Ciências Sociais

Bourdieu e o dom

Bourdieu and the gift

Amurabi Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Bourdieu e o dom

Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, vol. 40, núm. 3, p. 37034, 2018

Universidade Estadual de Maringá

Recepción: 07 Marzo 2017

Aprobación: 06 Septiembre 2017

Resumo: O presente artigo busca revisitar a teoria do dom, contudo, sem se resumir a uma reanálise dos dados trazidos por Mauss no Ensaio sobre a Dádiva. Objetivamos aqui debater as possibilidades de interpretação apresentadas na obra de Bourdieu a partir de dois eixos: a) o da compreensão da obrigação tripartite do ‘dar-receber-retribuir’, a partir do substrato teórico do sociólogo francês, entendendo esta enquanto uma predisposição construída socialmente; b) o da interpretação específica que o autor constrói sobre o dom, num esforço de desvelar o seu mistério, o que encontra-se em consonância com sua postura de ruptura epistemológica.

Palavras-chave: dom, Bourdieu, habitus.

Abstract: This paper seeks to revisit the theory of the gift, however, not restricted to a reanalysis of data brought for Mauss on The Gift. We aim here to discuss the possibilities of interpretation introduced by Bourdieu's work from two aspects: a) understanding the tripartite obligation of ‘giving-receiving-return’ from the theoretical background of the French sociologist, understanding this as a predisposition socially constructed; b) the specific interpretation that the author builds on the gift in an effort to uncover its mystery, which is in line with the stance of epistemological rupture.

Keywords: gift, Bourdieu, habitus.

Introdução: a obrigação tripartite enquanto paradigma

O célebre Ensaio Sobre a Dádiva (2001 [1923-1924]) – ED –, de Marcel Mauss (1872-1950), ainda suscita inúmeras inquietações, porém, poderíamos resumir toda a discussão que nele é realizada a partir da afirmação de que dar, receber e retribuir, constitui uma obrigação fundamental das sociedades humanas, o que esse autor procurou demonstrar através de um estudo comparativo, no qual apontou para o fato de que esta obrigação universalmente posta encontra-se organizada de forma singular em cada caso culturalmente localizado. O ato de ‘dar e receber’ abarcaria tanto trocas materiais quanto imateriais (Lanna, 2006, p. 87), que seriam, na linguagem de Mauss, ‘espirituais’, no sentido de instituírem linguagem e comunicação (Levi-Strauss, 1982).

A indagação que Mauss nos coloca é paradigmática, na medida em que apresenta uma questão que, segundo sua interpretação, é substrato fundamental da vida social. Pode-se arriscar a dizer que, para Mauss, a vida social não seria possível sem este contínuo ‘dar e receber’, pois ela se oporia à troca mercantil, ainda que, paradoxalmente, ele procure nesta a origem da troca (ou do intercâmbio) (Lanna, 1995). Destaque-se que Mauss compreendia a dádiva de forma bastante ampla, incluindo nela não só os presentes, mas também as visitas, as palavras, as esmolas, as heranças e até mesmo os tributos.

Talvez por se tratar de um trabalho que possibilite uma interpretação de forma aberta e ambivalente (Martins, 2008), a leitura do ED tem sido marcada por uma forte descontinuidade em sua análise (Sigaud, 1999). Uma das mais destacadas, sem dúvida, é a de Levi-Strauss (1991), que reconhece na obra de Mauss uma verdadeira ‘revolução’ nas ciências sociais, de tal modo que, para este antropólogo: “[...] pela primeira vez na história do pensamento etnológico um esforço foi feito para transcender a observação empírica e ascender às realidades mais profundas” (Levi-Strauss, 1991, p. XXXIII), ainda que Mauss, ainda segundo Levi-Strauss, não tenha explorado sua própria descoberta, tendo se deixado mistificar pelo nativo em sua explicação do hau, o que vai fazer com que Sahlins (1974) aponte Levi-Strauss como um dos críticos da interpretação mausseana do hau.

Contudo, por mais que a teoria da dádiva tenha sido amplamente revisitada mais recentemente por Douglas (1990), Godbout (1992; 1998), Caillé (1998; 2001; 2002), Godelier (2001), Martins (2002), Freitas (2002), Lanna (1995), Sabourin (2008; 2011), Damo (2008), entre outros autores, pouca atenção tem sido dada à contribuição fundamental de Bourdieu a este debate, bem como à centralidade deste paradigma na formulação de seu pensamento teórico.

Buscarei neste trabalho elucidar alguns aspectos da obra desse sociólogo francês que nos trazem uma reflexão frutífera sobre o dom, tanto a partir de seu substrato teórico mais amplo, em especial por meio da categoria de habitus e de senso prático, como por meio de sua reflexão específica sobre o dom. Destacando, por fim, nas considerações finais, a contribuição da própria teoria do dom para a teoria bourdieusiana.

A constituição das predisposições e a predisposição a dar e receber

Um aspecto fundamental para compreendermos a obra de Bourdieu é o da contextualização teórica em que seu trabalho se insere, qual seja, o de sua oposição ao estruturalismo e ao existencialismo. Em termos mais objetivos, a obra de Bourdieu é marcada pela busca da superação da clássica antinomia das ciências sociais entre a agência e a estrutura, que esse autor procurou resolver a partir da categoria de habitus, retomando assim toda uma tradição das ciências humanas que orbita em torno desta[1]. O habitus permite a Bourdieu compreender a construção da subjetividade considerando a internalização das estruturas sociais, sendo que estas são constituídas a partir das dinâmicas dos campos. Seria possível realizar uma primeira aproximação à tal categoria por meio da seguinte definição:

[...] sistemas de ‘disposições’ duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser produto da ação organizadora de um maestro (Bourdieu, 2009, p. 87, grifos do autor).

Desse modo, o habitus do agente corresponde a um conjunto de predisposições que se constroem a partir da incorporação dos diversos capitais simbólicos, bem como do volume total destes capitais que os sujeitos possuem nos variados campos. Esta multiplicidade de posições que os agentes ocupam nos campos constitui a localização do sujeito no espaço social. O habitus equivale, portanto, às predisposições, em termos de gosto, de julgamento moral etc., que são desenvolvidas segundo esta multiplicidade de posições.

Este conjunto de predisposições é cultivado, ou seja, é ‘inculcado’ ao longo da vida do sujeito, e remete, justamente, a seu lugar ocupado no espaço social. É o habitus que, segundo Bourdieu, permite a cada agente criar, a partir de um pequeno número de princípios implícitos, todas as condutas conforme às regras da lógica do desafio e da resposta, e apenas elas (Bourdieu, 1972). O que tal categoria se propõe é ser um espaço intermediário, que permite passar das estruturas determinadas ao longo do trabalho de organização do corpus às ações de um ator singular e à experiência que ele adquire. Os esquemas produzidos, que permitem os sistemas de classificações e de práticas sociais, encontram-se definidos por sua inscrição no próprio corpo (Oliveira, 2013). Tal conceito teve desenvolvimentos ulteriores na obra de Bourdieu e, como toda inovação conceitual, abriu a possibilidade de usos e interpretações diferentes, entre os quais se instaurou um debate.

Neste ponto é interessante destacar o lugar do habitus no direcionamento das práticas dos agentes. De acordo com a teoria de Bourdieu, os agentes não são apenas epifenômenos da estrutura social uma vez que suas subjetividades representam, sobretudo, a interiorização da externalidade, ou seja, o que é externalizado por meio das predisposições sociais.

Outro ponto que vale a pena explorar, e com isso demarcaríamos uma aproximação mais enfática da discussão sobre a dádiva, diz respeito ao fato do habitus ser uma categoria que compreende ação social como estruturada a partir de predisposições internalizadas pelos sujeitos. Contudo, isso não significa dizer que esse processo de internalização das estruturas sociais irá produzir um agir instrumental. Ainda segundo Bourdieu (2007, p. 169):

[...] convém ressaltar que os agentes sociais são dotados de habitus, inscritos nos corpos pelas experiências passadas: tais sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação permitem tanto operar atos de conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reconhecimento de estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, como também engendrar, sem posição explícita de finalidades nem cálculo racional de meios, estratégias adaptadas e incessantemente renovadas, situadas porém nos limites das constrições estruturais de que são produto e que as definem.

Nesta direção, a ação dos agentes, na interpretação de Bourdieu, por mais que se baseie em estratégias, não necessariamente é guiada pelo cálculo racional das ações, o que se aproxima da interpretação de Godelier (2001, p. 12-13, grifos do autor) acerca da característica fundamental do dom. Segundo este autor:

Então, o dom estava espremido entre duas potências, a do mercado e a do Estado. O mercado – mercado de trabalho, mercado de bens ou de serviços – é o lugar das relações de interesse, da contabilidade e do cálculo. Do Estado é o espaço das relações interpessoais de obediência e de respeito à lei. O dom continuava, assim, a ser praticado entre pessoas ‘próximas’, entre parentes, entre amigos: ao mesmo tempo consequência e testemunha das relações que os ligavam e que impunham obrigações recíprocas que as trocas e os dons expressavam, de dons feitos sem ‘contar’ e, sobretudo, sem esperar um retorno. Pois aquilo que marcava e continua a marcar o dom entre próximos não é a ausência de obrigações, é a ausência ‘de cálculo’.

Se compreendemos o habitus enquanto disposições duráveis (Bourdieu, 1972), significa dizer que tanto estamos nos referindo a uma determinada forma de organizar o mundo quanto de inclinar o sujeito a internalizar esta organização. Isto significa, para Bourideu, que o habitus é o que possibilita a ‘interiorização da externalidade’, ou seja, as condições objetivamente postas da produção das práticas sociais são internalizadas, assim como seus efeitos, que são constituidos a partir das disputas simbólicas travadas nos campos. Mais do que isso, o habitus também implica numa externalização da interioridade, na medida em que constitui todo um sistema de orientação no mundo social, expressando, assim, os gostos e aptidões dos agentes.

A dádiva se torna possível, neste sentido, a partir da constituição de um habitus determinado, que predispõe os sujeitos a dar, receber e retribuir, de modo que ele internaliza esta ‘regra’, sem que se constitua num cálculo racional de sua parte. Na teoria de Bourdieu isso se deve, parcialmente, ao fato de que o habitus constitui nos sujeitos predisposições semiconscientes. Em todo o caso, estamos lidando com um processo de internalização das estruturas sociais que busca constituir um ‘agir natural’ do sujeito, o que se faz possível quando o processo de internalização e socialização de tais regras se dá o mais cedo possível. Daí a relevância que Bourdieu atribui ao processo de socialização primária.

Nos vários exemplos que Mauss nos dá ao realizar o seu estudo comparativo, é reforçada a ideia de que nas diversas sociedades existe a formulação de um ethos da dádiva, uma vez que esse autor se refere não apenas a agentes individuais, mas também coletivos. Se considerarmos que, conforme o autor, “Ninguém tem a liberdade de recusar um presente oferecido. Todos, homens e mulheres, tentam ultrapassar-se uns aos outros em generosidade” (Mauss, 2001, p. 80), significa que a dádiva torna-se possível a partir do processo de internalização das regras morais de um dado grupo. Sem embargo, a obrigação de ‘dar e receber’ só se converte em dom na medida em que se mostra ‘espontânea’, de tal modo que o processo de internalização desta prática é um elemento constituinte do dom. Todavia, para que esta internalização se dê com naturalidade, alguns elementos são necessários segundo Bourdieu:

Concretamente, isso significa que o dom como ato generoso só é possível para agentes sociais que adquiriram, em universos onde são esperadas, reconhecidas e recompensadas, disposições generosas adaptadas às estruturas objetivas de uma economia capaz de garantir-lhes recompensa (não apenas sob a forma de contradons) e reconhecimento, isto é, se cabe uma expressão na aparência tão redutora, um mercado (Bourdieu, 1996a, p. 9).

Para compreendermos o processo de formulação da ‘naturalidade’ do agir social devemos considerar que, para Bourdieu (2005), o agente social se insere numa multiplicidade de campos. Tais campos possuem ligações com fenômenos externos a ele, porém não se relacionam de forma automática, pois possuem suas regras próprias. O habitus vai sendo constituído a partir da quantia de capital simbólico que o sujeito possui, bem como sua estrutura e volume total, que apontam para a multiplicidade de posições que o mesmo agente ocupa nos diversos campos.

Gradativamente, os sujeitos passam a internalizar as práticas possíveis a partir da quantia de capital simbólico que eles possuem em cada campo. O habitus se forma, portanto, a partir da inculcação do capital simbólico que se dá, principalmente, no universo familiar (Bourdieu, 1998). A partir deste processo, determinadas práticas sociais se fazem mais ou menos possíveis para dado agente.

Este processo de internalização das estruturas sociais nos remete também a outra categoria cara a Bourdieu: o ‘senso prático’. Segundo o autor, a incorporação das regras que permitem o norteamento das estratégias lançadas se dá no chamado ‘senso prático’ (Bourdieu, 1996b; 2009). O ‘senso prático’ resulta do processo de incorporação das ‘regras do jogo’ em determinado campo, referindo-se a uma série de conhecimento semiconscientes que os agentes possuem no campo para nortear a ação.

Em seu processo de interpretação da realidade social, Bourdieu compreende que, tendencialmente, os agentes sociais (indivíduos, grupos ou instituições) buscam ampliar o seu volume total de capital simbólico nos diversos campos. Tendo como princípio o paradigma da dádiva enquanto elemento constitutivo do elo social, significa dizer que ser generoso é um elemento fundamental para conseguir ampliar o volume total de capital simbólico de determinado agente social. Não é à toa que o dom apresenta também um caráter agonístico, aproximando e diferenciando os diversos agentes dispostos no campo de acordo com o seu grau de generosidade. Voltando a Godelier (2001, p. 23, grifos do autor) temos que:

Dar parece instaurar assim uma diferença e uma desigualdade de status entre doador e donatário, desigualdade que em certas circunstâncias pode se transformar em hierarquia: se esta já existisse entre eles antes do dom, ele viria expressá-la e legitimá-la ao mesmo tempo. Portanto, dois movimentos opostos estariam contidos em um único e mesmo ato. O dom ‘aproxima’ os protagonistas porque é partilha e os ‘afasta’ socialmente porque transforma um deles em devedor do outro. (...) O dom é, em sua própria essência, uma prática ambivalente que une ou pode unir paixões e forças contrárias. Ele pode ser, ao mesmo tempo ou sucessivamente, ato de generosidade ou ato de violência, mas nesse caso de uma violência disfarçada de gesto desinteressado, pois se exerce por meio e sob forma de uma partilha.

É o senso prático que possibilita ao sujeito perceber a necessidade de ser generoso, de ter o outro como fim. Sem embargo, é neste âmbito da análise do dom a partir do substrato bourdieusiano que caberia uma interpretação anti-mausseana de Bourdieu. Contudo, ao mesmo tempo que a perspectiva teórica do sociólogo francês questiona a existência de um ato desinteressado, uma vez que há um ganho simbólico em jogo almejado pelos agentes, ele nega a existência de um cálculo para tanto. Ainda segundo Bourdieu (1996b, p. 146-147, grifo do autor):

Os agentes que lutam por objetivos definidos podem estar possuídos por esses objetivos. Podem estar prontos a morrer por esses objetivos, independentemente de qualquer consideração em relação aos lucros específicos, lucrativos, da carreira ou outros. Sua relação com o objetivo que lhes interessa não é de modo nenhum o cálculo consciente da utilidade que lhe oferece o utilitarismo, filosofia que preferimos atribuir às ações dos outros. Eles têm o sentido do jogo; nos jogos nos quais, por exemplo, é preciso mostrar ‘desinteresse’ para ter êxito, eles podem realizar, de maneira espontaneamente desinteressada, ações que estejam de acordo com os seus interesses. Existem situações inteiramente paradoxais que uma filosofia da consciência impede de compreender.

A questão da generosidade em Bourdieu é, portanto, alterada, uma vez que o autor vislumbra não uma ausência de interesse, mas um interesse pelo desinteresse; o que, novamente, só se é possível por meio do processo de socialização. E é este processo que possibilita a percepção do interesse pelo desinteresse, factível, tão somente, na medida em que as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas estejam de acordo, isto é, quando a percepção é constituída segundo as estruturas do que é percebido. De acordo com Bourdieu (1996a), a troca de dons é instituída sob a forma de uma economia de bens simbólicos. “Essa economia muito especial se apoia, ao mesmo tempo, em estruturas objetivas específicas e em estruturas incorporadas, ‘disposições’, que essas estruturas pressupõem e produzem ao lhe oferecer suas condições de realização” (Bourdieu, 1996a, p. 9, grifo do autor).

Sendo a dádiva percebida como evidente, visto que há esta adequação entre as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas, isto significa que, para haver interesse pelo desinteresse, ao menos de forma natural, é preciso que exista uma realidade estruturada a partir do dom, de tal modo que seria este dom uma estrutura estruturada e estruturante, na medida em que é moldada pelo substrato social no qual se insere e, consequentemente, o forja. Esta relação produz uma realidade que é internalizada pelo agente, de modo que este se interessa pelo desinteresse de forma sincera. No entanto, devemos ressaltar nossa leitura acerca do que é considerado um ato social sincero, o que nos remete a uma adequação entre um interesse específico, relativamente autônomo com relação ao interesse de classe, e que esta determina a posição em um campo especializado que só pode ser satisfeito legitimamente (ou seja, com eficácia) mediante a adequação às leis específicas do campo (Bourdieu, 2006).

Para Bourdieu, a ação generosa, o dom, é realizável a partir do interesse pelo desinteresse. Entretanto, a constituição de um habitus interessado pelo desinteresse pressupõe uma série de disputas simbólicas em múltiplos campos, que possibilitam tornar o desinteresse interessante. Como a distribuição de capitais simbólicos pelos campos se dá de forma desigual e, consequentemente, os agentes ocupam posições distintas no espaço social, o interesse pelo desinteresse de tais agentes varia de acordo com a posição ocupada no espaço social (Bourdieu, 2004).

O Dom e seus mistérios

Bourdieu, seguindo a direção apontada por Bachelart, preocupou-se continuamente com o processo de ruptura epistemológica, havendo sempre uma realidade a ser desvelada. E com o dom não seria diferente pois, para Bourdieu, sua principal singularidade estaria em sua ambiguidade. Segundo o autor:

O caráter primordial da experiência do dom é, sem dúvida, sua ambiguidade: de um lado, essa experiência é (ou pretende ser) vivida como rejeição do interesse, do cálculo egoísta, como exaltação da generosidade, do dom gratuito e sem retribuição; de outro, nunca exclui completamente a consciência da lógica da troca, nem mesmo a confissão de pulsões recalcadas ou, por éclairs, a denúncia de uma outra verdade, denegada, da troca generosa, seu caráter impositivo e custoso (‘o presente é uma infelicidade’). Disso advém a questão, central da ‘dupla verdade’ do dom e das condições sociais que tornam possível o que pode ser descrito (de modo bastante inadequado) como uma self deception individual e coletiva, a mesma assinalada por Marcel Mauss em uma das frases mais profundas jamais escritas por um antropólogo: ‘A sociedade sempre paga a si mesma com a falsa moeda de seu sonho’ (Bourdieu, 1996a, p. 7, grifos do autor).

O dom, nestes termos, soa contraditório quando visto a partir de um olhar exterior, mas para os agentes que vivenciam a sua prática – seja no potlach, no kula ou nos cartões de natal – não há contradição na forma como ele se desenvolve. Como já assinalado, quando há uma adequação entre as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas, a realidade é percebida como evidente. Ainda assim, haveria uma ambiguidade que residiria no dom, uma vez que é uma relação de reciprocidade que só se coloca como verdadeira na medida em que não há certeza do retorno do ato de dar (Caillé, 2002), mesmo que a obrigação de receber, e de retribuir, esteja posta desde já. A partir desta contradição inicial, Bourdieu tenta responder à questão apontando que no dom há um esforço para tornar os dois atos, o de dar e o de retribuir, em ações singulares, de modo que a retribuição não seja interpretada como uma reação ao ato de dar. Para Bourdieu (Caillé, 2002, p. 7-8, grifo do autor):

[...] é o intervalo temporal entre o dom e o contradom que permite ocultar a contradição entre a verdade vivida (ou desejada) do dom como ato generoso, gratuito e sem retribuição, e a verdade que o modelo revela, aquela que faz do dom o momento de uma relação de troca transcendente aos atos singulares de troca. Ou seja, o intervalo que possibilita viver a troca objetiva como uma série descontínua de atos livres e generosos é o que torna psicologicamente viável e vivível a troca de dons, ao facilitar e favorecer a self deception, a mentira para si mesmo, condição da coexistência do conhecimento e do desconhecimento da lógica da troca.

É o tempo, portanto, o véu que encobre o dom, fazendo com que este não seja concebido como troca. Afinal, como sustenta Sabourin (2008), o dom é o contrário da troca, uma vez que Mauss distingue a troca mercantil, movida pelo interesse, do sistema do dom, movido pela nobreza e honra no qual o doador ganha prestígio (Mauss, 2001).

De fato, para Mauss, nas dádivas, não existe nem troca, nem compra. A dádiva e a contradádiva, redescobertas por Mauss, pertencem a uma dialética social e econômica polarizada pelo prestígio e pela honra. Essa polaridade por si só proíbe reduzir o sistema dádiva/contradádiva a uma troca e reduzir o efeito de redobramento da dádiva ao interesse do primeiro doador (Sabourin, 2008, p. 133).

O dom estaria posto, necessariamente, no universo do simbólico, naquilo que permite as misturas a que Mauss (2001, p. 81) se referiu: “Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as pessoas e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca”.

Mas todo esse processo, na leitura de Bourdieu, se torna factível ao situarmos os dois atos como singulares, de modo que o retribuir não seja percebido como uma resposta ao dar, sendo o tempo o que propicia este efeito. Porém, poderíamos indagar em que medida o ato de dar sem esperar a retribuição imediata é exequível. Daí, mais uma vez, devemos recorrer à explicação bourdieusiana em torno da internalização das estruturas sociais, de modo que deve haver um interesse no jogo de prestações e contraprestações desinteressadas. Somente assim é que a espera e a incerteza que o tempo gera faz sentido para os sujeitos. Se o agente possuir:

[...] um espírito estruturado de acordo com as estruturas do mundo no qual você está jogando, tudo lhe parecerá evidente e a própria questão de saber se o jogo vale a pena não é nem colocada. Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer como jogos e a ilusio é essa relação encantada com um jogo que é produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social (Bourdieu, 1996b, p. 139-140).

A obrigação tripartite de dar, receber e retribuir, só se faz possível porque ela, enquanto jogo social, se faz olvidar como jogo. Bourdieu (1996a) elucida que, com relação ao dom, por mais que nenhum agente ignore de fato a troca, todos seguem a regra do jogo que consistiria em fazer de conta que se ignora a regra. É somente quando se abstrai o trabalho, sobretudo pedagógico, de que a instituição é fruto:

[...] esquecendo-se de que quem dá e quem recebe estão preparados, por todo o trabalho de socialização, para entrar sem intenção nem cálculo de lucro na troca generosa, para conhecer e reconhecer o dom no que ele é, ou seja, em sua dupla verdade, que se tornam possíveis os paradoxos tão sutis quanto insolúveis de uma casuística ética (Bourdieu, 1996a, p. 9-10).

Percebamos, desse modo, que Bourdieu acentua as condições sociais em que são produzidas as predisposições à generosidade. Mais uma vez voltamos aqui à categoria de habitus, enquanto um conjunto de predisposições constituídas socialmente, pois, ainda para Bourdieu, tanto o etnólogo estruturalista que concebe a troca como o princípio gerador do vínculo social, quanto o economista que ignora tal aspecto, incidem no mesmo equivoco, que é o de olvidar as condições econômicas e sociais que produzem sujeitos históricos predispostos à generosidade. Ainda assim, ao considerarmos tais aspectos para a compreensão da ação dos agentes, há sempre uma expectativa em torno da incerteza da ação social. Afinal, o habitus trata de um conjunto de predisposições e não de determinações sociais. É por isso que, para Bourdieu (2009), o sistema de dádivas, enquanto mecanismo ‘exato’ assentado na obrigação tripartite de dar, receber e retribuir, só existiria enquanto abstração:

Os ‘ciclos de reciprocidade’, engrenagens mecânicas de práticas obrigatórias, não existem senão para o olhar absoluto do espectador onisciente e onipresente, que deve à sua ciência da ‘mecânica social’ ser capaz de estar presente nos diferentes momentos do ‘ciclo’: na realidade, o dom pode permanecer sem contrapartida, quando se obriga a um ingrato; ele pode ser recusado como uma ofensa na medida em que afirma ou reivindica a possibilidade da reciprocidade, portanto, do reconhecimento. Sem falar dos espíritos de porco que questionam o próprio jogo e sua bela mecânica aparente (à maneira daquele a quem os cabilas chamam amahbul) e mesmo no caso em que as disposições dos agentes estão tão perfeitamente harmonizadas quanto possível e em que o encantamento das ações e reações parece inteiramente previsível ‘de fora’, a incerteza sobre o resultado da interação permanece enquanto a sequencia não estiver acabada: as trocas mais ordinárias, como ‘os pequenos presentes’ que ‘sedimentam a amizade’, supõem uma improvisação, portanto, uma incerteza permanece que, como se diz, representa todo o ‘charme’, portanto, toda a ‘eficácia social’ (Bourdieu, 2009, p. 164-165, grifos do autor).

O que poderia soar, em princípio, como uma dura crítica ao paradigma do dom, em verdade o reafirma de modo enfático, pois, a incerteza do retorno reforça o caráter generoso do ato de dar. A incerteza, atrelada ao tempo na interpretação bourdieusiana do dom, é o que garante o aspecto generoso do dom, considerando-se que “[...] quem dá defina sua dádiva como uma dádiva sem retorno – e ao que retribui, de definir sua retribuição como gratuita e não determinada pela dádiva inicial” (Bourdieu, 1996b, p. 160). Para o autor, a dádiva possui ainda como característica o tabu da explicação: dizer do que se trata, em especial através da enunciação do preço, é anular a troca. Existiria, portanto, um silêncio em torno da verdade da troca, que seria um silêncio compartilhado para que possa funcionar enquanto tal.

Temos assim a estruturação de uma interpretação original do paradigma do dom, que, longe de configurar uma simples crítica, se propõe a revisitar os fundamentos do sistema de dádivas, buscando encontrar respostas para os seus enigmas no substrato social que alimenta as práticas dos agentes sociais.

Considerações finais

Certamente, para Bourdieu o dom se mostrou um paradoxo instigante, ainda que seu desvelamento seja possível, na perspectiva do autor, a partir das ferramentas teóricas de que ele já dispõe. Sua interpretação sui generis destaca-se pelo esforço de tentar compreender como se constituem os sujeitos que são generosos, o que sinteticamente poderia ser respondido da seguinte forma: “Se os agentes podem ser, simultaneamente, mistificadores de si próprios e dos outros, e mistificados, é porque eles foram imersos, desde a infância, em um universo no qual a troca de dádivas é socialmente ‘instituída’ em disposições e crenças” (Bourdieu, 1996b, p. 161, grifo do autor). Isso significa que os agentes se encontram preparados e inclinados, através de um intenso processo de socialização, a entrar sem a intenção de cálculo na troca generosa.

Não sem menor relevância devemos rememorar uma questão fundamental: se, por um lado, a ideia de campo provém, em grande medida, da ideia das ‘esferas de valor’ de Weber, por outro, o dom é um paradigma fundamental para que Bourdieu possa operacionalizar a ideia de que outras lógicas também regem o mundo social. O paradigma do dom em Mauss é peça fundamental para o questionamento da ideia de Homo Economicus e é a partir deste questionamento que Bourdieu pode assentar a ideia de que há lógicas distintas em cada campo, o que se relaciona à sua autonomia (tal como no caso das esferas de valor em Weber).

Quero dizer com isso que, sem a teoria do dom, toda a lógica da estrutura teórica criada por Bourdieu não faria sentido. Também não sem menor relevância, o texto de Durkheim e Mauss (1990), intitulado Algumas formas primitivas de classificação, e publicado originalmente em 1903, acaba por ter outro impacto decisivo na obra de Bourdieu na medida em que problematiza a homologia entre estruturas mentais e estruturas sociais, elemento decisivo para a compreensão sobre como se operacionaliza o habitus.

Destaca-se, por fim, dois outros pontos que Bourdieu avançou na discussão: o primeiro, foi o de apontar que a presença de interesse por parte dos agentes não implica no ‘desmoronamento’ da teoria do dom, já que o interesse estaria sempre presente na ação dos sujeitos e, portanto, o que diferenciaria esta economia muito especial seria o interesse pelo desinteresse; o segundo ponto deve-se à centralidade que o tempo ocupa no processo de transformação dos atos envolvidos na dinâmica do dom, em atos singulares, tanto a dádiva inicial, quanto a sua contrapartida.

Acredito que a obra de Bourdieu, longe de se constituir apenas como uma crítica ao paradigma da dádiva, apresenta-se enquanto uma interpretação sociológica original desta teoria, que reforça e revitaliza a mesma, a partir de uma crítica contundente e bem fundamentada teoricamente.

Referências

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Notas

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[1] Para uma melhor reconstituição da categoria habitus no pensamento social vide o trabalho de Wacquant (2007).

Notas de autor

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