Literatura
Três poemas expressionistas
Three expressionist poems
Três poemas expressionistas
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 38, núm. 1, pp. 93-100, 2016
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: Maio 30, 2015
Aprovação: Novembro 16, 2015
Resumo: Este trabalho trata de três poemas do Expressionismo alemão que, de maneiras distintas, expõem a perplexidade moderna diante do desaparecimento dos últimos resquícios do humanismo burguês na aurora do século XX. Sua análise salienta o uso reiterado (e modificado) da parataxe, que potencializa na forma lírica a exposição desse processo, do modo como ele se apresentou às vésperas da Primeira Guerra Mundial, em contraste com as duas décadas que a antecederam.
Palavras-chave: poesia expressionista alemã, efeito de simultaneidade, reificação moderna.
Abstract: This paper deals with three German expressionist poems. In different ways they reveal the modern perplexity in regard to the vanishing of the last traces of bourgeois Humanism at the dawn of the twentieth century. It highlights the repeated (and remodelled) use of parataxis, heightening the exhibition of this process in the lyrical form as it was employed in Germany on the eve of World War I in contrast to the two preceding decades.
Keywords: german expressionist poetry, simultaneousness effect, modern reification.
Introdução
Em 1920, Kurt Pinthus lançava aquela que viria a ser a mais conhecida e citada antologia de poesia expressionista, a Menschheitsdämmerung, cujo título, como assinalou no prefácio, trazia a imagem contraditória de um ocaso e uma aurora simultâneos. Observe-se que a palavra alemã Dämmerung denomina aquele período de lusco-fusco que caracteriza as horas tanto do alvorecer quanto do crepúsculo. Daí a ambiguidade do termo, composto, que denota ao mesmo tempo fim e renascimento, no caso, da humanidade [Menschheit]. No texto de apresentação do livro, Pinthus caracteriza os poetas aí contemplados como gente que “[...] cedo sentiu como o homem afundava na Dämmerung [...], afundava na noite da ruína [...] para novamente emergir na Dämmerung iluminadora do novo dia [...]”, e prossegue dizendo que, no livro, “[...] o homem se volta conscientemente da Dämmerung do passado e do presente que o constrangem, oprimem e devoram [...]” e se dirige para “[...] a Dämmerung liberadora de um futuro que ele mesmo (o homem) cria” (Pinthus, 1964, p. 25).
Se Pinthus ressalta, no conjunto da obra do Expressionismo, a promessa de um novo despertar, essa esperança não é compartilhada por todos os poetas de uma geração que cedo foi surpreendida pela Primeira Guerra Mundial. Entre os milhões de mortos na aventura guilhermina contaram inúmeros expressionistas, entre eles, Georg Trackl, August Stramm, Ernst Stadler, Alfred Lichtenstein, Ernst W. Lotz e Reinhard J. Sorge. De fato, na seleção de poemas da antologia, percebe-se maior ênfase na expressão de um sentimento apocalíptico do que no vislumbre de uma nova época. Seja como for, os poemas aqui escolhidos para análise expõem alguns aspectos do crescente mal-estar político, social e cultural que perpassa a sociedade alemã nos últimos anos do regime imperial. Não se trata evidentemente de apontar um elemento de representatividade desses poemas em relação à plataforma expressionista como um todo, até porque os temas e as preocupações que a constituíram foram muito variados e frequentemente díspares.
Os poemas1
Fim do mundo2
O chapéu sai voando da pontuda cabeça do cidadão, Estrondos ressoam pelos ares feito gritaria,
Telhadores caem, despedaçando-se. E no litoral – lê-se – a maré está subindo. Irrompe a tempestade, o mar bravio assalta
A terra para arrebentar-lhe os espessos diques.
Quase todo mundo está resfriado.
Os trens despencam das pontes.
O poema acima é da lavra de Jakob van Hoddis (1887-1942) e data de 1911, época em que o rótulo ‘expressionista’ acabara de ser cunhado3 e ainda não adquirira o apelo midiático de que viria a gozar durante a guerra, para, em seguida, se consagrar e se fixar na historiografia. Não obstante, é modelado por uma técnica que seria muito explorada logo depois, tanto na lírica quanto na prosa. Suas duas estrofes constituem um quadro fundamentalmente descritivo, com imagens que se dispõem uma a uma a cada verso, justapondo-se em camadas que se adensam progressivamente. O primeiro verso descreve a cena de um chapéu que voa – evento que poderia sinalizar tão somente a lufada mais forte e inesperada de um vento qualquer. O segundo acrescenta um elemento de intensificação desse sinal e provoca uma impressão de incômodo estranhamento: ouve-se um fragor generalizado que faz lembrar uma gritaria. No terceiro, surge a constatação dos efeitos de uma ventania que faz mais do que arrancar o chapéu do transeunte incauto. É gente que cai do telhado, ‘despedaçando-se’. E no quarto, o leitor é informado de que o boletim meteorológico alerta sobre a maré que sobe. Mas o nível do mar não apenas se eleva: no quinto verso, surge a imagem de uma tempestade e de ondas que, no sexto, vêm a romper ‘espessos diques’. O último sela a imagem de destruição que a natureza conflagrada inflige ao homem e seu ambiente. Resta mencionar o penúltimo, que, de modo isolado, interrompe a sequência imagética que culmina na percepção de um cataclismo de proporções apocalípticas: ‘Quase todo mundo está resfriado’. Em meio ao caos que arrasta os homens à destruição, reponta a singela constatação de um padecimento banal, informação que, por um átimo, subtrai ao leitor as imagens seriadas da destruição do mundo.
O gesto que poupa o leitor da visualização de corpos afogados ou esmagados é irônico: na cena derradeira da história, descrevem-se com maior precisão e interesse as perdas materiais, assumindo o homem o papel de figura coadjuvante no processo que sela o fim de todas as coisas. Esse efeito é ainda potencializado pela técnica poética acima aludida, que, como se disse, surtiu efeitos ulteriores notáveis na lírica e na prosa do Expressionismo. Trata-se de um efeito de simultaneidade, obtido sobretudo pelo uso sistemático da linguagem paratática. A novidade de seu emprego pelos expressionistas alemães reside na justaposição de imagens díspares, que não mais resultam em mero efeito de reiteração ou acumulação. As imagens que se seguem não são meramente complementares; estão desvinculadas entre si, apresentam-se autônomas e singulares, e desse modo impedem a constituição de uma temporalidade linear. O quadro formado desafia a percepção do texto como expressão de algo que se revela por meio da sucessão temporal de elementos descritos ou narrados. No poema de Hoddis (1999), os versos justapostos geram um conjunto de imagens agrupadas – parcelas de uma paisagem maior e, por assim dizer, totalizadora. Em lugar de uma sucessão de eventos, o leitor depara sua ocorrência concomitante. A um só tempo, voa um chapéu, ressoa a gritaria, sobe a maré, caem os telhadores e os trens, os diques sucumbem à força das ondas e as pessoas se resfriam. No mosaico produzido pelo trabalho descritivo, casam-se a linguagem destituída de subordinação e o número reduzido de versos, eles, por sua vez, bastante curtos. Também em virtude desse procedimento de condensação e sincronismo, o poema adquire o tom blasé da indiferença sobranceira. Nele inexiste a expressão de horror e medo pânico que a terra convulsa poderia ou deveria suscitar.
Georg Simmel, ao estudar a formação do fenômeno metropolitano no início do século XX, identifica, no novo modus vivendi citadino e moderno, um condicionamento psíquico que, em última instância, conduz à inércia o indivíduo submetido a uma onda de choques psíquicos.
O fundamento psicológico sobre o qual se assenta o tipo das individualidades metropolitanas é a intensificação da vida neural [Nervenleben], que deriva da mudança rápida e ininterrupta de impressões externas e internas (Simmel, 1995, p. 116),
contrariamente à formação auferida na vida campestre ou na cidade pequena, com seu ritmo “[...] mais lento e habitual, que flui de maneira uniforme” (Simmel, 1995, p. 117). Para se defender da pletora de estímulos os mais diversos a que está sujeito, por exemplo, o homem que transita no centro de uma grande cidade, o aparelho psíquico passa a constituir uma espécie de couraça protetora que, com o passar do tempo, torna-o infenso a essa demanda externa. Todo novo impacto é absorvido como produto de uma permanente rotina; a profusão de sons provocados pelas máquinas e automóveis, o pregão dos vendedores nas calçadas, os enormes letreiros luminosos, a algaravia de vozes, a multidão que percorre as ruas da metrópole, tudo isso se lhe torna indiferente. Simmel, contudo, avança na análise para identificar o elemento social que medeia todo o processo. É na grande cidade, diz, que se observa a real prevalência de uma economia baseada no dinheiro:
As metrópoles têm sido desde sempre a sede da economia monetária, pois aí a diversidade e a condensação do intercâmbio econômico imprimem aos meios de troca uma relevância que eles não atingiriam no quadro de escassez das operações rurais de permuta (Simmel, 1995, p. 118).
O crítico lembra ainda que a economia monetária e o domínio da razão encontram-se em ‘íntima relação’, sendo que ambos “[...] comungam de uma autêntica objetividade no tratamento dos homens e das coisas, no qual uma justiça formal une-se amiúde a uma desapiedada violência” (Simmel, 1995, p. 118). Dessa maneira,
O homem realmente racional é indiferente a tudo aquilo que seja verdadeiramente individual, pois a partir do indivíduo surgem vínculos e reações que não se coadunam com a razão – do mesmo modo como a individualidade dos fenômenos não acede ao princípio do dinheiro. Pois o dinheiro diz respeito apenas àquilo que é comum a esses fenômenos, ao valor de troca, que nivela todas as qualidades e particularidades no plano do mero 'quanto custa?' (Simmel, 1995, p. 116)
No poema, o desinteresse pela sorte dos homens não é, portanto, arbitrário. Insere-se antes na nova ordem das coisas, a essa altura já naturalizada. Note-se que o ensaio de Simmel é de 1903, e o poema, como já mencionado, data de 1911. Portanto, não foi preciso o advento da guerra para se chegar à constatação de que a eventual aniquilação da humanidade poderia ser contemplada e descrita com tranquilo descaso, da mesma maneira que hoje a catástrofe ambiental pode ser noticiada sem nenhum expediente de graduação qualitativa que a distinga de uma trivialidade qualquer produzida pela indústria cultural. A normalização da vida social produzida pelas relações de troca, nas quais o denominador comum é a pura quantidade, traduz-se neste Fim do mundo por via da técnica descritiva e enumerativa, que enseja uma equiparação das imagens listadas a cada verso. Elas se tornam assim qualitativamente equivalentes. O resquício de humanidade insinuado pela onda de resfriados desaparece ao se nivelar, na forma do poema, a tudo o mais que se perde na voragem apocalíptica.
Fim do mundo4
Chora-se no mundo Como se o bom Deus houvesse morrido, E a plúmbea sombra que cai Pesa como um túmulo.
Venha, vamos nos esconder bem juntos... A vida jaz nos corações de todos Como em esquifes.
Ei! Vamos nos beijar sofregamente – Uma saudade palpita no mundo; Por sua causa morreremos.
Else Lasker-Schüler (1869-1945) publicou o seu Fim do mundo em 1905, antecipando em pelo menos meia década as primeiras manifestações líricas da jovem geração expressionista. A par da identidade do título, sobressai uma grande diferença em relação ao poema de Hoddis, a começar pelo tom elegíaco. Em seu poema, o mundo não se está desfazendo em ruínas, ele já acabou. Resignadamente, procede-se a uma cerimônia de despedida, e a primeira estrofe cuida de expressar o infortúnio do homem perante o sumiço de Deus. Não se trata simplesmente da constatação da inexistência da divindade. Ainda que tenha uma vez existido ou ainda exista, o ser supremo não se revela; tudo se passa como se ‘houvesse morrido’, restando (de sua lembrança?) a sombra plúmbea, ‘pesada como um túmulo’. Feito o registro do abandono, surge, na segunda estrofe, uma voz que se dirige a alguém para fazer o convite: ‘vamos nos esconder bem juntos...’. O chamado para o refúgio é seguido por declaração que implica novo abalo, relacionado ao da perspectiva já assinalada da morte de Deus. É a vida que perde o prumo, que se desgarra de si mesma. Ela se assenta ‘nos corações de todos’, mas o faz como se estivesse encerrada em sua última morada – uma vida no limiar da extinção ou, melhor dizendo, uma morte em vida. Cumpre celebrá-la uma última vez, e o chamamento expresso no primeiro verso da terceira estrofe prefigura o ritual mais adequado para a despedida: o ato amoroso que há de se consumar de maneira ardente.
As imagens associadas à morte de Deus, bem como à ideia de uma existência humana inteiramente desvitalizada, promovem decerto forte impressão de desamparo. Será, contudo, o penúltimo verso o responsável pela introdução do elemento que aprofundará e cristalizará o mal-estar enunciado: ‘Uma saudade palpita no mundo’. Note-se que a importância desse sentimento é proporcional a seu grau de indefinição. Diretamente nada se diz de seu objeto.
Conhece-se, porém, a forma de sua manifestação: trata-se de uma saudade que palpita, vale dizer, que se expressa de modo regular e contínuo, fazendo-se notar ininterruptamente. Essa percepção plástica da saudade remete à imagem central da segunda estrofe do poema. O verso seguinte, que o fecha, acrescenta um dado que não apenas imprime à saudade a feição da dor que lateja sem cessar, mas, a partir dela, estabelece um prognóstico sinistro e fatídico – ‘Por sua causa morreremos’. Vê-se que a saudade não é apenas a dor que tortura sem descanso; ela é o claro sinal de que algo vital está irremediavelmente perdido, ao menos para a dupla que se forma para se entregar a um último e sôfrego beijo.
Em poema posterior,5 publicado em 1920, Lasker- Schüler retoma a imagem da energia pulsante do coração para contrastá-la com o entorno morto: “Meu pulso transformou o sangue em chamas/ mas tudo era cinzento e frio a meu redor”6 (1999, p. 169, tradução nossa). E em verso subsequente do mesmo poema, o eu-lírico pergunta e logo responde: “Onde vou terminar? – Oh Deus!! Nas estrelas então [...]”7 (1999, p. 169, tradução nossa) pois, ao que tudo indica, a terra deixou de ser habitável. Para a geração expressionista, a acelerada mecanização da vida foi, muitas vezes, a tradução mais acabada e perceptível de uma grande catástrofe. Influenciados pelos futuristas, que lhes legaram a ideia da simultaneidade, efeito justamente dos processos tecnológicos em curso, os expressionistas voltaram-lhes as costas quando se tratou de apreciar o real valor do frenesi moderno. Enxergaram, pelas lentes de Marinetti, a formidável onda de choques a que estava sujeita a sociedade tecnológica8, mas, ainda que às cegas, intuíram aquilo que se realizava nas oficinas da vanguarda italiana: o trabalho de douração da pílula capitalista. Em sua grande maioria, os expressionistas alemães assumiram, sobretudo após o início da guerra, uma atitude cada vez mais antiburguesa, embora tenham sido raros aqueles capazes de superar a miopia política de um anticapitalismo romântico. Assim, acabaram por confundir o fim de uma época com o fim do próprio mundo, transfigurado na imagem horripilante da desgovernada fábrica de Metropolis, de Fritz Lang, em certo sentido, o mais expressionista dos filmes alemães9.
Pertencente a uma geração anterior à dos ‘autênticos’ expressionistas, Lasker-Schüler, com sua poesia sentimental e melancólica, observou, provavelmente com maior distanciamento, o fenômeno em que, pela data de nascimento, já estavam imersos os companheiros da nova geração. Sua saudade, pode-se dizer, é mais sentida, e a técnica do verso, por isso mesmo, é refratária ao uso da parataxe e de outros expedientes formais que caracterizariam uma boa parte da nova lírica alemã, antes e durante a guerra.
O Expressionismo de Lasker-Schüler é pré-futurista, estando ainda impossibilitado de conferir forma lírica plena ao vórtice da modernidade técnico-científica. Sua poesia está quiçá mais próxima do verso rilkeano, que busca desesperadamente um vislumbre de 'pura duração' no abraço dos amantes, imersos ainda na perenidade das coisas, como se observa na segunda elegia duinense (Rilke, 1996). Antecipa o assunto do poema de Hoddis, mas não a forma, observando-se aí o salto protagonizado pela nova geração, inteiramente mergulhada no processo industrial e tecnológico que iria pautar, entre outras coisas, o novo andamento da guerra. O poema abaixo, de Gottfried Benn (1886-1956), foi publicado pela primeira vez em 1913, ano em que ingressou no Hospital Ginecológico de Charlottenburg, como chefe da área de patologia. Nessa época, o jovem médico também havia adquirido certa experiência como legista, tendo realizado até então quase duzentas autópsias numa clínica em Spandauer Damm, subúrbio de Berlim. Fruto desse trabalho, um ciclo de poemas sobre a morgue granjeou-lhe fama instantânea, associada ao escândalo da profanação, por assim dizer, poética de cadáveres, num procedimento lírico em que a pena se confundia com o bisturi empregado à mesa de dissecção.
Homem e mulher caminham pelo pavilhão do câncer10
O homem: Esta é a fila dos ventres arruinados E esta, a dos peitos arruinados. As camas fedem, uma ao lado da outra. As enfermeiras revezam-se a cada hora.
Venha, não se acanhe de erguer o lençol. Veja: este amontoado de gordura e líquidos podres Representou certa vez algo grandioso para um homem, Para ele significou embriaguez e pátria.
Venha, veja esta cicatriz no peito. Sente o rosário dos nódulos amolecidos? Não se acanhe de tocá-los. A carne é flácida e não causa dor.
Esta aqui sangra feito trinta corpos juntos. Ninguém tem tanto sangue assim. Desta ainda extraíram Uma criança do ventre tomado pelo câncer.
Elas podem dormir. De dia e de noite. – Às novatas Diz-se: aqui o sono é reparador. – Apenas aos domingos São despertadas um pouco mais para receber as visitas.
Mal se consome a comida. As costas Estão cheias de escaras. Veja as moscas. As enfermeiras Lavam-nas às vezes. Assim como se lavam os bancos.
Aqui o terreno incha ao redor de cada leito. A carne nivela-se com o chão. A brasa extingue-se. O líquido começa a escorrer. A terra chama.
No poema de Benn, um homem (um médico? Um enfermeiro?) introduz uma mulher (uma médica-residente? Uma enfermeira em treinamento?) no ambiente infecto e repulsivo de uma enfermaria lotada de pacientes vitimadas pelo câncer. Infenso ao ambiente decrépito e mal cheiroso, suas primeiras palavras denotam, sobretudo, a preocupação com um detalhe relativo à distribuição espacial das internas na enfermaria, que estão agrupadas de acordo com uma classificação baseada no lugar do corpo onde os tumores proliferam: ‘Esta é a fila dos ventres arruinados/ E esta, a dos peitos arruinados.’ O critério anatômico preside uma ordem que, a despeito do estágio terminal da doença e da inexistência de um procedimento terapêutico em curso, continua a definir a disposição dos leitos no pavilhão das cancerosas.
O mapeamento anatômico das doenças adquiriu relevo no século XVIII, e está desde então submetido a um critério que se originou da classificação botânica. Tratava-se, naquela época, de instaurar uma nova racionalidade, que promovia a abstração do doente e gerava uma investigação clínica centrada de modo unívoco nos sinais e sintomas da doença. Nessa perspectiva, o doente se torna, como lembra Foucault, “[...] apenas um fato exterior em relação àquilo de que sofre: a leitura médica deve tomá-lo em consideração para colocá-lo entre parênteses” (Foucault, 1977, p. 17). Surge então, inevitavelmente, a questão moral em torno da observação e experimentação clínica executada sobre o corpo despersonalizado. Em estágio já avançado da Revolução Francesa, o “[...] problema mais importante que a ideia clínica suscitava era: com que direito se podia transformar em objeto de observação clínica um doente que a pobreza obrigava a vir pedir assistência no hospital?” (Foucault, 1977, p. 94). De acordo com Foucault, a resposta ao dilema surgiu a partir da ideia de uma obrigação social contraída pelo pobre em virtude do financiamento de sua internação:
Mas, olhar para saber, mostrar para ensinar não é violência muda, tanto mais abusiva que se cala, sobre um corpo de sofrimento que pede para ser minorado e não manifestado? Pode a dor ser espetáculo? Pode e mesmo deve, pela força de um direito sutil que reside no fato de que ninguém está só, e o pobre menos do que os outros [...], [pois] só pode receber assistência pela mediação do rico. (Foucault, 1977, p. 96).
Diante da advertência, o doente recalcitrante à exposição de seu mal “[...] se tornaria ingrato, pois teria usufruído das vantagens que resultam da sociabilidade, sem pagar o tributo do reconhecimento” (Chandon de Montaux apud Foucault, 1977, p. 96).
No início do século XX, quando a internação hospitalar já constituía a regra para o tratamento de uma série de moléstias, com destaque para sua fase terminal, havia muito se naturalizara a propedêutica médica direta e livre de interdições impostas por noções de recato. E ainda hoje, nas instituições nosocomiais e ambulatoriais vinculadas ao ensino médico, é sempre marginal a discussão sobre o desconforto do paciente ante o desnudamento de seu corpo e sobre seu direito ao conhecimento exato das medidas terapêuticas adotadas. A perda do pudor em 'erguer o lençol' transforma-se em elemento substantivo no treinamento médico, no qual sobressai a definitiva disjunção perceptiva entre doença e doente, entre a manifestação visível da enfermidade e aquele que a padece. Nas visitas médicas e nas discussões de 'casos' nos hospitais universitários, amiúde enuncia-se o número do leito em lugar do nome do paciente internado, num gesto de subtração asséptica da personalidade e em favor da objetivação daquilo que atende aos reclamos exclusivos do diagnóstico. No poema de Benn, a visita à enfermaria reproduz um quadro que se reatualiza cotidianamente na medicina contemporânea. Thomas Bernhard testemunha o mesmíssimo cenário de anônima dissolução corporal na prosa autobiográfica de Der Atem [A respiração]. No romance, o narrador em primeira pessoa conta que, depois de ter sido internado às pressas por um quadro de grave afecção pulmonar, recobra paulatinamente a consciência para deparar aquela atmosfera lúgubre descrita no poema, vendo-se internado num pavilhão de doentes terminais em que os odores fétidos asfixiam, e o pessoal médico transita indiferente por entre os leitos, exercendo uma atividade automatizada e rotinizada que soterra qualquer esperança de alívio para o sofrimento de dezenas de moribundos, todos eles devidamente sedados:
As enfermeiras tinham um olhar treinado para identificar os candidatos à morte, viam com bastante antecedência, antes que a pessoa em questão o percebesse, que este ou aquele rapidamente se aproximava do fim [...] e, naturalmente, elas desempenhavam sua tarefa com extrema habilidade, com extrema indiferença (Bernhard, 2004, p. 22-23).
E também em Bernhard os corpos dos internados transfiguram-se num amontoado de carne entorpecida e degenerada, de modo que são transportados de um lugar a outro como massa inerte e desprovida de identidade. Seu narrador descreve os ambientes por que transita como sendo o de estações vesperais da morte. A enfermaria onde o internam logo que chega é chamada de ‘sala dos velhos’ [Alterszimmer], pois, como constata, quase todos os pacientes aí encerrados contam mais de setenta anos. Ele, porém, logo a rebatiza como a ‘sala da morte’ [Sterbenzimmer], ao notar que ninguém sai vivo dali. E nenhum leito permanece desocupado por muito tempo. Quando é preciso obter espaço para novos ingressantes, e caso não esteja igualmente lotado, o banheiro substitui a funesta enfermaria na função de abrigo derradeiro para o interno agonizante:
Apenas quando havia lugar no banheiro, levavam-se até ali aqueles cuja morte, ao que tudo indicava, era iminente. [...] Dependia também do humor e da disposição das enfermeiras, e além disso, da disponibilidade de enfermeiros com que se pudesse contar, o fato de um moribundo ser transportado a tempo da sala da morte para o banheiro (Bernhard, 2004, p. 22).
Tanto na prosa de Bernhard como no poema de Benn, a sorte dos doentes figura como o desfecho de um processo que é gerido na forma de um rito. A espacialização da doença no corpo transborda para a demarcação do lugar que cabe a cada paciente na enfermaria, levando-se em conta seu mal específico e o estágio alcançado pela moléstia. Uma racionalidade de fundo taylorista dita o procedimento espacial e temporal necessário para se acompanhar, com máxima eficiência, a evolução do quadro mórbido até o ‘êxito letal’, que, no jargão médico, frequentemente designa a morte. O termo, aliás, indica com precisão a ideia de processamento; pressupõe a morte como resultado necessário do desenvolvimento ‘natural’ e ‘padronizado’ da doença. As medidas tomadas pela equipe de médicos e enfermeiras submetem-se, portanto, à lógica da constância observável na progressão da enfermidade e de sua irreversibilidade.
No poema de Benn, a espacialização compartimentalizada dos leitos figura como item de uma extremada racionalização da rotina hospitalar, que estende seus tentáculos até o limite último da existência. A vida, já em seus estertores, permanece condicionada aos trilhos da gestão organizada do cotidiano. O pavilhão, a despeito do ar nauseabundo, é apresentado à mulher que o visita como lugar da ordem e da passagem ‘processual’ da vida para a morte. E na esteira dessa linha de montagem, a produção é regular e homogênea: as internas partilham de um estado de sedação que se generaliza sob o efeito de narcóticos ou que é causado pela própria falência corporal. Todas elas se sujeitam à mesma proliferação de feridas no dorso, bem como recebem o mesmo banho, ou melhor dizendo, a mesma lavagem do corpo, alvo de uma higienização idêntica à que se aplica ao mobiliário hospitalar. E mais uma vez, é o emprego da parataxe o procedimento formal que enfeixa a visão seriada dos grupos uniformizados de pacientes. O uso persistente de versos justapostos, desprovidos de subordinação causal ou temporal, garante com máxima eficiência o efeito de compartimentalização e seriação. Na ordenação do espaço subdividido, nenhum elemento ganha relevo diante dos demais. As filas dos leitos não guardam diferença hierárquica entre si. O fato de uma paciente sangrar ‘feito trinta corpos juntos’ não a distingue, em termos da atenção que lhe é dispensada na visita, daquela que teve o bebê extraído do útero canceroso. A inapetência, as chagas, o enxame de moscas e o asseio corporal comprimem-se numa mesma estrofe, como fenômenos que se confundem na rotina do pavilhão: “Mal se consome a comida. As costas/ Estão cheias de escaras. Veja as moscas./ As enfermeiras lavamnas às vezes. Assim como se lavam os bancos” (Benn, 1999, p. 74). Os efeitos da doença e as medidas ‘profiláticas’ que lhes correspondem formam um amálgama de imagens e ações desprovidas de discriminação hierárquica. O viés organizacional nivela todas as coisas, suspendendo a possibilidade de se distinguir o sofrimento como elemento de individualização do doente.
Desse modo, o poema de Benn não se reduz à exposição cínica de um voyeurismo sádico, e o malestar que suscita advém da forma empregada para a descrição do ambiente hospitalar: sequencial e protocolar, despojada de vezo denunciatório. O homem que encabeça o tour pelos leitos segue tão somente a orientação de um manual de instruções, fazendo uma descrição que lembra a linguagem sóbria e desprovida de páthos do narrador dos romances de Kafka.
Na última estrofe, a homogeneização operada na enfermaria atinge seu ponto climático: “Aqui o terreno incha ao redor de cada leito./ A carne nivelase com o chão. A brasa extingue-se./ O líquido começa a escorrer. A terra chama.” (Benn, 1999, p. 74) O rito de processamento organizado da morte finaliza-se, e o chão se abre como embalagem que recebe a matéria produzida. Toda e qualquer tensão preexistente desaparece por meio da equiparação entre a oferta de carne e os rogos da terra. Oferta e demanda encontram seu ponto de equilíbrio, e assim a brasa que se apaga semelha à do forno que, encerradas as atividades de fabrico, pode ser desativado. A estrofe gera, no poema, mais uma imagem de grande impacto, provendo-o de um desfecho possível e aparentemente necessário. É forçoso, porém, ressaltar o corte desferido no discurso que se detivera até então no convite à observação detalhada dos corpos e seus padecimentos. Da exposição crua e direta da decadência física das pacientes, o anfitrião passa, sem mais, a um discurso essencialmente metafórico, operado de fato por uma nova instância lírica. É como se o enunciado das estrofes precedentes se interrompesse para ceder a vez ao comentário de um estranho. Nesse ponto, Benn introduz uma torção que gera uma atitude de resignação diante do festival de horrores da enfermaria, pois, no final das contas, o que resta é a morte, da qual ninguém escapa. De um lado, a extraordinária apresentação do quadro de degradação da vida moderna e, de outro, na última estrofe, o acento niilista. Essa disjunção indica os limites da lírica de Benn, que, flertando com a expressão realista da realidade social, acaba por curvar-se aos limites de um quadro essencialmente descritivo. Não obstante, esses versos mal cheirosos, que escandalizaram seu primeiro público, calam fundo na consciência do leitor de hoje, na medida em que está submetido a processos ainda mais acentuados de assepsia e desumanização.
Considerações Finais
A ausência de perspectiva histórica constituiu grave empecilho ao exercício de uma crítica social consequente por parte dos expressionistas. No Fim do mundo de Hoddis, ressalta a visão apocalíptica que confunde o fim da era burguesa com o fim da própria humanidade. Não obstante, essa poesia logra apontar aspectos fundamentais da vida moderna, por meio de certos recursos formais, com relevo para a utilização intensiva e original da parataxe. Como se viu, o expediente é responsável por uma percepção inusitada do cataclismo capitalista: a vida humana confundindo-se com o artifício e o artefato, o vagão de trem com os passageiros que acolhe, o último sopro de vida com os restos do naufrágio.
Escrito apenas seis anos antes do poema de Hoddis, o outro fim de mundo, de Lasker-Shüler, sustenta traços de um passado que ainda acolhe a relação intersubjetiva e a ideia de uma dignidade humana. Diante da catástrofe, o amante pode oficiar o rito de despedida com alguma solenidade, dispondo do tempo necessário para executar seu canto de cisne. O tempo ainda não se conjuga em ações uníssonas e simultâneas. Comparados, os apocalipses de um e de outro poema revelam o salto na direção de uma compreensão mais aguda do fenômeno em Hoddis, cujos versos liquidam os resquícios de um eu-lírico, fazendo emergir uma voz autenticamente narrativa, que já não conhece a instância do sujeito desejante e autônomo. O mesmo acontece com a enfermaria de Benn, alienada de qualquer possibilidade de um gesto genuinamente humano, na medida em que o positivismo médico impõe-lhe a cabal ruptura com os processos sociais constituintes da alteridade.
Referências
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Notas