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Transparência passiva no judiciário: uma análise da aplicação da lei de acesso à informação nos Tribunais de Justiça estaduais
Passive transparency in judicial: an analysis of the application of the law for access to information in state Courts of Justice
Transparência passiva no judiciário: uma análise da aplicação da lei de acesso à informação nos Tribunais de Justiça estaduais
Enfoque: Reflexão Contábil, vol. 40, núm. 3, pp. 159-177, 2021
Departamento de Ciências Contábeis - Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 25 Novembro 2019
Revised document received: 01 Abril 2020
Aprovação: 17 Abril 2020
RESUMO: A Lei de Acesso à Informação (LAI) assegura à sociedade brasileira o direito de acesso às informações públicas não sigilosas. Essa lei aplica-se aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos três níveis de governo. Os estudos anteriores sobre transparência, que tiveram como objeto de investigação o Judiciário, demonstram que as solicitações de informações amparadas na LAI não têm sido atendidas de maneira satisfatória. Ocorre que esses estudos realizaram uma análise da transparência apenas sob a perspectiva da conformidade legal, deixando de investigar as possíveis causas da escassez de transparência. Por outro lado, esta pesquisa identificou na literatura algumas características estruturais do Judiciário, que, provavelmente, repercutem negativamente na transparência e, assim sendo, na accountability. Considerando essas características como indutoras de práticas formalísticas de transparência, este estudo tem por objetivo investigar como o Judiciário Estadual responde às demandas por informações amparadas na LAI. Para tanto, foi selecionada uma amostra estratificada, correspondente a 50% (cinquenta por cento) dos Tribunais de Justiça do Brasil, para os quais foram enviadas solicitações de informações, que foram formuladas com o propósito de viabilizar uma análise não só da conformidade legal mas também dos impactos das características estruturais do Judiciário sobre a divulgação de informações. Os resultados do estudo demonstram um baixo índice de classificação satisfatória desses pedidos, revelando, além de um formalismo excessivo, que o Judiciário é uma estrutura burocrática pouco comprometida com a disponibilização de informações.
Palavras-chave: Transparência, Accountability, Democracia, Burocracia.
ABSTRACT: The Law on Access to Information (LAI) guarantees Brazilian society the right of access to non-confidential public information. This law applies to the executive, legislative and judiciary branches of the three levels of government. Previous studies on transparency conducted in the judiciary have shown that requests for information supported by LAI have not been satisfactorily met. However, these studies conducted an analysis of transparency only from the perspective of legal compliance, without to investigate the possible causes of the lack of transparency. On the other hand, this research identified in the literature some structural characteristics of the Judiciary, which probably have a negative impact on transparency and, therefore, on accountability. Considering these characteristics as inducing formalistic practices of transparency, this study aims to investigate the compliance of the Judiciary of the states of the federation with meeting the demands for information supported by LAI. For this investigation, a stratified sample was selected, corresponding to 50% (fifty per cent) of the Courts of Justice of the States Brazil, to which requests for information were sent, that were formulated with the purpose of making possible an analysis not only of legal compliance but also of the impacts of the structural features of the Judiciary on the disclosure of information. The results of the study show a low rate of satisfactory classification of these requests, revealing, besides an excessive formalism, that the judiciary is a bureaucratic structure with little commitment to the availability of information.
Keywords: Transparency, Accountability, Democracy, Bureaucracy.
1 INTRODUÇÃO
A democracia representativa exige a ampla divulgação das ações e decisões governamentais, visto que essas não são realizadas diretamente pelo povo, mas por seus representantes (BOBBIO, 2000). Inclusive, nesse regime de governo, é direito fundamental do povo saber como os poderes que foram entregues aos governantes estão sendo utilizados (STIGLITZ, 1999).
Desse modo, é essencial para a consolidação da democracia, a ampla transparência das informações públicas. Ademais, a transparência, direito democrático fundamental, que consta de forma expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos a mais de meio século (FOX, 2007), é considerada pela literatura como um elemento indispensável para o adequado processamento da accountability (CAMPOS, 1990; SCHEDLER, 1999; PINHO; SACRAMENTO, 2009; PRADO; RIBEIRO; DINIZ, 2012).
De acordo com Stiglitz (2002), a ampla divulgação de informações públicas depende da existência de normas de transparência que assegurem aos cidadãos o acesso às informações que estejam na posse do Estado. Platt Neto et al. (2009) ressaltam que, no contexto brasileiro, os fundamentos para a ampla divulgação de informações foram estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 (CF de 1988), que incorporou o princípio fundamental da publicidade dos atos da administração pública, segundo o qual o sigilo é exceção.
No entanto, o exercício do direito de acesso à informação pública não sigilosa por qualquer interessado, garantido pela CF de 1988, somente foi possível a partir da vigência da Lei n.° 12.527 de 2011, denominada Lei de Acesso à Informação (LAI). Essa lei aplica-se aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos três níveis de governo (federal, estadual e local) do Estado brasileiro (JARDIM, 2012; BERNARDES; SANTOS; ROVER, 2015; MICHENER; CONTRERA; NISKIER, 2018).
Inobstante a LAI assegure o direito de receber as informações públicas solicitadas (transparência passiva), os estudos realizados no Poder Judiciário demonstram que as demandas por informações não têm sido atendidas de modo satisfatório, revelando alto grau de inconformidade legal (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2013; ARTIGO 19, 2014; MICHENER; MONCAU; VELASCO, 2016). Logo, esses estudos evidenciam que a transparência passiva no âmbito do Poder Judiciário brasileiro apresenta fortes traços do formalismo, o qual, de acordo com Riggs (1964), corresponde à divergência entre as determinações legais e as ações do governo e da sociedade.
Ocorre que esses estudos verificaram apenas aspectos de conformidade legal, sem procurar compreender as razões dessa insuficiência de transparência. De outro modo, esta pesquisa procura abordar algumas características do Poder Judiciário que refletem negativamente na ampla divulgação de informações à sociedade. Essas características foram classificadas neste estudo como estruturais, pois abrangem aspectos relacionadas à organização do Judiciário e à forma de exercício de sua competência funcional.
Sob o aspecto organizacional, verifica-se que o Judiciário é representado por burocratas (juízes e desembargadores) não escolhidos diretamente pelo povo, que exercem, além da função jurisdicional, a função administrativa de gestão dos recursos financeiros, materiais e pessoais (ZAFFARONI, 1995; ROCHA, 1995). Os burocratas, orientados pela ideologia tecnocrata, buscam manter seus conhecimentos e intenções sob segredo (WEBER, 1999). Com relação à forma de exercício de sua competência funcional, definida pela CF de 1988, observa-se que o Judiciário, utilizando-se do controle de constitucionalidade de leis, tem deliberado unilateralmente sobre questões políticas de competência do executivo e do legislativo, o que resultou na consolidação do tema judicialização da política. Essa invasão de competência compromete a legitimidade das decisões políticas, pois exclui o governo eleito pelo povo do processo decisório, revelando um comportamento tecnocrata (ARANTES; KERCHE, 1999; LIMA, 2005).
O atendimento insatisfatório das informações demandadas com amparo na LAI, demonstrado nos estudos realizados, e as características estruturais do Poder Judiciário, que se opõem à ampla divulgação de informações, fazem surgir o seguinte problema de pesquisa: como o Poder Judiciário dos Estados brasileiros responde às demandas por informações da sociedade?
Diante do problema de pesquisa estabelecido, o trabalho tem por objetivo descrever como os Tribunais de Justiça Estaduais respondem à demanda por informações. O estudo, alicerçado em métodos de pesquisa quantitativos, buscou analisar, por meio do envio de pedidos de informações aos Tribunais de Justiças Estaduais, como o Judiciário Estadual responde às exigências de disponibilização de informações previstas na LAI. Os pedidos de informações foram formulados com o propósito tanto de verificar a conformidade legal como de identificar os impactos das características estruturais do Judiciário sobre a divulgação de informações. As respostas aos pedidos encaminhados foram classificadas de acordo com os níveis de acesso definidos na seção que trata da metodologia.
O presente artigo está estruturado em cinco seções, incluída a da introdução. Na segunda seção, será apresentado o referencial teórico; na terceira, a metodologia de pesquisa desenvolvida; na quarta, serão discutidos os resultados e, por fim, na última seção, será apresentada a conclusão.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 TRANSPARÊNCIA, ACCOUNTABILITY E DEMOCRACIA
A democracia representativa impõe que as deliberações que dizem respeito à coletividade não sejam tomadas diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade (o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os conselhos regionais etc). Desse modo, a legitimidade da representação depende da visibilidade das ações do governo, exigindo-se que os atos e decisões dos governantes sejam conhecidos pelo povo soberano (BOBBIO, 2000).
Na democracia representativa, é direito do povo saber como os poderes que foram entregues ao governo estão sendo utilizados, sendo esse um contrato implícito entre os governados e seus representantes. Diante disso, os cidadãos, nas sociedades democráticas, estão amparados no direito básico de saber e ser informado sobre as ações dos governantes e os motivos dessas ações (STIGLITZ, 1999).
Apesar de a regra ser a plena visibilidade do governo, há situações que legitimam a manutenção de informações sob sigilo. Bobbio (2000) destaca que é conhecido e pacífico que o Estado, por mais democrático que seja, tutela uma esfera privada ou secreta dos cidadãos (defesa da intimidade, sigilo de correspondência) e defende a não abertura de algumas ações estatais (segredo de Justiça, segredo de Estado). Entretanto, este autor ressalta que existe sempre uma diferença entre autocracia e democracia, já que naquela o segredo de Estado é regra e nesta uma exceção regulada por leis.
As democracias que se encontram em estágio mais avançado não só priorizam a abertura de informações à sociedade mas também demonstram enorme interesse pela accountability (Campos, 1990). A accountability é um mecanismo que apresenta um amplo leque de definições teóricas, que em geral estão associadas à responsabilidade que os governantes devem assumir perante a sociedade e à capacidade de responsabilização desses por suas condutas inadequadas. Apesar da complexidade do conceito, é fato consumado na literatura a imprescindibilidade da transparência para a efetividade da accountability (CAMPOS, 1990; SCHEDLER, 1999; PINHO; SACRAMENTO, 2009; PRADO; RIBEIRO; DINIZ, 2012).
Schedler (1999) ressalta que o adequado processamento da accountability depende da ampla divulgação de informações, da justificação das ações e da capacidade de punição. O autor divide o processo de accountability em duas fases answerability e enforcement. A ampla divulgação de informações e a justificação das ações estariam associadas à answerability, que diz respeito à obrigação que os representantes possuem perante o povo soberano de informar, explicar e responder por seus atos e condutas. Já a punição está associada à capacidade de enforcement, que corresponde a possibilidade institucional de impor sanções àqueles que violarem a legislação.
Apesar de o direito de acesso à informação ser reconhecido como um direito democrático fundamental, constando de forma expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos a mais de meio século (FOX, 2007), a criação de uma democracia mais transparente depende da existência de um arcabouço legal que garanta o direito de acesso à informação (STIGLITZ, 2002).
No Brasil, há uma estrutura normativa que garante o acesso às informações públicas. Conforme colocado por Platt Neto et al. (2009), o artigo 37, § 1o, da CF de 1988, estabeleceu a publicidade como princípio fundamental da administração pública. Os autores destacam ainda que, nos termos do artigo 5o, XXXIII, da Carta Magna, é um direito fundamental dos cidadãos receber informações dos órgãos públicos que sejam de seu interesse coletivo ou particular, ressalvadas aquelas questões sigilosas relacionadas à segurança do Estado e da sociedade.
O instrumento normativo criado mais recentemente, que buscou resguardar o direito de acesso à informação, garantido pela Carta Política de 1988, foi a LAI. Esse marco regulatório tem como diretriz o princípio da publicidade máxima da administração pública, sendo o sigilo a exceção. Essa lei aplica-se ao Estado brasileiro como um todo, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sob todos os seus Poderes (JARDIM, 2012; BERNARDES; SANTOS; ROVER, 2015; MICHENER; CONTRERA;NISKIER, 2018).
De acordo com Silva, Hoch e Santos (2013), a LAI impôs ao governo a obrigatoriedade de atendimento das demandas por informações da população (transparência passiva). Segundo Fox (2007), a transparência passiva refere-se ao compromisso institucional para responder às solicitações de informações ou de documentos específicos realizadas pelos cidadãos. Raupp e Pinho (2016) também definem esse conceito de modo idêntico. Para esses autores, na transparência passiva, a disponibilização da informação é feita de acordo com a demanda da sociedade.
Vale destacar que a implementação da LAI foi tardia, visto que a história das leis de acesso à informação pública teve início no século XVIII, com a promulgação da primeira lei de acesso pela Suécia em 1766. A segunda surgiria somente em 1951 na Finlândia, logo após a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a terceira, nos Estados Unidos, em 1966 (ANGÉLICO, 2012). Segundo Paes (2011), a elaboração da LAI foi decorrente do desenvolvimento de uma política nacional de acesso à informação, construída sob fortes influências da comunidade internacional.
Inobstante a LAI assegure a qualquer interessado o direito de acesso às informações públicas não sigilosas, estudos realizados nos variados Poderes do Estado demonstram déficit de transparência, sobretudo no que diz respeito à conformidade legal (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2013; ARTIGO 19, 2014; BAIRRAL; SILVA; ALVES, 2015; MICHENER MONCAU; VELASCO, 2016; RAUPP, 2016; RAUPP; PINHO, 2016; ANDRADE; RAUPP; PINHO, 2017; ZUCCOLOTTO; TEIXEIRA, 2017), evidenciando, assim, a ocorrência de práticas formalísticas.
2.2 FORMALISMO: ASPECTOS GERAIS
O formalismo corresponde à incompatibilidade entre as ações praticadas pelo governo e pela sociedade e as determinações previstas na constituição, nas leis, nos regulamentos e em outros atos normativos. Quanto maior essa divergência, mais formalística a sociedade (RIGGS, 1964). Ao estudar as sociedades de diferentes países, Riggs (1964) definiu, a partir da comparação com um prisma atingido pela luz, três modelos ideais de classificação das sociedades, considerando que as características do formalismo são mais marcantes nas sociedades prismáticas. Esses modelos são os seguintes:
i) concentrado - a luz atinge o prisma e se concentra. Corresponde ao modelo de sociedade presente nos países extremamente subdesenvolvidos (agrários). Nestes países, os objetivos políticos, econômicos e educacionais são realizados por uma única instituição;
ii) difratado - a luz difrata formando todas as cores do arco-íris. Seria equivalente à sociedade dos países desenvolvidos. Nesses países, as diversas funções são desempenhadas por instituições distintas (repartições, partidos políticos, escolas, sindicatos); e
iii) prismático - a luz difrata em um estado intermediário. Representa o modelo de sociedade dos países em desenvolvimento. Apesar de as sociedades prismáticas possuírem uma intensa heterogeneidade cultural (elementos tecnológicos modernos e ultrapassados, vida rural e urbana, comportamento liberal e conservador), acompanhada de uma superposição de atribuições, adotam o mesmo modelo institucional das sociedades difratadas.
Motta e Alcadipani (1999) identificaram que as práticas formalísticas são mais acentuadas nos países em desenvolvimento (sociedades prismáticas), porque, devido à sua extrema dependência dos países desenvolvidos (sociedades difratadas), tornam-se obrigados a adotar as estruturas sociais, políticas e econômicas destes. Ocorre que essas estruturas, típicas dos países desenvolvidos, mostram-se incompatíveis com a sua realidade.
Ramos (1983) define o Brasil como uma sociedade prismática, na qual as características do formalismo são marcantes, uma vez que o país adota os modelos institucionais dominantes estabelecidos pelos países desenvolvidos. Machado-da-Silva et al. (2003), ao analisarem a formulação e implementação da reforma administrativa no Brasil, concluíram que os padrões internacionais estabelecidos, muitas vezes inaplicáveis ao contexto brasileiro, são institucionalizados mediante a imposição de normas legais.
Desse modo, essa incompatibilidade cultural, política e econômica da sociedade brasileira com as regras jurídicas vigentes, institucionalizadas sob forte influência da comunidade internacional, contribui para o fomento do formalismo.
2.3 CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DO JUDICIÁRIO QUE SE OPÕEM À AMPLA DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÕES
A análise teórica do Poder Judiciário permite identificar algumas características que se opõem à ampla divulgação das informações. Essas características, classificadas neste estudo como estruturais, abrangem aspectos relacionadas à organização do Judiciário e à forma de exercício de sua competência funcional.
Em termos organizacionais, verifica-se que o Judiciário brasileiro é um órgão tecnoburocrático, com extrema verticalização e especialização das funções. A estrutura interna desse Poder compõe-se de órgãos inferiores (juízes) e superiores (tribunais), cabendo a estes a função administrativa de gestão dos recursos financeiros, materiais e pessoais, além da função de revisão das decisões jurisdicionais dos órgãos inferiores (ROCHA, 1995). Os tribunais são compostos por magistrados concursados, não eleitos diretamente pelo povo, que são promovidos por antiguidade e merecimento, ou seja, por burocratas de carreira (ZAFFARONl, 1995). A burocracia é orientada pela ideologia tecnocrata, segundo a qual, ela, por ser detentora do conhecimento técnico, é capaz de elaborar as melhores políticas públicas e conduzi-las do modo mais adequado, mantendo seus conhecimentos e intenções sob segredo (WEBER, 1999).
Em termos de competências funcionais, o Judiciário apresenta-se como o órgão responsável pela proteção dos direitos individuais frente à vontade da maioria. Essa competência surgiu da nova articulação entre os Poderes do Estado dada pela Constituição Americana de 1787, que priorizou o sistema de controle mútuo entre os Poderes. Nesse novo modelo, o Judiciário ficou responsável pela defesa dos direitos e garantias individuais frente à vontade do parlamento (representante do interesse majoritário). O instrumento utilizado pelo Judiciário para impor limites à ação do parlamento é o controle de constitucionalidade de leis, que estabelece a Constituição como parâmetro para a atuação política. O Poder Judiciário brasileiro também exerce o controle da atuação política desde a primeira Constituição republicana - Constituição de 1891, tendo sido essa competência mantida na CF de 1988 (ARANTES; KERCHE, 1999). Ocorre que, recentemente, o Judiciário, utilizando-se do controle de constitucionalidade de leis, tem deliberado sobre questões políticas de competência do executivo e do legislativo, o que resultou na consolidação do tema judicialização da política. Essa invasão de competência compromete a legitimidade das decisões políticas, uma vez que afasta o executivo e o legislativo do processo decisório, revelando um comportamento tecnocrata, típico de uma estrutura burocrática (LIMA, 2005).
Há de se reconhecer que o Poder Judiciário tem apresentado avanços em termos de transparência e democracia, ainda que sejam considerados incrementais e lentos. Contudo, diante das características estruturais apresentadas, espera-se que as demandas por informações, realizadas com amparo na LAI, não sejam atendidas de modo satisfatório.
3 METODOLOGIA
A fim de descrever como o Judiciário responde à demanda por informações (transparência passiva), realizou-se uma pesquisa descritiva nos Tribunais de Justiça Estaduais. Na pesquisa descritiva, os fatos são observados, registrados, analisados, classificados e interpretados, sem interferência do pesquisador (GIL, 2010). O estudo, alicerçado em metodologia quantitativa, consistiu na análise dos documentos disponibilizados em razão dos pedidos de informações encaminhados aos tribunais.
A verificação da transparência passiva teve como fundamento a LAI, que estabelece, nos artigos 10 a 14, o procedimento necessário para solicitação de informações aos diversos órgãos públicos do país. Buscou-se obter informações não sigilosas, cujo direito de acesso está previsto no artigo 7o da LAI. Diante disso, foram elaborados pedidos de informações, em linguagem simples e clara, sobre questões relacionadas a atividades administrativas desempenhadas pelos Tribunais de Justiça Estaduais e por seus representantes.
Esses pedidos, relacionados no Quadro 1, foram inspirados em estudos realizados anteriormente (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2013; ARTIGO 19, 2014; MICHENER; MONCAU; VELASCO, 2016) e encaminhados, durante o mês de fevereiro de 2019, aos Tribunais de Justiça por meio do canal eletrônico disponibilizado na Internet, conforme previsto no artigo 10, §2°, da LAI.
Dos cinco pedidos formulados, três (P1, P2 e P3) dispõem sobre informações que dispensam esforços adicionais dos Tribunais de Justiça para seu fornecimento, pois são informações administrativas habituais, que necessariamente devem constar de seus registros, cuja necessidade de disponibilização está prevista no artigo 7o, II, da LAI. Desse modo, essas solicitações, uma vez que possibilitam a análise da transparência sob a óptica da conformidade legal, permitem identificar se há práticas formalísticas no âmbito do Poder Judiciário Estadual e qual a sua intensidade.
Os outros dois pedidos (P4 e P5) tratam de informações sobre atos oficiais dos desembargadores. Não há exigência legal para a produção desse tipo de informação, porém, por ser uma questão de relevante interesse social, sua geração demonstra comprometimento com o princípio democrático da publicidade máxima, incorporado no artigo 37, § 1o, da CF de 1988. Como não há obrigação legal para produção e divulgação dessas informações, esses pedidos permitem verificar, de modo mais adequado, os impactos das características estruturais do Judiciário na transparência, pois a divulgação de forma voluntária desse tipo de informação demonstra comprometimento com a transparência pública.
Os pedidos de informações foram encaminhados conforme modelo previsto na Quadro 2.
Para análise das respostas recebidas, utilizou-se, com as adaptações necessárias ao propósito deste estudo, a técnica desenvolvida pelo Artigo 19 (2014), que define níveis de acesso à informação. Utilizando essa técnica, é possível, a partir da identificação das respostas dadas aos pedidos de informações (acesso integral, acesso parcial, não possui informação e acesso negado), classificar o acesso à informação como satisfatório, parcialmente satisfatório e insatisfatório. Nos casos em que o pedido de informações não foi respondido dentro do prazo previsto no artigo 11, §§ 1o e 2o, da LAI, o acesso à informação foi classificado como insatisfatório.
A definição dos níveis de acesso permite realizar uma análise descritiva dos resultados, identificando de modo mais adequado como os Tribunais de Justiça atendem às solicitações de informações. A classificação do acesso à informação adotada foi a seguinte:
i) acesso integral: a informação fornecida responde ao que foi perguntado e é completa.
Nesse caso o acesso à informação é classificado como satisfatório;
ii) acesso parcial: os documentos fornecidos apresentam problemas ao abrir ou a resposta não contempla por completo o que foi perguntado. Caso o órgão tenha apresentado uma justificativa legal pertinente para o não fornecimento de parte da informação, o acesso parcial é classificado como satisfatório, caso contrário, é classificado como parcialmente satisfatório;
iii) não possui a informação: o órgão alega que não possui a informação. Caso haja uma justificativa legal pertinente para a inexistência da informação, o acesso à informação é classificado como satisfatório, caso contrário, é classificado como insatisfatório;
iv) acesso negado: o órgão nega expressamente o acesso à informação, alegando sigilo ou qualquer outro motivo, ou impõe condições para o fornecimento da informação (por exemplo: necessidade de identificação ou de justificativa), ou a resposta não possui relação com a informação solicitada. O acesso à informação é classificado como satisfatório somente se houver justificativa legal para a negativa de acesso, caso contrário, é considerado insatisfatório; e
v) sem resposta: o órgão não respondeu ao pedido de informação no prazo estipulado pela LAI. Nesse caso, o acesso à informação é classificado como insatisfatório.
Deve-se destacar que, quando o acesso à informação foi negado, total ou parcialmente, foi interposto recurso contra a negativa, conforme previsto no artigo 15 da LAI e no artigo 18 da Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que regulamentou a aplicação da LAI no âmbito do Judiciário, Resolução CNJ n.° 215 de 2015.
O artigo 18 da referida Resolução estabelece que, após a interposição do recurso, que deve ocorrer no prazo de 10 dias contados da ciência da decisão, a autoridade hierárquica superior deverá, no prazo de cinco dias, encaminhar ao Serviço de Informações ao Cidadão (SIC) a informação solicitada pelo requerente (na hipótese de provimento do recurso) ou a decisão motivada que ampara o desprovimento do recurso (artigo 18, § 2o, I e II). Diante disso, ficou definido que, caso a autoridade hierarquicamente superior não cumprisse o prazo recursal, deveria ser mantida a classificação inicial do acesso à informação.
Haveria ainda a possibilidade de interpor um segundo recurso, destinado ao Presidente do órgão, no caso de desprovimento do primeiro recurso (artigo 18, § 4o, da Resolução CNJ n.° 215 de 2015). Todavia, essa interposição não foi realizada, pois a legislação não prevê prazo para resposta a tal recurso, o que inviabilizaria a análise.
Por fim, cabe ressaltar que, no momento das solicitações de informações aos respectivos tribunais, não houve qualquer menção ao fato de que os pedidos seriam utilizados para subsidiar uma pesquisa acadêmica. Entendemos que a referida menção poderia estimular o fornecimento das informações, prejudicando a imparcialidade da pesquisa, uma vez que o objetivo foi simular a solicitação de informações realizada por um cidadão comum.
3.1 DEFINIÇÃO DA AMOSTRA PARA REALIZAÇÃO DA PESQUISA
A população objeto de investigação, a princípio, seria composta pelos Tribunais de Justiça de todas as Unidades da Federação (27 tribunais). Ocorre que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), conforme consta no artigo 21, XIII, da CF de 1988, é um órgão federal, organizado e mantido pela União, não sendo adequada sua comparação com os Tribunais de Justiça Estaduais (TJDFT, 2018). Dessa forma, o TJDFT deve ser excluído da população objeto de análise.
Diante da diversidade de critérios a serem verificados e do volume de informações a serem trabalhadas, optou-se por estabelecer uma amostra estratificada proporcional para seleção de 50% (cinquenta porcento) dos Tribunais de Justiça do país, ou seja, foram investigados 13 tribunais. De acordo com Levine, Berenson e Stephan (2005), a amostra é definida como uma parcela da população selecionada para fins de análise, sendo que, na amostragem estratificada, a amostra é dividida em estratos de acordo com alguma característica comum, permitindo a representatividade de itens ao longo da população.
A estratificação levou em consideração as cinco regiões do país (norte, nordeste, centro oeste, sudeste e sul) e a seleção dos tribunais foi proporcional à quantidade de estados em cada região. Buscou-se, ainda, selecionar os estados mais populosos e menos populosos de cada região, conforme informação extraída do último censo realizado (Censo Demográfico 2010). A Tabela 1 demonstra o método utilizado para a seleção dos Tribunais de Justiça que integram a amostra objeto de análise.
Os critérios utilizados para a seleção dos Tribunais de Justiça pesquisados permitem identificar, de maneira mais adequada, como o Judiciário Estadual responde às exigências de disponibilização de informações previstas na LAI, uma vez que abrangem as diversidades econômicas, políticas e sociais das diferentes regiões país. Definidos os Tribunais de Justiça objeto da pesquisa, foram encaminhados os pedidos de informações relacionados no Quadro 1, segundo modelo definido no Quadro 2.
4 RESULTADOS
4.1 ANÁLISE GERAL
A transparência passiva é diretamente provocada pela sociedade, ou seja, tem origem na demanda de informações específicas realizada por qualquer interessado. No Brasil, a LAI é o instrumento normativo que garante o exercício desse direito, definindo, inclusive, o procedimento necessário para encaminhamento dos pedidos de informações. Embora a LAI já possua aplicação direta e imediata em todos os Poderes de todas as Unidades da Federação, o CNJ, por meio da Resolução CNJ n.° 215 de 2015, regulamentou sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário.
Neste estudo, a análise da transparência passiva do Judiciário Estadual foi amparada nos pedidos de informações detalhados no Quadro 1, os quais foram encaminhados pela Internet aos Tribunais de Justiça durante o mês de fevereiro de 2019.
Primeiramente, cabe registrar a dificuldade encontrada para envio dos pedidos de informações, dado que menos da metade dos Tribunais de Justiça pesquisados disponibilizam o SIC, contrariando a exigência prevista no artigo 10 da Resolução CNJ n.° 215 de 2015. Esse canal, acessível pela Internet ou presencialmente, além de ser responsável por orientar o público quanto ao acesso a informações, permite a protocolização de pedidos de informações.
Alguns tribunais, apesar de não possuírem o SIC na Internet, apresentavam um formulário específico destinado ao encaminhamento dos pedidos de informações. Todavia, com relação a quatro tribunais, ou seja, aproximadamente 30% (trinta por cento) dos investigados, não foi possível identificar o formulário para envio das solicitações. Em razão disso, foi necessário registrar uma manifestação prévia junto às suas respectivas ouvidorias, que informaram o canal eletrônico a ser utilizado.
Ao todo foram encaminhados 65 pedidos de informações, 5 pedidos para cada Tribunal de Justiça. Desse total, 34 foram considerados sem resposta, dado que não foram respondidos no prazo de 20 dias, prorrogáveis, mediante justificativa expressa, por mais 10 dias, conforme determinado pelo artigo 11, §§ 1o e 2o, da LAI. Esses pedidos identificados como sem resposta tiveram o acesso à informação classificado como insatisfatório. Ressalta-se que 21 dos 34 pedidos, isto é, 62% (sessenta e dois por cento) deles, não foram respondidos nem mesmo após o prazo determinado pela LAI, sendo completamente ignorados pelos tribunais.
Contra as 31 respostas recebidas dentro do prazo legal, foram interpostos 15 recursos, ou seja, aproximadamente 50% (cinquenta por cento) dos pedidos respondidos tiveram que ser contestados. Os recursos foram apresentados contra as negativas de acesso integral ou parcial (inclusive quando as informações fornecidas não correspondiam àquelas solicitadas) e contra as justificativas apresentadas para a não disponibilização da informação, tudo conforme previsto no artigo 15 da LAI. O Gráfico 1 apresenta o percentual de respostas recebidas dentro do prazo legal e de recursos interpostos contra essas respostas.
Conforme já colocado, aqueles pedidos de informações não respondidos dentro do prazo legal tiveram o acesso classificado como insatisfatório, encerrando-se o processo de análise. Já os pedidos de informações respondidos no prazo legal passaram pelo processo de identificação da resposta (acesso integral, acesso parcial, não possui informação e acesso negado), para que, em seguida, o acesso à informação pudesse ser classificado como satisfatório, parcialmente satisfatório ou insatisfatório, segundo critérios definidos na metodologia.
Nos casos em que foi apresentado recurso à autoridade hierárquica superior, a classificação do acesso à informação como satisfatório, parcialmente satisfatório ou insatisfatório foi realizada somente após finalizada a fase recursal. Quando o prazo de resposta aos recursos, previsto no artigo 18, §§ 1o e 2o, da Resolução CNJ n.° 215 de 2015, não foi cumprido, manteve-se a classificação inicial do acesso à informação.
4.2 ANÁLISE DOS PEDIDOS DE INFORMAÇÕES ADMINISTRATIVAS HABITUAIS
Dos cinco pedidos formulados, três (P1, P2 e P3) dispõem sobre informações que dispensam esforços adicionais dos Tribunais de Justiça para seu fornecimento, dado que são informações administrativas habituais, que necessariamente devem constar de seus registros, cuja obrigatoriedade de disponibilização está prevista no artigo 7o da LAI. O Quadro 3 resume os resultados do estudo com relação a cada pedido de informações administrativas habituais.
Essas informações tratam das seguintes questões: i) o total de processos administrativos disciplinares abertos contra juízes e desembargadores, iniciados, em trâmite e concluídos nos anos de 2017 e 2018; ii) o processo de escolha para ocupação da última vaga de desembargador disponibilizada pelo Tribunal; e iii) a quantidade de pedidos de informações recebidos, respondidos e negados durante o ano de 2018, bem como as justificativas dadas para as rejeições.
O Gráfico 2 demonstra o comportamento dos Tribunais de Justiça pesquisados com relação ao atendimento das solicitações.
Observa-se que os três pedidos tiveram um alto índice de classificação insatisfatória. Como esses pedidos abordam matérias não sigilosas que necessariamente constam dos registros dos Tribunais de Justiça, os resultados demonstram um elevado grau de inconformidade entre os atos praticados pelos tribunais e as determinações de transparência passiva previstas na LAI e na Resolução CNJ n.° 215 de 2015, evidenciando, assim, um formalismo excessivo no âmbito do Judiciário Estadual.
4.3 ANÁLISE DOS PEDIDOS DE INFORMAÇÕES SOBRE QUESTÕES DE RELEVANTE INTERESSE PÚBLICO
Os outros dois pedidos (P4 e P5) tratam de informações sobre a agenda oficial dos desembargadores pertencentes aos quadros dos Tribunais de Justiça, com o detalhamento dos compromissos realizados no mês de dezembro de 2018, e da participação dos desembargadores em congressos e seminários, financiados por empresas privadas, que foram realizados em 2018. A produção dessas informações, apesar de não ser exigida legalmente, está amparada pelo princípio democrático da máxima publicidade dos atos públicos, incorporado no artigo 37, § 1o, da CF de 1988, pois, tomar conhecimento de todos os atos praticados por seus representantes, com exceção daqueles protegidos pelo sigilo, é direito fundamental dos cidadãos. O Quadro 4 resume os resultados do estudo com relação a cada pedido sobre informações de relevante interesse público.
A relevância dessas informações pode ser justificada pelo fato de permitirem identificar, a partir do cruzamento de dados, se há decisões proferidas por essas autoridades ou pelos tribunais que possam ter sido tomadas sob influência de algum setor ou segmento da sociedade, o que afrontaria a moralidade e a imparcialidade das decisões. Diante da relevância dessas informações, seria de extrema importância para o aprimoramento da democracia e da accountability a existência de normas de transparência que exigissem sua divulgação, inclusive, de forma proativa.
Com relação ao pedido de informações sobre a participação de desembargadores em congressos e seminários, financiados por empresas privadas, aqueles Tribunais de Justiça que responderam à solicitação, simplesmente informaram que não possuem tal registro, ou seja, nenhum dos órgãos pesquisados possui tais informações. Para fins de atribuição de critério de classificação, devido à falta de obrigação legal de produção de tal informação, consideramos que a justificativa foi suficiente para considerar o acesso à informação satisfatório, uma vez que, segundo esses tribunais, não há informação a ser fornecida.
Deve-se destacar também, o baixo índice de fornecimento de informações sobre a agenda oficial dos desembargadores pertencentes aos quadros do respectivo Tribunal de Justiça, com o detalhamento dos compromissos realizados no mês de dezembro de 2018. Esse pedido foi atendido apenas por dois tribunais (TJSC e TJRR) e de forma parcial (apenas alguns desembargadores destes órgãos forneceram essas informações), ou seja, nenhum tribunal divulgou a agenda de seus desembargadores na íntegra.
A justificativa para o não atendimento dessa solicitação foi, em geral a alegação de falta de tempo e de recursos humanos necessários para o levantamento das informações. Ocorre que os órgãos públicos devem ter uma estrutura administrativa capaz de atender as demandas de solicitação de informações da sociedade, sob pena de aniquilar o direito de acesso à informação previsto na LAI.
O Gráfico 3 demonstra que esses dois pedidos de informações tiveram um elevado índice de acessos classificados como insatisfatório.
Conforme já destacado, não há exigência legal quanto à produção dessas informações pelo Poder Judiciário. No entanto, são informações de extrema relevância social, cuja geração e disponibilização à sociedade demonstra, além de um comportamento pautado pelo princípio democrático da máxima publicidade e da soberania popular, comprometimento com a divulgação espontânea de informações. Sob essa perspectiva de análise, o elevado índice de acessos à informação classificados como insatisfatórios pode ser fruto das características estruturais do Judiciário apresentadas pela literatura.
4.4 DISCUSSÕES DOS RESULTADOS OBTIDOS NO EXAME DA TRANSPARÊNCIA PASSIVA
Os resultados levantados evidenciam um nível elevado de inconformidade legal e indicam baixo comprometimento dos tribunais pesquisados com a divulgação espontânea de informações de interesse público.
O baixo índice de classificação satisfatória dos pedidos de informações administrativas habituais (P1, P2 e P3) demonstra que as normas de transparência previstas na LAI não são cumpridas, evidenciando a presença de um formalismo excessivo no âmbito do Judiciário Estadual. Esse formalismo excessivo pode ser decorrente de alguns fatores apresentados pela literatura, tais como a ausência de responsabilização e a adoção de regras institucionais incompatíveis com o contexto brasileiro.
Como já dizia Riggs (1964), o formalismo, divergência entre o que está estabelecido na legislação e os fatos realmente praticados, é potencializado pela ausência de aplicação de sanção às infrações. Conforme constatado neste estudo, dentre as condutas ilícitas relacionadas no artigo 32 da LAI, que ensejam a responsabilidade do agente público, consta a recusa de fornecimento da informação requerida. As sanções para essa infração estão definidas nos §§ 1o e 2o do mesmo artigo. Todavia, o artigo 18, § 4o, da Resolução CNJ n.° 215 de 2015, não obstante permita um segundo recurso ao Presidente do órgão, não prevê prazo para o provimento ou não deste recurso. Essa ausência de prazo para atendimento do segundo recurso mostra-se um verdadeiro obstáculo à materialização da infração, dado que a apuração de responsabilidades depende do exaurimento do processo, impedindo, assim, a aplicação da sanção prevista na LAI.
O outro fator que pode estar associado ao formalismo excessivo diz respeito ao fato de a LAI ter incorporado em seu texto um modelo de normas típico de países desenvolvidos. Esses países se encontram em um estágio democrático mais evoluído que o brasileiro, permitindo inferir que a aplicabilidade da LAI carece das condições institucionais adequadas (MOTTA; ALCADIPANI, 1999; RAMOS, 1983; MACHADO-DA-SILVA et al.,2003).
Os outros dois pedidos (P4 e P5) tratam de solicitações de informações de interesse social inerentes a atividades oficiais dos desembargadores, que não estão amparadas por exigência legal de produção e disponibilização. Ocorre que o interesse público por essas informações, justificado pela necessidade que há de prestação de contas pelos titulares do Poder Judiciário perante o povo soberano, deve se sobrepor à ausência de previsão legal. Em tese, o baixo índice de classificação satisfatória desses pedidos pode ser reflexo das características estruturais do Judiciário Estadual, relacionadas à sua organização e à forma de exercício de sua competência funcional, que favorecem a decisão técnica em detrimento da participação e do controle social.
Diante do exposto, pode-se concluir que o atendimento às exigências legais de transparência passiva pelo Poder Judiciário dos Estados da Federação é precário. Apesar dos resultados da pesquisa, é notório que a LAI, ao implementar o direito constitucional de acesso a informações públicas por qualquer interessado, trouxe avanços, ainda que incrementais, para a democracia brasileira.
5 CONCLUSÃO
O exame do modo como os Tribunais de Justiça respondem às demandas por informações revelou um baixo índice de classificação satisfatória dos pedidos. Foi observado um elevado nível de classificação insatisfatória tanto nos pedidos de informações administrativas habituais quanto nos pedidos de informações sobre questões de relevante interesse público.
Os resultados dos pedidos sobre informações administrativas habituais (P1, P2 e P3), que necessariamente constam nos registros dos tribunais, evidenciam um formalismo excessivo no âmbito do Poder Judiciário Estadual. As razões desse excesso de práticas formalísticas podem estar associadas a alguns fatores como à ausência de punição dos responsáveis (Riggs, 1964) e à adoção de uma estrutura de normas de transparência passiva construída sob fortes influências da comunidade internacional, típica de países que se encontram em um estágio democrático mais avançado que o brasileiro (MOTTA; ALCADIPANI, 1999; RAMOS, 1983; MACHADO-DA-SILVA et al., 2003; PAES, 2011). Esta pesquisa apenas indica algumas possíveis causas do formalismo verificado, ficando a investigação dos motivos determinantes desse formalismo aberta a futuras pesquisas.
Os outros dois pedidos (P4 e P5), que tratam de informações inerentes às atividades oficiais dos desembargadores, cuja divulgação, apesar de não ser exigida legalmente, é justificada pelo compromisso dos órgãos e autoridades públicas com o acesso à informação, tiveram um resultado ainda pior. Assim, o elevado índice de classificação insatisfatória dessas solicitações pode estar associado às características estruturais do Judiciário apontadas pela literatura, que, por evidenciar uma postura tecnocrata, contribuem para o seu insulamento.
Vale ressaltar que este estudo apresenta apenas uma visão geral sobre essas características estruturais do Judiciário e seus possíveis efeitos na transparência. Pesquisas futuras poderão, por exemplo, examinar com maior intensidade as características organizacionais do Judiciário, identificando seus impactos na transparência e na accountability.
Quanto às limitações do estudo, cabe destacar que a análise está delimitada pelos tipos de informações solicitadas e pela metodologia utilizada para classificação das informações. Além disso, a análise ficou restrita à metade dos Tribunais de Justiça existentes.
Posto isso, os resultados demonstram a necessidade de avanço do Judiciário Estadual no que diz respeito ao atendimento das exigências de transparência passiva, elemento essencial para o adequado processamento da accountability e para o aprimoramento da democracia. É inegável que esse avanço depende não só de normas que garantam o acesso às informações públicas, mas também de uma mudança cultural de seus representantes, que devem disponibilizar aos interessados as informações inerentes a suas ações e condutas, demonstrando, assim, comprometimento com o acesso à informação, resguardado pelos princípios democráticos da publicidade e da soberania popular.
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