas da amostra apresentam valores de constituição que ultrapassam os valores de realização. Segundo os entrevistados, a RATES deixa de ser realizada porque compõe o capital de giro da cooperativa, por insuficiência de fluxo de caixa, e por seus valores estarem financiando estoques, imobilizado e investimentos das cooperativas.
Palavras-chave: Reserva, Retorno, Cooperado, Princípios.
Abstract: Two of the principles of cooperativism that shape the nature and functioning of cooperatives are highlighted in the present research: the Principle of Education, Training and Cooperative Information; and, Principle of Concern with the Community. These principles corroborates the social objective of cooperatives. Brazilian Law No. 5,764 / 71, establishes the creationt of the Technical, Educational and Social Assistance Fund (FATES-RATES) for cooperative, which is a compulsory fund, for the provision of technical assistance, educational and social support to members and their families. However, the inexistence of legal determinations on the realization of RATES has caused an increase of such fund in some Brazilian cooperatives. Therefore, the objective of the research is to analyze and discuss the possible factors and consequences related to the reduction of the use of resources linked to the RATES in Brazilian cooperative societies. The research methodology is deployed in a quantitative analysis of the data of the cooperatives listed in the edition of the 400 Best and Largest in the agricultural sector, published by Exame 2016 Magazine and in the analysis of 21 interviews with stakeholders involved in the process of constitution and realization of RATES. The data show that in 76% of the cooperatives of the sample there are values of constitution that exceed the values of implementation. According to the interviewees, RATES cease to be realized because it makes up the working capital of the cooperative, due to insufficient cash flow, and its values are financing inventories, fixed assets and investments of cooperatives.
Keywords: Reserve, Return, Member Principles.
1 INTRODUÇÃO
Os princípios do cooperativismo moldam a natureza e a estrutura de funcionamento das sociedades cooperativas como organizações econômicas. O esboço da primeira versão dos princípios cooperativistas foi instituído em Rochdale no ano de 1844 e passou por adaptações ao longo do tempo, principalmente nos Congressos da International Co-operative Alliance (ICA), em 1937, em Paris; em 1966, em Viena; e em Manchester, em setembro de 1995. Contudo, de acordo com Schneider (2012), mesmo diante das modificações, a essência da doutrina e o espírito cooperativista por trás dos princípios foram mantidos.
Dentre os sete princípios de 1995, dois são destacados no presente trabalho: o Princípio da Educação, Treinamento e Informação Cooperativa (5º Princípio); e, o Princípio da Preocupação com a Comunidade (7º Princípio). A existência desses dois princípios corrobora o objetivo social das cooperativas pela busca da satisfação das aspirações sociais e culturais dos seus cooperados e da comunidade que interage com as mesmas. Com base nisso, no Brasil, a Lei nº 5.764/71, conhecida como Lei das Cooperativas, determina a criação do Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES) para sociedades cooperativas. O mesmo ocorre, por exemplo, na Espanha, onde a Lei de Cooperativas 27/1999 destaca que há os Fondos de Educación y Promoción, criados para ampliar a ajuda mútua entre os cooperados, aplicando os fundos para formação e educação destes, promovendo relações intercooperacionais, promoção cultural e profissional.
A partir da Norma Brasileira de Contabilidade Técnica 10.8 que é específica para entidades Cooperativas, item 10.8.1.12 – Os Fundos previstos na legislação ou nos estatutos sociais, nesta norma, são denominados Reservas, a mesma mudança de terminologia contábil é mantida na Interpretação Técnica Geral (ITG) 2004 – Entidades Cooperativas. Dessa forma, na contabilidade, a sigla FATES passa a ser RATES – Reserva de Assistência Técnica Educacional e Social.
A preocupação que surge é que essa reserva, criada com o objetivo de assistência social, educacional e técnica, de fato pode não estar sendo atendida. A não realização dessa reserva indica que a essência cooperativista pode não estar sendo priorizada e, consequentemente, os 5º e 7º princípios são afetados por não serem exercidos, da mesma forma que o benefício que poderia ser gerado ao cooperado não ocorre. É possível observar que a não destinação e não realização da RATES representa uma grande perda para os cooperados e seus familiares que não têm o seu benefício, que é garantido por lei, de retorno de assistência educacional, social e técnica utilizados. Nesse sentido, o capital que deveria ser investido para benefício direto dos cooperados pode estar sendo destinado a outras finalidades dentro da cooperativa, que, mesmo diante de um propósito de gestão, representa o descumprimento da função dessa reserva, de acordo com a Lei das Cooperativas, a Lei nº 5.764/71.
Para Webb (2014) e Balaguer e Castellano (2012) há inadequação das práticas contábeis utilizadas pelas cooperativas em relação à evidenciação dos benefícios gerados em prol dos cooperados por meio das diferentes estratégias de retorno possíveis, tanto quando o cooperado atua na função de usuário, quanto na de proprietário. Esses autores reconhecem a necessidade de uma contabilidade que apresente informações que possibilitem um processo de reconhecimento, mensuração e evidenciação mais amplo do que o aplicado nas demonstrações financeiras tradicionais atuais, inclusive permitindo explorar melhor a realização das reservas em prol dos cooperados. Esse processo de inadequação também pode colaborar para a falta de incentivo para utilização da RATES.
A contabilidade precisa apresentar informações que possibilitem mensuração e evidenciação adequadas dos retornos oferecidos aos cooperados, como forma de prestação de contas e para garantir que o capital dos membros não seja expropriado. Isso é necessário, pois o capital em uma cooperativa é claramente diferente de uma organização de capital, mas as regras de contabilidade são formuladas como se o cooperado fosse apenas um acionista (WEBB, 2017).
Como consequência dessa inadequação contábil nas sociedades cooperativas, os recursos empregados em prol da assistência técnica, educacional e social dos cooperados não são, geralmente, mensurados como retornos aos cooperados, muito menos percebidos como tal. Isso também é refletido na apuração dos índices de rentabilidade da cooperativa, que normalmente são calculados com base apenas na estratégia de retorno por meio de sobras, ignorando demais tipos de retornos que a cooperativa pode oferecer (LONDERO E BIALOSKOSKI NETO, 2016).
Portanto, para conhecer de forma mais aprofundada esse tema, é importante entender se as cooperativas estão ou não realizando e destinando os recursos da RATES para seus devidos fins. Dessa justificativa, tem-se a seguinte questão de pesquisa: Por que as cooperativas brasileiras não realizam os recursos vinculados a Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social? O objetivo da pesquisa é analisar e discutir os possíveis fatores e consequências relacionados à redução da utilização dos recursos vinculados a reserva de assistência técnica, social e educacional nas sociedades cooperativas brasileiras.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 COOPERATIVAS E SUA RESPONSABILIDADE ECONÔMICA E SOCIAL
Para as organizações cooperativas, que buscam funcionar como intermediárias entre o mercado e seus cooperados, a responsabilidade social deve estar alinhada à busca da eficiência econômica. Afinal, é importante perceber que as cooperativas estão imersas no cenário econômico como qualquer outra empresa e competem diretamente com as demais organizações existentes no mercado. Contudo, além de satisfazer as necessidades e aspirações econômicas de seus proprietários, essas organizações ainda desempenham um importante papel social na comunidade onde encontram-se inseridas.
Os modelos de gestão idealizados para as sociedades cooperativas devem prezar tanto pela visão econômica, quanto pela dimensão social. Ou seja, nessas sociedades, seus membros aspiram melhorar suas condições econômicas e também sociais e as cooperativas devem ser compreendidas como meio para atingir ambos os objetivos (HANSMANN, 1996). Bortoleto e Costa (2012) destacam que, se a cooperativa tiver uma maior capacidade de fornecer serviços sociais, educacionais e de assistência, a lealdade dos cooperados em negociar com a cooperativa aumenta.
Dentre os sete princípios cooperativistas, que norteiam o objetivo, a natureza e o funcionamento das cooperativas, dois deles se destacam pelo cunho essencialmente voltado ao objetivo social dessas organizações, sendo eles o 5º princípio referente à educação, treinamento e informação e também o 7º sobre a preocupação com a comunidade.
De acordo com a ICA (2018), é por meio do quinto princípio que as cooperativas se comprometem em proporcionar educação e treinamento para seus cooperados e quadro de colaboradores e aos seus familiares. A partir desse princípio, as cooperativas também se empenham em informar ao público em geral sobre a natureza e os benefícios do cooperativismo, promovendo a chamada educação cooperativista.
O estímulo à educação dos cooperados e seus dependentes é importante e fundamental para o cooperativismo. Para Drumond (2010), as cooperativas devem promover a educação de seu quadro social, pois elas são administradas pelos seus próprios cooperados que necessitam entender que a mecânica dessas organizações é diferente das organizações de capital devido, principalmente a arquitetura organizacional e a distribuição de direito de propriedade.
Já o sétimo princípio inspira nas cooperativas a necessidade de se trabalhar em prol da comunidade local em que a entidade opera. Afinal, a cooperativa utiliza recursos e pode gerar externalidades negativas no seu ambiente de atuação, sendo sua responsabilidade amenizar ou tratar tais externalidades, bem como comunicar a comunidade sobre sua atuação, tanto positiva quanto negativa, e sempre trabalhar em prol do desenvolvimento sustentável, com base no tripé econômico, social e ambiental.
A existência desses dois princípios, principalmente do quinto, incentivou alguns países a criarem em suas leis específicas para sociedades cooperativas a figura de reservas específicas para o fomento da educação e do desenvolvimento social. Esse é o caso do Brasil, que a partir da Lei nº 5.764/71, instituiu o Fundo, contabilmente, a Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES-RATES).
A constituição da RATES representa os esforços das cooperativas em fornecer recursos para o desenvolvimento e a manutenção dos valores cooperativistas, e para a perpetuidade da instituição em prol do cooperado no âmbito de assistência social, assistência educacional e assistência técnica. Esse “fundo é um grande caracterizador de que a sociedade cooperativa tem no social a essência da sua existência e que os resultados econômicos por ela apurados devem estar a serviço dos seus cooperados” (ARRIGONI, 2000, p.65).
Pela lei brasileira, o fundo, ou melhor, a reserva é considerada de constituição obrigatória, sendo destinada à prestação de assistência aos associados, seus familiares e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa. A constituição prevista é de, pelo menos, 5% das sobras líquidas dos atos cooperados apuradas no exercício, acrescidos de 100% dos resultados do ato não cooperado. Assim, torna-se visível que, pela Lei nº 5.764/71, há um incentivo claro para a retenção de valores gerados pela cooperativa em razão da formação de uma reserva, em prol das assistências aos cooperados, contudo, a mesma lei não prevê aspectos vinculados à sua realização. Em outras palavras, os recursos que poderiam auxiliar e garantir o retorno direto ao cooperado dos valores que são destinados a RATES não têm a respectiva forma de realização prevista em lei.
Essa Reserva Educacional e Social também é encontrada nas cooperativas em vários outros países. No Paraguai, a Lei de Cooperativas N° 438, de 1994, estabelece que pelo menos 10% do excedente será destinado à criação do Fundo para a Promoção da Educação Cooperativa. No Uruguai, a Lei n° 18.407 estabelece que 5% das sobras líquidas serão destinadas aos Fundos de Educação e Capacitação Cooperativista. Na Argentina, a Lei 23.427, de 1986, destaca que o Fundo de Educação e Promoção Cooperativa tem como finalidade: a) promover, através dos programas pertinentes, a educação cooperativa em todos níveis de ensino primário, secundário e superior; b) promover a criação e desenvolvimento de cooperativas em todos os ciclos de atividade econômica, primário e fabricação, comercial, serviços, habitação, trabalho e consumo; c) aconselhar as pessoas e instituições sobre os benefícios concedidos pela forma cooperativa de associado; d) promover a criação e o funcionamento de cooperativas que visem elevar o padrão de vida das comunidades. É possível observar que na Argentina esse Fundo Educacional vai além das capacitações técnica e educacional, pois também há investimentos de recursos no desenvolvimento social da comunidade ao apoiar o funcionamento de outras cooperativas.
Além dos já citados, Equador, Nicarágua, Costa Rica, Espanha e Índia também têm o Fundo Educacional e Social garantidos pela Lei de cooperativas local.
2.2 RESERVA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA, EDUCACIONAL E SOCIAL RATES: CASO BRASILEIRO
No caso do Brasil, esses princípios foram legitimados pela Lei nº 5.764/71. A RATES representa a força dos princípios cooperativistas na formação da organização, buscando objetivos sociais (ARRIGONI, 2000). Além da obrigatoriedade de constituição, há outras duas características que distinguem a RATES de qualquer outra reserva que a cooperativa tenha intenção de constituir: destinação de seus recursos vinculados à finalidade específica e indivisibilidade.
Assim como na Argentina, no Brasil, a reserva voltada para o estimulo à assistência dos cooperados também se expande para a finalidade específica de assistência educacional e social. De acordo com a Lei nº 5.764/71, é possível que recursos da RATES sejam direcionados para a assistência técnica da atividade do cooperado, permitindo, nesse aspecto, que a cooperativa empregue recursos para melhorar a qualidade da produção da propriedade rural do cooperado, por exemplo no caso de uma cooperativa agropecuária.
As principais atividades que a RATES engloba são: (a) assistência técnica destinada à prestação de orientação e de serviços variados, auxílio que ocorre na área operacional e na área executiva; (b) assistência educacional que engloba a realização de treinamentos aos cooperados e também aos seus familiares, aos dirigentes e, quando previsto no Estatuto Social, aos funcionários; (c) assistência social que refere-se aos gastos relacionados com promoção e integração social dos cooperados, respectivos dependentes e empregados da cooperativa, além da promoção e integração associativista, englobando nestes, eventos sociais.
A RATES é obrigatória para qualquer cooperativa, independente do seu ramo de atuação, e é principalmente constituída por resultados provenientes do ato não cooperado, uma vez que esse ato é visto somente com finalidade econômica. Essa incorporação na reserva é indivisível e, com finalidade específica, permite que os resultados não sejam distribuídos como dividendos. E mais, ainda permite incorporar o cunho social nesse ato a partir da especificação da sua realização.
Esse resultado que gera um benefício ao cooperado é um grande diferencial das cooperativas, pois uma parte do resultado é reinvestido na organização como capacitação e educação para os associados, lembrando que o cooperado é ao mesmo tempo cliente e proprietário da cooperativa. Ademais, a constituição e utilização da reserva de assistência técnica, educacional e social em prol dos cooperados e familiares pode ser compreendida como uma estratégia de retorno específica das sociedades cooperativas, ou seja, um diferencial proporcionado pela escolha desse tipo de arranjo organizacional que é garantido com a aquisição do direito de propriedade. O direito de propriedade é composto pelo direito de controle residual e o direito de retorno residual (HANSMANN, 1996), no caso das cooperativas, direito de retorno transcende ao resíduo, ele incorpora outros tipos de retornos vinculados à atuação do cooperado na cooperativa (CHADDAD E ILIOPOULOS, 2013) e também aqueles relacionados à realização de reservas indivisíveis, tais como a RATES. A existência dessas diferentes formas de retornos são vantagens competitivas das cooperativas frente a outras estruturas organizacionais, sendo necessário, além de realizá-las, também evidenciá-las para os detentores e potenciais detentores do direito de propriedade (ZYLBERSZTAJN, 1994).
A Lei nº 5.764/71 deixa clara a obrigação da constituição de fundos legais, dentre eles a Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES-RATES), sendo constituído de 5%, pelos menos, das sobras líquidas apuradas no exercício, acrescidos de 100% do resultado líquido das transações realizadas entre cooperativas e agentes não membros.
No âmbito da contabilidade, para orientar o processo de contabilização da RATES, contabilmente denominado de reserva, há a Norma Brasileira Contábil Técnica (NBC T) 10.8 - Entidades Cooperativas, regulamentada pelo Conselho Federal de Contabilidade por meio da Resolução 920/01, substituída, em 2017, pela Interpretação Técnica Geral (ITG) 2004 - Entidades Cooperativas.
O Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social, segundo a ITG 2004, é tido como uma reserva, ou seja, pertencente ao Patrimônio Líquido das cooperativas. No entanto, cabe ressaltar que no caso das cooperativas de crédito, por determinação da Circular 1.273 do Banco Central do Brasil (BACEN), de 29 de dezembro de 1987, seguindo o instituído Plano Contábil das Instituições do Sistema Financeiros Nacional (COSIF), a RATES é parte integrante do Passivo da cooperativa.
De forma prática, a cooperativa deve realizar assistência técnica, educacional e social e contabilizá-la como despesa durante o seu exercício social, seguindo a orientação contida no item 12 da ITG 2004 (2017, p.2) que estabelece: “Os dispêndios de assistência técnica, educacional e social devem ser registrados em contas de resultado, respeitando o regime de competência, e podem ser absorvidos pela Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social (RATES)”.
Ao final de cada exercício, efetua-se a apuração das sobras ou perdas líquidas, por meio das respectivas contas de apuração do resultado do exercício. Conforme a norma contábil indica, tais valores que foram incialmente contabilizados como despesa do período poderão ser absorvidos pela Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social em cada período de apuração, sendo essa uma decisão da gestão.
Caso a cooperativa opte por não contabilizar os gastos com assistência como despesa do período e apresente saldo na conta de reserva, a entidade deve reverter o valor das despesas de assistência técnica, educacional e social contra a conta da RATES, realizando assim a reserva. Somente depois dessa decisão sobre a reversão é que o novo saldo dos resultados líquidos do período será a base de cálculo das destinações, ou seja, a base para a constituição da RATES do próximo período (DICKEL, 2014). Após a constituição das reservas legais e estatutárias, o saldo que eventualmente remanescer permanecerá no Patrimônio Líquido, na conta “Sobras ou Perdas à Disposição da Assembleia Geral”, para que, por meio de deliberação dos cooperados aptos a votar, seja definido o destino destas.
O Quadro1 apresenta um exemplo prático, em branco e a esquerda da tabela, o processo de constituição e realização da Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social. No lado direito, em cinza, a tabela apresenta um exemplo prático do processo de constituição da Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social quando as despesas com assistência técnica, educacional e social não são revertidas contra a RATES.
| Em reais. | ||||||
| Com reversão da RATES | Sem reversão da RATES | |||||
| Ato Cooperado | Ato Não Cooperado | Total | Ato Cooperado | Ato Não Cooperado | Total | |
| Resultado Bruto | 410.000 | 100.000 | 510.000 | 410.000 | 100.000 | 510.000 |
| (-) Despesas Assistência Técnica, Educacional e Social | (20.000) | (10.000) | (30.000) | (20.000) | (10.000) | (30.000) |
| Resultado Líquido do Exercício | 390.000 | 90.000 | 480.000 | 390.000 | 90.000 | 480.000 |
| Reversão da RATES | 15.000 | 10.000 | 25.000 | - | - | - |
| Base das Destinações | 405.000 | 100.000 | 505.000 | 390.000 | 90.000 | 480.000 |
| (-) Destinações Legais e Estatutárias | (60.750) | (100.000) | (160.750) | (58.500) | (90.000) | (148.500) |
| (-) Constituição RATES Ato Não Cooperado | - | (100.000) | (100.000) | (90.000) | (90.000) | |
| (-) Constituição RATES Ato Cooperado (5%) | (20.250) | - | (20.250) | (19.500) | - | (19.500) |
| (-) Constituição Reserva Legal (10%) | (40.500) | - | (40.500) | (39.000) | - | (39.000) |
| Sobras à Disposição da Assembleia Geral | 344.250 | - | 344.250 | 331.500 | - | 331.500 |
Como se pode perceber, a despesa de assistência técnica, educacional e social pode estar vinculada ao ato cooperado e também ao ato não cooperado, uma vez que, desde que previsto em estatuto, a realização da reserva pode abranger os colaboradores da cooperativa, bem como os familiares dos cooperados. Ademais, a reversão dos valores da despesa com assistência pode ser parcial, uma vez que nem a Lei nº 5.764/71 nem a ITG 2004 especificam tal aspecto.
Nesse exemplo específico, com conversão da RATES, observa-se que R$ 120.250 (R$ 100.000 do Ato Não Cooperado e R$ 20.250 do Ato Cooperado) foram destinados à constituição dessa Reserva. Destaque-se que a base de constituição dessa reserva está aumentada em R$ 25 mil, relativos à sua reversão, mesmo tendo a cooperativa empregado R$ 30.000 em assistência técnica, educacional e social, pois a reversão total ou parcial é uma opção da cooperativa. Nesse exemplo, a opção foi de reverter somente parte dessa despesa (R$ 30.000).
Por outro lado, se essa cooperativa optar por não reverter qualquer valor de despesa de assistência técnica, educacional e social no período, a base para a constituição da RATES será alterada e, portanto, seu novo valor será de R$ 109.500. Esse valor de R$ 109.500 refere-se à soma de todo resultado do Ato Não Cooperado (R$ 90.000) mais R$ 19.500 que representa 5% do valor do resultado do Ato Cooperado (R$ 390.000).
Nesse caso, a opção por manter como despesas, sem a respectiva reversão, os valores realizados com assistência técnica, educacional e social representará uma redução de 8,9% (109.500/120.500 menos 1) na formação da RATES nesse período. Assim, pode-se perceber que quanto mais a cooperativa realiza despesas com assistência técnica, educacional e social, mas não efetua sua respectiva reversão, menor será a constituição dessa reserva específica que, em princípio, deve ser formada em prol do cooperado.
A ITG 2004 (CFC, 2017) prevê que o saldo e as formas de realização e utilização da RATES sejam evidenciados em Nota Explicativa, mas não estabelece o mesmo grau de exigência para as despesas de assistência técnica, educacional e social, que usualmente, nas cooperativas, são tratadas como despesas operacionais. Essa diferença entre a evidenciação dos valores que efetivamente são destinados em prol dos cooperados faz com que se reduzam as informações contábil-financeiras que são repassadas aos cooperados, o que em nível mais extremo pode até significar a perda de vantagem competitiva, uma vez que o cooperado não verifica a totalidade dos benefícios que recebem por fazer parte desse tipo de organização.
A Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) divulgou, em outubro de 2018, a ITG 2004 Comentada. O objetivo dessa divulgação é fortalecer o sistema cooperativo pelo uso adequado da contabilidade. Além disso, guiar os aplicadores das normas contábeis no emprego das previsões que constam na ITG ٢٠٠٤, para minimizar a interpretação e aplicação equivocadas de seus dispositivos. Logo, visa simplificar sua prática e uso. Referida publicação também destaca que é fundamental a adoção de regras contábeis uniformes consubstanciadas nas demais práticas contábeis vigentes, mas deve-se destacar que ela não tem força normativa, sendo apenas uma orientação de como se deve aplicar a ITG 2004.
Com relação a forma de contabilização da RATES, a orientação da OCB estabelece a possibilidade de destinação direta do valor revertido da RATES para as sobras à disposição da assembleia, indicando que “o dispêndio de assistência técnica, educacional e social, quando absorvido pela RATES, será transferido e revertido do Resultado Apurado (sobras) após as destinações legais (Reserva Legal e RATES) e estatutárias. Ou seja, a reversão desse dispêndio no resultado não compõe a base de cálculo dessas destinações.” (OCB, 2018).
O Quadro 2 apresenta um exemplo prático do processo de constituição e evidenciação da reversão da RATES com base na orientação da OCB.
| Em reais. | |||
| Sem reversão da RATES | |||
| Ato Cooperado | Ato Não Cooperado | Total | |
| Resultado Bruto | 410.000 | 100.000 | 510.000 |
| (-) Despesas Assistência Técnica, Educacional e Social | (20.000) | (10.000) | (30.000) |
| Resultado Líquido do Exercício | 390.000 | 90.000 | 480.000 |
| Base das Destinações | 390.000 | 90.000 | 480.000 |
| (-) Destinações Legais e Estatutárias | (58.500) | (90.000) | (148.500) |
| (-) Constituição RATES Ato Não Cooperado | ( 90.000) | (90.000) | |
| (-) Constituição RATES Ato Cooperado (5%) | (19.500) | - | (19.500) |
| (-) Constituição Reserva Legal (10%) | (39.000) | - | (39.000) |
| Sobras antes da Reversão da RATES | 331.500 | - | 331.500 |
| Reversão da RATES | 15.000 | 10.000 | 25.000 |
| Sobras à Disposição da Assembleia Geral | 346.500 | - | 356.500 |
Assim, a OCB orienta o contador a realizar o procedimento de reversão, conforme o exemplo “com reversão” apresentado no Quadro 1. Contudo, pelo fato de o valor da reversão não compor a base das destinações, os valores das reservas constituídas são iguais ao do exemplo do Quadro 1 “sem reversão”, ou seja, Reserva Legal R$ 39.000 e RATES R$ 109.500. Reiterando o que já foi dito, a “Base das Destinações” é de R$ 480.000, pois o valor da reversão da RATES de R$ 25.000 não a compõe, pois são revertidos diretamente para a conta “sobras à disposição da assembleia”, aumentando-a em R$ 25.000. Dessa forma, as sobras que totalizavam R$ 331.500 no exemplo do Quadro 1, “sem reversão”, passaram a ser R$ 356.500.
3 METODOLOGIA
No que tange a abordagem metodológica, a presente pesquisa apresenta orientação ontológica e epistemológica multiparadigmática, permitindo uma visão complementar sobre o fenômeno estudado. De acordo com Schultz e Hatch (1996), essa orientação metodológica é interessante quando o fenômeno estudado necessita de informações adicionais que não possam ser trazidas somente pela abordagem primária. A estratégia sequencial constrói o relacionamento entre paradigmas como linear e unidirecional, embora também seja utilizada para rever algum pressuposto assumido com os achados da abordagem inicial.
Assim, em um primeiro momento, o trabalho apresenta uma abordagem positivista, com ênfase quantitativa e objetivo exploratório. Burrell e Morgan (1979) descrevem que esse paradigma procura explicar o que acontece no mundo social na busca de regularidades e relações causais, explorando o fenômeno por meio de dados e informações concretos e objetivos, normalmente a posteriori. Smith (2015) aponta que a metodologia quantitativa de pesquisa pode ser empregada em estudos de forma preliminar aos métodos e técnicas qualitativas, e é recomendada justamente quando o assunto da pesquisa é pouco explorado na literatura, ou se se deseja obter mais informações sobre o fenômeno que está sendo estudado.
O objetivo específico dessa etapa da pesquisa é investigar os níveis de constituição e realização da Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social (RATES) das cooperativas agropecuárias brasileiras e propiciar subsídios para as entrevistas como forma de apresentar e investigar casos onde a RATES não é realizada. Para tanto, a pesquisa utiliza a técnica da análise documental, com uma amostra baseada nas sociedades cooperativas presentes na lista das 400 Maiores do Agronegócio de 2016, publicada pela Revista Exame – Melhores & Maiores.
Por meio de solicitação realizada aos organizadores da Revista Exame – Melhores & Maiores foram obtidos os Balanços Patrimoniais, Demonstração de Sobras e Perdas, Demonstração de Mutações do Patrimônio Líquido, Demonstração de Fluxo de Caixa, Notas Explicativas, Relatório da Administração e, quando disponível, Demonstração do Valor Adicionado e Balanço Social das sociedades cooperativas. A amostra, relativa às demonstrações contábeis de 2015 é composta por 58 cooperativas sendo que 3 delas foram retiradas por serem classificadas como cooperativas de centrais, que reúnem cooperativas singulares; essa exclusão foi feita para evitar duplicidade de informação. A estatística descritiva da amostra é apresentada na Tabela 1.
| Em milhares de reais. | |||||
| n = 55 | Total do Ativo | Passivo Circulante | Patrimônio Líquido | Capital Social | Reservas de Lucros |
| Média | 1.217.486 | 609.844 | 369.044 | 66.668 | 258.284 |
| Mediana | 530.042 | 270.097 | 150.408 | 31.430 | 98.749 |
| Mínimo | 117.112 | 45.750 | 7.880 | 551 | 489 |
| Máximo | 8.188.041 | 4.292.639 | 3.656.285 | 830.191 | 3.404.993 |
A segunda etapa da pesquisa é centrada na metodologia qualitativa por meio do emprego da técnica e instrumento conhecido como entrevista, sob enfoque da orientação interpretativa. Chua (1986) expõe que essa orientação metodológica adota que o mundo em si possui substância, mas que só adquire significado a partir da interação com o sujeito, sendo essencial entender o fenômeno observado por meio da visão daqueles que interagem com ele. Para Crotty (1998) e Bryman (2008), essa postura metodológica exige que os métodos e técnicas propostos pela pesquisa sejam diferentes das pesquisas regidas pelo positivismo tradicional, uma vez que também precisam incorporar a percepção dos agentes envolvidos no ambiente do fenômeno estudado.
Assim, essa fase tem o intuito de investigar a percepção dos sujeitos envolvidos ou beneficiados com o processo de constituição e realização da RATES, como forma de investigar os motivos de as cooperativas não realizarem tal reserva. Para Gadamer (2003), a utilização dessa técnica, sob a orientação interpretativista, permite que o fenômeno seja compreendido por meio da própria vivência, sendo que nesse caso, a objetividade é renunciada.
Em busca da validade dos dados apresentados na pesquisa, será empregada a triangulação da fonte da coleta de dados, assim como propõe Maxwell (2009). Essa triangulação envolvendo a coleta de diferentes fontes permite que a percepção sobre o processo de constituição e realização da RATES, seja explorado por meio de perspectivas complementares, ou até mesmo contraditórias, conforme sugerido por Kuzel (1992). Assim, os grupos de entrevistados, ou seja, os públicos-alvo selecionados para a pesquisa são: representantes do movimento cooperativista, contadores das cooperativas brasileiras, cooperados participantes do conselho fiscal e pesquisadores vinculados a estudos de administração, contabilidade e economia nas sociedades cooperativas.
De acordo com Yin (2016), a técnica de entrevista como instrumento de coleta de dados é utilizada quando o objetivo é captar diferentes percepções e opiniões em relação a um determinado fenômeno, comportamento, ação ou experiência. Assim, o roteiro de entrevista semiestruturado foi elaborado com esse objetivo, contendo perguntas como:
"Na sua percepção, o cooperado possui conhecimento sobre os retornos oriundos da RATES em seu benefício? O cooperado compreende a utilização desses recursos como retorno próprio?"
"Analisando as informações sobre os valores de constituição e a realização da RATES, como tais diferenças podem ser explicadas?"
"Como as informações sobre a realização da RATES são repassadas para os cooperados?"
"Quando e quem determina se as despesas de assistência técnica, social e educacional serão absorvidas pela RATES?"
"Com relação aos retornos da RATES, como é realizada a contabilização dos recursos utilizados? Quando a escolha pela utilização da reserva é realizada?"
Dependendo do público-alvo da entrevista, as questões do roteiro foram reestruturadas, tendo-se em vista a atuação de cada sujeito no processo de decisão vinculado à constituição e realização da RATES, ou conhecimento esperado sobre o processo. De acordo com Smith (2015), a pesquisa qualitativa não tem o propósito de generalização dos resultados, por essa razão não há a preocupação com a extensão da amostra; contudo, isso não invalida o rigor científico necessário nesse tipo de abordagem e os cuidados no momento da seleção dos entrevistados.
Na presente pesquisa, o número de entrevistados não foi determinado a priori, utilizando-se o princípio da saturação, ou seja, as entrevistas foram conduzidas até que se compreendeu que se obteve um nível adequado de dados e informações, suficientes para que o pesquisador tivesse segurança para conduzir a análise, conforme a estratégia de saturação proposta por Glaser e Strauss (1967). Com relação aos entrevistados, a Tabela 2 apresenta os agentes envolvidos com o cooperativismo que foram ouvidos na pesquisa.
Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Os áudios das entrevistas e suas transcrições serão armazenados pelo período de três anos, como dados dos pesquisadores. Ademais, todos os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido liberando a utilização dos relatos para a pesquisa.
A análise das entrevistas é baseada na perspectiva da interação, cuja a análise é focada na fala do respondente e interpretação do fenômeno pelo pesquisador, com essência subjetiva (ALASUUTARI, 1995). Para análise da perspectiva baseada na interação foi aplicado o método proposto por Tesch (1990), que indica dez processos e práticas para a análise qualitativa, que basicamente consiste na padronização e categorização das evidências, comparação e confrontação dos relatos e dados, reflexão dos pesquisadores sobre os processos anteriores e construção das análises e considerações com a amarração entre teoria, pressupostos da pesquisa e evidências empíricas coletadas.
| Entrevistados | Público | Cargo ou nível de formação | Data |
| Entrevistado 1 | Contador | Analista Org. Estadual | 09/11/2017 |
| Entrevistado 2 | Representante do Movimento | Analista Org. Estadual | 10/11/2017 |
| Entrevistado 3 | Pesquisador do Cooperativismo | Doutorado Contabilidade | 27/11/2017 |
| Entrevistado 4 | Representante do Movimento | Analista Org. Brasileira | 30/11/2017 |
| Entrevistado 5 | Pesquisador do Cooperativismo | Doutorado Contabilidade | 04/12/2017 |
| Entrevistado 6 | Representante do Movimento | Sup. Org. Estadual | 24/01/2018 |
| Entrevistado 7 | Pesquisador do Cooperativismo | Mestrado Direito | 24/01/2018 |
| Entrevistado 8 | Contador | Contador | 25/01/2018 |
| Entrevistado 9 | Pesquisador do Cooperativismo | Doutorado Administração | 27/02/2018 |
| Entrevistado 10 | Pesquisador do Cooperativismo | Doutorado Administração | 27/02/2018 |
| Entrevistado 11 | Auditor | Proprietário | 01/03/2018 |
| Entrevistado 12 | Representante do Movimento | Presidente Org. Estadual | 02/03/2018 |
| Entrevistado 13 | Pesquisador do Cooperativismo | Doutorado Administração | 14/03/2018 |
| Entrevistado 14 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 22/05/2018 |
| Entrevistado 15 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 22/05/2018 |
| Entrevistado 16 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 22/05/2018 |
| Entrevistado 17 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 22/05/2018 |
| Entrevistado 18 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 23/05/2018 |
| Entrevistado 19 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 23/05/2018 |
| Entrevistado 20 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 23/05/2018 |
| Entrevistado 21 | Cooperado | Membro Conselho Fiscal | 23/05/2018 |
4 RESULTADOS
Os resultados da pesquisa são desdobrados de acordo com a abordagem metodológica proposta, assim, o item 4.1 apresenta as informações obtidas por meio da análise documental, enquanto o item 4.2 evidencia os relatos coletados durante as entrevistas realizadas com as partes interessadas da RATES.
4.1 ACHADOS DA FASE DE ANÁLISE DOCUMENTAL
No que tange à análise documental dos demonstrativos contábeis das 55 cooperativas agropecuárias analisadas, somente foi possível identificar o emprego dos recursos da RATES em 42 cooperativas, ou seja, 73% da amostra. Essa dificuldade de visualização dos recursos empregados na realização da RATES se deve à falta de abertura na conta de reservas de lucros, tanto no Balanço Patrimonial, quanto na Demonstração de Mutações do Patrimônio Líquido, mesmo diante da obrigatoriedade legal imposta pela Interpretação Técnica Geral (ITG) 2004 (2017), que regula a contabilidade das cooperativas no Brasil.
Nesse sentido, destaca-se que essa falta de abertura sobre a RATES nas demonstrações contábeis dificulta o processo de transparência das informações, ou seja, não contribui para o aprimoramento das práticas de governança. Afinal, essas 13 cooperativas onde não foi possível analisar a constituição e realização da RATES, podem, potencialmente, não estar levando tais informações para os cooperados.
Nas 42 cooperativas que apresentaram as informações, a representatividade média da RATES perante o Patrimônio Líquido, considerando as informações de 2015, é de 16%, enquanto frente ao capital social essa relação chega a 117%, ou seja, supera o capital social significativamente em 32 cooperativas da amostra analisada. Essa informação é preocupante, pois pode sinalizar que as cooperativas estão mantendo altos níveis de RATES para manter seu capital de giro, algo que não estão conseguindo realizar apenas com o capital social incorporado por seus cooperados.
Ademais, esse alto volume da RATES perante o capital social pode gerar preocupação com relação à sustentabilidade das cooperativas. A RATES, legalmente, somente pode ser empregada em prol das assistências técnica, educacional e social, não podendo ser utilizada para absorver potenciais perdas da cooperativa ou outras finalidades, diferentemente do capital incorporado via cotas de capital ou incorporação de sobras ao capital. É claro, esse panorama também pode ser reflexo do fato de as cooperativas brasileiras serem majoritariamente dependentes de capital de terceiros, não sendo uma prática comum o aumento de capital por livre incorporação, mas sim pela incorporação de sobras definidas no estatuto. Assim, enquanto a RATES apresenta crescimento mais acelerado, pelo crescimento do ato não cooperado ou até mesmo pela falta de políticas de realização, o capital social das cooperativas brasileiras possui um histórico de variabilidade menor, sendo que a maior porcentagem da variabilidade é atribuída a possíveis incorporações de sobras propostas em estatuto ou definidas em assembleia geral.
Considerando-se o conjunto de reservas de lucros, da qual a RATES faz parte, essa reserva representa, em 2015, em média, 21% do valor total. Cabe destacar que, no Brasil, além da RATES ser um fundo, tratado como reserva na contabilidade e obrigatório, a legislação também determina a formação da Reserva Legal, formada por 5% do ato cooperado, que também é considerada reserva de lucro. Também representam reservas de lucros: reserva para contingências, reserva de incentivos fiscais, reserva de lucro para expansão e reserva de lucros a realizar. A diferença da RATES para as demais reservas de lucros é que essa é considerada uma reserva indivisível e, no caso de liquidação da cooperativa, seus recursos não podem ser distribuídos para os cooperados e sim destinados ao governo.
Em uma análise individual, a cooperativa com maior RATES acumulada, de acordo com os demonstrativos contábeis de 2015, é a Coamo, sediada no estado do Paraná, que atua no segmento de grãos. Essa cooperativa, em 2015, apresentava R$ 1,2 bilhão de recursos disponíveis para serem empregados em prol da assistência educacional, social e técnica. Na Coamo, a RATES representa 33% do Patrimônio Líquido, é 80% superior ao Capital Social e, em 2015, destinou R$ 204 milhões para essa reserva, ao mesmo tempo que não informou o valor do recurso empregado nesse período.
Esse caso chama atenção pelo alto valor da RATES acumulado, que poderia ser aplicado como retorno ao cooperado como assistência técnica, educacional e social. Contudo, é importante salientar que esses dados podem não indicar que a cooperativa esteja deixando de prestar esses tipos de assistência aos cooperados, apenas sinalizam que, em uma escolha contábil, a cooperativa contabiliza tais valores como despesas do período e não as está revertendo como realização da RATES. Esse tipo de escolha contábil pode dar margem para utilização da RATES em finalidade não especificada na Lei 5.764/71.
Para verificarmos o panorama geral sobre a reserva, a Tabela 3 apresenta a estatística descritiva da RATES, nos anos de 2014 e 2015, no que se refere a constituição e realização.
| Em milhares de reais. | ||||
| n=42 | Constituição 2014 | Constituição 2015 | Realização 2014 | Realização 2015 |
| Média | 11.277 | 13.539 | 2.303 | 3.221 |
| Mediana | 4.073 | 4.110 | 584 | 656 |
| Mínimo | 115 | - | - | - |
| Máximo | 153.918 | 204.814 | 16.679 | 25.169 |
Para verificarmos o nível de realização da RATES frente à sua constituição, é necessário analisar a realização do período posterior à sua constituição. Assim, os valores de constituição de 2014 foram confrontados com os valores de realização de 2015, com o objetivo de analisar a porcentagem de realização da reserva em relação à sua constituição.
Em 76% das cooperativas da amostra, ou seja, em 32 cooperativas da amostra das 42 listadas na 400 Maiores do Agronegócio de 2016, os valores de constituição ultrapassam os valores de realização, sendo que em média a constituição é 71% superior a realização, considerando-se os dados de 2015. O Gráfico 1 apresenta a comparação de constituição e realização da RATES das sociedades cooperativas brasileiras e foi gerado com os dados de 41 cooperativas agropecuárias, sendo excluída do gráfico a cooperativa Coamo, anteriormente descrita, em função de ser um outlier e dificultar a verificação das informações apresentadas pelo gráfico.

Como pode-se verificar, a média de constituição da RATES foi quase cinco vezes superior aos valores de realização da reserva. Esse cenário já era esperado, e está alinhado com os pressupostos que deram origem ao estudo e também ao problema de pesquisa, que visa analisar os porquês de as cooperativas apresentarem baixo grau de realização da RATES perante sua constituição, mesmo sendo essa uma reserva específica para retorno ao cooperado no que tange a assistência técnica, educacional e social.
Os resultados corroboram com a pesquisa de Ferreira et al. (2018) que identificou que, embora a grande maioria das 51 cooperativas estudadas da amostra reconheça a importância da educação cooperativa, somente a metade delas declara realizar atividades de educação cooperativa. Enumeram-se os empecilhos: desinteresse dos cooperados, limitações de infraestrutura ou de parcerias, priorização das questões econômicas, falta de oportunidades ou de conhecimento. Para tanto, visando auxiliar na resposta à pergunta de pesquisa, a metodologia qualitativa com a utilização da técnica de entrevista foi aplicada na pesquisa.
4.2 ACHADOS DA FASE DE ENTREVISTAS
Com o intuito de investigar a percepção das partes envolvidas ou beneficiadas com o processo de constituição e realização da RATES, foram realizadas 21 entrevistas com os públicos de interesse, sendo eles: representantes do movimento cooperativista, contadores das cooperativas brasileiras, cooperados participantes do conselho fiscal e pesquisadores vinculados a estudos de administração, contabilidade e economia nas sociedades cooperativas.
Os resultados das entrevistas deixam claro que, na percepção dos respondentes, atualmente, a RATES vem sendo pouco empregada nas cooperativas agropecuárias brasileiras, mesmo diante da importância dos potenciais benefícios aos cooperados que poderiam ser gerados, principalmente quando se resgata o 5º princípio do cooperativismo. A maioria dos entrevistados respondeu que os cooperados não conseguem avaliar os retornos oriundos da RATES em seu benefício próprio, o que é preocupante, visto que demonstra desconhecimento da doutrina do cooperativismo e exige que mais investimentos sobre a educação cooperativista sejam realizados.
Além disso, os resultados indicam que mais da metade dos respondentes acreditam que, de forma geral, os cooperados não percebem os benefícios de assistência técnica, educacional e social que são advindos da RATES ou até mesmo oferecidos diretamente pela cooperativa. Usualmente, na percepção dos entrevistados, os benefícios econômicos diretos são mais facilmente percebidos pelos cooperados do que esses retornos indiretos e que se tornam retornos econômicos a longo prazo. Mais uma vez, tais respostas reafirmam a necessidade de se trabalhar a educação cooperativista para enfatizar todas as formas e estratégias de retorno que as organizações cooperativistas podem oferecer aos seus cooperados.
Essa falta de percepção do cooperado, sinalizada pelos entrevistados, pode ser um dos motivos para a baixa realização da RATES nas cooperativas brasileiras. Afinal, se o cooperado não percebe o benefício que é oferecido, não há estímulos para que a cooperativa realize tal estratégia de retorno. Por outro lado, essa falta de percepção do cooperado também pode ser justificada pela assimetria de informação existente entre as partes, pois se a cooperativa não comunica ao cooperado as possibilidades de retorno existentes ou praticadas pela entidade isso torna ainda mais difícil que o mesmo desenvolva tal percepção sobre retornos não pecuniários.
Tais percepções foram construídas com base nos relatos dos entrevistados que podem ser observados a seguir:
Entrevistado 4: “tem tantos benefícios; é que, muitas vezes, o cooperado não vê, não reconhece, e como é.... Está faltando comunicação, mostrar para o sócio a importância do FATES.”
Entrevistado 5: “o FATES, por exemplo, nada mais é, na minha opinião, para o associado, do que um número apresentado no Balanço, como forma de alocar valores. Ponto. O associado não... não vê isso como realmente um benefício para ele... não revertem em benefício para o associado... Não há uma abertura dessas rubricas realmente, especificamente, para demonstrar qual foi o benefício gerado com isso.”
Entrevistado 6: “Não tem esse conhecimento. E talvez aquilo que é, de novo, a comunicação com o cooperado, mostrar para ele o resultado daquela Assistência Técnica.”
Entrevistado 7: “O cooperado não percebe benefício do FATES.”
É possível observar que uma das principais considerações dos entrevistados sobre os cooperados não perceberem os benefícios da RATES estão relacionados à falta de comunicação clara, prática e assertiva que não acontece entre cooperativa e cooperado em relação à prestação de contas das assistências prestadas. Além disso, um dos respondentes destacou que os gestores podem não ter interesse em publicar essas informações que são prestadas em assembleias.
Entrevistado 12: “Se eu quisesse, como gestor, mostrar o benefício...É possível... O produtor fica sempre atento às informações.”
No geral, os entrevistados responderam que os cooperados até têm potencial para perceberem o retorno da RATES, mas isso depende diretamente da cooperativa se comprometer com a comunicação dos investimentos que são feitos em prol das assistências realizadas ao cooperado. Ou seja, a percepção dessa estratégia de retorno é possível, desde que efetivamente o 5º princípio do cooperativismo - Princípio da Educação, Treinamento e Informação Cooperativa - seja empregado dentro da cooperativa e a adequada comunicação exista. Isso também está diretamente relacionado ao processo de governança, pois a transparência das informações é a sua base.
Tendo em vista a baixa realização da RATES revelada pela análise documental realizada, perguntou-se, na entrevista, se os entrevistados acreditavam que a RATES deveria ter uma porcentagem de realização obrigatória prevista em lei, assim como ocorre com a sua constituição. A resposta foi unanime, todos concordaram que a RATES deveria ter 100% ou parte de sua realização determinada de forma obrigatória por lei. Os resultados que isso traria para a comunidade seria o cumprimento da finalidade da reserva, também conhecida como fundo.
Entrevistado 9: “Com certeza.”
Entrevistado 12: “...falta regulamentação do Fundo.”
Entrevistado 5: “...eu acho que deveria haver uma sanção, não é?; ou, regras rígidas que realmente vinculem esses valores à sua realização; porque, fora isso, não havendo um vínculo sancionatório, é... a gente sabe que os números, eles podem ser realocados, conforme o interesse.”
Quando o panorama da análise documental era apresentado aos respondentes, com o intuito de verificar a possível justificativa para a falta de realização da RATES, os entrevistados sinalizaram que essa era uma possível estratégia para inflar o balanço, ou seja, aumentar o valor de patrimônio líquido das cooperativas. Ademais, a RATES deixa de ser realizada porque compõe o capital de giro da cooperativa, por insuficiência de fluxo de caixa, e seus valores acabam financiando estoques, imobilizados e investimentos das cooperativas, o que não está de acordo com a Lei nº 5.764/71.
Entrevistado 1: “Na verdade, o... me parece, que é o... o FATES, hoje, ela é utilizada para compor o fluxo de caixa das cooperativas... que isso vai ajudar a financiar as suas operações a longo prazo.”
Entrevistado 2: “Eu acho que esse valor que está, nos fundos, ajuda na solidez da cooperativa, talvez para demonstrar saúde financeira...Tem, tem cooperativas que nunca realizaram o FATES, fazem aquele discurso, que usam esse recurso como uma espécie de giro, de sei lá o que; mas é justamente o que você fala, é um desvio; porque, na verdade, você pode usar o recurso, não realizar ele e comprar um prédio, não é.”
Entrevistado 6: “Ele se tornou uma fonte de capital de giro. Simplesmente, por isso. Se eu utilizar, eu estou diminuindo o meu capital de giro.”
Entrevistado 10: “Ele está lá no patrimônio líquido, a origem está lá, ou ele está aplicado no Ativo; ou, ele pode estar fazendo parte do imobilizado, ele pode estar no estoque, pode estar no financiamento.”
Entrevistado 12: “É um Fundo de Manutenção de Capital de Giro.”
Também são apontadas como justificativas, de acordo com a grande maioria dos respondentes, a falta de conhecimento do contador sobre as possibilidades de emprego da RATES e a falta de interesse do gestor em realizar esses recursos para garantir a liquidez, captação do negócio, solvência e situação financeira da cooperativa, preferindo acumular o valor no patrimônio líquido.
Entrevistado 4: “O gestor não sabe como empregar esse recurso, ele não tem conhecimento sobre isso”. “O contador não informa como deve ser feito esse emprego desse recurso”. “Esse recurso está imobilizado, está aplicado em outros valores, que não estão... não é disponível para a cooperativa”. “A cooperativa utiliza isso para inflar o seu PL, para competir com as outras organizações grandes, no mercado; então, se a gente tirar esse valor do PL, vai sacrificar o tamanho da cooperativa; então, isso...”
Entrevistado 2: “desconhecimento, não é, da oportunidade de uso desse recurso para determinados fins; que, provavelmente, estão sendo realizados com outros recursos.”
Entrevistado 3: “eles conseguem colocar o recurso para comprar o insumo, do que fazer uma capacitação.”
A partir das informações dos relatos coletados, é possível concluir que a grande maioria das cooperativas brasileiras não está utilizando a RATES para potencializar suas ações em prol do 5º principio cooperativista de formação, educação e informação, que poderiam ser feitas com a realização dessa reserva, pois estão comprometendo esses valores com outras questões que não estão de acordo com a sua essência.
A não realização da RATES poderá trazer sérios problemas futuros, principalmente relacionados à não formação do espírito cooperativista pelas partes envolvidas nas cooperativas, afinal, os investimentos em educação podem estar sendo potencialmente diminuídos. Por outro lado, para as cooperativas que realizam a RATES, é possível que estejam desenvolvendo uma vantagem competitiva ao entregar um benefício a mais para os cooperados, se comparadas às organizações de capital. Além disso, ao cumprir essa realização, a finalidade legal da reserva está sendo mantida, pois caminha alinhada com os princípios 5º e 7º do cooperativismo de formação, educação e informação e interesse pela comunidade.
Em relação à percepção dos cooperados membros do Conselho Fiscal sobre a percepção dos benefícios da RATES e sobre a sua constituição e realização, foi possível identificar que a maioria dos cooperados tem interesse em receber os retornos da RATES, principalmente no que tange a cursos, treinamentos e assistência técnica.
Contudo, o que ocorre é que os cooperados podem não ter acesso a informação se os possíveis cursos, treinamentos e assistência técnica que são oferecidos pela cooperativa são advindos de recursos de realização da RATES ou de despesas realizadas pela cooperativa que potencialmente diminuem sua geração de sobras. Como os demais entrevistados destacaram, essa falta de conhecimento é reflexo da assimetria de informação existente sobre a questão, demonstrando a necessidade de transparência por parte das cooperativas. Conforme apontado pelo entrevistado 15:
Entrevistado 15: “...isso aí é coisa que quase que ninguém sabe.”
Durante o relato, os próprios cooperados destacaram a importância e o interesse em saberem de fato o que é oferecido em assistência técnica, educacional e social pela cooperativa, inclusive, o montante de investimento total realizado e individualizado por cooperado. Essas informações poderiam ser um fator de fidelização do cooperado, uma vez que esse passaria a ter maior conhecimento sobre os benefícios que lhe são oferecidos por fazer parte da cooperativa.
Entrevistado 15: “Eu acho que sim; porque, tipo, se... se eu vou fazer um projeto particular, eu... é um custo elevado, é 2% do valor; e na cooperativa não paga nada, só... Eu acho que ali já vale a pena ser associado.”
Entrevistado 16: “Sim, isso aí é muito interessante, né, essa parte, né, que a cooperativa oferece.”
Com relação à explicação dos membros do conselho fiscal para a falta de realização da RATES, as respostas convergem para as dos demais entrevistados, indicando que a cooperativa não realiza a RATES para manter a folga financeira para situações emergenciais e para compor o capital de giro.
Entrevistado 15: “É para ser um benefício, mas o nosso não é usado. Já faz ٢ anos que eu estou... e já indaguei várias vezes a respeito; eles não usam para fazer um colchão, né, entre aspas, é assim que a gente fala, mas que na hora de uma necessidade; mas ele não é feito programas sociais, educacionais. Não existe.”
Entrevistado 17: “...a maioria das cooperativas estão acumulando recurso nessa conta aí, e muitos administradores dizem que isso é para ter uma saúde financeira, melhora a empresa, a instituição.”
Portanto, é possível observar que os cooperados têm interesse nos benefícios de assistência técnica, educacional e social, e pelo menos os cooperados membros do conselho fiscal, percebem tal benefício. A possível explicação para esse fenômeno é justamente a educação cooperativista à qual os conselheiros fiscais têm acesso. Para ser conselheiro fiscal é necessário passar por um programa de formação, sendo que tal programa oferece informações sobre as estratégias de retorno que a cooperativa apresenta, bem como os princípios cooperativistas e as singularidades de tais organizações, o que facilita a compreensão sobre a RATES.
Essa observação corrobora com a necessidade de se intensificar a educação cooperativista com os cooperados, afinal, os cooperados são os donos da cooperativa e eles têm o direito de exigir a realização da RATES. Conforme García Pedraza et al. (2018) concluíram a partir do estudo das cooperativas cubanas, o processo de educação cooperativa sobre os princípios cooperativista que o sustentam são necessários para criação da identidade e a compreensão plena do funcionamento e singularidades das cooperativas. Se o conhecimento pleno sobre tal reserva fosse possível, talvez não fossem necessárias imposições legais para sua realização, pois as demandas sobre práticas e ações de assistência iriam nascer da própria cobrança dos cooperados.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cooperativismo possui singularidades em função de seus valores, princípios e estrutura de funcionamento das cooperativas. Tais singularidades, muitas vezes, representam reflexos em normas, regulamentos e legislações. A exemplo disso, no Brasil, a Lei nº 5.764/71 reflete o Princípio da Educação, Treinamento e Informação Cooperativa (5º Princípio); e, o Princípio da Preocupação com a Comunidade (7º Princípio) por meio do estabelecimento da constituição obrigatória do Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES), denominada contabilmente de reserva, segundo a Interpretação Técnica Geral (ITG) 2004 - Entidades Cooperativas.
Apesar de a legislação determinar a constituição dessa reserva em prol do cooperado, não há obrigatoriedade de sua realização, o que, no Brasil, pode contribuir para o aumento desenfreado dessa reserva. Em 32 cooperativas da amostra das 42 analisadas, constatou-se que os valores de constituição ultrapassam os valores de realização, sendo que em média a constituição é 71% superior a realização, considerando os dados de 2015. É claro que não é possível afirmar que as cooperativas agropecuárias não prestam assistência técnica, educacional e social, pelo contrário, os cooperados membros dos conselhos fiscais destacam que as cooperativas realizam tal assistência, contudo, o fazem contabilizando como despesa e não como realização da reserva.
A explicações para esse fenômeno, na percepção dos entrevistados, ocorre porque a RATES passou a compor o capital de giro das cooperativas, e seus valores acabam financiando estoques, imobilizados e outros investimentos, o que não está de acordo com o Lei nº 5.764/71. Os entrevistados ainda apontaram que a baixa realização se deve ao desconhecimento do cooperado sobre o real significado dessa reserva, bem como do contador sobre os parâmetros para sua realização, além da falta de interesse do gestor.
A preocupação que surge com o alto volume da RATES é em relação à sustentabilidade das cooperativas. A RATES, legalmente, deve ser empregada em prol das assistências técnica, educacional e social, não podendo ser utilizada para absorver potenciais perdas da cooperativa ou outras finalidades, diferentemente do capital incorporado por meio de subscrição e integralização de novas cotas ou incorporação de sobras. Esse panorama também pode ser reflexo do fato de as cooperativas brasileiras serem majoritariamente dependentes de capital de terceiros, não sendo uma prática comum o aumento de capital por livre incorporação, mas sim pela incorporação de sobras definidas no estatuto. Assim, enquanto a RATES apresenta crescimento mais acelerado, pelo crescimento do ato não cooperado ou até mesmo pela falta de políticas de realização, o capital social das cooperativas brasileiras possui um histórico de variabilidade menor, sendo que a maior porcentagem da variabilidade é atribuída a incorporações de sobras propostas em estatuto ou definidas em assembleia geral.
É importante salientar que o alto valor da RATES acumulado, que poderia ser aplicado como retorno ao cooperado como assistência técnica, educacional e social, pode não indicar que a cooperativa esteja deixando de prestar esses tipos de assistências aos cooperados, mas apenas sinalizar que, em uma escolha contábil, a cooperativa contabiliza tais valores como despesas do período e não as está revertendo como realização da RATES. Esse tipo de escolha contábil pode dar margem para utilização da RATES em finalidade não especificada na Lei 5.764/71.Por outro lado, a não realização da RATES não significa, necessariamente, que as sociedades cooperativas estejam deixando de investir recursos em prol da assistência técnica, educacional e social dos cooperados, mas torna essencial entender por que estão deixando de utilizar uma reserva específica para isso.
Sabe-se que as organizações necessitam de estratégias que viabilizem aprendizagens, que permitam processos cada vez mais eficientes no desenvolvimento de sua cultura organizacional. Nas cooperativas essa necessidade é maior e reconhecida desde suas origens, dada sua arquitetura organizacional. Logo, uma adequada gestão cooperativa e o desenvolvimento da cooperação requerem processos educativos próprios para a garantia do sucesso econômico e social. De forma geral, pode-se observar que os resultados da pesquisa apontam para a necessidade de intensificação da educação cooperativista e o aprimoramento das ferramentas de comunicação existentes entre o cooperado e a cooperativa, pois somente assim a realização da RATES poderá ser percebida como benefício pelo cooperado, entendida como uma vantagem competitiva dessas organizações e também passar a ser uma demanda dos próprios cooperados.
Ademais, cabe ressaltar que o estudo se concentrou nas cooperativas agropecuárias, nas quais a conta RATES está classificada no patrimônio líquido.
REFERÊNCIAS
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ALASUUTARI, P. Theorizing in qualitative research: a cultural studies perspectives. Qualitative Inquiry, v. 2, n. 4, p. 371-384, 1995.
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ARRIGONI, F. J. Aplicações sociais das sociedades cooperativas: um modelo de demonstração contábil. Caderno de Estudos, São Paulo, FIPECAFI, v. 12, n. 23, p. 50-68, 2000.
BALAGUER, J. I. G.; CASTELLANO, C. J. P. (2012). The different conception of economic profit in cooperatives. Journal of Co-Operative Accounting and Reporting, v. 1, n. 1, p. 29-52, 2012.
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