Artigo
Manual mercador da idade média sobre negócios e contabilidade: a arte do comércio por Benedetto Cotrugli em 14581
Middle ages merchant handbook on business and accounting: the art of trade by Benedetto Cotrugli in 1458
Manual mercador da idade média sobre negócios e contabilidade: a arte do comércio por Benedetto Cotrugli em 14581
Enfoque: Reflexão Contábil, vol. 41, núm. 1, pp. 23-38, 2022
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 28 Março 2020
Revised document received: 23 Junho 2020
Aprovação: 01 Julho 2020
RESUMO: O estudo objetiva elucidar as acepções de Benedetto Cotrugli quanto aos negócios e a contabilidade presentes no livro Della Mercatura et del mercante perfetto, cujo trabalho consistiu em discorrer sobre as características que deveriam principiar tanto contornos comportamentais, éticos, morais quanto emocionais do comerciante, bem como das transações comerciais a serem realizadas, inclusive da escrituração mercantil/ contábil. Para tanto a pesquisa se apoia basilarmente na obra de Cotrugli (1573), que por mais de ter sido manuscrita em 1458, teve sua primeira versão impressa apenas em 1573. Adicionalmente, versões mais recentes também foram consultadas. Para tanto, o estudo permeia uma pesquisa histórica em contabilidade, empregando o método de análise comparativa, uma vez que as discussões na obra de Cotrugli são comparadas com a literatura histórica, especialmente a Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalitá, de 1494, escrita pelo Frei Luca Pacioli. Por meio das análises, pode-se constatar a preocupação de Cotrugli em relação a importância do mercante conhecer o ambiente dos negócios, manter as escriturações mercantis/contábeis organizadas, possuir princípios, valores e expressar a fé cristã, além de zelar pela reputação do seu núcleo familiar. Deste modo, o estudo contribui ao entrelaçar a discussão da obra de Cotrugli com a obra de Pacioli, essa escrita 36 anos depois. Por mais que Cotrugli apresente a escrituração mercantil de forma mais simplória do que Pacioli, coerentemente com uma vertente de pesquisa histórica em contabilidade, pode-se observar como Cotrugli foi precursor no que tange a escrituração contábil e no método de partidas dobradas.
Palavras-chave: História da contabilidade, Manual mercante, Arte do comércio, Benedetto Cotrugli.
ABSTRACT: The study aims to elucidate Benedetto Cotrugli's meanings regarding business and accounting in the book Della Mercatura et del mercante perfetto, whose work consisted of discussing the characteristics that should begin both the behavioral, ethical, moral and emotional aspects of the trader, as well as of commercial transactions to be carried out, including mercantile/ accounting bookkeeping. For this purpose, the research relies mainly on the work of Cotrugli (1573), which, although it was handwritten in 1458, had its first printed version only in 1573. In addition, more recent versions were also consulted. To this end, the study permeates historical research in accounting, using the method of comparative analysis, since the discussions in Cotrugli's work are compared with historical literature, especially the Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalitá, from 1494, written by Frei Luca Pacioli. Through the analyzes, one can see Cotrugli's concern regarding the importance of the merchant knowing the business environment, keeping the bookkeeping/ accounting documents organized, possessing principles, values and expressing the Christian faith, in addition to caring for the reputation of his family nucleus. In this way, the study contributes by intertwining the discussion of Cotrugli's work with that of Pacioli, written 36 years later. As much as Cotrugli presents the bookkeeping in a more simplistic way than Pacioli, consistent with an aspect of historical research in accounting, it can be seen how Cotrugli was a precursor with regard to bookkeeping and the double entry method.
Keywords: Accounting history, Merchant manual, Art of commerce, Benedetto Cotrugli.
1 INTRODUÇÃO
O período compreendido pela Idade Média divide-se em duas vertentes: a primeira conhecida como Alta Idade Média, que se encontra compreendida entre os séculos V e X, e a segunda vertente, considerada como Baixa Idade Média, a qual se apresenta entre os séculos XI e XV (MARQUES; LIRA, 2009). Neste estudo abarcam-se as acepções em torno da primeira vertente, porém buscando um aprofundamento mais direcionado a segunda, visando a identificação e comparação entre autores, os quais representaram significativa expressão acerca do surgimento e consolidação da Contabilidade.
Com relação ao período compreendido entre os séculos V e X, denominado de Alta Idade Média, no que tange à Contabilidade, não existiam registros contabilísticos em virtude da existência de uma economia fragmentada, bem como uma hierarquização dominada pelo Rei, o qual possuía poder absoluto e que percebia o comércio, mais especificamente, o lucro como uma prática imoral. No entanto, os séculos XI a XV, período nomeado de Baixa Idade Média, iniciam-se, mesmo que de forma rudimentar, a presença de um capitalismo a partir do fortalecimento da burguesia e de uma capacidade de raciocinar perante os poderes que eram instituídos (MARQUES; LIRA, 2009).
Por conseguinte, a notoriedade da Contabilidade vinculava-se ao crescimento da riqueza comercial italiana, a qual se encontrava em pleno desenvolvimento em meados do século XIV (SÁ, 1992), mediante a criação de empreendimentos que propiciavam a seus negociadores lucros por meio de financiamentos realizados. Ademais, foi a partir do crescimento do comércio do Reino de Veneza, atualmente localizado ao norte da Itália, que houve a expansão de aziendas, como, por exemplo, com diversas tipografias e que acabaram por influenciar a impressão de um dos principais livros da Contabilidade: Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalitá, de 1494, escrito por Frei Luca Pacioli (HANSEN, 2001).
No entanto, outros livros já abordavam a respeito da escrituração contábil e das partidas dobradas antes mesmo da obra de Luca Pacioli. Para alguns autores (HERNÁNDEZ-ESTEVE, 1992,2009; INOUE, 1978; JOUANIQUE, 1996; SANGSTER et al., 2012; VAN DUZER, 2013; YAMEY, 1994, 2011), a primeira obra que se tem conhecimento foi do diplomata, humanista e comerciante Benedetto Cotrugli, no ano de 1458, porém, a mesma somente foi impressa 115 anos depois. Tal obra, denominada por “Della Mercatura et del Mercante Perfetto”, pode ser considerada com um dos mais antigos manuais de mercadores sobre a arte do comércio (REIS, 2015).
A obra original de Cotrugli não recebeu a devida ênfase, pois se encontrava em formato manuscrito, o que impediu sua divulgação e respectiva notoriedade. Como a primeira impressão realizada na Itália foi apenas em 1464, e existia grande dificuldade e custo para a reprodução manual dos livros e documentos, essa difusão do conhecimento era dificultada (SCHMIDT, 2000). Por sua vez, já ao final do século XV, devido as diversas tipografias que passaram a existir no Reino de Veneza, muito disto explicado pelo forte comércio marítimo, o qual envolvia comerciantes e navegadores importantes da época, Frei Luca Pacioli foi beneficiado por este ambiente, donde conseguiu ampla divulgação de sua obra, a qual o fez receber o título de “pai” da Contabilidade. Título este que permanece até os dias atuais (SCHMIDT, 2000).
Mesmo com algumas traduções da obra “Della Mercatura et del Mercante Perfetto”, assim como artigos e demais documentos que o citam, um dos principais estudos a detalhar as partidas dobradas de Benedetto Cotrugli foi Sangster e Rossi (2018). Porém, de forma geral, a maioria das pesquisas apenas mencionam o nome ou alguns trechos da obra de Cotrugli, assim como Reis (2015) e Yamey (1967). Salienta-se que apesar da pesquisa histórica em contabilidade receber destaque considerável no contexto anglo-saxão, no Brasil existe a carência de estudos que contemplem tal temática (SAYED et al., 2019).
Desta forma, pode-se perceber que as pesquisas que abordam ou mencionam a obra de Cotrugli permeiam a discussão do método das partidas dobradas, pouco enfatizando a obra como um todo ou até mesmo discutindo com a obra de Pacioli. Ainda, no contexto brasileiro, poucas investigações discutem aspectos relacionados a pesquisa histórica em contabilidade, e mais escassos os estudos que mencionam Benedetto Cotrugli e suas contribuições para o mundo dos negócios, contabilidade e o método de partidas dobradas.
Neste ínterim, o estudo tem como objetivo elucidar as acepções de Benedetto Cotrugli quanto aos negócios e a contabilidade presentes no livro Della Mercatura et del mercante perfetto, de acordo com sua obra desenvolvida em 1458 e, mais precisamente na versão impressa de 1573.
A pesquisa encontra-se estruturada da seguinte forma: na primeira seção consta os aspectos introdutórios; na segunda apresenta-se a construção metodológica; já na terceira seção compõem-se da vida de Benedetto Cotrugli juntamente com sua obra; e na quarta e última seção apresenta-se as considerações finais.
2 CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA
O estudo permeia uma contextualização histórica do século XV, evidenciando a importância do Reino de Veneza no âmbito do comércio e dos negócios. Neste panorama, com a evolução do comércio, surgem avanços significativos na Contabilidade e na arte do comércio. Ademais, no estudo em questão as discussões são centradas em análises da obra de Benedetto Cotrugli (1458), sempre que possível comparando com a obra de Luca Pacioli (1494).
Salienta-se, ainda, que o referido ano de elaboração da obra, ou seja, 1458 foi construída em formato manuscrito, sendo sua versão impressa apenas no ano de 1573. Assim, optou-se pela análise com base na publicação de 1573. Em adição, a metodologia empregada permeia uma pesquisa histórica, por meio do método de análise comparativa.
Assim, o presente estudo pode ser classificado com uma pesquisa histórica de cunho narrativo e interpretativo, em virtude do primeiro promover um relato acerca de eventos específicos e o segundo propiciar um olhar comparativo, diante de fatos passados os quais se vinculam a momentos futuros (PREVITS; PARKER; COFFMAN, 1990). Por se tratar de uma pesquisa de caráter histórico existe a possibilidade de interpretações pontuais, devido ao estudo envolver documentos históricos no tocante a área contábil e de negócios. Além disso, a pesquisa histórica serve como um alicerce para a compreensão de fatos sociais, políticos e econômicos que propiciaram transformações significativas do pensamento contábil.
A partir do viés histórico assumido pelo estudo infere-se a perspectiva de descobertas passadas, as quais influenciaram e/ou ainda influenciam momentos e ações contemporâneos. Ao elucidar o estudo histórico da contabilidade surgem oportunidades de análises analíticas, que possam revisitar discussões e momentos ainda não conhecidos ou pouco explorados. Com relação à contabilidade, pesquisas que investiguem tanto os mecanismos contábeis utilizados quanto o pensamento contábil existente em séculos passados contribuem para que novas evidências sejam apontadas (CARMONA, 2018).
Em relação aos métodos para análise dos dados, utiliza-se o método comparativo, pois a análise comparativa permite que a partir de trechos extraídos de distintas obras se tenha condições para visualizar diferenças e similaridades entre as mesmas. Nesse sentido, um dos princípios de tal análise é apresentar as ideias e conceitos pertinentes, assim como trazer à tona dados relevantes, como, por exemplo, modos de organizações, processos e até mesmo recomendações que sirvam para refinar concepções já institucionalizadas (WAHYUNI, 2012). Nesta investigação tais comparações (diferenças e similaridades) permeiam os achados nos escritos de Benedetto Cotrugli, concatenando-os aos de Luca Pacioli.
Por conseguinte, a narrativa da análise comparativa ocorre de forma descritiva, pois além de contextualizar a obra de Benedetto Cotrugli comparando-a com a realidade da época, relaciona-se também à alguns pontos presentes na obra de Frei Luca Pacioli (1494), como por exemplo, a contabilidade e suas características em âmbito econômico e de negócios. Para tanto, o fio condutor da pesquisa baseia-se nas obras disponibilizadas de forma online, sendo estas encontradas em diferentes versões, pertencentes aos anos de 1573, 1582, 1602a, 1602b, 2016 e 2017.
Apesar dos conteúdos contidos nos livros serem similares, nota-se algumas divergências quanto a alguns termos e expressões (principalmente pela língua/dialeto), entre as quatro mais antigas (1573, 1602a e 1602b - dialetos do norte da Itália (principalmente do dialeto veneziano)) e 1582 (língua francesa) e as demais (língua Italiana e Inglesa, respectivamente). Cabe destacar que ao visualizar os conteúdos que possuíam similaridades, no decorrer das obras analisadas, houve preferência de interpretação e citação para a mais antiga (1573).
3 BENEDETTO COTRUGLI E SUA OBRA DELLA MERCATURA ET DEL MERCANTE PERFETTO
A composição do estudo centra-se na primeira seção, acerca da vida de Benedetto Cotrugli, seguido de seu compêndio intitulado Della Mercatura et del mercante perfetto e as subseções seguintes abarcam a respeito dos quatro livros que compuseram a referida obra.
3.1 BREVE HISTÓRICO DE VIDA DE BENEDETTO COTRUGLI (1416-1469)
Benedetto Cotrugli (retratado na moeda da Figura 1) nasceu no ano de 1416, na cidade de Ragusa (pertencente ao antigo Reinado de Veneza), no qual atualmente encontra-se a cidade de Dubrovnik (localizada no território Croata), e faleceu em 1469. Nasceu em uma família de comerciantes, provavelmente provenientes de Cattaro (atualmente Kotor, na costa de Montenegro) (FALCHETTA, 2013).

Em meados da década de 1430 mudou-se (FALCHETTA, 2012), para estudar Direito na Universidade de Bolonha, o que o possibilitou a conhecer, e posteriormente “exercer as funções de auditor na Rota de Nápoles” (JOUANIQUE, 1996, p. 269). No entanto, há uma discordância por parte de alguns autores com relação ao término da graduação, ou seja, acreditam que Cotrugli não chegou a concluí-la (PIOTROWICZ, 2014). Falchetta (2012) ratifica que o mesmo também se dedicou ao estudo da Filosofia no mesmo período em que cursava Direito.
Passados aproximadamente vinte anos desta trajetória, Cotrugli retorna a Ragusa para trabalhar no comércio, juntamente com seu pai (JOUANIQUE, 1996). A partir disto, sabe-se que Cotrugli circundou por vários locais, trabalhando com o ramo de comercialização de lã (PIOTROWICZ, 2014; REIS, 2015). Em consonância, seu livro foi concluído no castelo de Serpico, perto de Avelino. No entanto, a demarcação acerca do início da elaboração da obra é desconhecida, pois devido seu oficio de comerciante, percorreu em diversas cidades como Ragusa, Barcelona, Gênova e Florença (PIOTROWICZ, 2014; SCHMIDT, 2000).
A bagagem de experiências que obteve em Nápoles, juntamente com as trajetórias realizadas enquanto comerciante, propiciaram inúmeros conhecimentos acerca da arte do comércio, assim como sobre as dimensões territoriais e marítimas, por realizar constantes viagens devido a seu oficio. Por conseguinte, nos anos de 1464 e 1465, Cotrugli compôs o mais antigo manual europeu sobre navegação, denominado De Navigatione, este desenvolvido em dois manuscritos. Além das duas obras já mencionadas, Benedetto escreveu outras duas: Della natura dei Fiori e De uxore ducenda, porém estas ficaram perdidas no tempo (VAN DUZER, 2013).
Referente a Della Mercatura et del mercante perfetto, a primeira versão impressa de seu livro foi no ano de 1573, na cidade de Veneza. Uma segunda edição foi impressa em Bréscia (norte da Itália, próximo a Veneza), por duas editoras diferentes, no ano de 1602. Houve também uma versão traduzida no idioma Francês, datada de 1582 (HERNÁNDEZ-ESTEVE, 2009). Em períodos mais recentes, houveram diversas impressões em outras línguas, como croata, francês, alemão e inglês.
Além das obras mais antigas, utilizou-se da produzida pela Università Ca’ Foscari, de Veneza, em língua Italiana, no ano de 2016, e outra adaptada desta, a qual foi traduzida na língua inglesa em 2017. No entanto, sabe-se da existência de três obras copiadas a mão: a primeira, pertencente a Biblioteca Nacional de Florença, datada de 17 de março de 1484 e a segunda (incompleta, na qual falta alguns trechos), sob domínio da Biblioteca Marucelliana de Florença, a qual foi doada pelo jesuíta Girolamo Lagomarsini em 1754 a um convento de sua ordem, na cidade em questão (HERNÁNDEZ-ESTEVE, 2009). A terceira encontra-se na Biblioteca Nacional de Valleta, em Malta (PIOTROWICZ, 2014).
Ao final da obra de Cotrugli encontra-se disposta uma dedicatória, denotando o intuito da mesma, em abordar questões relativas ao comércio e ao comerciante, e que seria dedicada a Francesco de Steffani, um importante comerciante da época, o qual era seu conterrâneo. Outro ponto destacado neste último trecho tange a justificativa de Cotrugli em finalizar seu livro no Castelo de Serpico, devido a peste que desalentava o Reino de Nápoles. Por fim, deixa a data de conclusão do livro: 25 de agosto de 1458.
3.2 DELLA MERCATURA ET DEL MERCANTE PERFETTO
A obra encontra-se agrupada em quatro livros, em um espécime de compêndio, estes dispostos em quarenta e nove capítulos: O primeiro livro, com dezoito capítulos, abarcando conceitos quanto ao comerciante e as mercadorias, no qual o capítulo treze intitula-se “Dell’ordine di tenir le scritture mercantilmente”, traz a contextualização de como deveria ser a “Contabilidade” do comércio. O segundo livro tange diretamente a fé cristã, como a missa, as orações e a consciência dos atos lícitos e ilícitos, agrupando-se em quatro capítulos.
O terceiro livro compete a características do comerciante, dividindo-se em dezessete capítulos. Aborda questões como a prudência, fortuna, integridade, autoridade, liberdade, tranquilidade e modéstia. O último livro, disposto em dez capítulos, envolve aspectos mais exógenos ao comerciante, como por exemplo, a casa, a esposa, os filhos, a família, os servos, o conceito de homem econômico e o “fim” do mercante, termo esse utilizado como alusão a idade avançada ou até a morte, remetendo a quando abandona-se a vida de comerciante.
Na sequência a Figura 2, contém a capa das duas versões impressas mais antigas da obra de Benedetto Cotrugli.
Com relação as duas capas das obras, expostas na Figura 2, observa-se a primeira (lado esquerdo) manuscrita em 1573 na língua/dialeto de Veneza e a segunda (lado direito) pertencente ao ano de 1582 no idioma francês. Na sequência, a Figura 3 exibe outras duas versões antigas, ambas de 1602 e escritas na língua/dialeto de Veneza, porém impressas por editoras diferentes.


Cabe ressaltar que as quatro versões de livros mencionadas anteriormente (Figura 2 e Figura 3) são de uma mesma obra, porém impressos por editoras diferentes em versões distintas. Assim, ocasionando algumas traduções e readaptações de contexto, conforme época e local. Desse modo, as subseções seguintes serão tratadas com nomenclaturas dos subtítulos conforme a divisão feita por Cotrugli: Primeiro Livro; Segundo Livro; Terceiro Livro e; Quarto Livro. Ressalta-se que este tratamento, como por exemplo: “primeiro livro”, equivale a uma espécie de “primeira seção”.
3.2.1 Primeiro livro
O primeiro livro enfatiza as questões pertinentes aos homens de negócios, expondo as características e qualidades que estes devem ter (Figura 4). Questões relativas às mercadorias, manuseio de dinheiro, assim como a arte da negociação são contextualizadas. Aspectos neste contexto, como o câmbio, depósitos, vendas com menor preço, pagamento a fornecedores, relacionamento com outros comerciantes e coisas proibidas (a exemplo negociações ilícitas) aos negociadores são abordadas ao longo dos dezoito capítulos.
Cotrugli discorre acerca da importância de o comerciante honrar os prazos e valores, seja no papel de cliente ou vendedor. A questão de o mercante possuir conhecimento sobre as diferentes moedas torna-se outro ponto fundamental, assim como possuir pequenos valores em dinheiro da moeda local do lugar por onde esteja passando. Torna-se interessante deslumbrar a preocupação de Cotrugli sobre as moedas (e as “cotações”) utilizadas pelos diferentes reinos.
Anteriormente a Cotrugli, a obra manuscrita “La Pratica della Mercatura” de Francesco Balducci Pegolotti em 1340 já se preocupava com os pesos e medidas das moedas (REIS, 2015). No entanto, semelhante ao caso do livro de Cotrugli, o livro de Pegolotti veio a ter sua primeira versão impressa muito tempo depois, especificamente em 1776. Pegolotti (1776) contempla uma descrição minuciosa das moedas utilizadas nos diversos polos comerciais, bem como as formas para realizar o câmbio e os negócios em cada local. Isto reforça a necessidade e pertinência deste conhecimento sobre as moedas pelos mercantes.
Para as transações que o comerciante realizava, como os depósitos, empréstimos, empenho, Cotrugli comentava que se tornava necessário a emissão de comprovantes, para provar que tal operação realmente tivesse ocorrido. Sem este meio, a outra parte poderia agir desonestamente, bem como o mercante poderia precaver-se contra situações adversas.
No livro em questão, especificamente no capítulo treze, composto por cinco páginas, encontra-se um ponto de discussão sobre a história contábil. Tal capítulo intitulado por Dell’ordine di tenir le scritture mercantilmente, concentra o alvo de debates acerca da originalidade do “método das partidas dobradas”, explicitadas pelo Frei Luca Pacioli, na Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalitá.
Analisando a questão temporal, sabe-se que a obra de Benedetto Cotrugli foi concluída cerca de trinta e seis anos antes que a de Luca Pacioli. Neste panorama, as próximas assertivas entoam a tentativa de resgatar os principais aspectos da obra de Cotrugli, sempre que possível promovendo comparações com o tratado XI - De Computis et Scripturis, da página 198-210, com trinta e seis capítulos, presente ao final da Summa de Pacioli.
Benedetto Cotrugli inicia seu discurso argumentando sobre a importância de o comerciante possuir uma pena (meio utilizado para escrita na época). Essa alusão expressa a preocupação dele no registro por escrito dos fatos envolvendo o comércio, ressaltando, também, a questão do capricho e da organização. Para reforçar a proposição da relevância de registro dos fatos, ele menciona que ninguém é humanamente capaz de recordar-se de todas transações, a não ser Ciro II (Rei da Pérsia entre 559 e 530 a. C.), que sabia o nome de todos membros de seu exército e, Lucio Scipione Romano, Cinea de Pirro, Embaixador em Roma, o qual entrava no senado e sabia cumprimentar todos presentes pelo nome. A menção do rei Ciro e de Cinea de Pirro faz-se de forma clássica a época e séculos posteriores, no contexto de fazer alusão a pessoas com ótima memória. Tal menção aos dois cidadãos, no contexto supracitado, também pode ser observada em di Diano (1626).
Além de conotar a importância da escrituração para o benefício do próprio comerciante, Cotrugli salientava que esta servia como resguardo para casos de acusações, escândalos ou para qualquer questão neste sentido. Para os mercantes italianos da época, um sistema organizado de registros mercantis/contábeis já se exibia como uma necessidade, pois o comércio estava expandindo suas fronteiras e se sofisticando (KITTLER, 2020).
Por última justificativa para o ato de escriturar, Cotrugli apresenta a possibilidade da eternidade dos registros, a qual se não fosse por este meio, certamente seria esquecida ou perdida com o tempo. Sem o registro, não haveria como o comerciante lembrar-se de todos os custos das mercadorias, vendas e demais fatos que ocorrem normalmente no seu comércio, conforme destacado por Cotrugli (1573) na observação atinente a página 37:
[...] isto é, manter ordenadamente as escrituras mercantis. As quais são o meio para lembrar de tudo aquilo que o homem faz, de quem deve receber, a quem deve: os custos das mercadorias, dos utilitários, das perdas, e todos os outros assuntos, de onde todo mercante depende.
Nesta perspectiva, Cotrugli (1573) propõe a escrituração destas transações: “Debbe adunque il mercante tenire tre libri, cioè il Quaderno, Giornale, & Memoriale” (p. 37), conforme exposto na Figura 5. Em livre tradução, os três livros que o mercante deve possuir: Il Quaderno (Razão), Giornale (Diário) e Memoriale (Para registrar as operações, toda noite ou início da manhã). De forma semelhante, Pacioli menciona estes mesmos três livros, no seu quinto capítulo.
Os procedimentos para escrituração são minuciosos, informando como e onde cada transação deveria ser registrada. Pacioli dedica os capítulos dez a dezesseis para exposição destes lançamentos, gerando certa similaridade entre os trabalhos.
Além dos três livros, os quais obrigatoriamente o mercante deveria ter, sugeria-se outros dois: um para registrar as contas e fatos que são provenientes de fora (demais negócios do comerciante fora da sua casa de comércio), e outro para registro de pequenos detalhes e valores, assim como dito por Cotrugli (1573, p. 38): “Deve ainda manter dois outros livros, um para acoplar as contas que são recebidas “de fora”, e outro para copiar os valores ínfimos, de pequena importância”.
Observa-se implicitamente a preocupação de Cotrugli quanto a organização e veracidade dos livros, transpondo as informações do comércio de forma lógica, coerente e verdadeira. Neste mesmo sentido, no capítulo sete de Pacioli, incube-se do motivo de autenticar os livros, no intuito de evitar fraudes e enrobustecer a confiança sobre aquele documento.
Até mesmo na escrituração dos livros, evidenciava-se a forte presença da fé cristã. Cotrugli pontuava a necessidade de sempre invocar o nome de Deus na primeira folha dos livros. De maneira similar, Pacioli expunha um procedimento relacionado em seu sexto capítulo: os livros deveriam ser marcados com o sinal da Cruz.
Ao final de cada ano, o comerciante deveria “levar” as partidas do Giornale ao bilancione (Espécie de “grande balanço”), reportando todos os aumentos ou diminuições na partida do capital. Essas recomendações também foram sugeridas por Pacioli, no capítulo vinte e sete, que trata da questão de encerramento do resultado financeiro nos finais de cada ano.
Não obstante, a escrituração dos livros supracitados, Cotrugli ponderava a necessidade de controle, conservação e arquivamento dos documentos relativos ao negócio, como os contratos, recibos de cambio, recibos de contas e demais compromissos. Semelhante, Pacioli em seu capítulo 35 evidenciava a relevância destes procedimentos, tanto para controle como para resguardar-se contra possíveis alegações e desentendimentos comerciais.
O capítulo encerra-se novamente retomando a importância de manter as escriturações atualizadas e organizadas, para que a honra do comerciante e de seu comércio fossem mantidas, protegendo-se contra possíveis confusões “babilônicas”. Caso o mercante não fosse capaz de aprender e lidar com os procedimentos explicados neste capítulo, deveria contratar um jovem “Quardeniero” (uma pessoa que auxiliasse nos serviços relacionados ao comércio, como a escrituração e registro das transações).
Conforme exposto por Hernández-Esteve (1992), dá-se a Luca Pacioli o reconhecimento da primeira obra impressa a respeito das partidas dobradas no ano de 1494, porém este assunto havia sido tratado, mesmo que de forma menos explicativa, por Benedetto Cotrugli em 1458, o qual desde a elaboração de sua obra até o ano de 1573 manteve-se desconhecida. Pelo fato da obra de Pacioli representar durante muitos anos o fio condutor da Contabilidade, tem-se como à existência de outro profissional o pioneirismo das partidas dobradas, ainda vislumbra-se como um assunto pouco explorado e disseminado pelos historiadores da Contabilidade (HERNÁNDEZ-ESTEVE, 1992).
Assim, alguns autores como, por exemplo, Montford (1994), alega que a obra de Cotrugli possui um caráter meramente descritivo, ao passo que a composição de Pacioli simboliza além de uma escrita estruturada com um aspecto racional, discorre de forma completa a respeito das novas práticas contábeis. Para tanto, autores como Pineda (2012) enfatiza a importância da escrita de Cotrugli para o desenvolvimento de uma gestão centrada pela racionalidade na busca, tanto de uma construção social, quanto produtiva (economicamente).
3.2.2 Segundo livro
O segundo livro (Figura 6) foi composto por quatro capítulos, retratando a realidade do contexto histórico da época, ao ser exclusivamente voltado a religião Cristã. Trata-se da fé, dos cultos divinos e do tempo em que o comerciante deveria ter para comunicar-se com seu criador. Os argumentos citados expressam que não apenas basta frequentar os cultos, mas sim levar isso para a vida, agindo como homem religioso, transmitindo valores como tal.
No primeiro capítulo, o assunto a ser explanado refere-se à Missa. Assim, cita-se que desde o início dos tempos, além de ser a casa do Senhor, seria o templo do sacrifício, das cerimônias e venerações. Menciona-se o exemplo de alguns povos que ao longo da história foram pecadores e que por deixarem Deus de lado, acabaram por sofrer as consequências desta escolha. O autor argumenta, ainda, que na Missa, o comerciante peça a Deus para não ter cometido algum engano durante as negociações. Fato este apresentado com ênfase por Cotrugli (1573, p. 48):
Mas antes que vá a missa, deve fazer o preparatório no seu coração, que seja devoto a entender. A qual missa é preservativa do contínuo pecado, e mal feito, leva aos pecados veniais, para a confissão geral, que o homem faz na missa; e pela benção que recebe do sacerdote [...]. O que significa que o comerciante deve estar com as mãos e com o intelecto elevado a Deus, sem pretensão de “ganhar vantagem”, de qualquer negociação.
A questão das orações torna-se discutida, assim como se aloca uma série de práticas que são consideradas ilícitas ao comerciante. Essas práticas fundamentam-se na crença provinda do Cristianismo, e agem como mediadoras disciplinares aos atos, tanto dos cidadãos em geral, como dos mercantes e suas obrigações, perante a família e a sociedade.
No que tange ao segundo capítulo, Cotrugli constrói seus argumentos mencionando a respeito da oração a qual mantém o homem. O autor aponta treze condições que devem ser pensadas antes de haver uma oração: i) pensamento fidedigno; ii) ser seguro; iii) ser humilde; iv) ser discreto; v) ser devoto com o coração não somente com a boca; vi) ser grato; vii) ser sigiloso; viii) ser puro; ix) saber ouvir; x) ser atento; xi) saber servir; xii) ser trabalhador/habilidoso; xiii) ser caridoso.
Para tanto, o terceiro capítulo refere-se à doação/dízimo. Nesta parte Cotrugli menciona que o comerciante deve exercer a solidariedade para com os outros. Na sequência o autor menciona a existência de dois tipos de esmolas: corporais (auxiliar quem tem fome, sede, falta de vestimentas, etc.) e espirituais (consolar o aflito, aconselhar o duvidoso e ensinar o ignorante). Dessa forma, Benedetto Cotrugli conclui na observação pertencente à página 52:
Mas o que vamos tratar em seu capítulo; mas apenas concluo que a esmola é um remédio saudável, singular e excelente para reduzir a perfeita contrição do homem e, consequentemente, para a modificação da vida. Porque a lágrima da compaixão, que vem no princípio do coração puro, tem grande virtude para fazer o homem mudar sua vida e ter um bom fim.
Já o último capítulo apresentado por Cotrugli (1573), deste segundo livro, consiste em demonstrar acerca de casos de consciência lícita e ilícita, ambas as palavras no sentido de que o homem, por ser uma espécie mundana, pode guiar seus propósitos de forma clara e transparente, como optar por desempenhar seu papel de forma ilegal.
Para tanto, Cotrugli estende seus argumentos e explana acerca da palavra usura e sua significação diante as transações comerciais realizadas pelos mercantes. Como forma de ressaltar a informação anterior, umas das inserções feitas pelo autor em seu livro expõem que: “Usura se chama ganho feito de pecuniário por meio de atos impraticáveis, por acordos ou por intenção”, exprimindo que a palavra usura simboliza ganho recebido de forma intencional (COTRUGLI, 1573, p. 53).
Na sequência, o autor sintetiza algumas das formas que descrevem os posicionamentos dos comerciantes e que denotam atos lícitos e/ou ilícitos. Conforme exposto por Cotrugli: denotando que um ato ilícito é entregar dinheiro com a intenção de fazer um pacto e assim pedir algo em troca. Enquanto que um ato lícito se configura como sendo legal emprestar dinheiro, mas que este não envolva pactos intencionais (COTRUGLI, 1573).
3.2.3 Terceiro livro
O terceiro livro (Figura 7) de Benedetto Cotrugli procura determinar a constituição de um perfil ético ideal para aquele que pretendesse desenvolver a atividade mercantil. Este dividido em dezessete capítulos, observando pelos seus títulos, as virtudes morais e públicas do mercante.
Destaca-se, conforme Cotrugli (1573), que o mercante deve praticar suas atividades tendo em vista o bem comum, o bem público, o progresso do estado e de seu povo. Conforme Sá (2007) o que se confere ao mercante (comerciante) aproxima-se ao profissional contábil quanto a levar as células sociais à eficácia com a qual se consegue o bem-estar das nações e das comunidades.
A diligência descrita por Cotrugli (1573) deve ser grande no comerciante no que diz respeito apenas às coisas que o mesmo deve fazer e investigar e em suas anotações nos livros e nos seus negócios. Desse modo, o comerciante deve exercer a atividade com máximo zelo e atenção para atender os interesses de seus clientes e da sociedade em geral, de tal maneira que a consciência profissional que possa guiar atividades de virtude possa ser determinante, considerando a imensa responsabilidade em sua profissão (SÁ, 2007).
Quanto ao capitulo IV - De la confidentia de lo mercante (Confiança) conforme Cotrugli (1573) é indispensável a segurança e o bom propósito dos negócios, esta condição presente na integridade do mercante. O comerciante deve ter confiança e prudência, e quanto mais o destino o golpeia, mais forte e destemido deve ficar, conforme trecho este destacado por Cotrugli: “E essa condição está posta na integridade do mercante” (COTRUGLI, 1573, p. 71). De tal modo que a confiança só pode advir do comportamento ético do profissional (mercante) percebido não só pela atividade exercida, mas também na sociedade na qual se encontra inserido (ANTUNES et al., 2013).
No capítulo VIII, De la facilitate de lo mercante (Conhecimento e aptidão do mercante), trata-se que o comerciante deve ser apto aos negócios. Esta aptidão/conhecimento provém de uma mentalidade bem construída e ordenada e a aptidão vem do bom intelecto e do exercício continuo de cada atividade, conforme exposto no trecho de Cotrugli (1573) atinente a página 74:
Deve ser um comerciante ágil nas suas ações. A qual agilidade sempre provém da mente composta e bem ordenada. E enquanto alguém tiver que escrever com dificuldade, orar com dificuldade e forçar qualquer outra coisa, diga que ele é ignorante dessa coisa, porque a facilidade vem do bom intelecto, que já fez o hábito da prática, e essa coisa facilmente não traz qualquer dificuldade.
De acordo Piotrowicz (2014) a obra de Cotrugli baseia-se sobre sua experiência imediata, construída no trabalho direto, e por aspectos de personalidade, costumes e normas de comportamento.
3.2.4 Quarto livro
O último livro (Figura 8) tange a questão de caráter mais externo à figura do mercante, como a sua casa, seu comércio, sua vila, esposa e filhos. De forma geral, procura explicitar como deve ser o viver e a convivência do homem econômico com a sociedade em que se encontra.
Inicialmente, o comerciante deve possuir uma casa e um estabelecimento comercial organizado, para demonstrar respeito frente aos demais. Este deve ser em um lugar plano, assim como ser um ponto estratégico para negociações. Logo na entrada, deve possuir um escritório, para atender aos clientes. Porém, os livros e documentos não devem ser guardados neste, e sim em um local remoto da própria casa, se perto de onde dorme, melhor. Salienta-se que deve ser gentil com todos os forasteiros, para transmitir boa fama.
O terceiro capítulo deste livro denomina-se “Dell’huomo economo” (Do homem econômico). Para Cotrugli (1573), o homem econômico deve ser honesto e impor respeito à família. Deve ser o primeiro a acordar e um dos últimos a dormir, sendo um cidadão exemplar no modo de agir. Deve zelar pela casa e pelo comércio, sempre acompanhando de perto estes, verificando se está tudo na devida ordem, e se for o caso de que algo tenha sumido, reprender os servos. Estes últimos, sempre devem ter seus atos monitorados. Na sua visão, o homem econômico denotava uma presença respeitosa para ele e sua família perante a sociedade, como exposto por Cotrugli (1573, p. 86-87):
E porque o tratamos do viver econômico, consequentemente aparenta de tratarmos do homem econômico. O qual deve ser antes de tudo macho, fazer-se respeitável da esposa, dos filhos e de toda família. E alguma vez mostrar-se terrível ainda que tu não seja, é algo bom, para viver alegre com a sua casa. E sejas esforçado para que tua família não conheça-te ao natural, que como conhece-te, tu estaria perdido. E nisso se deve ter muita prudência. E eu que te escrevo parece-me não bastar. Deve ser venerável, educado, honesto, assim faz com que a tua família aprenda o mais certo dos costumes da tua vida, que da tua doutrina. Mas que seja melhor nas operações do que nas palavras. Acorda de manhã mais cedo que os outros, deita-te tarde, dos últimos. Dedica-te ao menos a cada quinze dias, de circular toda a casa/comércio, olhar debaixo e em cima de cada lugar, o cuidado onde que dorme não é demais, servos, reprende cada falta, sempre acompanhe qualquer coisa, ou a faça, para que não tema o advento do seu improviso, mantenha ordenadamente a casa.
Consoante ao exposto aponta-se três características inerentes ao homo economo: i) a presença de uma racionalidade limitada por parte do tomador de decisões; ii) definições superficiais quanto a aspectos comportamentais; e iii) em âmbito evolucional as tomadas de decisões ainda circundam sobre regras adaptáveis.
Com relação ao primeiro argumento destaca-se a capacidade do homem econômico em exercer escolhas, mais precisamente agindo de forma individualista. No que concerne ao segundo argumento, insere-se a questão das habilidades cognitivas presentes no homem econômico, mesmo estas sendo indiscutivelmente limitadas, pois as restrições existentes no cérebro humano, ao tomar decisões, existem pelo fato das próprias limitações cognitivas. Por fim, o terceiro argumento abarca a respeito da tomada de decisão envolver os aspectos e as circunstâncias do momento de ocorrência do evento (DOUCOULIAGOS, 1994).
Apesar dos indivíduos agirem de forma racional e autônoma, as interações sociais promovidas pelo homem econômico desencadeiam aspectos positivos relacionados a tomada de decisões, pois propiciam estímulos estratégicos, bem como evocam questões comportamentais, como espírito cooperativo, o qual pode emanar de uma minoria, no entanto provocar reações em uma maioria (CAMERER; FEHR, 2006). Assim, o homem econômico, segundo Mellor (1997) representa uma sociedade enraizada em um dualismo hierárquico, pois de um lado encontra-se o homem racional e os mecanismos econômicos que o circundam e por outro o homem científico em busca de sua construção social. O autor enfatiza, ainda, que estes aspectos não condizem apenas em âmbitos cultural e teórico, mas essencialmente em campo material (MELLOR, 1997).
No entanto, a discussão do homem econômico não aparenta manter relação com o que posteriormente ficou conhecido como o “homem econômico”. Neste aspecto, conforme Rover (1958), não existe sentido algum em relação ao conceito de Homem Econômico utilizado pelos economistas, e que o conceito exposto por Cotrugli seria apenas acerca de simples maneiras do comerciante ser eficiente em seus negócios.
Na sequência, o último capítulo, do último livro, tange ao fim da trajetória proposta na obra, e, por conseguinte do mercante, literalmente. Denomina-se Del fine del mercante. Partindo do pressuposto de que o comerciante deve possuir um intelecto perspicaz, pleno e lógico. Cotrugli cita que passando os cinquenta anos, surgem os problemas em contraponto as características citadas, os quais levam o mesmo a cometer erros pela decadência da memória.
A assertiva anterior, segundo Cotrugli, não inibe o mercante da vida social ou civil após os cinquenta anos, mas apenas de sua vida comercial. Ele argumenta que após essa idade, o comerciante deve procurar fazer outras coisas, levando a vida com menos tensões provindas de compromissos, como frequentar mais missas, orar mais, ler livros, dedicar-se com maior intensidade a família, e perspectivas afins.
Nas declarações finais, deixa breves comentários a Francesco de Steffani. Explica que gostaria de estar em sua amada pátria, porém, devido à peste que afligia a região de Nápoles, permanecera recluso no castelo de Serpico. Encerram-se os agradecimentos, saudando e felicitando ao então destinatário, juntamente com a data que este foi concluído.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo objetivou elucidar as acepções de Benedetto Cotrugli quanto aos negócios e contabilidade presentes no livro Della Mercatura et del mercante perfetto. Tal livro, escrito em 1458, mas impresso em 1573 assume papel relevante para os atuais conhecimentos sobre negócios e contabilidade, sendo um dos primeiros dedicados a este contexto, no qual se tem conhecimento.
A obra (compêndio) agrupa-se em quatro livros, os quais respectivamente abordam como elementos norteadores: (i) características relativas ao comércio; (ii) a fé cristã e seus valores; (iii) aspectos relacionados a figura do comerciante; e (iv) fatores extrínsecos ao mercante: sociedade e família. Ao abordar as características inerentes ao comércio, Cotrugli dedica um capítulo a escrituração contábil, destacando a importância do comerciante em manter os registros das transações comerciais. Além disso, sugere a utilização de livros contábeis, registrando contas em débitos e créditos, o que anos depois, especificamente em 1494 com o Frei Luca Pacioli, seria difundido como método das partidas dobradas.
Acerca das contribuições para a Contabilidade, nos escritos pertencentes ao segundo e terceiro livros de Cotrugli abarcam conceitos éticos, dos quais regem a ciência contábil até os dias atuais, como a diligência, prudência, confiança, integridade, dignidade, astúcia, modéstia e confidência. No último livro observa-se o zelo e respeito em prol da família, casa, comércio, governo e sociedade em geral. Cotrugli destaca ainda um capítulo dedicado ao homem econômico, termo este conhecido e discutido anos depois, mas que possuía aspectos da sua atual essência.
A presente investigação contribui para discussão da obra de Benedetto Cotrugli, principalmente no cenário acadêmico brasileiro, assim como corrobora com o contexto da pesquisa histórica em contabilidade, no que concerne as primeiras evidências modernas do método de partidas dobradas, da escrituração e dos valores contábeis. Também existe a discussão do mundo dos negócios para a época em questão (1458), sob a visão de um comerciante. Além disto, existe a contribuição ao discutir e entrelaçar as arguições obtidas com a obra de Frei Luca Pacioli, a qual foi escrita 36 anos depois do livro de Cotrugli.
O presente estudo assumiu basilarmente a obra de Cotrugli (1573) para a realização das análises, por ser a primeira versão impressa. No entanto, tem-se ciência que as versões apresentam algumas modificações em detrimento da pessoa que copiou (em caso de manuscritos) ou que editou (em casos de impressões). Em específico quanto a versão impressa de 1573, parte da discussão sobre as partidas dobradas aparentemente foi ocultada em relação as versões anteriores (manuscritas), principalmente no que tange às exemplificações (SANGSTER; ROSSI, 2018).
Para uma discussão com maior aprofundamento do capítulo sobre o método das partidas dobradas, com maiores exemplificações por Cotrugli, o artigo de Sangster e Rossi (2018) pode ser consultado. Os autores em questão elaboraram seu estudo com base em uma versão (física) manuscrita da obra de Cotrugli, datada de 1475, e que atualmente se encontra na Biblioteca Nacional de Valetta, Malta. Apesar deste fator limitante, ressalta-se que o presente estudo teve como foco discutir a obra como um todo, e não apenas o capítulo específico que trata do método de partidas dobradas.
Nas discussões e análises, uma limitação consiste ao não explorar nomes mais recentes da escola Italiana, como Fábio Besta, Giuseppe Cerboni, Clitofonte Bellini, Vittorio Alfieri e Domenico Manzoni. Em específico, Manzoni (1574) aborda várias exemplificações de inventários, lançamentos contábeis e formas de organizar os livros, à luz dos ensinamentos de Frei Luca Pacioli. Nesta perspectiva, novas pesquisas podem explorar essas obras, especialmente a de Manzoni (1574), no intento de enriquecer as comparações seminais entre as obras de Benedetto Cotrugli e Frei Luca Pacioli.
Ademais, entoam como sugestões para futuros estudos um maior aprofundamento a respeito de cada livro integrante do compêndio “Della Mercatura et del mercante perfetto”, bem como relacionar as obras de Cotrugli a questões pertinentes aos princípios contábeis. Novos estudos também podem explorar com maior solidez o conceito de homem econômico sob a ótica de Cotrugli e de autores posteriores. Ainda, por meio de outras técnicas para análise de dados, como a análise do discurso ou análise de conteúdo, novos olhares podem consolidar as discussões aqui expostas.
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Notas
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