Recepção: 23 Maio 2015
Aprovação: 10 Novembro 2015
Resumo: Neste texto, interessa-nos discutir a ideia de virilidade, cotejando com modos atuais de ressignificar determinadas posturas, práticas e comportamentos historicamente atrelados a uma cultura viril. Assim, tomamos como objeto de análise os discursos em torno da aparição do lumbersexual na mídia, com vistas a problematizar essa irrupção discursiva como sintoma de uma reconfiguração na concepção de virilidade, engendrada na/pela história e, portanto, suscetível a transformações e reordenamentos.
Palavras-chave: discurso, moda, sujeito, lumbersexual.
Abstract: The idea of virility compared to current modes of reframing attitudes, practices and behaviors historically linked to a virile culture is discussed. The object of analysis comprises discourses on the lumbersexual person in the social media to problematize the discursive frenzy as a reconfiguration symptom of virility, engendered in/by history and, therefore, susceptible to changes and rearrangements.
Keywords: discourse, fashion, subject, lumbersexual person.
Introdução
As desculpas do então candidato Tancredo Neves (1993), esboçadas na epígrafe deste texto, atribuem à palavra macho e a toda a rede de memória que ela evoca um sentido de uma possível ‘equidade’ de gênero, na medida em que esse termo não corresponderia somente ao gênero masculino, assim como a todos os desdobramentos advindos dessa questão, de modo a sinalizar, portanto, para uma certa crise da virilidade, pois esta historicamente se atrelou mais ao homem, embora não se possa estabelecer, a priori, uma relação biunívoca entre virilidade e masculinidade (Corbin, 2013). No entanto, isso não invalida os efeitos de sentido advindos do subterfúgio do então presidencial, uma vez que, ao propor uma ressignificação para o termo macho, faz eclodir, numa via humorística, determinadas fissuras na definição do ser homem e mulher, tendo em vista todas as imbricações possíveis que desestabilizam esse binarismo, nos dias de hoje.
Partindo desse indício, neste texto, interessa-nos discutir a ideia de virilidade, cotejando com modos atuais de ressignificar determinadas posturas, práticas e comportamentos historicamente atrelados a uma cultura viril. Assim, tomamos como objeto de análise os discursos em torno da aparição do lumbersexual na mídia, com vistas a problematizar essa irrupção discursiva como sintoma de uma reconfiguração na concepção de virilidade, engendrada na/pela história e, portanto, suscetível a transformações e reordenamentos. Conforme sintetizam Corbin, Courtine, e Vigarello (2013, p. 8), “A virilidade é histórica como ela é, inevitavelmente, antropológica”. Esse escopo será desenvolvido graças à intersecção entre as formas de constituição do sujeito viril com os discursos midiáticos que margeiam essas construções, através de uma permanente fabricação do lumbersexual, atentando para a rede de memórias que o envolve. Considerando, portanto, que a irrupção dos discursos sobre o lumbersexual apresenta-se como um fenômeno recente, não se podem averiguar pesquisas concernentes a essa questão, o que atesta o caráter inaugural do presente estudo.
Situada no esteio de uma concepção bem mais ampla relativa à virtude, a virilidade comporta uma série de mecanismos que se voltam para certas condutas, principalmente na interface com a aparência corporal, pois combina, nos termos de Vigarello (2013), uma espécie de leveza elegante e vigor elaborado com uma postura refinada e uma força inquebrantável. Nas diversas reviravoltas da história, a virilidade é dada a ver, de variados modos; todavia, algumas peculiaridades são mantidas ao longo do tempo, o que nos permite assinalar regularidades que demarcam o funcionamento de um domínio de memória (Foucault, 2010), assentado, principalmente, numa certa remanência enunciativa, a partir da qual podemos enxertar a aparição dos discursos sobre o lumbersexual na mídia, como fragmentos de um arquivo, emoldurado num interior de contingências históricas e sociais bastante peculiares.
Em linhas gerais, o lumbersexual constitui uma tendência de moda ou, noutros termos, um estilo livremente inspirado num imaginário centrado na figura do lenhador de filmes americanos (lumber significa lenha, madeira, em inglês). Tal estilo prioriza o culto à pilosidade, concebida no entremeio de uma retomada da virilidade e de um erotismo, conforme se observa em determinados discursos que o constroem (http://www. correio24 horas.com.br/detalhe/noticia/conheca-o-lumbersexual-nova-tendencia-entre-homens, recuperado em 21, janeiro, 2015) Assim, na cultura oral dos Estados Unidos, tem-se o mito de Paul Bunyan, um gigante lenhador, cuja força e vigor fez com que desbravasse os territórios mais inóspitos daquele país (Sousa, 2009). Outras fontes, contudo, atribuem a criação de Paul Bunyan a uma estratégia deliberada de jornalistas e publicitários que buscavam promover a indústria madeireira, no alvorecer do século XX (http://portal-dos-mitos.blogspot.com.br/2013/11/paul -bunyan.html, recuperado em 29, abril, 2015). O uso de barbas, esteticamente bem cuidadas, aliado a roupas e botas, delatoras de um estilo rústico, são componentes básicos desse estilo. A emergência do lumbersexual no âmbito do dispositivo da moda (Paixão, 2014) produz efeitos de sentido que aglutinam esse retorno a determinada forma de virilidade, a uma exigência estética bastante peculiar dos tempos atuais, a qual poderíamos denominar de uma virilidade clean, ou seja, um estilo rústico, perfilado ao sabor de uma estética que, embora possa parecer antitético, faz-nos lembrar da figura do metrossexual.
Tem-se, portanto, a permanente construção de subjetividades, de modos de ser e estar no mundo, de um cuidado consigo e com os outros. A virilidade, vinda à tona por meio de uma série de discursos e saberes, está alicerçada nessas formas de constituição de si. Essas questões serão analisadas sob o horizonte teórico de Michel Foucault, cujas contribuições incidem sobre o permanente desenvolvimento de uma Análise do Discurso de orientação foucaultiana, conforme demonstra a produtividade de diferentes estudos brasileiros com esta feição (cf. Piovezani, Curcino, & Sargentini, 2014). Para a composição do corpus, compilamos algumas materialidades discursivas, principalmente notícias e cartuns, que circularam na mídia digital. Dada a emergência com que aparecem os discursos sobre o lumbersexual nas diversas vitrines midiáticas, ousaríamos cogitar, portanto, que a mídia, em confluência com o dispositivo da moda, engendra a figura do lumbersexual. Isso explica a escolha por analisar três notícias, veiculadas na web, além de um cartum que também circulou na rede digital.
A virilidade nas torções da história
As reflexões contidas nos três volumes da História da virilidade, coleção dirigida por Courtine et al. (2013), pinçam um minucioso retrato da invenção, do triunfo e da crise da virilidade, desde os gregos até os primeiros tempos do século XXI. Ao descrever e problematizar a heterogeneidade de discursos que perpassam a questão da virilidade, os autores dessa coleção se esforçam para “[...] mostrar os seus modos de existência históricos [da virilidade] e não para mostrar as formas fixas que ela [a virilidade] teria assumido no passado” (Mandressi, 2013, p. 267). Esses modos compreendem uma miríade de práticas, saberes, poderes, responsáveis por instaurar maneiras de ser viril, com vistas a engendrar determinados comportamentos e posturas, nos desníveis da história. Desde a concepção de virilidade na cosmovisão dos gregos e romanos, dos bárbaros, passando pelo ideal viril presente no período medieval, a despeito das distinções intrínsecas a essas civilizações e períodos históricos, algumas permanências deflagram regularidades relativas à virilidade, o que nos autoriza a pensar num fio histórico que alinhava diferentes temporalidades.
Nessa lógica, a virilidade ampara-se num ideal de vigor, força, potência, coragem, honra e virtude. Inscrita no interior de um regime de práticas, a virilidade comporta condutas e oscila num movimento pendular, no qual ora podemos apreendê-la somente no aspecto físico-corporal, ora é possível vislumbrá-la na intersecção do corpo com determinados valores e códigos vigentes em cada momento histórico. Assim, na consecução da educação espartana, na percepção da virilidade dos bárbaros, na virilidade erigida no seio do pensamento médico moderno, naquela proveniente dos selvagens das terras ‘descobertas’ e na edificação do corpo viril do rei, o que garante a manutenção dessa virilidade é a produção de um saber (médico, militar, moral) acerca do corpo do homem, responsável por dotá-lo ou destituí-lo de apanágios viris, produzindo, portanto, mecanismos de inclusão/exclusão.
A permanente construção de uma virilidade erige-se a partir de técnicas de disciplinamento e adestramento (Foucault, 1999), segundo as quais é preciso, desde a mais tenra idade dos garotos, inculcar valores de coragem, força e autocontrole, fazendo do imberbe um homem de qualidades, um homem de verdade, mediante programas sudoríparos e desgastantes. A incitação à aprendizagem de um comportamento bélico, por exemplo, do guerreiro espartano ao militar oitocentista, coaduna-se com a ideia de que
[...] a força, e resistência ao cansaço, a aptidão para superar o sofrimento físico e a dor moral, enfim, a aceitação de derramar seu sangue para a defesa do país são um conjunto de qualidades viris que encontram sua completa satisfação no estado militar (Bertaud, 2013, p. 74).
Do lado dessas imagens historicamente construídas em torno da virilidade, podem-se entrever alguns aspectos de ordem corporal, intrinsecamente aliados à constituição de um sujeito viril. Trata-se, principalmente, da pilosidade, com ênfase na barba, característica apregoada pela tendência lumbersexual de que falávamos há pouco. Interessa-nos perscrutar esse aspecto, na medida em que ele pode responder às inquietações advindas da invenção do lumbersexual. Quando falamos de invenção, referimo-nos exatamente às práticas historicamente produzidas, as quais dão visibilidade e dizibilidade à construção subjetiva da virilidade. Não se trata de uma invenção, num sentido que apontaria para a emergência de algo totalmente novo, apartado de uma historicidade. Logo, no decurso da história, a ostentação de pelos do bigode e, depois, da barba assenta a adoção de posturas somáticas que denunciam a virilidade (Corbin, 2013). Os bárbaros, consoante advoga a percepção dos romanos, eram reconhecidamente caracterizados por uma pilosidade abundante, de modo que insuflavam uma rudeza de comportamentos viris superlativos, por vezes, ameaçadores.
Nas obras científicas do século XIX, por meio de uma mecânica mensurável do corpo (Foucault, 2008), a virilidade desponta de um olhar clínico que escande o corpo do homem. Para denotar essa virilidade naturalizada, faz-se preciso que o corpo apresente a compacidade das carnes, a firmeza e solidez dos músculos, o calor e a sequidade do conjunto, a profundidade da fibra e a pilosidade pletórica (Corbin, 2013). A robustez do homem advém, portanto, dessas características, as quais delineiam a produção e a manutenção de sujeitos viris. Num domínio de memória, o pelo masculino expressa força, sabedoria, coragem; vide as narrativas do Barba Azul e de Sansão, conforme nos lembra Milanez (2008), ao estudar os discursos em torno da prática da depilação masculina e o modo como esses discursos estão relacionados com o processo de (des)construção de identidades do homem na atualidade. Para o autor, a pilosidade circunscreve a instauração convencional de um poder masculino. No decorrer da história, a subjetividade do homem, portanto, encontra-se envolta no excesso ou na ausência de pelos.
Todas essas peculiaridades, enlaçadas a uma força, vigor e potência inabaláveis, recrudescidas no triunfo da virilidade, no século XIX, entram em colapso, a partir de uma série de contingências históricas e sociais que desestabilizam e embaralham a superioridade do macho. Nesse sentido, tiveram papel importante nesse processo as duas grandes guerras mundiais, responsáveis por esgarçar o mito do guerreiro, outrora indestrutível, em conjunção com as conquistas feministas, dos anos de 1960, nas quais se observa a redefinição de códigos que delimitam, de maneira inflexível, os papéis masculinos e femininos (Witzel & Kogawa, 2014); além disso, devido aos efeitos dessas reconfigurações, observa-se um sucessivo enfraquecimento da autoridade paterna. De modo semelhante, o espectro da impotência sexual, constantemente justificada por razões de ordem psicológica, acentua ainda mais esse mal-estar na parte masculina da civilização, nos termos de Courtine (2013). Em suma, tem-se o intermitente desenrolar de uma vulnerabilidade viril, o que nos autoriza a pensar, na esteira de Courtine (2013), que a virilidade entrou numa zona de turbulências culturais, num campo de incertezas e num período de mutações.
O campo da medicina, desde os primeiros tempos do século passado, tem investido fortemente no sentido de propor toda sorte de tônicos fortificantes e fórmulas, voltados a restituir a força e a energia masculinas, subtraídas, por exemplo, em função do desgaste físico advindo das atividades de trabalho e do esporte (Witzel & Kogawa, 2014). A medicalização da virilidade, de acordo com Carol (2013), envolve uma série de intervenções terapêuticas, como os tratamentos hormonais e psicanalíticos, bem como as práticas restauradoras da potência sexual, as quais inserem a virilidade no escopo das atenções clínicas e especializadas de um saber científico. Como se não bastasse, as fronteiras entre o masculino e o feminino, antes expressas de modo estrito por meio das características anatômicas, nos dizeres de Carol (2013), passam a ser aferidas, nos primeiros tempos do século XX, por critérios mais abstratos, como o gene e os hormônios.
Essa crise da virilidade, ilustrada nos parágrafos antecedentes, parece levar a um quadro em que o sujeito viril, tal como fora construído ao longo da história, agora é dado a ver como uma abstração, vindo a lume por meio de memórias e de desejos. Quando pensamos, por exemplo, na emergência do lumbersexual, bem como nas redes de memória por ele convocadas, é relevante atentarmos para o modo como esse ideal viril é capitalizado pelo dispositivo da moda (Paixão, 2014) e inscrito sob um regime do fetiche e do imaginário, na medida em que são reativados determinados indícios de uma certa virilidade, como as roupas e o excesso de pelos, assim como o correspondente apagamento de uma virilidade absoluta, cujos efeitos nos reportam à violência, à crueldade e à dominação. Dos diversos modos de aparição da virilidade nos dias de hoje, o levante do lumbersexual constitui uma possibilidade de ressignificar essa construção histórica, ventilada nos moldes do discurso da moda, constituída, sob a perspectiva de Paixão (2014), como um dispositivo a partir do qual são fabricados sujeitos aptos a se encaixar na sociedade de controle em que estamos inseridos.
Alguns conceitos foucaultianos
Na visada empreendida nos limites deste texto, objetivamos operacionalizar alguns conceitos de Foucault (2010), os quais contribuem para a construção de uma Análise do Discurso de matriz foucaultiana. Dentre os vários conceitos mobilizados por esse pensador francês, selecionamos alguns presentes na obra Arqueologia do Saber ([1969] 2010), na medida em que nos permitem apreender o discurso, mais especialmente o elemento nuclear (o enunciado), cotejando-o com o conjunto das coisas ditas e com as condições de possibilidade que permitem essa produção discursiva. Nos termos de Foucault (2010, p. 28),
[...] é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser esquecido, transformado, apagado [...].
Ao conceituar o discurso como um conjunto de enunciados, Foucault (2010) recomenda que se analise como os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto. Nesse sentido, problematizando, de antemão, o objeto de estudo deste texto, é possível postular que vários dos enunciados que compõem o objeto de discurso da virilidade, ainda que apartados por substanciais diferenças de tempo e espaço, comungam de posicionamento bastante similares. Por exemplo, tanto os enunciados em torno dos requisitos obrigatórios para o ingresso na carreira militar no século XIX (Bertaud, 2013), como aqueles que discursivizam o lumbersexual, vão apontar para índices de virilidade, marcados, sobretudo, pela deferência aos pelos, considerando os contornos viris que essa característica anuncia.
Na definição do enunciado, Foucault (2010) defende que tal conceito distingue-se da frase, da proposição e do ato de fala, devido às seguintes particularidades: i) inscreve-se no plano do discurso; ii) não se encontra atrelado a uma estrutura canônica típica da frase; iii) não denota as intenções do sujeito que o efetua, de acordo com o que postula a teoria dos atos de fala. Ademais, o enunciado, nessa perspectiva, é concebido como uma função, que compreende: i) ‘um princípio de diferenciação’ – que circunscreve o objeto sobre o qual se fala; ii) ‘uma posição de sujeito’ – para enunciar, o sujeito ocupa uma posição no interior de uma prática discursiva; iii) ‘campo associado’ – o enunciado relaciona-se a uma teia de formulações que o sucedem e o antecedem, de modo a assinalar o funcionamento de uma memória; iv) ‘materialidade repetível’ – o enunciado não se identifica com um fragmento de matéria, mas sua identificação varia de acordo com um regime complexo de instituições materiais.
Assim, a função enunciativa, no entendimento de Foucault (2010), faz com que o enunciado siga alguns princípios, quais sejam: i) ‘princípio da rarefação’ (raridade) – nem tudo pode ser dito e nem tudo que é efetivamente dito reverbera ‘indefinidamente’ (Foucault, 2009); a análise enunciativa precisa atentar, portanto, para a posição singular que o enunciado ocupa no âmbito de um regime marcado pela dispersão; ii) ‘exterioridade’ – o enunciado precisa ser concebido no conjunto das coisas ditas, das relações, no intuito de apreender sua própria irrupção no lugar e no momento em que se produziu, para reencontrar sua incidência de acontecimento; iii) ‘acúmulo’ – vincula-se às maneiras mediante as quais os enunciados podem ser retomados, esquecidos, conservados; iv) ‘positividade’ – circunscreve a unidade do enunciado através do tempo, relacionando-o com o arquivo de um dado momento histórico.
Esses conceitos fundam o chamado método arquegenealógico de análise, calcado, prioritariamente, sobre o processo de escavação dos enunciados, de modo a delimitar as condições de possibilidade dos saberes. Seguindo a proposta foucaultiana, constatamos que o referido autor nos fala da existência de unidades do discurso, relativas à formação discursiva, entendida como um conjunto de regularidades inerentes aos discursos. As unidades do discurso compreendem os objetos, os conceitos, as modalidades enunciativas e as estratégias. A partir da formação dessas unidades, é possível apreender as regularidades do discurso. Centremos as atenções, neste texto, sobre a formação dos objetos e das modalidades enunciativas.
Na formação dos objetos, Foucault (2010) menciona três níveis de análise: i) ‘as superfícies de emergência’ – que definem onde os objetos podem surgir, tornando-os descritíveis e nomeáveis; ii) ‘instâncias de delimitação’ – as instituições que nomeiam, designam e instauram um objeto de discurso, adquirindo o direito de falar desse objeto; iii) ‘grades de especificação’ – sistemas segundo os quais apartamos, associamos e reagrupamos os objetos de discurso.
Acerca da formação das ‘modalidades enunciativas’, Foucault (2010) aponta para o estatuto do sujeito que fala, para o lugar institucional a que o sujeito se vincula para falar, bem como para a posição ocupada pelo sujeito na enunciação. Destarte, Foucault (2010, p. 56) questiona:
[...] quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? [...] Qual é o status dos indivíduos que têm o direito [...] juridicamente definido ou espontaneamente aceito de proferir tal discurso?
Desse modo, o autor esclarece que os lugares de onde o sujeito enuncia modificam-se, em função de contingências histórico-sociais. De modo análogo, a posição do sujeito enunciador está sujeita às descontinuidades dos planos da fala (Foucault, 2010), ou seja, às diversas posições que o sujeito pode ocupar ou receber ao exercer um discurso. Por outro lado, as modalidades enunciativas não remetem a uma função unificante de um sujeito, porém denotam a sua dispersão, pois “[...] não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso uma subjetividade psicológica [...]” (Foucault, 2010, p. 61) que se definem as regularidades de um discurso.
A irrupção dos discursos sobre o lumbersexual
A despeito de o termo lumbersexual ser ainda pouco utilizado, dado o caráter de novidade que o embala, uma busca no Google, realizada em meados de abril de 2015, gerou mais de quatrocentos mil resultados, o que assinala o modo como os discursos se espraiam na web e como a própria moda parece se relacionar, de forma simbiótica, com o aparato midiático. Essa peculiaridade dos discursos em torno do lumbersexual constitui uma regularidade na posição sujeito adotada nos enunciados que discursivizam a aparição do lumbersexual. Essa posição ocupa um lugar que informa, esclarece, anuncia essa nova tendência, inclusive do ponto de vista linguístico; vide, por exemplo, as explicações acerca do termo lumbersexual. Vejamos os excertos a seguir:
Excerto 1: Esqueça o metrossexual. Lumbersexual é a nova moda
Barba, camisa de flanela e cabelo despenteado: a nova tendência da moda é uma ode à virilidade e tem inspiração nos lenhadores americanos. São os lumbersexual e querem acabar com a artificialidade.
Metrossexual (homens que dão mais importância ao exterior do que ao interior) e spornosexual (uma mistura de metrossexual com o gosto pelo ginásio), esqueça-os! A nova moda é lumbersexual, que é como quem diz ‘estilo de lenhador’, o oposto de homens barbeados, depilados e cheios de cremes. É fácil reconhecê-los, o The Guardian diz que normalmente usam barba, camisas de flanela de xadrez, mochilas e cabelos com um ar negligé escondidos debaixo de um gorro de lã.
Segundo o jornal britânico, embora só nos últimos seis meses tenha um nome, há cada vez mais apoiantes. Mas até que ponto é que se deve levar esta moda? Será aceitável andar-se de machado na rua ou cobrir as paredes de casa com pele e cabeças de animais mortos só porque está na moda? E porquê continuar a chamar ao cabelo ‘look despenteado’ quando se passa tanto tempo ao espelho para se atingir aquele resultado final? (O Observador, 2014, grifos do autor)
Excerto 2: Tendência lumbersexual chega ao Brasil e propõe visual rústico
Look lenhador, que prega o uso de barba, camisa xadrez e stylist mais viril compõe a nova tendência masculina do momento.
A nova tendência entre os homens antenados com a moda é a onda lumbersexual. Na prática, significa ostentar barba com pelos mais compridos que o tradicional, usar camisa xadrez, calça jeans clássica, botas e outros elementos que deixam o estilo mais rústico, parecido com ‘lenhadores de filmes americanos’, vem crescendo entre os homens. O termo lumbersexual nasceu da união de‘lumberjack’ (lenhador, em inglês) com‘sexual’. A modinha já vem fazendo sucesso no exterior. No Brasil, ainda caminha lentamente, mas já tem os seus representantes: Cauã Reymond e Bruno Gagliasso estão entre eles. Lá fora, Jake Gyllenhaal, Ryan Gosling, Gerard Butler e Joe Manganiello representam a nova categoria.
O visual lumber surge como contraponto aos metrossexuais. No começo dos anos 2000, famosos como David Beckham e Cristiano Ronaldo elevaram até as últimas consequências os cuidados masculinos com a aparência. Apareciam sempre com barbas e sobrancelhas feitas, usavam roupas justíssimas e não escondiam de ninguém que passavam cremes específicos para cada área do corpo.
Engana-se, porém, quem acha que os lumbersexuais são tão desleixados assim. A preocupação estética existe, mas é canalizada de outra forma. Só para manter a barba maior, por exemplo, o homem precisa dedicar cuidados específicos na hora de aparar os fios. Compor o visual exige atenção. É preciso escolher uma bota bacana e comprar roupas no tamanho certo. A questão aqui é ter atitude. (Izquierdo, 2014, grifos do autor).
Na materialidade repetível dos enunciados, os sentidos que nos remetem à novidade acerca do lumbersexual formam uma regularidade nos modos de enunciar a respeito dessa tendência. As passagens ‘Lumbersexual é a nova moda’ e ‘a nova tendência masculina do momento’, por exemplo, demonstram tal constatação. Essa novidade parece amparar a emergência de notícias sobre esse estilo, acentuando, assim, um princípio da diferenciação, de que fala Foucault (2010), na medida em que a função enunciativa constrói o lumbersexual a partir da referência a uma espécie de furo na normalidade, no habitual, características peculiares do dispositivo da moda. Isso, ao mesmo tempo, demarca a exterioridade do enunciado, porquanto testemunha as relações de força e das tendências da moda (Lipovetsky, 2005), mecanismos que permitem a irrupção desses enunciados como um acontecimento singular.
Ao mesmo tempo em que apregoa, com vieses espetaculares, a onda do lumbersexual, no caso do primeiro excerto, o sujeito enunciador questiona esse estilo, ao inquirir a respeito de situações despropositadas advindas da utilização do visual lumbersexual. Ao fazê-lo, o sujeito que enuncia denota uma certa heterogeneidade de posições (uma posição que ‘isentamente’ informa e outra que relativiza), corroborando, assim, as descontinuidades do plano da fala, conforme ressalta Foucault (2010). Em espiral, tais posições fabricam discursivamente a figura do lumbersexual, engendrado mediante a conexão entre o aparato midiático e o dispositivo da moda. Ao fim e ao cabo, o lumbersexual desponta sob a efemeridade dos estilos, questionado, pois, pelos mesmos saberes da moda que o produzem (‘esqueça-os! A nova moda é lumbersexual’).
Se pensarmos ainda na formação dos objetos, na esteira de Foucault (2010), convém frisarmos o funcionamento das superfícies de emergência, pois é a partir do universo da moda que o lumbersexual, como um objeto de discurso, é dado a ver, e nas grades de especificação, tendo em vista que a construção do lumbersexual, nos discursos supracitados, ocorre mediante uma relação de antinomia com o fenômeno do metrossexual. Embora não concordemos totalmente com essa associação, uma vez que os lumbersexuais também são caracterizados pela ótica da estética e do cuidado com o corpo, urge constatar que, na tessitura do discurso midiático, essa grade de especificação é mobilizada. Em fragmentos como ‘o visual surge como contraponto aos metrossexuais’, ‘esqueça o metrossexual. O lumbersexual é a nova tendência’, ‘querem acabar com a artificialidade’, ‘oposto aos homens barbeados, depilados e cheios de creme’, observamos que os enunciados se relacionam, num domínio associado, a outro estilo masculino, recentemente apregoado pelo aparato midiático, que provocou determinadas ranhuras na concepção de virilidade historicamente construída. O advento do metrossexual, principalmente no que respeita à depilação masculina, produziu identidades que se posicionavam contrariamente a uma virilidade superlativa incrustada nos pelos, de modo, e inclusive, a colocá-la em xeque.
No que tange à formação das modalidades enunciativas, vale registrar, por exemplo, a menção ao jornal The Gardian que, em discurso indireto, assinala um lugar institucional, a partir do qual o sujeito enunciador ancora seu dizer. Por se tratar de um jornal estrangeiro e considerando que os discursos em torno da moda obedecem a uma ordem, do ponto de vista geográfico, bastante específica – da Europa e dos Estados Unidos para o resto do mundo – a referência ao jornal britânico credibiliza esse dizer no tocante aos modos de definir o estilo lumbersexual. Embora o sujeito enunciador, no segundo excerto, não cite o discurso de celebridades prototípicas do visual lumbersexual, a alusão a esses sujeitos confere um status responsável por ilustrá-los como exímios representantes do look em foco.
Nesse sentido, reiteramos que a imagem do lumbersexual constrói-se na interface com os saberes e poderes do dispositivo da moda, compreendido por Paixão (2014) como um conjunto heterogêneo de práticas disciplinares e de controle sobre a população, que envolve elementos diversos, tais como os discursos sobre a importância de vestir-se bem conforme regras legitimadas por manuais de estilo e ao sabor da instabilidade das tendências, marcadamente substituíveis, mas, nem por isso, menos regulamentadas ou eficazes, em relação às formas de controle. Dito de maneira mais pormenorizada, o padrão que denuncia o lumbersexual consiste em determinados índices peculiares e geradores de uma pretensa virilidade (barba, cabelo, roupas e acessórios), os quais constituem condições indispensáveis para a construção de uma estética deflagradora do lumbersexual. Ora, somente os sujeitos que estiverem portando essa indumentária e esse visual podem ser incluídos dentro dessa lógica (‘é preciso escolher uma bota bacana’, ‘compor o visual exige atenção’, ‘comprar roupas no tamanho certo’, ‘cuidados exclusivos na hora de aparar os fios’). A moda, portanto, inscreve-se no cerne de procedimentos de inclusão/exclusão.
Conforme discursivizam as notícias, o lumbersexual parece aglutinar, a um só tempo, a virilidade do ponto de vista da aparência corporal com uma atitude de rejeição a uma dada artificialidade do metrossexual, por exemplo. Poder-se-ia simplesmente tratar de uma vontade de retornar a uma virilidade eterna (Courtine, 2013), com vistas a atualizá-la. Essa virilidade fora eclipsada em função das mutações germinadas a partir de um cuidado excessivo com o corpo, bem como da utilização de vestimentas que não pareciam coadunar com esse imaginário de virilidade, características de um homem mais vaidoso e preocupado com a aparência (cf. Sant’Anna, 2014). No entanto, não é bem assim que os discursos constroem o estilo lumbersexual, na medida em que sinalizam para um zelo com o estilo, considerado largado, que, em certa medida, assemelha-se ao espectro denegado do metrossexual. Em linhas gerais, esses discursos vão apontar para uma contínua fabricação do sujeito viril na interface com os saberes e as práticas da moda. Pensando o corpo como o meio pelo qual se materializa o sujeito que somos, na esteira de Milanez (2011), é pertinente enfatizar como o corpo do lumbersexual é constituído a partir de uma rede de saberes que delimita e restringe os que devem ocupar essa posição. Assim, nos excertos das notícias em foco, aparecem construções como ‘é preciso ter atitude’ e ‘querem acabar com a artificialidade’, as quais parecem denunciar determinadas posturas a serem adotadas pelos aspirantes ao estilo lumbersexual.
No excerto a seguir, é possível observar essa construção do lumbersexual de maneira mais precisa.
Excerto 3: Lenhador com sentimento: com vocês, o lumbersexual
Homem atual tem barba grande e pose de machão, mas gosta de cozinhar e cultiva a gentileza
RIO – Eles poderiam ter saído de um bosque. Usam botas, têm a barba comprida (é o detalhe mais marcante) e o cabelo aparado. Gostam de cerveja artesanal, natureza e têm uma brutalidade na medida. O novo tipo de homem que saiu dos Estados Unidos (em Nova York, bairros como Brooklyn e Williamsburg estão cheio deles, e na Valencia St, em São Francisco, estão aos montes) é uma espécie de lenhador urbano, capaz de gastar fortunas em barbearias. Definitivamente, o tipo da vez parece saído de ‘Game of Thrones’.
Na Barbearia Retrô, em São Paulo, Alex Peres passou a atender 50 lenhadores por dia. Desde que a moda pegou, em vez de cortar as barbas, ele anda ensinando como cultivá-las: tem que aparar as pontinhas, lavar, pentear e hidratar. O lenhador da cidade tem seus cuidados.
–Já usam o termo lenhador para definir como querem a barba. Avisam para eu não cortar demais. No cabelo, querem o militar chique, bem batidinho, para destacar a barba — conta Alex. — Uma barba pode demorar de seis meses a um ano para encorpar, por isso eles preferem vir a um especialista a tentar ajeitá-la em casa e estragar tudo – avisa ele. [...]
Os novos lenhadores não cortam lenha, é verdade, mas empregam sua força na marcenaria, produzem orgânicos e cozinham (o chef Alex Atala já aderiu ao estilo).
Fernando Blower, 32 anos, dono do Meza Bar, está há um ano cultivando a barba. Antes, ia ao cabeleireiro a cada três meses. Agora, bate ponto por lá todo mês. Foi o seu barbeiro que avisou: ‘essa barba é de lumbersexual’. [...]
Além disso, Fernando conta que o tipo atrai as mulheres por transmitir segurança.
–Sou grosso, bato na mesa, piso forte e ao mesmo tempo sou carinhoso. Não se pode perder a gentileza – garante ele (Breves, 2015, grifos do autor).
Os sentidos sobre a virilidade do lumbersexual, aqui concebido como um objeto de discurso, acabam por apagar a noção de virilidade atrelada à violência (Farge, 2013), pois apontam para a construção de um sujeito viril, mas, ao mesmo tempo, gentil e afável (‘brutalidade na medida’, ‘tem pose de machão, mas gosta de cozinhar e cultivar a gentileza’). Pensando com Foucault (2009), podemos constatar que ocorre uma interdição de uma virilidade cuja rudeza se confundiria com atos de violência, inclusive contra a mulher, por exemplo, dada a discussão atual empreendida acerca dessa questão. A brutalidade, neste caso, ultrapassaria os limites do politicamente correto, o que nos remete ainda à consecução de uma vida saudável e sem agredir a natureza (‘produzem orgânicos e cozinham’). Nada que possa nos reportar à função típica do lenhador: cortar árvores! Assim, no título ‘Lenhador com sentimentos’, tem-se uma tentativa de elidir a brutalidade da figura do lenhador, realocado para o campo do imaginário. ‘Os lenhadores da cidade’, consoante explicita uma das vozes de representantes desse estilo (registre-se para o funcionamento das modalidades enunciativas, neste ponto), são dotados de uma virilidade meticulosamente calculada, com traços que nos remetem à sensualidade, a um objeto de desejo (Bard, 2013, p. 116-117), a ser mobilizada em situações circunscritas: “Sou grosso. Bato na mesa, piso forte e ao mesmo tempo sou carinhoso. Não se pode perder a gentileza”.
Outros enunciados presentes no excerto anteriormente expresso sugerem que o lumbersexual é extremamente cuidadoso em relação à aparência (‘capaz de gastar fortunas em barbearias’). A forma meticulosa de cuidar da barba (‘cultivando a barba’), considerando as exigências em torno desse atributo, pois não se trata de uma barba qualquer, enxerta o lumbersexual numa relação de contiguidade com o seu antípoda: o metrossexual. A diferença entre ambos parece residir basicamente na ausência ou não de pelos. Eis o funcionamento das grades de especificação (Foucault, 2010), conforme já destacamos, dado que nos possibilita agrupar e associar objetos de discurso. Além disso, é possível perceber o modo por meio do qual o corpo do lumbersexual, mais precisamente o enfoque certeiro nos pelos da barba, delineia a constituição de traços viris, ressignificados por meio de um certo eufemismo na retomada de uma virilidade agressiva. Tem-se, em síntese, uma virilidade recriada sob a égide de um cuidado indispensável com o corpo, com as roupas e com a aparência. Nessa lógica, Sant’Anna (2014) lembra-nos de que o corpo se transformou em algo tão importante, complexo e sensível quanto outrora fora a alma. O aspecto crucial conferido ao corpo do sujeito lumbersexual faz aflorar essa preponderância da virilidade inseparável de uma natureza corpórea.
Para finalizar este trabalho analítico, observemos o cartum a seguir (Figura 1), publicado no site do Jornal Folha de S. Paulo (http://www1. folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/#29/4/2015, recuperado em 11, janeiro, 2015).

A posição sujeito que enuncia no cartum (Figura 1) procura desfazer a construção do lumbersexual associada de modo biunívoco à imagem do lenhador. Para tanto, temos, na materialidade imagética, o olhar aflito de uma moça, a quem o pseudo lumbersexual se refere, utilizando o tratamento de ‘meu amor’, ao ser informada de que a fantasia em torno do lumbersexual havia se dissipado. Ao confessar que seria só um lenhador, o sujeito opera uma cisão ou uma não correspondência entre o lumbersexual e o lenhador, haja vista a separação entre o glamour daquele e a habitualidade deste último. Não se trata apenas de vestir-se, nos moldes de um lenhador, mas de apresentar outras peculiaridades, como especificamos anteriormente. A aparência desajeitada do lenhador, alheia às exigências do dispositivo da moda, hiperbolizada por meio do exercício da função enunciativa no cartum, não condiz com a assepsia da imagem ‘desarrumada’ do lumbersexual. Tem-se, mais uma vez, a atuação de saberes da moda, designando quais sujeitos podem ser inscritos na categoria do lumbersexual.
Haja vista a circulação de discursos em torno do lumbersexual, a função enunciativa do cartum, antenada com os últimos acontecimentos da mídia, produz, num domínio associado, efeitos de sentido que, em certa medida, intentam desarticular e/ou desconstruir todo o modismo que norteia a irrupção do lumbersexual e a memória de virilidade por ele evocada. Podemos corroborar, portanto, que, a partir do cartum, é possível vislumbrar outros modos de construção do lumbersexual como um objeto de discurso, não prescindindo de vincular-se à multiplicidade das coisas ditas, denotando, assim, o princípio da exterioridade dos enunciados.
Conclusão
A fim de analisarmos a ebulição de discursos sobre o lumbersexual, foi necessário empreender a tarefa de ouvir o que já foi dito, nos termos de Foucault (2008), tendo em vista a retomada, no terreno pantanoso e íngreme da história, de formas de conceber a virilidade, característica que constitui uma regularidade enunciativa no processo de construção do estilo e do sujeito lumbersexual. Nesse intento, ancorados nas reflexões suscitadas acerca de uma história da virilidade, lançamos um olhar retroativo sobre os processos que fizeram emergir o sujeito viril, dos quais a invenção do lumbersexual constitui uma das estratégias, no cerne das práticas e dos discursos da atualidade. Desde a virilidade dos antigos, passando pela consolidação da virilidade em campos como o exército, até chegarmos às mutações da virilidade contemporânea, foi possível mostrar um breve enquadre histórico-cultural dessa construção e dos discursos que a sustentam. Seguimos, portanto, a perspectiva de Fischer (2013), segundo a qual não se trata de descrever a verdade ou o sentido do discurso, mas, sobretudo, de fazer a sua história.
As práticas que atrelam a figura do lumbersexual a todo um imaginário em torno de uma virilidade original, não prescindindo de imbuir-se com os saberes e poderes do dispositivo da moda, parece constituir aquilo que Courtine (2013) denomina de crise endêmica da virilidade. Para esse autor, desde os primórdios, a virilidade necessitou ser constantemente provada, marcada em atos e condutas e corporificada em ações. Isso pode explicar, portanto, o retorno à virilidade, ao ‘machão’, em face das espantosas mutações dessa categoria na atualidade. No entanto, conforme defendemos ao longo do texto e, inclusive, reiteramos nas análises, os saberes que fazem emergir o lumbersexual estão na mesma ordem daqueles que asseguram o funcionamento e a criação de imagens masculinas, até então consideradas antitéticas, como a figura do metrossexual. Essa curiosa relação entra em jogo nos modos como os enunciados se imbricam, negam-se, excluem-se, na tessitura do discurso.
Nas formas a partir das quais o lumbersexual é dado a ver, nos discursos da mídia, o trabalho analítico apontou para a formação dos objetos e das modalidades enunciativas, alicerçada nos saberes provenientes do dispositivo da moda, na medida em que são apregoados determinados modos de vestir-se e de portar-se, considerados tendências e looks do momento. Esses modos estratificam o lumbersexual, por meio de procedimentos de exclusão/inclusão, que determinam quem pode ser visto e reconhecido como lumbersexual, bem como demarcam a relação entre o corpo e a construção do sujeito viril, nas descontinuidades da história.
Além disso, a posição do sujeito que enuncia nos discursos analisados varia, porquanto constatamos tanto posições que informam acerca do modismo lumbersexual, como posições que atestam, criticam, questionam (no caso do cartum) esse objeto de discurso. A despeito dessa variação nos planos de fala (Foucault, 2010), a questão principal a ser posta recobre uma problematização nas práticas e nos discursos que, no decorrer da história, dizem daquilo que somos e/ou que estamos nos tornando, no interior dos dispositivos de poder e de saber. Afinal, o que é ser viril hoje? A insólita combinação da barba com o hidratante pode nos fornecer pistas de uma condição viril na atualidade.
[ao dizer que campanha eleitoral era uma ‘luta para machos’ e ser acusado de machista por uma deputada]
Não é nada disso, minha filha. Macho hoje é uma palavra unissex (Neves, 1993, p. 103, grifos do autor)
Si nos coleos haberemus [Se tivéssemos colhões] Petrônio (apud Tosi, 2000, p. 63).
Referências
Bard, C. (2013). A virilidade no espelho das mulheres. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 3, p. 116-153, Noéli C. de Mello Sobrinho e Thiago de Abreu e Lima Florêncio, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Bertaud, J. P. (2013). O exército e o brevê de virilidade. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 2, p. 74-152, Noéli C. de Mello Sobrinho e João Batista Kreuch, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Breves, L. (2015). Lenhador com sentimento: com vocês, o lumbersexual. Recuperado de http://ela.oglobo. globo.com/moda/lenhador-com-sentimento-com-voces -lumbersexual-15008642
Carol, A. (2013). A virilidade diante da medicina. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 3, p. 35-81, Noéli C. de Mello Sobrinho e Thiago de Abreu e Lima Florêncio, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Corbin, A. (2013). A virilidade considerada sob o prisma do naturalismo. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 2, p. 13-33, Noéli C. de Mello Sobrinho e João Batista Kreuch, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Corbin, A., Courtine, J. J., & Vigarello, G. Prefácio. (2013). In A. Corbin (Org.), História da virilidade (v. 1, p. 7-9, Francisco Morás, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Courtine, J. J. (2013). Robustez na cultura: mito viril e potência muscular. In A. Corbin, J. J. Courtine, G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 3, p. 554-578, Noéli C. de Mello Sobrinho e Thiago de Abreu e Lima Florêncio, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Farge, A. (2013). Virilidades populares. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 1, p. 495-523, Francisco Morás, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Fischer, R. M. B. (2013). Foucault. In L. A. Oliveira (Org.), Estudos do discurso: perspectivas teóricas
Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: nascimento da prisão (Raquel Ramalhete, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Foucault, M. (2008). O nascimento da clínica (Roberto Machado, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.
Foucault, M. (2009). A ordem do discurso (19a ed.), São Paulo, SP: Edições Loyola.
Foucault, M. (2010). A arqueologia do saber (Luiz Neves, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.
Izquierdo, T. (2014). Tendência "lumbersexual" chega ao Brasil e propõe visual rústico. Recuperado de http://vejasp. abril.com.br/materia/tendencia-lumbersexual-chega-ao-brasil/
Lipovestky, G. (2005). O império do efêmero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas (Maria Lucia Machado, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
Mandressi, R. (2013). O calor dos homens – virilidade e pensamento médico na Europa. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 1, p. 264-292, Francisco Morás, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Milanez, N. (2008). Corpo, depilação masculina e memória: acerca do sujeito e seus sentimentos de identidade. In I. Tasso (Org.), Estudos do texto e do discurso: interfaces entre língua(gens), identidade e memória (p. 129-142). São Carlos, SP: Claraluz.
Milanez, N. (2011). Materialidades da paixão: sentidos para uma semiologia do corpo. In C. Piovezani, L. Curcino, & V. Sargentini (Orgs.), Discurso, semiologia e história (p. 197-220). São Carlos, SP: Claraluz.
Neves, T. (1993). Macho. In R. Castro (Ed.). O poder de mau humor – uma antologia de citações sobre política, dinheiro e sucesso (p. 102-103). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
O Observador. (2014). Esqueça o metrossexual. Lumbersexual é a nova moda. Recuperado de http://observador.pt/ 2014/11/19/esqueca-o-metrossexual-lumbersexual-e-nova-moda/
Paixão, H. P. (2014). Poder, saber e sujeito no dispositivo da moda. In A. F. Júnior, & K. M. Sousa (Orgs.), Dispositivos de poder em Foucault: práticas e discursos da atualidade (p. 195-220). Goiânia, GO: Gráfica UFG.
Piovezani, C., Curcino, L., & Sargentini, V. (2014). Presenças de Foucault na análise do discurso. São Carlos, SP: EdUFScar.
Sant’Anna, D. B. (2014). História da beleza no Brasil. São Paulo, SP: Contexto.
Sousa, M. B. (2009). Mito e alegoria no western americano. Revista Eletrônica Temática, 1(3). Recuperado de http://www.insite.pro.br/2009/Mar%C3%A7o/Artigo_Western_Moacir.pdf
Tosi, R. (2000). Dicionário de sentenças latinas e gregas (2a ed., Ivone Castilho Benedetti, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
Vigarello, G. (2013). A virilidade, da Antiguidade à Modernidade. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade (v. 1, p. 11-16, Francisco Morás, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
Witzel, D. G., & Kogawa, J. M. M. (2014). Respostas a uma urgência: a medicalização da virilidade no século XX. In A. F. Júnior, & K. M. Sousa (Orgs.), Dispositivos de poder em Foucault: práticas e discursos da atualidade (p. 149-170). Goiânia, GO: Gráfica UFG.
Autor notes
franciscovieirariacho@hotmail.com