Ciências Sociais

As viagens de Carybé à República de Benin: história, cultura e política no Golfo da Guiné – África

Dulce Consuelo Andreatta Whitaker
Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’, Brasil
Elis Cristina Fiamengue
Universidade Estadual de Santa Cruz, Angola
Diego da Costa Vitorino
Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’, Benín

As viagens de Carybé à República de Benin: história, cultura e política no Golfo da Guiné – África

Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, vol. 43, núm. 1, e55823, 2021

Universidade Estadual de Maringá

Recepción: 15 Septiembre 2020

Aprobación: 21 Febrero 2021

Resumo: Neste artigo debatemos as possibilidades e os limites do relato etnográfico, analisando o rico diário de viagens de Carybé à Benin nos anos de 1969 e 1987. Ao nos depararmos com suas impressões sobre a cultura e o cotidiano neste pequeno país da África, localizado na região do Golfo da Guiné, decidimos colocar à luz da história a descrição sincrônica que o artista constrói. A partir das relações históricas e políticas dos reinos do Benin, de Oyo e do Daomé, elaboradas numa perspectiva africanista, foi possível compreender as contradições no processo de formação da República de Benin e suas interpenetrações culturais, o colonialismo e a resistência africana contra séculos de escravidão. Além disso, elaboramos uma análise diacrônica dos registros no diário de Carybé e de sua busca por uma estética e estilística de herança africana.

Palabras-chave: diário de campo; Carybé; República de Benin; história africana; história afro-brasileira.

Abstract: In this article we debate the possibilities and limits of the ethnographic reporting, analysing the rich Carybé’s travel jornals to Benin in the years 1969 and 1987. When coming across his impressions about the culture and the daily life in this small African country located in the region of the Gulf of Guinea, we decided to put the syncronic description built by the artist in the light of history. From the historical and political relations of the kingdoms of Benin, Oyo and Daomé, elaborated from na Africanist perspective, it was possible to understand the contradictions in the formation process of the Republic of Benin and its cultural interpenetrations, the colonialism and African resistence against centuries of slavery. In addition, we made a diacronic analysis of the records in Carybé’s jornals and his search for an asthetics and stylistics of African heritage.

Keywords: field journals, Carybé, Republic of Benin, african history, afro-brazilian history.

Introdução

Caiu em nossas mãos – por volta de 2009 – um exemplar da obra Impressões de Carybé nas suas visitas ao Benin (1969 e 1987). O livro nos impressionou profundamente porque se constitui em excelente modelo para pesquisas registradas em Diário de Campo.

O artista, com os olhos abertos por sua ‘chave’ não etnocêntrica – olhar que capta a essência dos corpos livres africanos – e já treinados por sua vivência em Salvador (BA), nos contempla com um diário de viagem repleto de registros iconográficos que acompanham suas observações minuciosas das cenas que se desenrolam ante seus olhos. Ali, Carybé procurou no seu registro etnográfico estar atento aos eventos que ocorriam ao seu redor e manteve a ‘mente aberta’ em relação à cultura que registrou, evocando a experiência vivida daquela comunidade e convidando o leitor de suas impressões de viagem para um passeio e um encontro com as pessoas da República de Benin.

A abordagem etnográfica se constrói tomando como base a ideia de que os comportamentos humanos só podem ser devidamente compreendidos se os referenciarmos ao contexto social onde eles operam como práticas sociais. E embora as práticas dos sujeitos possam ser evidentes aos olhos, o mesmo não podemos dizer sobre os valores e as regras que motivam e organizam o tecido social – já que esses não estão explícitos, ao contrário, muitas vezes se encontram velados.

Para Geertz (1989) a descrição da cultura é uma construção do que imaginamos, o que significa que tal registro não é, necessariamente, a imagem que o povo estudado tem de si. Sua descrição densa se constrói pela apresentação de detalhes, contextos, emoções e nuances do relacionamento social, a fim de evocar as relações profundas e não apenas seus atributos superficiais, de forma que a análise etnográfica possa trazer à tona um conjunto de padrões sociais e culturais coerentes. Além disso, é também trabalho da pesquisa etnográfica observar, registrar, produzir diários e a interpretação do significado dos eventos para a própria cultura do grupo estudado.

Dispusemo-nos, então, a um esforço analítico e metodológico para, divulgando esse trabalho de Carybé, oferecer aos jovens pesquisadores que desenham (e há muitos), um modelo de Diário de Campo que pode ajudar na compreensão sócio antropológica dos sujeitos numa pesquisa, muitas vezes vistos como os ‘outros’. Por isso, é preciso lembrar que o registro etnográfico consiste em fazer o pesquisador se situar perante uma realidade desconhecida, tal como parece ter conseguido Carybé, como afirma Carvalho (2019) – curador de uma exposição sobre o artista:

Carybé, nas aquarelas pintadas entre 1950 e 1980 para a obra Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, realizou um trabalho quase debretiano que, no entanto, assim como as fotografias de Verger, é marcado por um conhecimento ‘de dentro’ (Carvalho, 2019, p. 5, grifo do autor).

Mas, para que se entenda a capacidade do artista em se integrar a esse ‘novo universo’ – o antigo reino do Daomé (atualmente República de Benin) –, que ao ‘branco’ dito ‘civilizado’ pode parecer só exótico, é preciso conhecer a história de Benin, esse pequeno país da África ocidental. Benin foi um território africano colonizado por franceses entre 1892 a 1960, quando aquele antigo reino perdeu sua independência. O país apresenta rica cultura e nos propomos apresentá-la de forma panorâmica.

Quando Whitaker (2002) publicou seu livro de metodologia, a produção de textos sobre Diário de Campo era relativamente escassa e pouco aproveitada. A impressão que se tinha era que os pesquisadores se utilizavam do instrumento metodológico sem qualquer preocupação em registrar as dificuldades e as boas qualidades do recurso. Como consequência, os textos sobre tal ferramenta apenas descreviam o que deveria acontecer, sem mencionar entraves e imprecisões decorrentes dos naturais embaraços da pesquisa de campo.

Essa obra de Whitaker (2002) apresentou 5 pequenos textos desenvolvidos com reflexões sobre o uso e a prática do diário de campo, que desvelavam, inclusive, novas formas de registro para torná-lo mais fidedigno, a saber: 1º) diário de campo associado ao desenho; 2º) diário de campo associado ao olhar sobre o espaço rural com base nas artes plásticas; 3º) diário de campo associado à fotografia; 4º) diário de campo associado à subjetividade; e, por fim, 5º) diário de campo como reforço da memória do pesquisador. Conforme a pesquisadora assinala ao apresentar esses textos, eles representavam um grande esforço dos pesquisadores:

Com efeito, é muito mais fácil fazer registros acurados em cadernos pessoais que aceitam linguagem coloquial, desenhos, símbolos e códigos que brotam da situação de pesquisa do que dissertar sobre a complexidade desse exercício, que, em alguns momentos, se torna extremamente lúdico. Tais momentos lúdicos podem ocorrer durante as idas a campo ou durante o rememorar que a elas se segue, quando o bolsista faz seus registros, ou seja, faz o dever de casa (Whitaker, 2002, p. 123).

O trabalho de campo é o coração da pesquisa etnográfica, pois sem um contato intenso e prolongado com a cultura ou grupo estudado, será impossível ao pesquisador descobrir como os sistemas de significados estão organizados, como se desenvolveram e influenciaram o comportamento do grupo no momento histórico da coleta de dados. Ao assumir uma perspectiva holística, o registro etnográfico procurará descrever o grupo social da forma mais ampla possível, já que parte do princípio de que a descrição sincrônica e a compreensão dos significantes e significados de um evento social só são possíveis em função do entendimento das inter-relações que emergem entre os sujeitos do grupo de um dado contexto.

Assim chegamos ao tema deste artigo: um valioso caderno de impressões de viagem do ‘baiano’ Carybé, resgatado por curadores que organizaram a exposição ‘O universo mítico de Hector Julio Paride Bernabó – o baiano Carybé’[1], e que encontraram o exemplar guardado – talvez esquecido –, numa gaveta de seu ateliê em Salvador – Bahia. O exemplar era, na verdade, um caderno de viagens à Benin, onde se registrava nele duas delas, a primeira em 1969 e a segunda em 1987.

Ficamos fascinados ao nos toparmos com esse caderno, porque atualmente há uma revalorização da pesquisa etnográfica, que exige o diário de campo em diferentes áreas do conhecimento, o que se reflete na produção acadêmica sobre o tema (por exemplo, nos trabalhos de Angrosino (2009) e Víctora, Knauth e Hassen (2000). Apesar de a etnografia ter sido desenvolvida no fim do século XIX e início do século XX para o estudo de sociedades pequenas e isoladas, hoje ela é utilizada sem restrições em vários campos de estudo. Ou seja, o diário de campo é uma velha prática da Antropologia sobre a qual tão bem se pronunciou Bronislaw Malinowski (em Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado 1922)e que surge até como uma estrela na literatura. Afinal, o que seria o Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa sem o seu famoso caderninho de anotações?

Na obra de Guimarães Rosa vemos a proximidade entre Literatura e as Ciências Humanas como instrumentos de compreensão das nossas trajetórias – compreensão afastada do quantitativismo cartesiano e anunciadora das novas teorias da complexidade, hoje em alta. Na verdade, Guimarães Rosa produzia, naquele momento, uma história de vida em parte imaginada, em parte descoberta, que poderia servir de modelo a qualquer pesquisador.

Angrosino (2009) afirma que há muitos modos pelos quais um etnógrafo pode contar uma história e três são os modelos mais frequentes: o modo realístico (cujos registros são despersonalizados), o modo confessional (no qual o etnógrafo é um personagem central) e o modo impressionista (quando há descrição elaborada de personagens, paisagens e cenários, além de adotar procedimentos literários como o uso de diálogos). Geralmente o relatório etnográfico acaba tomando a forma de narrativa e o modelo mais comum é a prosa, que lança mão – frequentemente – de algumas técnicas literárias próprias à arte de contar histórias.

Vamos, portanto, atrás do nosso artista, o baiano Carybé, na realidade um argentino convertido à baianidade. Seu diário se destaca pela abundância de detalhes em alguns momentos e em outros apenas flashes expressivos que sugerem mais do que dizem. Os textos são acompanhados de desenhos altamente estimulantes que complementam e ilustram a narrativa. Muitas vezes a ansiedade parece tão grande que desenho e texto se confundem no papel, um sugerindo o outro de forma dialética. Veja a imagem da Figura 1, extraída deste diário de viagem (Carybé, 2007, p. 13):

Figura 1. Imagem de diário de viagem
Figura 1. Imagem de diário de viagem
Fonte: Carybé (2007, p. 13).

Chegando à Cotonou (maior cidade da República de Benin) em 25 de Novembro de 1969, Carybé logo percebe seu amigo Pierre F. Verger esperando-o e escreve entusiasmado: “Uma bruta alegria ver o Ojúoba” (Carybé, 2007, p. 6). Lamentando ser noite e não podendo ver a paisagem, faz questão de destacar que desde Dakar até Cotonou viu mulheres usando panos belíssimos com os quais ‘arrodeiam’ seus corpos.

No momento seguinte, Carybé vai do mosquiteiro do hotel e do calor semelhante ao de Belém, ao mercado, observando como as pessoas dormem em esteiras nas portas das casas para aproveitar o ar fresco. Na sequência, há uma série de flashes onde o viajante, já a caminho de Ouidah (Ajuda), vai registrando cenas com frases curtas ou desenhos expressivos.

No dia 30 de Novembro de 1969 de seu diário, há um desenho esplêndido que mostra uma mulher esbelta enrolada em panos cujas dobras acomodam um bebê às costas. Na cabeça um recipiente, semelhante a uma panela, dá um ‘ar’ de monumento, mas na realidade são vendedoras como as mulheres negras da Bahia. Em Oiudah, ele e Verger vão assistir a uma cerimônia de Xangô, não sem antes descrever o traçado da aldeia e as marcas dos clãs nos rostos das pessoas. Descreve a sociabilidade na cerimônia e no mercado, sem deixar de observar uma cabra que surge tranquila sem ser incomodada.

Dada à velocidade com que ele escreve e à letra manuscrita, nem sempre podemos ter certeza de alguns objetos situados no texto. Mas isso não importa, o que merece destaque é a riqueza do texto e os desenhos que ajudam a esclarecer as dúvidas. A ansiedade do autor em observar e registrar tudo o que vê é tanta, que fotografa muitas coisas ao invés de desenhar, porque, como diz: “[...] tirei fotos [Onde essas estariam?], desenhar não dá, seria perder um tempo danado e deixar de ver muita coisa” (Carybé, 2007, p. 11) [pergunta dos autores do artigo]. E, no entanto, desenha!

Descreve as bicicletas, carregadíssimas, com as quais os comerciantes transportam produtos da zona rural. As bicicletas vêm tão carregadas que seus donos têm que vir a pé puxando-as. O olhar de Carybé capta as diferenças entre os animais de lá e de cá: “As vacas pequeniníssimas, do tamanhozinho de uma vitelinha, as galinhas como se fossem pombos e pombos como sanhassos. O bicho gente é normal, sadio e em geral alto. Também as cabras são anãs” (Carybé, 2007, p. 14).

Os desenhos que se seguem retratam o cotidiano e também a festa de Geledê. Originalmente Gèlède é uma sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades africanas iorubanas, que expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra. A festa de Gèlède é um festival anual homenageando ‘nossas mães’ (awoniyawa), que ocorre durante a época seca (Março-Maio), entre os iorubanos do sudoeste da Nigéria, na fronteira com a atual República de Benin (Geledés, 2009). O que marca Carybé no que se refere a esta festa são os sons dos tambores e os cânticos.

O registro etnográfico é indutivo porque o pesquisador conduz o método a partir do momento que faz uso de um acúmulo descritivo de detalhes para construir modelos gerais ou teorias explicativas e não testar hipóteses derivadas de teorias ou modelos existentes. Porém, alguns problemas práticos do trabalho de campo precisam ser evidenciados: há a necessidade de triangulação entre o que está documentado pelo pesquisador, as ações dos sujeitos e o que eles dizem fazer, para possibilitar uma apreensão mais diacrônica da realidade.

Além disso, o pesquisador vive uma dualidade, pois ele é alguém que precisa estar ao mesmo tempo próximo e distante do grupo estudado. Deve se distanciar do grupo para não ser excessivamente impregnado pela problemática e pelo ponto de vista do grupo pesquisado, embora seja seu dever conhecer a visão de mundo dos sujeitos. Dessa forma, o pesquisador não pode ‘beber na boca do informante’ – expressão utilizada a fim de retratar a situação em que o pesquisador incorpora acriticamente o discurso de seus sujeitos de pesquisa (Angrosino, 2009). Nesta situação, o pesquisador assume o discurso do pesquisado não na sua condição de discurso, mas como um dado sobre o real e seu papel não é esse. O objetivo do registro etnográfico é mais analisar tais formulações discursivas e menos adotá-las para si e seu trabalho.

A partir da descrição de Carybé e suas iconografias sobre a realidade observada, nos propusemos ao estudo panorâmico da história de Benin, a fim de compreender o que levou o artista a visitar duas vezes esse pequeno país, que influenciou sobremaneira na formação do Candomblé encontrado no estado da Bahia. A proposta de trazer a história desse país africano tem por finalidade inventariar outros olhares, que certamente manifestarão mais contradições e mais diversidade para a compreensão da estética afrobrasileira criada pela obra de Carybé.

O porquê da viagem à Benin

Sabemos das dificuldades em compreender as especificidades de um país africano, já que a África é um conceito imposto ao continente pelo colonizador que veio a recobrir todas as variedades e complexidades desse mundo cultural ao qual tanto devemos nós brasileiros. Benin situa-se no Golfo da Guiné e sua fronteira oriental com a Nigéria merece destaque, uma vez que os ibo, descendentes do reino Ioruba – foram a etnia massacrada durante a chamada Guerra de Biafra (1967-1970) –, aí também se encontravam os edo, que se espalharam por essas fronteiras, produzindo uma interpenetração cultural sem igual com outras etnias, a saber: igalas, igbirras, ijós, itsequires, assim como ficará esclarecido na historiografia que se segue. É sabido, também, que a Conferência de Berlim (1884-1885) e a partilha da África desconsideraram os reinos que ali se construíram, assim como seus espaços e suas histórias comuns.

Toda essa história, negligenciada pela perspectiva eurocêntrica, talvez explique o porquê de Carybé, atraído por seu amigo – o famoso fotógrafo e antropólogo Pierre Verger –, ter ido para esse pequeno país. Ambos estavam em busca de algo sagrado, místico, uma representação da África e de seu continuum no Brasil, o que contribuiria ainda mais para a inspiração no campo da arte e da fotografia. É essa nossa hipótese.

Dos primórdios do reino do Benin (Nigéria) à consolidação da tradição dos orixás

Segundo Silva (1996) há milhares de anos, o povo edo que vivia nas florestas na região oeste do Rio Níger criou aldeias nas quais o poder repousava nas linhagens e o direito a terra era das famílias. Com o tempo, os chefes, denominados ‘ovis’ ou ‘ogie’, dessas aldeias passaram a ampliar seus poderes a ponto da terra passar a ser das próprias aldeias. A partir dessa formação temos a consolidação dos mini-estados edo que permaneceram independentes até o século XIX.

Duas muralhas, a mais antiga datada de antes do século XIV, foram construídas através de trabalho coletivo e sob a autoridade dos chefes para envolver aqueles vilarejos que se conurbaram, apesar de manterem as divisórias que separavam as aldeias. Essas divisórias e muralhas contam até hoje a história de como a cidade de Benin (Nigéria) foi formada a partir da junção (por aliança ou conquista) daqueles vilarejos. São essas mesmas divisórias que Carybé encontrará na parte portuguesa da cidade de Oiudah ao relatar que as aldeias eram como colméias e que as casas dos parentes ficavam ao redor da casa do chefe aldeão.

Os chefes dos vilarejos procuravam dominar militarmente os demais mini-estados para obter servos e aumentar a sua população e tropas. Esses chefes passaram a se denominar ‘ogiso’ ou ‘rei do céu’. Há uma lista de 31 ‘ogisos’, sendo o primeiro Igodo e seu filho Ere os responsáveis por criar as insígnias reais.

Depois dessas 31 dinastias, seguiu-se um curto período sem reis. A disputa entre os chefes dos mini-estados ocorreu até que, o grande líder Odudua, impôs sobre Ifé (antiga cidade iorubana, no atual estado de Osun, no sudoeste da Nigéria) a monarquia divina baseada na tradição dos orixás. Não se consegue precisar em datas a história de Odudua e a de seus filhos, pois é de tempos em que a história era predominantemente oral. Ifé era tida como ‘a terra de onde tudo surge’, ‘o umbigo do universo’, a cidade sagrada. Foi Odudua quem mandou seu herdeiro, o filho ‘caçula’, chamado Oraniã, ou ‘talvez seu neto’– não se sabe ao certo –, à terra dos edo levando um médico-feiticeiro chamado Ogiefa. Na terra dos edo, Oraniã casou-se e seu filho, Eueca, sob os cuidados de Ogiefa, tornou-se o ‘oba’ (ou seja, o rei) da cidade de Benin (Nigéria), porém vassalo do Ogané, rei de Ifé.

A história oral menciona ter sido Oraniã quem levou o primeiro equino para a cidade de Benin. O cavalo nessa cidade figurava como símbolo da consolidação dos oba. O animal simbolizava prestígio e os oba se sustentavam nele presos em celas, pois não sabiam montar. Essa passagem sobre Oraniã, sua esposa e seu filho Eueca, ilumina os aspectos essenciais das relações entre os oba e os edo. Eueca, na tradição oral, tem ascendência divina porque seria neto de Odudua, além de ser filho de Oraniã e uma mulher da terra, filha de um chefe edo chamada Erinuinde, além de ter sido criado sob os mistérios recebidos de Ogiefa, o sacerdote.

Carybé (2007), ao falar sobre a festa Pobé-Ossénlá de Ondô em seu diário de viagem, afirma que, segundo a tradição oral, essa seria a festa de ‘Oraniyn’ ou Oraniã. Carybé afirma que o termo ‘Ondô’ refere-se justamente ao rei dos edo, o Ogané chamado Oraniã, que seria filho – segundo a tradição registrada pelo artista – de dois pais ao mesmo tempo: Odudua e Ogum. Será, por isso, que Silva (1996) tenha nos alertado para que Oraniã possa ser filho e/ou neto de Odudua? Vemos na historiografia consultada, sobre a vida de Odudua, que Ogum teria sido seu filho primogênito, o que apesar de contrariar a tradição oral não significa que o registro etnográfico de Carybé não tenha suas razões de ser, já que foram feitos no fim da década de 1960 e 1987. Mas são as controversas sobre a história de Ogum que não terminam aqui.

A questão da descendência dos filhos de Odudua e Oraniã explicaria também porque as instituições políticas no reino do Benin se assemelhavam às monarquias divinas dos iorubanos (Ifé), mas que se desenvolveram de modo distinto, pois tiveram que se acomodar às estruturas sociais dos edo. Eueca, filho de Oraniã, criou o conselho hereditário de ‘fazedores de reis’, composto por Uzamas e um deles coroava cada novo oba. O Oguene ou Ogané, que era o nome do rei de Ifé em Benin, confirmava a legitimidade do novo oba no poder, partindo da tradição religiosa e a crença nos orixás. É de suma importância relatar que Oraniã também seria pai de Xangô, gerado por Torosi, a filha de um rei nupê (Silva, 1996).

No reino do Benin, o rei de Ifé também ostentava o título iorubano de oba. Anualmente o rei recebia marcas faciais iorubanas como forma de demonstrar sua ascendência étnica. As cortes dos oba eram formadas por chefes do palácio, camareiros, criados e os cuidadores de crianças e do harém. No reino do Benin houve muita atividade mercantil, pois essa cidade, na Nigéria, era rota de mercadores de sal e peixe seco, além do comércio de contas, tecidos e cobre. Com o tempo, a atividade comercial passou a ser a principal fonte de renda do Benin (foi por isso que o Brasil passará a importar do reino do Benin, no século XVIII, os tecidos produzidos na costa do Golfo da Guiné).

O comércio do Benin também fortaleceu a centralização do estado, além de possibilitar a concentração de poder nas mãos do oba, o que levou à divinização de sua figura e a servidão de seus súditos, com exceção dos Uzamas. Após a sucessão de uma série de reis na cidade de Benin e a morte do rei Oguola, os oba mais ‘débeis’ permitiram a ressurreição parcial do poder dos Uzamas. Uma dessas sucessões de reinado foi bastante tumultuada: a de Orobiru.

Na história da relação entre Ifé e o reino do Benin há ainda que lembrar que Ogum, além de primogênito de Odudua, aparece também como um dos filhos de Orobiru, sendo o outro filho Uvaifiocum. Sobre essa descendência vale relembrar que esses irmãos entraram em conflito porque o último havia traído seu irmão Ogum para se sentar no tamborete real, a fim de tornar-se rei. Foi então que Ogum armou-se e matou o usurpador do trono, deixando boa parte da cidade de Benin incendiada.

Ogum pode ter sido um rei de Udo – cidade nigeriana – que veio conquistar Benin, trazendo consigo as influências de Ifé e talvez a vassalagem simbólica dos oba ao Ogané. Segundo Silva (1996), Ogum adota o nome de Euare (cujo reinado foi provavelmente de 1440 a 1470) e impõe mudanças políticas como a autocracia, consultando apenas o conselho de Estado (a nobreza do palácio) e os chefes da cidade em suas deliberações.

Euare procurou reforçar a ideia de primogenitura na sucessão real e introduziu novos símbolos reais, como as contas de coral para diferenciar das contas coloridas da coroa de Oraniã – as mesmas encontradas por Carybé nos mercados da República de Benin – e o pano vermelho. Euare também mudou o nome de Benin para Edo, em homenagem a um vassalo que lhe salvou a vida, reconstruiu a cidade destruída e criou bairros com diferentes corporações de ofício. É considerado o primeiro dos cincos grandes oba conquistadores e criou uma das muralhas ao sul da Nigéria.

A influência do reino do Benin (cidade da Nigéria) na atual República de Benin se consolidou não apenas por seu poderio militar, mas pelo prestígio de sua família real, tida como portadora de forças mágicas. A expansão do reino do Benin, no entanto, nunca chegou a controlar toda a nação edo. No fim de 1500, Benin era a maior cidade do Golfo da Guiné e Ughoton ou Gató se transformou num porto de trocas com os portugueses, para onde Euare mandou seu filho para reinar (Silva, 1996).

Desde 1476 os portugueses comercializavam nesta região. Em 1479 eles levaram daí cerca de 400 cativos do que chamaram Rio de Escravos, que foram trocados por ouro na Costa da Mina. Foram as etnias ijó e itsequiri que espalharam as notícias sobre a subida do homem branco pelo rio até o oba e foi o português João Afonso de Aveiro quem subiu o rio Benin, em 1486, velejando por 65 Km até chegar em Gató, quando foi recebido pelo chefe da vila. Por ordens do oba, o estrangeiro branco caminhou mais 30 Km de Gató até chegar à cidade de Benin. Segundo a tradição oral, quem acolheu Aveiro foi o oba Ozolua.

Entre os Rios Mono e Níger: os reinos do Benin, de Oyo e do Daomé

A abertura do comércio entre o reino do Benin e portugueses foi possibilitada pelo oba que permitiu que Aveiro transmitisse um acordo comercial a Portugal. A feitoria portuguesa em Gató durou entre 1506 a 1507 e tinha como objetivo a compra de escravizados para que fossem vendidos na exploração do ouro na Costa da Mina, para os acã. Além dos escravizados, portugueses comercializavam muitas mercadorias adquiridas no Benin: corais, as contas, os tecidos vindos de Ifé. Levavam para a Europa apenas pimenta-de-rabo, marfim e peles. Pagavam todas as mercadorias com as moedas edo: manilhas, barras de ferro e arames de cobre.

Em 1514 o oba mandou uma embaixada a Portugal para buscar as artilharias que lhes interessava. Mas Dom Manuel lhe escrevera dizendo que forneceria as armas e canhões se o oba aceitasse a fé cristã. O oba não se converteu ao cristianismo, mas permitiu a pregação e os ensinamentos da leitura para crianças da nobreza (Silva, 2011). As tradições dizem que dois oba aprenderam ler e a falar em português: Esigie (filho de Ozolua) e Orhogbua. O oba controlou o comércio de escravizados de 1516 até o fim do século XVI. Apesar dos portugueses preferirem os escravizados homens, muitas vezes o oba fechava o mercado ou permitia a venda apenas de mulheres escravizadas. Dessa forma, o oba estimulava a concorrência entre os barcos reinóis e os barcos vindos de São Tomé.

Em 1514 um jovem escravizado custava entre 12 a 15 manilhas. Em 1517 o mesmo perfil de escravizado passou a custar 57 manilhas. Em 1519 o oba definiu o valor de até 40 manilhas. Já em 1522 o valor voltou a subir para 50 manilhas. Para o oba, o controle das trocas comerciais com os estrangeiros (fossem eles europeus ou africanos) era essencial para a manutenção de sua estrutura de poder. O oba via com péssimos olhos o monopólio lusitano no comércio de escravizados. Mas, na realidade, existiam dois monopólios: o da venda por parte do reino do Benin e o da compra por parte de Portugal.

Os oba Ozolua, Esigie e Orhogbua foram grandes guerreiros e ampliaram o território deixado por Euare ou Ogum. Esses se impuseram sobre os ibo, à Oeste do Níger, e expandiram seus territórios ao sul do delta do Rio Níger. Orhogbua reinou entre 1550 a 1578 e pode ter expandido o domínio do reino do Benin até onde hoje é Lagos, que é uma cidade nigeriana que pode ter surgido de um acampamento militar desse oba. Do fim do século XVI aos novecentos, o oba de Lagos foi vassalo do rei do Benin. Após a morte do herdeiro de Orhogbua, Ehengbuda, por afogamento, os chefes das cidades iorubanas tiraram dos oba a condição de líderes militares e, ao longo do século XVII, o reino do Benin foi sendo desmilitarizado. Segundo os chefes das cidades, o oba devia ser poupado dos afazeres do estado, já que era também um líder espiritual.

Do diálogo à distância entre o reino do Benin e Portugal ficariam as memórias, os bronzes e a língua portuguesa. O rei Ginua, filho do oba Olua, teve seu herdeiro batizado em 1570 com o nome de Sebastião, em homenagem ao rei português e aprendeu a ler e escrever em língua portuguesa. Num relatório de 1620, escrito pelo bispo católico Pedro da Cunha Sebastião, Ginua era apresentado como um verdadeiro cristão (Silva, 2011). Esse mesmo oba enviou seu filho Domingo para Portugal, em 1600, para estudar latim e teologia em Coimbra e Lisboa, sendo sustentado por pensão concedida por Filipe II de Portugal (e III da Espanha). Domingo provavelmente se casou com uma lusitana, neta do Conde de Feira, com quem, em alguns relatos, teve um filho mestiço chamado Antônio Domingo. O catolicismo, entretanto, era a religião apenas da corte no reino do Benin.

O catolicismo foi mantido no reino do Benin por muito tempo, provavelmente até o fim do século XIX quase todos os nobres recebiam batismo. Antônio Domingo, por exemplo, escreveu carta em 20 de novembro de 1652 para o Papa pedindo que lhe enviasse sacerdotes, pois na falta desses o próprio tornava-se pregador. No que se refere ao auge do tráfico negreiro, no século XVIII, a região entre os rios Mono e Níger passou a diminuir sua participação no comércio, pouco mais de 500 indivíduos ao ano.

A partir de 1690 um novo oba, Ewuakpe, começou a explorar a rivalidade entre os chefes das cidades, contando com o apoio de holandeses e pessoas de São Tomé. Ewuakpe resgata os poderes do oba e a escravização volta a figurar como importante item de exportação. O reino do Benin (Nigéria), no século XVII, deu volta atrás em seu destino imperial, o que não impediu de sua influência e prestígio continuarem em outras regiões do Golfo da Guiné.

Segundo Alagoa (2011), o reino do Daomé (onde hoje é a atual República de Benin) se formou e cresceu devido a esse comércio por parte dos europeus e à influência dos reinos iorubanos de Oyo e do Benin (Nigéria). O tráfico de escravizados esvaziou a região do Daomé de população até o fim do século XVII. Mas foi a partir de 1625 que os fundadores do reino do Daomé criaram uma nova organização política a partir de várias etnias: os egun, os fon, os arada. Neste período, Daomé foi se tornando forte e centralizado e pôde sobreviver aos ataques do reino de Oyo. Já no início do século XVIII, o reino de Daomé se figurava numa potência central da região.

De 1724 a 1727 o reino do Daomé conquistou vários pequenos estados na região. Essa expansão foi se consolidando até 1730, quando Daomé volta à tutela do reino de Oyo. Em 1767 inicia-se uma crise que levou à queda da dinastia Agaja, em 1818, no reino do Daomé, formando a nova dinastia Gezo. No século XIX, Daomé se beneficiaria da ruína do reino de Oyo e as guerras entre os estados iorubanos, além da influência do tráfico em seu território em expansão. É preciso ressaltar, também, que a população do reino do Daomé (que fala a língua aja – que é procedente da família linguística Níger-Congo) tem uma antiga e estrita relação com a origem e a cultura iorubana.

Os aja – que no início do século XVI foram alvo do tráfico – estão ligados aos Ketu, que são uma comunidade iorubana migrante de Ilê-Ifé – e pode, segundo Carybé, ter sido escravizada em massa para o Brasil levando o culto a Oxóssi (que desapareceu dessa parte da África) –, por isso a organização do reino do Daomé era bastante semelhante ao dos iorubanos. Daomé, no entanto, chocou-se com a tradição de Oyo, que travou muitas guerras com os aja. A paz imposta pelo reino de Oyo, entretanto, fez o reino do Daomé reforçar sua estrutura política, se liberando da tutela de Oyo no século XIX. Segundo Alagoa (2011) há pesquisadores como Peukert que contestam que o apogeu do Daomé se deva ao tráfico e que sua economia fosse arcaica. Isso é argumentado em razão de que o comércio exterior do reino do Daomé era monopolizado por sua monarquia.

Sobre a questão sociocultural da região que estamos abordando, Asiwaju (2011), afirma que são áreas culturais distintas, porém entrecruzadas. Os aja estão a Oeste, os ioruba estão no Centro, os borgu no Norte e os edo no Leste. A língua aja é falada pelos fon, os egun e os ewe. No século XIX essas áreas atingiram uma interpenetração histórica, cultural e étnica que não mais se discernia nos povoamentos, formando uma única ‘civilização’ (ioruba – entre esses os ibo –, os aja, os povos de Borgu e os edo). Estes laços indicam imigrações sucessivas provocando afluxos e refluxos populacionais até o século XIX, quando o colonialismo europeu impôs rígidas fronteiras a esses territórios.

O império iorubano de Oyo foi o mais forte estado entre os Rios Mono e Níger até o início do século XIX. Tanto que Oyo forçou com que o estado aja do Daomé pagasse tributo de 1748 a 1820. Dois outros estados iorubanos mantinham boa relação com Oyo, Ketu e Sabe – também visitadas por Carybé. O artista diz que Ketu foi o reino de Oxóssi e menciona as guerras dos reis do Daomé contra Ketu, por isso afirma que muitos iorubanos tenham trazido o rito de Oxóssi ao Brasil. O reino do Benin (Nigéria) era o outro grande estado e indicadores atestam laços vitais entre ele e Oyo. Além disso, as monarquias de Oyo e do Benin reivindicavam serem originárias de Ilê-Ifé e também descendentes de Oraniã.

O declínio de Oyo, a partir de 1835, provocou um turbilhão social e político nos reinos do Daomé e do Benin: guerras e insegurança até o fim do século XIX. Algumas lutas entre os iorubanos de Oyo e do Benin são destaque: a guerra de Owu entre 1820-1825; a guerra de Ijaye entre 1860-1865; e a guerra de Kiriji entre 1877-1893. Esses fatos permitiram a intervenção dos europeus nos assuntos políticos da região.

A independência do reino do Daomé antes da colonização europeia e sua centralização política entre 1820 a 1892 – quando sofreu a conquista francesa – é consequência do declínio do império de Oyo. Daomé representava 1/3 do território da atual República de Benin. Foi no reinado de Gezo entre 1818 a 1858 que se substituiu o comércio de escravizados pelo óleo de palma entre os daomeanos. Este monarca também declarou a independência de Daomé. As incursões daomeanas sobre territórios iorubanos se mantiveram entre 1880 e 1890, até a derrota de Daomé para os franceses.

Os iorubanos e os aja foram massivamente escravizados para o Novo Mundo e para Serra Leoa. E as guerras do século XIX contribuíram muito para a miscigenação étnica da região. “A posterior adoção, no século XX, do título e das funções do oba, segundo modelo ioruba, por algumas comunidades aja da região da Nigéria, é um bom exemplo da continuidade deste processo de adaptação cultural” (Asiwaju, 2011, p. 828). A intervenção europeia na região iorubana fez os oba perderem o seu poder em proveito dos chefes militares das cidades.

O reino do Benin (Nigéria) em 1800 se estendia por metade da região oriental entre os Rios Mono e Níger. Os povos edo formavam o coração do reino, como vimos anteriormente, e os demais povos iorubanos constituíam a progressão dele. Mas o reino do Benin, entre os séculos XVIII e XIX, foi um estado iorubano em declínio. Os efeitos que levaram a isso podem ser explicados pela perda de privilégios no controle do tráfico de escravizados para os comerciantes europeus (britânicos em sua maioria), quando também perderam o monopólio do comércio no porto de Gató. Em consequência disso, se observou a multiplicação de sacrifícios humanos na capital do reino em 1880. Tal fato pode ser interpretado como um reflexo do desespero de seus dirigentes diante da conquista eminente. O último oba do Benin, Ovonramwen, em 1897, foi surpreendido pelas tropas britânicas e cedeu à colonização.

A empresa colonial francesa e a resistência africana

Até o ano de 1861 – quando houve a anexação de Lagos à coroa britânica – a região na qual estamos focados criou uma área de livre comércio. Já entre 1861 a 1889 foi o período da rivalidade entre França, Grã Bretanha e, com menor força, a Alemanha. A região oeste dos reinos ioruba foi o principal palco das disputas entre franceses e britânicos. A luta dos europeus foi animada pelas invasões do Daomé nas regiões iorubanas, as quais buscavam proteção desses colonizadores. Em 1892 ocorreu a conquista francesa do Daomé, já em 1895 a conquista britânica e francesa de Borgu e, em 1897, a do reino do Benin (Nigéria).

As guerras do século XIX e os deslocamentos populacionais em massa acentuaram a amálgama dos grupos étnicos, provocando mudanças socioeconômicas, adaptação das instituições e reforçava a interpenetração cultural. Com os deslocamentos, houve o aumento de africanos iorubanos e de povos de outras línguas parentes – originárias da região entre rios Mono-Níger, no estado da Bahia, Brasil (Asiwaju, 2011). Além disso, os aja, por exemplo, migraram do Oeste para Leste do território onde hoje é a Nigéria na segunda metade do XIX, porque este foi um período crítico para o reino do Daomé em razão da abolição da escravatura. Estabelecidos no território da cidade de Lagos (Nigéria), os aja adotaram a monarquia iorubana, cujo título era o de oba também. Entretanto, percebe-se a influência demográfica e sociopolítica do reino do Daomé nas fronteiras dos atuais países: Nigéria e República de Benin.

A expansão dos interesses europeus continuava mesmo depois da abolição da escravatura no Atlântico pela Inglaterra. O porto daomeano de Ouidah (Ajuda), muitas vezes mencionado por Carybé em suas impressões de viagem, não abandonou o tráfico até 1888, ano da abolição da escravatura no Brasil.

Com o movimento abolicionista, ocorreu o retorno de ex-escravos libertos do Brasil para a região do Daomé, que foram a 1ª geração de classe média do continente africano nesta região. Os saros retornaram de Serra Leoa e os ‘amaros’ ou ‘brasileiros’ do Brasil. Esses ex-escravizados vindos do Brasil foram acolhidos em Ouidah e Porto-Novo e trabalhavam como artesãos, comerciantes, mecânicos e agricultores experientes. Até hoje, se observa a influência da arquitetura brasileira em Lagos e outras regiões. Mas foi no território do reino do Daomé, depois República de Daomé em 1960 (atual República de Benin), que os ex-escravizados vindos do Brasil (ou africanos do Brasil) exerceriam a maior influência tirando proveito da educação colonial francesa:

[...] a perpetuação até os dias atuais dos laços de união entre as famílias dos brasileiros da África Ocidental às suas bases originais no Brasil, especialmente no Estado da Bahia, ilustra de modo impactante a unidade fundamental da África, não somente em respeito à sua história, mas, em suplemento, em referência aos contatos de importância vital que o continente manteve com a diáspora negra (Asiwaju, 2011, p. 841).

De 1880 ao fim do século XIX os europeus recorreram ora à diplomacia, ora à invasão militar, segundo nos ajuda a compreender Gueye e Boahen (2011). A conquista e a ocupação dessa região conheceram seu apogeu entre 1880 e 1900. Nesse período, os africanos visavam salvaguardar a independência em seus territórios de origem e seus estilos de vida. Behanzin, rei no Daomé, decidiu pela estratégia do confronto para defender sua soberania. Contra os interesses dos franceses, este rei informou que os ajas e fon não aceitariam as imposições da França antes de um conflito aberto de 1890 a 1900. Depois de vários conflitos e modernização do exército daomeano, na tentativa de conter os franceses, houve a destruição das colheitas dos fon e milhares deles foram mortos. Foi então que o rei de Daomé se rendeu à conquista francesa.

Segundo Boahen (2011, p. 749), entre as duas grandes guerras, “[...] segundo provas bastante incompletas [...]”, a atividade política africana se desenrolou principalmente em Paris, na França, por exemplo, com a Liga Universal para Defesa da Raça Negra, fundada pelo jurista e príncipe daomeano Kojo Tovalou Houénou em 1924.

Já no Daomé, a luta pelo poder nas disputas sucessórias dentro das etnias teve em Louis Hunkanrin o seu militante mais importante. Hunkanrin estudou no Senegal, trabalhou no Daomé por um tempo, voltou para o Senegal e depois foi para Paris. Posteriormente, foi conduzido de novo ao Daomé em 1921, devido a sua ligação com políticos de esquerda na França. Em Paris, Hunkanrin lançou o jornal ‘O mensageiro daomeano’.

Além das denúncias realizadas por africanos em Paris e os militantes em Daomé, jornais de esquerda e comunistas da França e dos EUA penetraram nos meios intelectuais daomeanos. Esse ambiente, de luta e resistência, permitiu que entre Fevereiro e Março de 1923 os trabalhadores no Daomé entrassem em greve, assim como na cidade de Ouidah.

Os intelectuais africanos de esquerda (entre eles Léopold Sédar Senghor, Kowjati e Houénou) aspiravam mudanças mais importantes após a 1ª Grande Guerra, tais como uma representação simbólica maior dos africanos. Somente muito tempo depois é que suas reivindicações se radicalizaram mais e vieram a assumir o objetivo da independência política.

A independência das colônias francesas da África se deve às ações nacionalistas dos africanos, ao surgimento dos partidos políticos e ao relativo desprezo do general De Gaulle por esses territórios africanos. A AOF – África Ocidental Francesa –, segundo Suret-Canale e Boahen (2011), era composta pela Federação de 8 colônias ou ‘territórios de além-mar’ tendo um governador geral que, em 1946, se tornou alto-comissário da República francesa. Como a Conferência Africana de Brazzaville, ocorrida entre 30 de Janeiro e 8 de Fevereiro de 1944, não abriu as vias para a descolonização, em 1945 uma minoria de colonizados da AOF – um total de 117 mil eleitores (o chamado segundo colégio eleitoral) – elegeu deputados de esquerda para a Assembleia Nacional Constituinte Francesa, em paralelo aos colonos, que constituíam o primeiro colégio eleitoral. Não correspondendo às expectativas conservadoras, o 2º colégio elegeu políticos anti-coloniais.

A Constituição de Outubro de 1946 acabou imprimindo importantes recuos e suprimiu toda a possibilidade de independência conseguida até então. Nesse contexto surgiram os partidos políticos na AOF, que tomaram para si a tarefa de criar movimentos anti-coloniais, sob a denominação de partidos democráticos entre 1944-1950. Em 1956 a lei de enquadramento, posta em vigor em 1957, concedeu aos territórios de além-mar uma ‘semi-autonomia’, por isso essa lei não pôde constituir-se em obstáculo às aspirações por independência.

A independência continuou a ser popularizada tanto na França, quanto na África pelos estudantes. Em 1957, em Cotonou, num congresso organizado por partidos anti-coloniais, votou-se uma moção exigindo a independência e criou-se a União Geral dos Trabalhadores da África Negra (UGTAN). O general De Gaulle, em 1958, elaborou nova Constituição e deu um passo concedendo autonomia aos territórios transformados em repúblicas com um presidente eleito, ao invés de um governador, tornando a independência incompatível com a “[...] comunidade francesa [...]” da AOF (Suret-Canale & Boahen, 2011, p. 212).

Como De Gaulle submeteu suas proposições ao voto na AOF e a escolha dos africanos condenou a Federação, esses territórios começaram a proclamar suas independências. A independência do Daomé, por exemplo, ocorreu em 1º de Agosto de 1960. É no fim desta década que Carybé resolve encontrar Pierre Verger em sua primeira viagem à Benin em 1969. Podemos depreender, de toda essa historiografia, que a tradição dos orixás e o sistema político dos oba já estava plenamente arraigados nos territórios dos antigos reinos no Golfo da Guiné, se configurando num fenômeno religioso e político de grande centralidade.

No encalço de uma estética afrobrasileira

Carybé acredita ter feito uma representação honesta e precisa dos elementos do Candomblé, retratando festas, trajes, símbolos e cerimônias por ele vistas e vividas. Talvez, por isso, a sua ânsia em conhecer a República de Benin, na África. Seu maior objetivo era a preservação de identidades estilhaçadas e o testemunho de um imaginário sobre o negro no Brasil, que contribuiu para a redefinição da estilística da herança afrobrasileira, tal como afirma Carvalho (2019), curador da exposição ‘Verger e Carybé: entre as duas margens do Atlântico’, aberta ao público no SESI – Campinas/SP. E esse objetivo de Carybé foi atingido, observemos a obra Águas de Oxalá (Nanquim e aquarela sobre papel), sem data, exposta pelo SESI (Figura 2).

Figura 2. Águas de Oxalá.
Figura 2. Águas de Oxalá.
Fonte: Foto da reprodução usada no folder da exposição Verger e Carybé (Carvalho, 2019).

A grandiosa tarefa de Carybé, embora louvável, é a construção de um imaginário baseada apenas numa fatia do passado africano – como diria Appiah (1997) –, porém tomada como se essa fosse a própria história do negro no Brasil, quando na realidade retrata apenas uma escolha do artista, visto que a grande parte da população negra em território brasileiro foi composta por grupos de língua bantu e não por iorubanos. Ou seja, podemos destacar que Carybé colabora para a ‘invenção da tradição’ afrobrasileira, já que não há dúvidas de que todas as tradições sejam inventadas. Porém seus estudos, para as composições artísticas de estilo afrobrasileira, se referem a apenas um universo cultural entre tantos grupos populacionais africanos de maior impacto para o nosso país.

Temos que relembrar, com base na história da República de Benin, que o mundo dos orixás organizado em território brasileiro foi elaborado justamente pelos últimos grupos de africanos (de origem jeje-nagô ou iorubanos) a se estabelecerem no Brasil, em fins do século XVIII e no século XIX (Moura, 2019) e, que se fixaram, principalmente, no estado da Bahia, vindos de Ouidah, Porto-Novo e Cotonou. Antes desses, desde os tempos primordiais da colonização, o Brasil recebeu uma esmagadora maioria de africanos de origem bantu, que também contribuíram para a representação simbólica dos negros brasileiros, através de manifestações como o Jongo e o Candomblé Angola, onde as deidades são chamadas de Inquices e não Orixás, uma tradição antiga dos reinos do Kongo, Matamba e Ngola (atual Angola).

Apesar da questão entre a grande influência bantu e a já propalada suposta ‘supremacia jeje-nagô’ no Brasil, é preciso considerar Greenberg (2011) e seus estudos sobre as famílias linguísticas no continente africano. Para esse autor, os bantu e os iorubanos são subgrupos de um mesmo ramo das línguas Niger-Kordofaniano, que é chamado de Niger-Congo, onde estão agrupadas as línguas de regiões como as do sul do Saara, África Ocidental, Central, Oriental e Ocidental. São línguas faladas pelos povos mande, ioruba, nupê, jeje, bantu; sendo o outro ramo chamado kordofaniano e falado pelos povos kordofan, no Sudão e Sudão do Sul. Portanto, apesar da fronteira linguística de tais subgrupos bantu e ioruba, há que se reconhecer uma ancestralidade comum pelo menos no que se refere às questões da língua. Olhando a história da África e do Golfo da Guiné, também não podemos nos esquecer das três correntes de migração bantu de seu território ancestral, justamente da região do Rio Níger para ao sul do continente: um fluxo há 2 mil anos a. C.; o segundo fluxo ocorrido há 1 mil a. C.; e, por fim, o último ocorrido em 500 d. C., quando os bantu já estavam fixados nas regiões da atual República Democrática do Congo e no local onde se formaram os Grandes Lagos. A partir desse último fluxo populacional os bantu se deslocaram até onde hoje é a Cidade do Cabo, na África do Sul, finalizando a migração por toda a grande zona Centro-Sul continental[2].

Um pouco diferente do que fez Du Bois, sociólogo, negro e estadunidense, que quis encontrar uma África em Gana para se refugiar no fim da vida, Carybé foi encontrar sua representação da genuína identidade afrobrasileira na África viajando para a atual República de Benin. Se isso ocorreu com essas duas grandes referências da ciência e das artes, é porque aos negros no Brasil, assim como em toda a América, foram-lhes negadas as chances de contribuírem para as letras, as artes, a política e a sociedade brasileira em geral até o fim da década de 1970. Segundo Appiah (1997, p. 96):

[...] a própria invenção da África (como algo mais do que uma entidade geográfica) deve ser entendida, em última instância, como um subproduto do racialismo europeu; a ideia de pan-africanismo fundamentou-se na noção do africano, a qual, por sua vez, baseou-se, não numa autêntica comunhão cultural, mas, como vimos, no próprio conceito europeu de negro.

O autor está, nessa passagem, discutindo a questão do nacionalismo, as identidades nacionais e a questão negra, muito debatida por Du Bois. Ocorre que assim como os literatos africanos no pós-independência, Carybé tem em comum o problema da dialética do ‘eu-como-todo’ e do ‘eu-como-parte’ que, com base na argumentação de Appiah (1997), geraria uma tensão entre a sua representação do que é o negro brasileiro e o que de fato é o negro brasileiro em si. A busca de Carybé o faz, portanto, aproximar-se da representação de um africano da região do Golfo da Guiné – que foi o que ele encontrou na República de Benin no momento de suas visitas – para a construção de uma representação do que seria a estética afrobrasileira, como se essa fosse um todo homogêneo e não uma representação que é fruto de várias interpenetrações culturais como demonstramos ao retratar apenas a história do Golfo da Guiné na África.

Poderíamos, então, afirmar que isso ocorre justamente porque a descrição sincrônica da realidade obtida pela observação direta e o registro etnográfico em Oiudah, Porto-Novo e Cotonou, encontrados no diário de viagens de Carybé para Benin (1969 e 1987), não pode deixar de lado a diacronia dos acontecimentos históricos que envolvem o fluxo de africanos na África e o fluxo diaspórico de africanos para o Brasil, tal qual abordamos com a apresentação panorâmica da história dessa região da África. Isso demonstra como é de fundamental importância confrontar o olhar etnográfico (a descrição sincrônica) com os dados históricos (a diacronia) para se descobrir novos olhares, suas contradições e as invenções construídas em torno da história dos africanos e afrobrasileiros.

Apesar disso, queremos ressaltar a importância de Carybé ao ajudar a construir nosso Brasil-africano ou nossa África-brasileira, uma vez que seus olhos, desligados de um foco eurocêntrico, permitiram a ele recriar uma estilística e uma estética que compõe parte do que poderíamos categorizar como cultura afrobrasileira.

Referências

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Angrosino, M. (2009). Etnografia e observação participante. Porto Alegre, RS: Artmed.

Appiah, K. A. (1997). Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.

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Carvalho, L. G. (2019). Verger e Carybé: entre as duas margens do Atlântico (Folder da Exposição). São Paulo, SP: SESI.

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Notas

[1] Carybé nasceu em Lanus, na Argentina, em 7 de Fevereiro de 1911. Foi pintor, gravador, desenhista, ilustrador, ceramista, escultor, muralista, pesquisador, historiador, jornalista e criou cerca de 5 mil obras entre pinturas, desenhos, esculturas, painéis e murais. Foi ‘mordido’ pelo Brasil quando tocou pandeiro com Carmem Miranda, ainda na Argentina. Faleceu em Salvador, (BA), Brasil, em 2 de Outubro de 1997.
[2] Para maiores informações, o historiador belga Jean Vansina, um africanista, é a referência para a história e cultura bantu na região da África Central.

Notas de autor

diego.vitorino82@gmail.com

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