Literatura

Transgressão feminina em Crônica da casa assassinada: uma análise sobre Nina e Ana

Female transgression in Crônica da casa assassinada: an analysis of Nina and Ana

Marcos Hidemi de Lima
Universidade Federal Tecnológica do Paraná, Brasil

Transgressão feminina em Crônica da casa assassinada: uma análise sobre Nina e Ana

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 38, núm. 3, pp. 281-290, 2016

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 29 Novembro 2015

Aprovação: 10 Maio 2016

Resumo: Este artigo analisa a decadência moral e social dos irmãos Meneses, presente no romance Crônica da casa assassinada (2002), de Lúcio Cardoso, ao mostrar as relações tumultuosas entre seus integrantes, sobretudo as atitudes transgressoras de Nina, as quais contaminam de igual maneira a austera e enigmática Ana, levando à destruição dos valores patriarcais prezados pelo clã dos Meneses.

Palavras-chave: romance brasileiro, figuras femininas, lógica masculina.

Abstract: This article examines the moral and social ruin of the Meneses brothers, in the novel Crônica da casa assassinada (2002), by Lúcio Cardoso. It shows the tumultuous relationships between the members of this family, especially the offending attitudes of Nina, which also contaminate the austere and enigmatic Ana, resulting in the destruction of patriarchal values prized by the Meneses family.

Keywords: Brazilian novel, female characters, male logic.

Introdução

Poucos são os romances nos quais é possível encontrar uma atmosfera densa, desesperadora, angustiante e sufocante, como em Crônica da casa assassinada (2002), do escritor mineiro Lúcio Cardoso, em que se pode presenciar um andamento de tragédia grega, à parte sua vinculação a uma linha de catolicismo cuja divindade caracteriza-se por ser colérica e vingativa. E, decerto, em nenhum dos outros romances desse autor existe nitidamente a descrição da bancarrota da esfera patriarcal, o esfacelamento claramente visualizado do poder masculino, resultado da ação empreendida por uma mulher, agindo conscientemente - o que lhe vai custar a própria vida - para mostrar as contradições da ordem de valores representada pelos irmãos Meneses.

Os acontecimentos com algumas personagens desse romance assemelham-se às desgraças da tragédia grega. Um bom exemplo de desventura é o que ocorre com Édipo, do ramo familiar dos amaldiçoados Labdácidas. Segundo Marilena Chauí, a existência da tragédia grega configura-se no antagonismo entre a ordem divina e humana, isto é, no embate do ser humano que se percebe sujeito de suas ações contra sua própria consciência de que sua vida deriva de decisões desconhecidas de uma ou várias divindades. A tragédia nasce, portanto, dessa “[...] contradição entre a vontade livre e responsável e o sentimento de cumprir um destino inevitável” ([1990?], p. 60).

A família Meneses configura-se nesses moldes trágicos. Maria Sinhá e Malvina, figuras femininas já extintas no presente da narrativa, atuam semelhantemente a deusas tutelares sobre o clã. De acordo com o que os habitantes da Chácara narram em seus textos, antes da chegada de Ana e Nina, sempre foram a tia-avó e a mãe dos irmãos Meneses que detiveram o poder. Portanto, a tentativa de Demétrio e Valdo contrariarem essa força feminina que preside a família - e que conta com a presença real de Nina e Ana - acaba por resultar no infortúnio de todos.

A despeito de não haver explicitamente nas partes que compõem a obra uma separação nítida entre fatos anteriores e posteriores - pelo contrário, as narrativas embaralham o tempo cronológico, de modo a permitir que fluam as percepções vinculadas a um tempo psicológico - cumpre ressaltar, apenas para permitir uma melhor compreensão do romance, que este se divide em dois momentos, separados entre si por um período de quinze anos, abordando o difícil convívio de Nina com os membros da Chácara dos Meneses, e todos os fatos são reconstituídos por meio de relatos, confissões, cartas, diários etc., efetuados pelas personagens da trama.

As várias narrativas permitem que o leitor perceba o apego dos Meneses às convenções das velhas famílias patriarcais, embora a decadência econômica corroa lentamente tais alicerces. Enfim, a erosão moral das tradições mantidas pelo clã desencadeia-se com a chegada de Nina, bela, sedutora e estranha mulher. Ela provoca um misto de paixão platônica e raiva em Demétrio; leva o jardineiro Alberto ao suicídio depois de viver um relacionamento amoroso com ela; acaba instando a cunhada Ana - por despeito e ciúme de sua beleza - a também envolver-se com Alberto; reacende o antigo desejo de Timóteo em destruir os valores cultivados pela família.

O segundo momento do romance transcorre a partir do instante em que Nina, depois de quinze anos ausente da Chácara, sem recursos financeiros e apresentando os primeiros sintomas da doença que irá matá-la, retorna ao convívio do marido, de André (o suposto filho que mal pôde conhecer ao optar por ficar no Rio de Janeiro), de Timóteo e de Ana e Demétrio. Ali, sob o olhar vigilante de Ana, da qual não teme ocultar nada, Nina passa a ter um relacionamento presumidamente de caráter incestuoso com André, até que haja a revelação final de que o rapaz é filho de Ana e do jardineiro Alberto. Enquanto mantém a relação com André, Nina definha pouco a pouco devido a um câncer e morre com o corpo tomado de ulcerações pútridas.

Além disso, ao mesmo tempo em que o romance apresenta uma personagem feminina afrontando o poder masculino e patriarcal, de modo a encaminhá-lo para um vertiginoso fim, a narrativa mostra que esse confronto entre um poder esfacelado, dubiamente representado pelos três irmãos, ainda consegue arrastar na sua queda a figura feminina, como se o enfrentamento desta tivesse que sofrer alguma forma de punição. Portanto, a metáfora da ‘casa assassinada’ criada por Lúcio Cardoso, com todo seu poder sugestivo, apreende tanto a demolição física da moradia dos Meneses quanto a destruição de seus valores morais.

Crônica da casa assassinada leva, pois, o leitor para dentro de uma enorme casa de fazenda, na fictícia cidade de Minas Gerais chamada Vila Velha, onde se gesta uma espécie de paralisia que parece contaminar quase todos seus moradores, como se sentissem esmagados pelo presente obsedante, como se uma pestilência impregnasse o ar (e o mau cheiro exalado do câncer carcomendo o corpo de Nina metaforizará isso), como se ali, quase que enclausurados na casa, impossibilitados de qualquer ação, Valdo, Demétrio, Timóteo e Ana sentissem o câncer da decadência da aristocracia rural mineira corroendo suas mais caras tradições, seu antigo prestígio, seus faustos de outrora.

Sob domínio feminino

Ao longo do romance, evidencia-se que, desde remotas épocas, o clã dos Meneses foi assinalado pela presença de figuras femininas mais preparadas para lidar com o núcleo masculino. Se fosse possível montar a árvore genealógica dessa família, constatar-se-ia a existência da figura da tia-avó Maria Sinhá, dentro de um mundo cuja esfera girava em torno de uma ótica patriarcal. Esta, ascendente dos Meneses atuais, comportava-se como um varão, quando o padrão existente convergia para a figura do senhor impondo sua vontade sobre tudo e todos.

Ora, como Maria Sinhá ocupou o centro de onde irradiava o poder, tal circunstância acabou marcando indelevelmente as gerações futuras, tanto que Malvina, sua sobrinha e mãe dos Meneses atuais, também se revela, no pouco que é mostrada na narrativa, como uma mulher determinada e dominadora. Entretanto, tais qualidades percebidas nessas duas mulheres não oferecem subsídios para Demétrio, Valdo e Timóteo afirmarem-se como representantes da família patriarcal.

Ao se levar em conta que Maria Sinhá viveu quando ainda estava vigente a ordem escravocrata e os fatos transcorridos em Crônica da casa assassinada pertencem ao início do século XX, num ambiente rural ainda fortemente marcado pelos velhos hábitos patriarcais, pode-se conjecturar que ambas as personagens viram-se obrigadas a comandar a família, decerto devido à ausência masculina, que tanto podia estar relacionada à morte, ao afastamento do marido ou mesmo à opção de não ter companheiro, que é o caso da tia-avó dos Meneses. A respeito desse domínio patriarcal exercido por mulheres, observa Maria Lúcia Rocha-Coutinho (1994, p. 68) que: “Tais mulheres exerceram o mando patriarcal quase com o mesmo vigor dos homens e, às vezes, até com mais energia do que seus maridos e filhos [...]” - e essa situação de fraqueza de domínio está patente na inabilidade de liderança dos irmãos Meneses.

Os três filhos de Malvina Meneses mostram-se incapazes de ocupar o núcleo familiar, devido à falta de compreensão de que o lugar do homem nessa família sempre foi ocupado por mulheres, o que deveria levá-los a buscar uma adaptação a uma forma de comando mais afinada com a presença feminina que sempre presidiu o espaço do poder ali. Contudo, tal adaptação revela-se a priori basicamente inviável, porque isso passaria pela compreensão da psicologia feminina, algo que Demétrio e Valdo julgam inadmissível e que o homossexual Timóteo tenta pôr grotescamente em prática, fantasiando-se com as roupas da mãe e negaceando seu corpo de homem.

A solução mais plausível para a situação incontornável em que Demétrio e Valdo se encontram passa pelas instâncias do matrimônio. Trazer para a Chácara esposas moldadas na fôrma dos Meneses, se não soluciona a falta de uma sucessão ‘naturalmente’ feminina no comando do clã - e é óbvio que repudiam a possibilidade dessa solução -, pelo menos possibilita a ambos a inauguração, na possível geração de descendentes, de uma futura hegemonia masculina. No entanto, tais planos tomam contornos inesperados, porque existe uma série de fatores que frustram as expectativas dos Meneses.

Um desses fatores vem a ser a luta surda entre Valdo e Demétrio para que um deles esteja à testa da família, embora este último julgue que deva ocupar tal posição por ser o filho mais velho, endossando velho hábito das famílias patriarcais. Outro fator que inviabiliza a sonhada hegemonia masculina dos Meneses decorre das mulheres escolhidas para esposas, já que tanto Ana quanto Nina subvertem as regras que imperam na Chácara. Como se depreende da narrativa, Ana foi moldada por Demétrio, desde muito jovem, para mimetizar os valores da família Meneses e, no plano da aparência, ela parece endossar as lições recebidas do marido. No que concerne à Nina, havia uma expectativa familiar de que Valdo a transformasse em alguém semelhante à Ana, entretanto Nina não se dobra a essa imposição, tampouco tem a dissimulação da cunhada.

Manipulada antes mesmo de casar por Demétrio, Ana tornou-se uma Meneses tanto no sobrenome quanto nas atitudes calculadas. Essa necessidade de um grupo de indivíduos terem o mesmo sobrenome caracteriza a família patriarcal. A propósito, no romance, não há nenhuma alusão ao sobrenome de Ana, evidenciando sua desindividualização e reforçando seu pertencimento ao clã dos Meneses. Elisabeth Badinter observa que

Na medida em que o sobrenome faz parte integrante da personalidade de um indivíduo, sua mudança é vivida como alienação, uma perda de identidade (1986, p. 205).

É justamente isso que sucedeu à Ana: de tal modo ficou identificada ao nome dessa família que sua vida anterior ao casamento ficou totalmente anulada. A chegada, porém, da bela e fulgurante Nina ao solar dos Meneses provoca-lhe uma revolução interna, um desejo de afirmar-se com sua própria identidade, levando Ana a um envolvimento com o jardineiro, que resulta no nascimento de André, o filho a quem jamais revelará ser a mãe.

A violação empreendida por Ana contra a moldagem que havia sofrido até o momento da chegada de Nina à Chácara é reveladora da tomada de consciência da personagem. Ela insurge-se contra a delimitação de que seu espaço seja apenas o universo privado onde a ‘privam’ de quaisquer manifestações de alteridade. Ana somente pode ser e comportar-se como uma Meneses conforme concebe Demétrio. Esquece-se, todavia, o marido que as mulheres Meneses são por si só subversivas, e é justamente essa consciência que modifica Ana, mantendo-a doravante “[...] ao mesmo tempo no centro e na margem” (Rocha-Coutinho, 1994, p. 18) da família.

No seu silêncio contrafeito, no seu procedimento hierático, na sua aparente subserviência aos valores dos Meneses, Ana constrói outra forma de empoderamento. E este é tão sutil que oculta as transgressões que mais tarde servirão de combustível para a destruição da família. Ela emprega a mesma estratégia feminina de exercer em meio à sombra um tipo de poder imperceptível. Rocha-Coutinho defende a ideia de que as mulheres construíram poderes paralelos à ordem patriarcal, muitas vezes imperceptíveis aos olhares masculinos. Acrescenta Rocha-Coutinho que

[...] as mulheres ao longo dos anos foram tecendo modos de resistência a esta opressão masculina, formas de exercer um certo controle sobre suas vidas a despeito de uma situação social tão adversa (1994, p. 19).

Ao contrário de Ana, Nina possui um espírito claramente transgressor que vai pô-la em choque com a austeridade vivida na Chácara, encarnada principalmente por Demétrio e Ana. Portanto, as expectativas em relação a Nina de que rompa com a atmosfera doentia reinante na morada dos Meneses efetivamente ocorre. Tal circunstância o leitor acompanha ao longo da narrativa, constatando ter sido ela a primeira a relacionar-se com o jardineiro, dele engravidando e tendo um filho. Em razão disso, acaba expulsa por Demétrio da casa, apontada como suspeita de adultério. No entanto, retorna anos mais tarde à Chácara e mantém, num misto de vingança e paixão, uma relação incestuosa com André, supostamente seu filho.

Enfim, o principal fator que frustra os Meneses a consolidar uma lógica masculina deriva justamente de uma falha bastante perturbadora na árvore genealógica do clã, em decorrência de André e Glael não terem quaisquer vínculos de consanguinidade com Demétrio e Valdo, ambos representantes do poder masculino. Ademais, esta última personagem, Glael, considerada o verdadeiro filho de Alberto e Nina, não tem participação alguma na trama, somente citado nas derradeiras confissões de Ana uma única vez - dado irrelevante na narrativa que artisticamente a enfraquece.

Há que observar que Ana, Nina e Alberto, cujos relacionamentos resultaram na suposta descendência dos Meneses, são todos elementos da periferia social, sujeitos estranhos aos laços de sangue que unem o clã. Contudo, por conta de seus atos ocultos sob um denso véu de mentiras e simulações, instauram a destruição de valores consagrados do patriarcalismo, rompendo tão violentamente os círculos concêntricos que envolvem seu núcleo, de modo a provocar não só a intensificação da desagregação dos Meneses, mas também a de todos os demais membros ligados a essa família.

Os três são assinalados pela peculiaridade de não serem elementos de dentro do círculo dos Meneses. De certa forma, são estrangeiros a essa ordem familiar. Como se verifica na narrativa, as duas mulheres adentraram o clã por meio do casamento, ao passo que o jardineiro é um mero serviçal dentro dos domínios da Chácara, ali ocupando posição bastante periférica. No entanto, sem que efetivamente tenha havido a urdidura de uma vingança contra o poder representado pelos Meneses, o trio se une numa relação adúltera cujas implicações resultam na destruição dos valores hipocritamente mantidos pelo clã.

De certa forma, essa desestruturação dos Meneses deriva de uma vingança engendrada de dentro da órbita familiar por Timóteo, que congrega em si mesmo e nas suas atitudes o germe da subversão contra a tênue ordem que ali impera. A vingança urdida longamente por ele só toma efetivamente corpo com o adultério e o presumido incesto cometidos por Nina, promovendo definitivamente a destruição dos valores familiares aos quais os Meneses se apegam, além de retirar os véus que encobriam a atmosfera de hipocrisia reinante nas relações familiares. Sem ser manipulada pelo desejo destrutivo de Timóteo, mas movida por sentimentos como ciúme, despeito e até mesmo uma atração homossexual por Nina, a moldada Ana também atenta contra os valores patriarcais, ao manter também um relacionamento proibido com Alberto.

No plano da tragicidade dos acontecimentos que cercam Nina e Ana, as consequências da desmedida das duas mulheres vão ser metaforizadas pelo câncer que lentamente corrói o corpo da primeira e pela morte cheia de remorsos da última. Observa-se aqui semelhança com a tragédia grega: banimento e morte de seus habitantes e purificação da casa. Obviamente, as marcas da desgraça que recaem sobre ambas também se estendem aos demais membros da família, ou seja, se as duas promoveram a própria destruição, ao confrontarem valores solidamente arraigados entre os Meneses, também revelaram a ruína existencial dos demais membros do clã cujos rostos se ocultam por detrás de uma máscara farisaica.

Nina, a destruidora

A história de Nina constrói-se sobretudo com a voz de outras personagens que tratam a seu respeito, ou melhor, são discursos que visam a retratar como sua morte coincide com a ‘morte’ da Chácara dos Meneses, leia-se a eliminação dos últimos valores patriarcais não totalmente cultivados por esse clã. Na realidade, ao longo da narrativa, existe uma leitura de Nina efetuada por diversas pessoas de seu círculo de convivência, e todos esses olhares dirigidos a ela convergem sempre para o mesmo ponto: captar sua destruição existencial.

Inscrita nos relatos de todas as personagens do romance, a história dos amores, desilusões e morte de Nina é recuperada mediante a escrita, com toda a força que a palavra possui de revelação e de obscurecimento, conforme o uso intencional ou não de informações que visem a destacar uma Nina femme fatale ou uma Nina desesperadamente lutando contra a morte. Diante dessas duas variantes, o leitor vai perceber que nessa figura opera uma multiplicidade de seres, toda ela esgarçada pela incompletude das confissões, cartas, diários etc., toda ela construída de lacunas, suspensões e entreditos, sem jamais se revelar inteira no decorrer das narrativas, mas sim uma Nina descaracterizada pela sobreposição de várias palavras.

Deve-se a um sujeito não claramente nomeado na obra a Nina fragmentada dos textos. Esse narrador-compilador que, muitos anos depois, busca elucidar os eventos passados da Chácara dos Meneses, revela-se alguém que não só recolhe depoimentos, assim como seleciona o que deve aparecer e o que deve ser apagado sobre Nina e as outras personagens. Apesar de tudo isso, esse sujeito que ordena, suprime e apresenta anotações posteriores efetuadas nos relatos, não se mostra suficientemente capacitado para esclarecer (talvez não o queira) as dúvidas dos leitores. Muito pelo contrário, mantém instaurada a tensão existente nos relatos, deixando em suspenso revelações sobre os desdobramentos posteriores das vidas de Valdo ou André, pois ambos - atados a Nina pela realização amorosa - buscam ressignificar a crise existencial que advém de sua morte, redirecionando suas vidas fora do ambiente perturbador da Chácara, como se depreende dos desdobramentos finais do romance.

Portanto, a construção de Nina fica consignada a uma descrição que a mostra fragmentária e incompleta, tal qual o estilo das narrativas caracteristicamente fracionadas que há ao longo do romance. Todavia, mesmo que a apreensão dessa personagem seja turbada pela falta de uma representação plena, ainda assim é viável perceber que sua atuação dentro dos domínios dos Meneses evidencia-se fundamentalmente pela transgressão às normas rígidas que imperam dentro daquele espaço. Transgressão acintosa de quem vem de fora, de elemento pertencente à periferia. Cabe a Nina e à cunhada a responsabilidade pela dissolução do clã, ou melhor, pela interrupção da continuidade dos Meneses, porque ambas não geram os descendentes almejados.

Em A mulher escrita, Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão comentam que nas obras Lucíola, O primo Basílio e Terras do sem fim há o predomínio de

[...] uma personagem feminina que transgride uma interdição do código moral no plano da sexualidade, realizando assim uma ruptura, que supõe a subversão de uma determinada ordem (1989, p. 49).

No romance de Alencar, a transgressão de Lúcia relaciona-se à prostituição da heroína. Luísa e Ester, as personagens dos romances de Eça de Queiroz e Jorge Amado, rompem o código moral por meio do adultério. De modo análogo, esse enfoque das duas autoras permite a compreensão de Nina, visto que ela fere de morte o mundo patriarcal ao ter um relacionamento adúltero e manter uma ligação presumidamente incestuosa.

Embora tanto Crônica da casa assassinada quanto seu autor estejam frequentemente vinculados aos valores de uma ideologia de matriz católica - e não é difícil localizar marcas da presença dessa religião no enredo e nas personagens -, existem fortes componentes nesse romance que permitem vinculá-lo a alguns elementos da tragédia grega. Deve-se, pois, de início, compreender que na obra transcorre uma forma de catarse, protagonizada pela agonia e morte da ‘estrangeira’ Nina, cuja chegada à Chácara dos Meneses - onde seus moradores encerram e cultuam hipocritamente um aparente mundo em que a ordem e o equilíbrio preponderam - instaura um universo caótico contra os valores patriarcais ali tão estimados. Entretanto, esse efeito catártico que ocorre com a morte de Nina não sobrevém da expiação pelos próprios erros - o que remeteria à expiação dos pecados segundo a ótica cristã -, mas seu papel acaba por ser o de remir as falhas cometidas justamente pela família que de má vontade a acolheu.

Por ter violado a estabilidade da ordem patriarcal que supostamente vigora na Chácara e ter feito aflorar a força feminina que assinala o clã, Nina padece pelas faltas dos Meneses, sentindo a putrefação do próprio corpo como se fosse o bode expiatório de si e dos demais. Situação semelhante é o que Castello Branco e Brandão frisam nos romances de Alencar, Eça e Jorge Amado. Nessas obras, as heroínas são punidas por meio de um processo de autodestruição, isto é, interiorizam um “[...] código culpabilizante e se pune[m] no próprio corpo” (Castello Branco & Brandão, 1989, p. 53): Lúcia redime-se pela morte, Luísa e Ester acabam por se destruir.

Seguindo essa linha de raciocínio de que o papel de Nina vem a ser a expiação dos erros cometidos pela família Meneses, é possível fazer uma aproximação com algumas características da tragédia grega, embora não as endossando totalmente, mas apenas alguns de seus elementos. A primeira observação de qualquer leitor da mitologia grega é que o guénos, ou seja, os elementos familiares que se ligam consanguineamente uns aos outros são os que deverão pagar pelos erros cometidos pelos ancestrais.

A título de exemplo, pode-se tomar a desgraçada existência de Édipo como escoadouro das múltiplas maldições que recaem sobre os Labdácidas (nome derivado de Lábdaco), ramo familiar a que a personagem pertence. Essa família foi, desde tempos imemoriais, amaldiçoada pelos deuses. Caberá ao jovem Laio redespertar a ira divina quando, exilado na corte de Pélope, tenta seduzir Crisipo, filho de seu anfitrião, cometendo grave hamartia contra os deuses, porque sua ação representa a inauguração da relação homossexual entre os humanos - prerrogativa que só cabia aos deuses olímpicos. Noutras palavras,

[...] o futuro rei dos tebanos acabou ferindo os deuses e praticando um amor contra naturam. Miticamente, a pederastia se iniciava na Hélade (Brandão, 1987, p. 237).

Com o suicídio do filho, a maldição de Pélope transforma-se na conhecida história da peça de Sófocles Édipo Rei: Laio vai ter um filho que o matará e dormirá com a própria mãe.

Embora não ligada consanguineamente aos Meneses, Nina não somente sofre na carne pelas falhas que os três irmãos apresentam como também acaba purgando pelas falhas dos ascendentes dos Meneses. E são muitos os ‘desvios’ da família Meneses que cumpre a Nina expiar. Abarcam a soberba de Demétrio, a indecisão e a pusilanimidade de Valdo, as tendências homossexuais de Timóteo, o orgulho e a atitude centralizadora de Malvina e a subversão ao mundo feminino protagonizado por Maria Sinhá. Tais ‘desvios’ revelam-se ações que, desde o passado, maculam essa família e marcam-na com o signo da destruição.

A agonia e morte de Nina - que passa pela lenta putrefação do próprio corpo - desencadeiam também idêntica situação na casa, como se esta também fosse um organismo vivo. E a agonia da casa comunica aos seus moradores situação análoga: na desmedida de suas ações, as consequências não tardam a suceder. Todavia, em vez de recaírem pesadamente sobre eles num primeiro momento, o castigo chega antes a Nina. Em outras palavras, ela catalisa as falhas cometidas pelas sucessivas gerações de Meneses e sofre na carne por todo o clã, sobretudo porque representa o poder destrutivo e desagregador da mulher nessa família.

Não significa que Valdo, André, Ana, Timóteo e Demétrio não recebam seu quinhão de sofrimento, mas nenhum deles é tão duramente atingido quanto Nina. Pode-se constatar que essa personagem expia pelos demais, e seu sofrimento dá-se na própria carne: em ritmo vertiginoso o câncer corrói-lhe a carne, e todo o fulgor de sua beleza e de sua capacidade de sedução desaparecem sob a putrefação do corpo. Pode-se conceber Nina como o bode expiatório dos Meneses, visto que é sobretudo nela que recai uma espécie de vingança de uma lógica patriarcal afrontada. Em contrapartida, as outras personagens do romance, na ruína que abate os Meneses, desencontram-se primeiramente de si mesmas, depois da própria família. De certa forma, a desagregação familiar para quem vivia fechado num círculo é uma parcela pesada de sofrimento.

Além dessa marca trágica que Nina carrega, levando de roldão todos os valores patriarcais representados pelos Meneses a um processo de destruição, essa tão controversa figura feminina desvenda o aparente mundo ordenado e equilibrado que parece funcionar na Chácara, mas que não passa, na realidade, de um ambiente extremamente repressivo e caótico.

Como se observa ao longo das narrativas de Nina e nas efetuadas pelas diversas personagens da trama, sua presença dispõe simultaneamente do poder de encantar e de destruir, ou seja, Nina consegue angariar a imediata simpatia de Betty e de Timóteo; este seduzido por sua beleza estonteante e também por perceber nela a viabilidade de realizar seu sonho de destruir a própria família; aquela por simples adesão incondicional a uma bela mulher, num ambiente tão soturno como a casarão e seus habitantes.

Mas por trás dessa capacidade de sedução de Nina, há também o de uma mulher volúvel e dependente: primeiramente do pai, depois do Coronel Amadeu Gonçalves, com o qual mantém uma proximidade ambígua e, enfim, de Valdo, com o qual se casa. Ávida por riqueza e luxo, ela mantém, encoberta pela capa da dependência, uma posição de dominadora nos relacionamentos com o marido e com o Coronel. Tal atitude recrudesce quando Nina instala-se entre os Meneses, porque o clã é assinalado por um passado de mulheres que sempre tiveram proeminência sobre os homens. Daí decorre seu embate com Demétrio, pois este almeja comandar a família, e ela representa a antiga hegemonia feminina. Para atingir seu objetivo, ele efetua um apagamento das marcas femininas existentes no casarão: ordena a retirada do quadro de Maria Sinhá da sala, proíbe Timóteo de circular pela casa e, enfim, expulsa Nina da Chácara.

Aos olhos de Demétrio, Nina possui todos os ingredientes que ameaçam a consolidação de uma ordem patriarcal que nunca se efetivou entre os Meneses. Em virtude disso, a relação entre ambos vai ser permanentemente marcada pela tensão e pelas dicotomias homem/mulher, centro/periferia, campo/cidade, austeridade/liberalidade. Demais, Nina contradiz a chamada natureza feminina, isto é, a expectativa que os homens têm das mulheres. Como não se apresenta aos olhos do cunhado e nem aos dos demais como “[...] frágil, emotiva, dependente, institivamente maternal e sexualmente passiva” (Rocha-Coutinho, 1994, p. 30-31), Demétrio precisa contê-la a qualquer custo. No entrechoque desses elementos, sobressai-se, de modo confuso, um misto de ódio e paixão que ele nutre pela cunhada. Todavia, nem mesmo esses confusos sentimentos tolhem a determinação de Demétrio em tornar-se verdadeiramente o chefe do clã.

Durante o tempo de estada de Nina na Chácara, ela deixa de ser a sombra feminina que ameaça os planos de Demétrio, ao transformar-se em suspeita de manter um relacionamento adúltero com o jardineiro da casa. Esse acontecimento desencadeia a expulsão de Nina, tida até então como uma espécie de derradeira sucessora do poder feminino que sempre presidiu o clã dos Meneses. A partida da jovem, a tentativa de suicídio engendrada pelo desequilibrado Valdo e a morte de Alberto consolidam a posição de chefe da família para Demétrio, e parece enfim a vitória da ordem patriarcal. Entretanto, a semente da destruição dos Meneses apenas começava a germinar.

A transgressão de Ana

ina atinge todos os valores prezados pelos Meneses ao se envolver com Alberto, o jardineiro, do qual engravida e, quinze anos depois, volta a afrontar a ordem dessa família, quando passa a ter um relacionamento incestuoso com seu suposto filho André. Entretanto, tal interdito perpetrado por ela tem similaridade com a efetuada por Ana, sua cunhada, que também engravida do jardineiro. Uma vez que Nina sempre foi vista como uma figura deslocada do ambiente da Chácara, seja porque nunca aceitou o código ali existente, seja porque não pertence àquele mundo rural, suas ações perdem um pouco de repercussão quando comparadas às de Ana, esta, sim, totalmente absorvida pelo modo de ser dos Meneses, moldada para ser um membro da família, como de fato ela acredita ser.

Na comparação entre essas duas personagens, vale salientar que suas ações são mediadas pela lógica do favor, no sentido de utilizar a instituição do matrimônio como meio de mudança de status, embora cada uma delas valha-se desse artifício de modo diferente. Como mencionado anteriormente, Ana fora talhada por Demétrio para tornar-se uma participante do clã dos Meneses, com a anuência dos pais, decerto bastante obsequiosos de ver a filha tornar-se membro de uma família que, na região, representava prestígio e poder. Sob essa ótica, Ana não passa de uma espécie de marionete nas mãos dos próprios pais e de Demétrio, atendendo apenas às expectativas de manipulação imposta pelo futuro marido, que a molda na fôrma da resignação esperada da mulher do mundo patriarcal.

Ainda a propósito da moldagem de Ana pelo marido, a ação empreendida por Demétrio apresenta, portanto, uma falta de sintonia com os ideais modernos da sociedade. Seu modo de proceder na escolha da futura esposa revela sua ligação a práticas que estabelecem o próprio olhar como único e capacitado para avaliar a futura esposa. Isso se depreende das palavras de Ana, ao afirmar que “[...] antes do casamento, costumava visitar-me pelo menos uma vez por semana, a fim de verificar se a minha educação ia indo bem” (Cardoso, 2002, p. 103),

prova irrefutável de que o futuro marido tinha em mente modelá-la qual um autômato diante de sua figura imponente de patriarca, no que tal palavra possa sugerir de prestígio e também de soberba.

Na realidade, Ana representaria o modelo mais bem acabado dos Meneses. Por isso, porta-se de modo adequado, corroborando as expectativas que Demétrio depositou nela, desde o momento em que a escolheu como futura esposa. Dessa forma, educada pelos pais e por Demétrio desde a tenra idade para negar-se uma personalidade própria, Ana acaba ajustando a máscara dos Meneses ao seu rosto e passa a se identificar com os anseios e as culpas dessa família. Sua aceitação resignada de simulacro dos valores dessa ordem familiar fica tão evidente que Timóteo assim a define: “Você também é uma Meneses[...]” (Cardoso, 2002, p. 105), que, no contexto de onde essa fala foi retirada, simultaneamente enfatiza a crítica de Timóteo à sua despersonalização e também possui o efeito de estigmatizá-la.

Entretanto, a Ana que mimetiza o modo de ser dos Meneses também é a mesma que inesperadamente vai instalar o caos e a destruição da família, ao partir para uma relação adúltera com o jardineiro da família. Essa ação expressa sua maneira de dar vazão à sua existência recalcada, podada e medida, como a tentar encerrar a sina dessas mulheres submetidas à cultura patriarcal, que tende a permanentemente representá-las

[...] submissas e revoltadas, sempre vestidas de preto, silenciosas e impotentes, onde a resignação demonstrada nada mais é que o velamento da revolta (Albergaria, 1996, p. 688).

Essa indignação velada que atormenta Ana transborda com a chegada de Nina àquele meio familiar opressivo. Vinda de fora, portanto forasteira para os olhos dos Meneses, Nina parece surgir na casa como a personificação que chega para infringir o código de regras ali existente, cuja principal guardiã é paradoxalmente Ana. Todavia, opera-se pateticamente uma inversão dos valores que cada uma representa: todo o espírito transgressor encarnado naturalmente por Nina, assim compreendido, porém jamais aceito pelos habitantes da Chácara, de certa forma contamina irremediavelmente Ana, que havia sido, desde a infância, cooptada para transformar-se na mantenedora da ordem contra a desordem naquele ambiente sombrio da fazenda, mas que surpreendentemente rebela-se contra toda a opressão da lógica patriarcal.

A transgressão de Ana surpreende basicamente por dois motivos. O primeiro deriva do fato de ela ter sido criada para a obediência cega às determinações emanadas do núcleo patriarcal, enquanto a cunhada Nina, seu oposto e paradoxalmente seu futuro paradigma, caracteriza-se pela necessidade do confronto, logo nada mais natural seu estranhamento em relação à estrutura corrosiva e coercitiva que vigora nos domínios dos Meneses, sob a coordenação imperiosa do dividido e inconformado Demétrio. O outro motivo está intimamente ligado à promoção da desordem naquela casa que, tão somente sob a lógica da aparência, parece endossar um mundo fundado num padrão, em que entram todos os elementos ligados à lei e à ordem.

Até certo ponto, a atitude transgressora de Ana reitera a ideia de Antonio Candido (1993), expressa em ‘Dialética da malandragem’, sobre a dissolução dos extremos dos universos da ordem e da desordem, quando pessoas ou grupos sociais transitam de uma esfera a outra, valendo-se de alguns estratagemas que se transformam aparentemente em artifícios regulares, dada a circunstância de as forças repressivas também fazerem uso desses mesmos elementos fora da ordem. Vista sob esse prisma, Ana nada mais faz que repetir a desordem que impera na Chácara sob uma fachada de aparente ordenamento ou de uma hipocrisia que tudo silencia: a homossexualidade de Timóteo, a fraqueza de caráter de Valdo, a pretensa austeridade de Demétrio, contrapondo-se ao seu angustiante desejo por Nina.

Nesse romance que funciona como um libelo contra a família tradicional, é possível verificar a reprimida Ana desencadeando o caos entre os Meneses. Para contrapor a falta de rigidez dos valores na sociedade brasileira, resultando numa ética malandra, no ensaio acima mencionado, Candido alude à formação histórica diversa ocorrida nos Estados Unidos, cujas forças legais, religiosas e civis moldaram indivíduos e grupos,

[...] delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado [...] (Candido, 1993, p. 50),

tornando tais pessoas, por sua vez, resistentes a relações com outros que não pertencessem ao mesmo grupo. Tal situação pode ser verificada em Crônica da casa assassinada, em que há uma obsessão pela ordem por parte de Ana, atuando como uma forma de compensação de seu sentimento de impotência e submissão à norma familiar dos Meneses.

Ainda de acordo com Candido, o

[...] endurecimento do grupo e do indivíduo confere a ambos grande força de identidade e resistência; mas desumaniza as relações com os outros, sobretudo os indivíduos de outros grupos [...] (1993, p. 50),

circunstância visivelmente observada na relação estabelecida entre os Meneses e as pessoas que não pertencem ao seu círculo de influência. Tal forma de atitude preconceituosa contra o outro acaba sendo absorvida por Ana de forma extrema, ciosa de anular quaisquer liames com sua qualidade de ‘estrangeira’ perante os olhos dos irmãos Meneses e, obviamente, diante dos olhos desse grupo social que a cerca.

Contra essa dissimulada circunspeção reinante na Chácara, Ana se opõe porque ela foi bastante moldada por um pensamento de que os Meneses, sobretudo Demétrio, representam o ideal de família exemplar, posta acima do bem e do mal, portanto com direito de punir todos aqueles que são diferentes ou de fora. Fechados no estreito círculo da fazenda, mostrando aspereza no contato com os habitantes da cidade, envolvidos por uma aura de respeitabilidade e curiosidade, os Meneses alienam-se da realidade, fingem uma perfeição que não possuem, enfim desumanizam-se, fazendo surgir, diante do espanto de Ana, a verdadeira identidade familiar.

As considerações acima permitem a constatação de que Ana endossa a atitude arbitrária e excludente dos Meneses em relação a estranhos. Essa atitude corrobora a observação efetuada por Candido sobre a sociedade norte-americana, pouca afeita ao contato com indivíduos que não pertençam ao seu fechado círculo. Pelo menos como exteriorização de um padrão de conduta, tanto Ana quanto o clã moldam-se ao “[...] modelo bíblico do povo eleito [...]” (Candido, 1993, p. 50), que se julga superior aos demais, de modo análogo à interpretação de Candido, ao tratar dos Estados Unidos. Na realidade, o insulamento social da família funciona como uma máscara que tenta esconder a desordem que ali vigora, que Ana vai tentar desmoralizar com sua transgressão.

A princípio, ela vai concentrar esforços para que tudo e todos funcionem de acordo com o padrão familiar instituído pelo marido - que a seus olhos representa o verdadeiro espírito da família - naquela lógica que corresponde intrinsecamente a valores tais como tradição e moral. De acordo com esse pensamento de Demétrio endossado por Ana como seu também, os demais membros do clã não passam de meras contrafações, de meros embustes, quase ‘estrangeiros’ dentro da própria família que, não podendo ser expulsos, são tratados com desdém.

Entretanto, na sua primeira confissão, Ana já possui plena consciência de que o próprio marido foge àquela imagem da ordem rigidamente estabelecida, ao constatar que ele está apaixonado por Nina, ou seja, o próprio Demétrio, enquanto encarnação viva da lei e da ordem, desliza da norma para a negação da ordem, despertando nela um sentimento que passa obrigatoriamente pela necessidade de violar a falsa ordem na qual sempre havia acreditado, ou seja, a estrutura patriarcal se lhe apresenta como uma imagem deformada.

Dessa maneira, a vinda de Nina para a fazenda, com todas as implicações e impressões causadas nas pessoas, permite a Ana adquirir consciência do ridículo papel que Demétrio havia criado para que ela encenasse, mas que jamais aboliria sua real condição de ‘estrangeira’ no solar dos Meneses:

Olhei-me depois ao espelho e assustou-me a minha palidez, meus vestidos escuros, minha falta de graça. Repito, repito indefinidamente, era a primeira vez que aquilo me acontecia e eu fitava minha própria imagem como se estivesse diante de uma estrangeira [...] (Cardoso, 2002, p. 107).

Ana finalmente opta por transgredir os valores cultuados dentro do ambiente opressor da Chácara, ao perceber que também representa um corpo estranho dentro daquela família, que somente a exteriorização de seus sentimentos e de suas ações - nada mais que meras reproduções das lições obtidas do marido - tornavam-na uma Meneses aos olhos dos demais familiares e conhecidos.

Até a chegada de Nina à Chácara, Ana acostumara-se a viver sob uma obstinada subordinação ao que supunha ser o modo de existência dos Meneses. As atitudes da cunhada - que desaprova enquanto encarna o papel da legitimidade masculina que Demétrio lhe incutira - despertam-na da letargia e da alienação que havia vivido até então. De um lado, ela endossa os valores prezados pelos Meneses e, do outro lado, de maneira dissimulada, busca tecer “[...] modos de resistência à opressão masculina [...]” (Rocha-Coutinho, 1994, p. 236), optando pelo adultério.

Justamente a cunhada recém-chegada, que deflagra em Demétrio uma paixão silenciosa, serve de modelo a Ana para urdir sua vingança contra os Meneses. A princípio, a atitude do marido causa-lhe despeito e ciúme, mas tais sentimentos acabam se transformando numa espécie de revelação, levando-a a sentir “[...] como se fosse outra mulher [...]” (Cardoso, 2002, p. 107). Como nela “[...] cessara de existir a mulher antiga [...]” (Cardoso, 2002, p. 171), Ana percebe que está pronta para fazer seu ódio transbordar contra aquela família cujos membros sempre lhe impuseram um ar de obediência às normas, mas que hipocritamente tenderam, diante de qualquer oportunidade, a insubordinar a ordem que ela supunha ser obrigação sua de zelar.

O envolvimento de Ana com Alberto representa uma maneira de afrontar a mentira que paira sobre todos na Chácara, uma forma de rebelar-se contra “[...] o sangue dos Meneses, que não é o seu [...]” (Cardoso, 2002, p. 302) e também contra Nina - seu oposto, pois expressa beleza, a capacidade de sedução e, por certo tempo, a infração ao mundo fechado dos Meneses - com a qual foi obrigada a dividir o mesmo amante. Enfim, a transgressão de Ana funciona como uma espécie de desforra contra o marido. É sobretudo uma vingança contra a falsa representação da ordem que cerca os Meneses. Ordem esta que ela havia apoiado como uma verdade incontestável na qual não só havia acreditado, mas que também havia incorporado como forma de distinguir-se das poucas pessoas que faziam parte do círculo de relações da família.

Considerações finais

Em Crônica da casa assassinada, constatou-se que a narrativa de Lúcio Cardoso disseca os derradeiros momentos da extinção dos Meneses, um clã composto por três irmãos, incapaz de manter a continuidade do núcleo familiar, devido ao fato de haver, desde remotas épocas, perturbadoras presenças femininas no seu comando. Como a tia-avó masculinizada Maria Sinhá e Malvina, a mãe, foram as ocupantes do centro do poder entre os Meneses, verifica-se que o papel masculino é marcado pelo signo da indefinição. Ao chegar a vez de Demétrio, Valdo e Timóteo exercerem o domínio, os dois primeiros não o fazem adequadamente porque desejam imprimir um feitio masculino que se revela inconciliável com a herança feminina que existe na família. À margem desse processo, marginalizado pelos irmãos por encarnar o duplo homem/mulher que assinala os Meneses, resta ao homossexual Timóteo, em parceria com Nina, desencadear a destruição contra os seus.

No entanto, a implosão desse mundo patriarcal não se reduz apenas à desavença existente entre seus membros internos. Seu desmantelamento também se deve à entrada de sujeitos estranhos ao reduzido núcleo dos Meneses, tais como Nina e Ana - duas mulheres de fora do fechado círculo em que se encerra essa família - que passam a pertencer à esfera do poder, devido a seus casamentos com Valdo e Demétrio. Como nesse clã sempre houve predomínio do feminino no exercício da autoridade, ambas representam uma ameaça aos atuais ocupantes do núcleo, pouco seguros quanto ao correto desempenho de seu papel perante a condução familiar.

A vinda da bela e fútil Nina para o convívio dos Meneses reacende a chama ameaçadora do predomínio da figura feminina no comando familiar. Desperta também em Ana, até então agindo como a esposa modelada para mimetizar os Meneses, o desejo de subverter o aparente mundo ordenado da Chácara. Além disso, ciúme, despeito e inveja levam Ana às mesmas interdições às quais Nina se permite. Dessa maneira, ambas cometem adultério com o mesmo homem, têm filhos desse relacionamento proibido e morrem sem revelar esse segredo a seus maridos.

No papel de esposas, tanto Nina quanto Ana fazem pairar sobre os irmãos Meneses o fantasma da continuidade do poder feminino, e esse tipo de situação funciona como uma ameaça a Valdo e Demétrio, que se supõem capazes de finalmente representar a autoridade masculina na família. Ambos não conseguem compreender que enquanto a ordem feminina presidiu a família, esta se manteve agregada. Contudo, a influência das mulheres que vieram de fora instaura a falência do clã. Isso ocorre porque Nina e Ana violam um interdito de ordem sexual, potencializando, por conseguinte, a desarmonia doméstica. Ao cometerem adultério, ambas agridem a ordem patriarcal e promovem a desagregação dos Meneses. Pior: a transgressão de ambas destrói qualquer possibilidade de o nome do clã persistir, já que nem André ou o desconhecido Glael tem qualquer filiação com os Meneses.

Portanto, os filhos dessas relações adúlteras entre os integrantes da periferia social são deflagradores da ruína dos Meneses, visto que os laços consanguíneos nos quais se fundamenta a continuidade dos valores familiares e patriarcais do clã são inexistentes. Na realidade, os irmãos são derrotados pela dissolução dos tênues laços que os uniam sob um mesmo nome e um mesmo teto e também pela perda do referencial feminino - com a morte de Nina e Ana - que conferia, paradoxalmente, a manutenção do frágil equilíbrio familiar.

Referências

Albergaria, C. (1996). Espaço e transgressão. In L. Cardoso (Ed.), Crônica da casa assassinada (2a ed., p. 679-688, Colección Archivos 18). Madrid, ES: Allca XX.

Badinter, E. (1986). A morte do patriarcado. Um é outro; relações entre homens e mulheres. (5a ed., Carlota Gomes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.

Branco, C. L., & Brandão, R. S. (1989). A mulher escrita (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Casa-Maria Editorial/LTC.

Brandão, J. S. (1987). Os Labdácidas: o mito de Édipo. Mitologia grega (Vol. III). Petrópolis, RJ: Vozes.

Candido, A. (1993). Dialética da malandragem. O discurso e a cidade. São Paulo, SP: Duas Cidades.

Cardoso, L. (2002). Crônica da casa assassinada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.

Chauí, M. ([1990?]). Édipo rei. In M. Chauí (Ed.), Repressão sexual: essa nossa desconhecida (p. 56-75). São Paulo, SP: Círculo do Livro.

Rocha-Coutinho, M. L. (1994). Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.

Autor notes

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