Literatura
Do sublime e do grotesco: a obscenidade em Hilda Hilst
The sublime and the grotesque: obscenity in Hilda Hilst
Do sublime e do grotesco: a obscenidade em Hilda Hilst
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 38, núm. 3, pp. 291-299, 2016
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 27 Fevereiro 2016
Aprovação: 10 Maio 2016
Resumo: Este trabalho tem por objetivo tratar da relação dialógica entre sublime e grotesco na obra A obscena Senhora D, de Hilda Hilst, tendo por base sua condição de ficção contemporânea permeada por recondicionamentos da língua em sua performance no tempo não linear. Nesse sentido, utilizou-se dos estudos sobre o sublime, como conceito histórico e filosófico-literário, nas obras de Longino, Edmund Burke, Immanuel Kant, Victor Hugo e François Lyotard. Das questões referentes às discussões sobre o grotesco e sua interlocução com os caminhos do sublime, tiveram relevante importância os trabalhos de Mikhail Bakhtin e Michel Maffesoli - na relação poético-obscena da obra, debatida em conceitos convergentes, como obscenidade, erotismo, sagrado e profano. Dessas análises, concluiu-se que, em A obscena Senhora D, o sublime e o grotesco evidenciam-se num caráter multifacetado, contraditório, interlocutório e, por isso, não excludente: sedimentando o híbrido fluxo linguístico-imagético da literatura hilstiana.
Palavras-chave: literatura hilstiana, fluxo linguístico-imagético, obsceno.
Abstract: The present work aims to discuss the dialogical relationship between sublime and grotesque in the work A obscena Senhora D by Hilda Hilst, based on its status of contemporary fiction permeated by reconditioning of the language in its performance in the non-linear time. In this sense, it was used studies of the sublime, as a historical and philosophical and literary concept in the works of Longinus, Edmund Burke, Immanuel Kant, Victor Hugo and François Lyotard; issues relating to discussions on the grotesque and its dialogue with the sublime ways, the works of Mikhail Bakhtin and Michel Maffesoli had great importance - the poetic and obscene relationship of the work discussed in convergent concepts such as obscenity, eroticism, sacred and profane. From these analyzes, it was concluded that in A obscena senhora D the sublime and the grotesque show in a multifaceted character, contradictory, interlocutory, and therefore not exclusionary: solidifying the hybrid linguistic-imagistic flow of the hilstiana literature.
Keywords: hilstiana literature, linguistic-imagistic flow, obscene.
Introdução
Literatura de eloquência cindida por palavras disformes e desordenadas, com narrativas que se produzem em excessos ausentes de vírgulas e pontos, em linguagem anticonvencional, a prosa de Hilda Hilst reivindica novos parâmetros:
[...] não há mais aqui submissão às convenções formais da estrutura do período, no abolir das maiúsculas depois do ponto; tampouco há submissão às convenções do discurso escrito, ao sobreporem-se falas distintas sem qualquer sinal gráfico que as distinga ou ao seu emissor [...] (Queiroz, 2000, p. 22);
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literatura degenerada que hibridiza gêneros - não à medida ingênua dos românticos, mas com a precisão de um cinzel a reluzir faíscas no meio da noite, num fluxo narrativo incessante.
Esses e outros fatores nos levam a falar em transgressão quando nos reportamos à arte literária de Hilda Hilst: 1) ‘poesia’ que recupera e aprimora a chamada ‘geração de 1945’ com imagens-símbolos influenciadas por uma voz poética silenciosa e lírica, Hilda Hilst utiliza-se de estruturas tradicionais do poema - e não somente -, construindo odes e sonetos (que nos fazem lembrar a composição camoniana), lirismo e melodia poética (em grande parte influenciados pelas leituras que fez de Jorge de Lima), numa cosmovisão mística que intertextualiza as vozes de Rainer Rilke e Nikos Kazantzakis; 2) ‘prosa’ filosófico-existencial que passeia pelo niilismo de Beckett e Ionesco, além do existencialismo de Camus - e pedagógica - que forma leitores, ao modo de uma Clarice Lispector, um Guimarães Rosa, um James Joyce, um Kafka e uma Virgínia Woolf.
A narrativa hilstiana, gênero específico de análise neste estudo crítico, configura-se numa escritura pós-moderna que dialoga iconoclasticamente com a língua e suas linguagens, deslocando estruturas e refazendo significados em processo contínuo e recíproco de ‘desidentificação’ e ‘desfamiliarização’. No dizer de Flora Süssekind, a prosa contemporânea torna-se
Verdadeiro abismo narrativo-ensaístico: seja na teatralização da linguagem do espetáculo, convertendo-se a prosa em vitrine onde se expõem e observam personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam, fragmentárias, velozes, outras imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade (Süssekind, 1993, p. 240).
Assim, ao estudarmos o grotesco e o sublime em A obscena Senhora D (publicada em 1982), de Hilda Hilst, não podemos deixar de levar em consideração que o caráter desidentificador e desfamiliarizante, aí subjacentes, dá suporte diferenciado para as análises em torno do erótico, da morte, do profano e do sagrado. Essas instâncias estão interligadas à discussão teórica do grotesco e do sublime como requisito reiterante: em primeiro lugar, porque o erotismo, a pornografia e a obscenidade fazem parte de uma composição orgíaca em que Hilda Hilst circunscreve sua escritura em fonte criadora e criativa; em segundo lugar, por transitar pela morte do corpo, da alma, da capacidade de pensar: entes do desamparo, numa realidade cotidiana que se resvala desde a vida abandonada no vão da escada, no desprezo dos vizinhos e do amante, até o fim, quando o falecimento é, por si só, fator de questionamento e aventura existencial; e, por último, temos o sagrado representado pela figura de Deus, Senhor, que liga essas duas últimas instâncias ao termo de força criativo-motriz (erotismo) ao incomensurável, revelando, assim, a identidade desconhecida de Deus enquanto dinâmica fundadora das inquietações existenciais da personagem.
Em A obscena Senhora D, vemos surgirem conflitos que se incorporam aos princípios duais do sublime e do grotesco, como o são eros e tanatos, parte da mesma parte, ombros do mesmo corpo. Tratar do sublime e do grotesco nessa obra, portanto, consistirá no deparar-se com a fluidez infinita de discursos, expondo os(as) leitores(as) a um jogral linguístico e imagético acessível apenas àqueles que aceitam ‘entrar no jogo’, pois
[...] o jogo de Hilda é uma aposta na desconstrução radical do bom tom e da literatura morna em favor de uma frase que atinge extraordinárias voltagens líricas (Queiroz, 2000, p. 12).
Dessa forma, pretendemos problematizar a relação entre sublime e grotesco a partir de sua condição obscena na obra em estudo. Para isso, dividimos este trabalho crítico em momentos de análise que permeiam a personagem Hillé e sua existencialidade obscena, as significações teóricas das categorias sublime e grotesco (em suas convergências com o erotismo, a morte, o sagrado e o profano) e suas interfaces na narrativa A obscena Senhora D.
Obscenidades com urros, máscaras e derrelição
Em A obscena Senhora D, Hilda Hilst constrói uma narrativa cuja raiz propulsora é a profunda crise existencial da personagem Hillé, mulher sexagenária que sofre a dor da ausência de seu amado, o ‘Bonito Ehud afilado, leve’ (Hilst, 1993). Na morte de Ehud, a vivência da dor profunda exacerbada em confinamento e urros; uma louca, uma ‘porca’ (epíteto dado pela vizinhança) que resolveu fazer peixinhos de papel para pôr no aquário, pois quando Ehud morreu, também morreram os peixinhos. Aqui, há de se destacar o significante ‘porca’ em sua rica simbologia: no Dicionário de símbolos (2008), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, vemos no porco (gênero masculino) o “[...] símbolo das tendências obscuras, sob todas as suas formas, da ignorância, da gula, da luxúria e do egoísmo” (Chevalier & Gheerbrant, 2008, p. 734). Se lembrarmos de Circe de belas tranças,
[...] a deusa terrível dotada de voz humana, irmã de Eeta de pérfidos pensamentos, ambos nascidos de Hélio, que dá a luz aos mortais, e tendo por mãe Perse [...] (Homero, Odisseia, Rapsódia X, linhas 117-119),
recordaremos que em porcos gordos e famintos foram transformados parte dos companheiros do grandioso Ulisses, na ilha Eéia - depois de terem comido, bebido e serem tocados por uma varinha de encantos; assim também, nas mitologias dos livros sagrados das religiões patriarcais de maior representação no mundo (Judaísmo, Islamismo, Cristianismo), a carne de porco é sujidade abominável e impura.
Hilda Hilst, de outro modo, reconfigura a noção da natureza-porca - desta vez, gênero feminino, que, na sua origem simbólica é a representação da fecundidade e abundância (Chevalier & Gheerbrant, 2008) -, fazendo-a passar por deslocamentos: ora a palavra ‘porca’ (gênero feminino) é semanticamente determinada pela palavra ‘porco’ (gênero masculino), seguindo sua dimensão obscura (tomada assim pelos vizinhos e encenada por Hillé nas máscaras de zombaria); ora ‘porca’ (gênero feminino) determina semanticamente ‘porco’ (gênero masculino) numa dimensão “[...] d’aquela que fuça, procura o escondido, que busca o sentido, a origem das coisas” (Todeshini, 1989, p. 31). Podemos constatar esse intercalar semântico em citações como:
[...] Porco-Menino, menino-porco, tu alhures algures acolá lá longe no alto aliors, no fundo cavucando, inventando sofisticadas maquinarias de carne, gozando o teu lazer [...] (Hilst, 1993, p. 48),
quando ‘porco’ é sinônimo da ‘porca’ ancestral - em sua fecundidade e abundância - transmutando-se de maldição consolidada para matriz existencial, fertilidade que interpela.
Hilda Hilst elabora, em A obscena Senhora D, uma ritualística do obsceno, que se desencadeia em gritos e urros (para fora da casa-mundo), máscaras e derrelição (confeccionando peixinhos de papel para dentro da casa-mundo), criando, assim, uma obscenidade cuja violência poética quer (re)pensar a condição humana, enquanto “[...] experiência da transgressão, a passagem para o outro lado da cena, o lado de lá, o lado que não se vê sempre” (Coelho Neto, 1983, p. 176).
Na narrativa hilstiana, a exuberância obsceno-erótica de Hillé e Ehud, empreendida pelo joguete circunscrito de uma libido poético-corporal, prescreve um questionamento acerca da imprescindibilidade do desejo sobre outras vertentes existenciais da vida da personagem-protagonista: dinâmica agônica da narrativa. Sem negações ou afirmações decadentes, a vertiginosa Hillé vive a obscenidade em sua completude, porque sua exuberância existencial é transgressora, mesmo quando se afasta do desejo do amado; desejo, aliás, que é expandido para o Mais, o Todo, o Incomensurável, Deus:
[...] engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito [...] (Hilst, 1993, p. 36).
Michel Maffesoli (1985) ratifica essa prerrogativa da perda e encontro do infinito ao tratar do fluxo incessantemente criativo de Dionísio. Segundo esse autor, é na busca pelo ‘êxtase’ do infinito que a relação entre sagrado e profano permanece substanciada. A compreensão de tal relação é essencial para entendermos o papel de Hillé na narrativa. Possessa e louca, mulher que fala sozinha, que mostra suas ‘partes’, que transgride os pudores e normas sociais, “[...] mulher desavergonhada, [...] porca, exibida cadela” (Hilst, 1993, p. 42-43); Hillé, transgressora-mulher, grotesca que urra para os vizinhos vestidos de máscaras dos interditos e das proibições:
[...] é uma sapa velha. Viu a pele pintada? É sarda. Ainda tem umas boas tetas. Credo, teta de sapa. Podemos botar fogo na casa durante a lua nova. Com as casas quase coladas? Dá-se um jeito, fogaréu que vai dar gosto (Hilst, 1993, p. 51).
E como transgressora-mulher, manipulada por uma grotesca performance medieval, Hillé deve passar por ‘um fogaréu de dar gosto’ para queimar como uma bruxa em plena lua nova (simbolicamente, a lua do recomeço, início de uma fase), devendo seus vestígios serem apagados para a tomada de uma nova era.
Paradoxalmente, porém, é no processo transgressor - com todas as suas envergaduras - que reside o prazer da obscena Hillé. Quando a personagem sai à janela e provoca os transeuntes, faz de sua ação um prazer. É como se o horror da ação, as caretas, os olhos trocados e as palavras chulas oferecessem a si uma produção catártica existencial. Naquele espaço, por excelência, ela produz, através do medo que as pessoas sentem de sua loucura ou de seu estado possesso, um jorrar de veleidades, absurdos e coprologias, projetando aí seu estado transgressor. Hillé mascara-se em louca-porca, ou seja, na ‘porca’ normatizada pelo outro, para dizer, superficialmente, o que não diz em profundidade. Ao atemorizar a vizinhança da pequena vila com palavras e gestos escabrosos, ela provoca os valores ético-morais dos vizinhos; ao seu lado, apenas Ehud, que não deixa de tentar, impaciente, a amenização do conflito:
[...] querem saber o porquê das janelas fechadas, tento explicar que a Senhora D é um pouco complicada, tenta, Hillé, algumas vezes lhes dizer alguma palavra, você está me ouvindo? ando cheio dos sussurros, das portas entreabertas quando passo pela rua, ando cheio, está me ouvindo? (Hilst, 1993, p. 38).
Num contraponto, em suss(urros) ao ouvido de Ehud, explica Hillé:
[...] em mim, Ehud, na minha cara um estupor, um nunca compreender, um enrugado mole, olha como é a minha cara sem o teatro para o outro [...] porque todas as perdas estão aqui na Terra (Hilst, 1993, p. 74).
A altivez obscena da senhora Hillé atinge, assim, o mundo do escabroso, do escatológico e do coprológico sem ressalvas ou pedido de desculpas (Queiroz, 2000), imergida num mar de soluços existenciais e filosóficos que alcançam as mais altas colinas do incomensurável:
Se a gente mastigasse carne um do outro, que gosto? e uma sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Na comida não se põe pé de porco? [...] É horrível comer, não? Tudo vai descendo pelo tubo, depois vira massa, depois vira bosta (Hilst, 1993, p. 52).
Contudo, a proposta do panteão escatológico do sistema literário hilstiano é fazer-se na relação direta com o que poderíamos chamar de remetidas faces da paisagística d’A obscena Senhora D: o sublime e o grotesco.
O sublime e o grotesco: abordagem teórica
Em Do sublime, de Longino (1997), são apontadas cinco fontes capazes de gerar uma linguagem sublime: os pensamentos sublimes, a emoção inspirada, a moldagem das figuras (onde pensamentos e palavras determinam a grandeza da construção), a nobreza da expressão (da qual fazem parte a escolha dos vocábulos e a linguagem figurada e elaborada) e a composição, que visa a estabelecer a dignidade e a elevação das coisas. Com efeito, segundo esse autor, os grandes oradores não podem ter sentimentos rasteiros e mesquinhos, pois sua grandeza se constitui na elevação de pensamentos graves que ‘os ergue quase à magnitude divina’; a linguagem, dessa forma, tornar-se-ia o meio eficaz de manifestação do sublime. Para Longino (1997), autor inserido na cultura grega antiga, as sensações sublimes reuniam princípios virtuosos para dominar as paixões e a beleza, exercendo função estética sob os primórdios da harmonia, da simetria, do equilíbrio, da ordem.
Depois, outro importante autor que se debruçou sobre as questões do sublime foi Immanuel Kant (1993), no século XVIII, na seção I de Observações sobre o sentimento do belo e do sublime; ensaio sobre as doenças mentais. Kant afirma que o sentimento refinado manifesta-se na forma de duas espécies: primeiro, no sentimento do sublime; depois, no sentimento do belo: ambos os sentimentos são agradáveis de sentir, mas suas manifestações são diferentes. O sentimento do sublime, exemplifica Immanuel Kant, é como uma cordilheira de altos pontos quase até as nuvens, ou a caracterização do inferno, ou ainda a descrição de uma tempestade furiosa; enquanto o sentimento do belo está no prado florido, nos rebanhos, nos vales, nas sensações agradáveis. O sublime, consequentemente, tem por característica ser estrondoso, furioso e magnificente.
Já Edmund Burke, em Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1993), constrói sua teoria do sublime a partir do terror, que aparece como uma árvore com várias ramificações:
Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz (Burke, 1993, p. 48).
Esses apontamentos são importantes para compreendermos que tanto Edmund Burke quanto Immanuel Kant foram influenciados por antigas teorias gregas sobre os sentimentos sublimes a partir de expressões do belo.
Já no período Romântico da Literatura, quando os gêneros literários já vivenciavam um processo de hibridização, teremos em Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell (1988), de Victor Hugo, além da aura religiosa de ‘fins espirituais intangíveis’ e linguagem de caráter psicofânica (Nunes, 2008), o engendrar sobre as fronteiras do sublime e grotesco através da prescrição de um equilíbrio cósmico pela convivência dos polos belo/feio, sombra/luz, corpo/espírito, grotesco/sublime. Nessa messe, Victor Hugo passa a definir o grotesco como a ‘mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte’, cujo objetivo seria o de dar contrastes ao sublime - que sem a presença do grotesco tornar-se-ia fatigoso e monótono. Teleológica e incompleta, a teoria de Victor Hugo sobre o grotesco e o sublime deu-se por meio dos contrastes entre a nobreza do belo e do sublime na poesia e seus polos opostos; depois, e por consequência, não problematizou a autonomia das duas categorias em estudo, enfraquecendo “[...] o valor autônomo do grotesco, considerando-o como meio de contraste para a exaltação do sublime” (Bakhtin, 1999, p. 38).
De outro modo, Mikhail Bakhtin, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (2003), identifica o grotesco enquanto trajetória do 1) corpo híbrido (representado pelas máscaras animalescas e risonhas do humano), de 2) imagens disformes (nas sopas de pés, no corpo engolido), em 3) detalhes escatológicos e coprológicos (o fétido buraco de Deus) até 4) o riso bandalho e cômico. O corpo grotesco é o corpo desarmonioso, assimétrico, aberto; é o corpo que compõe figurações animalescas, absurdas, principalmente em suas partes baixas, com fezes, dejetos e mutilações. De acordo com a definição de Mary Russo (2000, p. 79),
O corpo grotesco é o corpo aberto, que se projeta, ampliado, secretante, o corpo do vir-a-ser, do processo e da mudança. O corpo grotesco se opõe ao corpo clássico que é monumental, estático, fechado e liso, correspondente às aspirações do individualismo burguês; o corpo grotesco está associado ao resto do mundo. Bakhtin vê a personificação de seu conceito do grotesco nas figuras de terracota retratando bruxas senis e grávidas de Kerch.
O corpo grotesco é o corpo em movimento, em processo de hiperbolização: algumas partes do corpo ganham autonomia e vida independente, entre as quais o baixo-ventre e o falo, que têm preferência singular no trato das imagens grotescas medievais: são monges com o falo do tamanho de uma torre, vaginas devoradoras de pênis, freiras que sonham com membros masculinos voadores etc.; numa outra escala, temos a boca e o traseiro: a boca ‘devora o mundo’, arrimo de fofocas, ‘perversões’ sexuais e podridões intestinais. E o traseiro como fronteira entre os limites dos corpos entre si e do corpo com o mundo, pois através dos orifícios, os traseiros produzem as excrescências e gases, compartimentos de comunicabilidade com o que está fora. Esta é a imagem da lógica artística grotesca medieval, o anúncio espetacular dos orifícios, deformidades e extravagâncias (Bakhtin, 1999).
Assim, Bakhtin reforça o caráter singular e abrangente do grotesco ao tomá-lo como ‘lógica da inversão’, em que o baixo ocupa o lugar do alto,
[...] a palavra localiza-se na boca e no pensamento (a cabeça), [...] remetida para o ventre, de onde Arlequim a expulsa com uma cabeçada (Bakhtin, 1999, p. 270).
A ‘lógica da inversão’ traduz, precisamente, a maneira como o grotesco da bricolage medieval se põe na arena contemporânea: destronamento do mundo clássico e motor da imaginação com paralelas difusas e cortes longitudinais dos contornos reais do cotidiano ordinário. Pantomima do insólito castigo aleijado, desordem arrimada na irrupção de poderes abismais que destrona o mundo confiável e aparentemente ordenado (Kayser, 1986), o grotesco torna-se ferramenta para o deslocamento de papéis determinados, imergindo-se enquanto meio de transgressão social e literária: ao modo de um Rabelais, em Gargântua e Pantagruel, que sedimenta a cena grotesca do riso, através dos gigantes que urinam nas ruas e em patrimônios históricos parisienses, como a catedral de Notre-Dame; da cena grotesca da mulher que quer ser uma com o inseto, ingerindo o líquido viscoso de dentro da barata, na obra A paixão segundo G.H (1995), de Clarice Lispector.
O grotesco e o sublime no texto hilstiano
Na mesma esteira, o grotesco e o sublime, na linguagem-imagem do texto hilstiano, funcionam numa interlocução contraditória: o sublime deixa de ser contraste do grotesco para se tornar o que François Lyotard (1993) chama de ‘ilimitado’: o ilimitado das ideias estéticas, uma emoção, “[...] uma Rührung, alternância entre o não e o sim afetivo” (Lyotard, 1993, p. 68). Em termos conclusivos, François Lyotard afirma que o sublime assinala, na realidade, os limites ou o além dos limites de sua apresentação, sendo que
[...] a grandeza sublime é absoluta, não porque coincide com essa medida fundamental de apreensão, mas porque ‘quase’ a excede, porque está um pouco além de seu limite - dizemos: no limite (Lyotard, 1993, p. 81, grifo do autor).
Tais circunstâncias fazem parte do imaginário literário de Hilda Hilst, cuja radicalidade estética reverbera em violência e voluptuosidade discursivas desconcertantes:
[...] o podre cu de vocês vossas inimagináveis pestilências bocas fétidas de escarro e estupidez gordas bundas esperando a vez de quê? de cagar nas panelas sovacos de excremento buraco de verme no oco dos dentes o pau do porco a buceta da vaca a pata do teu filho cutucando o ranho as putas cadelas imundos vadios mijando no muro o pó o pinto do socó o esterco o medo, olha a cançãozinha dela, olha o rabo da víbora, olha a morte comendo o zóio dela, olha o sem sorte, olha o esqueleto lambendo o dedo o sapo engolindo o dado o dado no cu do lago, olha, lá no fundo (Hilst, 1993, p. 56).
No ‘podre cu’ e em todas as partes jorradas em catarse pela personagem, da citação acima, as palavras e as imagens são o estopim contra qualquer imobilidade, cuja consequência obsedante se traduz nos momentos de intensidade e desordem com que trata seu objeto de reflexão, que, por excelência, é a condição humana.
Narrativa em que a experiência obsceno-erótica é condição reiterante, A obscena Senhora D alimenta-se do tempo como processo cíclico ao quebrar sua noção linear para dar-se em ciclos linguísticos e imagéticos dinâmicos nas diversas experiências que a personagem-protagonista vivencia entre o vão da escada e a janela que a faz olhar para o que está fora. É interessante notar que Hillé transfere-se para cada lugar da casa como quem vai de um palco a outro: quando está entre o vão da escada, seu mundo se conecta ao eu interior, às questões de sua existência, a Deus, à morte; quando vai para o vão da janela, sua expressão é para o outro, à existência do que está lá fora. Em ambos os casos, ela está submetida ao abandono, à derrelição, ao desamparo; por isso, Ehud tem razão em renomear Hillé por ‘Senhora D’, pois sua vida, mesmo protagonizada entre dois palcos, é o próprio abandonar-se do mundo:
Eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém [...]. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição - pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de derrelição, ouviu? (Hilst, 1993, p. 35).
Abandono que não significa, necessariamente, ausência de poder: ao reconhecer-se ‘nome de ninguém’, Hillé autoconceitua, o que, em si, consiste num ato de empoderamento circunscrito. Seus delírios, seus impasses com os passantes, seu mundo entre peixinhos de papel a tornam uma mulher-presa do desamparo, mas também mulher-caça de uma lucidez que não é medíocre: busca incessante pelo transcendente das coisas num processo de (re)criação do cotidiano em suas amarras. Segundo Eliane Robert Moraes (1999), o que Hilda Hilst busca no transcendente apresentado em suas narrativas é exatamente a explicação do 'Mais' que a simples matéria não pode responder, ao mesmo tempo em que é objeto primordial por onde passam todas as explicações do imaterial:
[...] ela se dispõe a realizar uma inesperada incursão pelos domínios mais baixos da experiência humana. Ao confrontar a sua metafísica do puro e do imaterial com o reino do perecível e do contingente que constitui a vida de todos nós, a escritora excede a sua própria medida, o que resulta numa notável ampliação da idéia de transcendência - daí para a frente submetida aos imperativos da matéria (Moraes, 1999, p. 117).
Das máscaras em gritos obscenos ao encontro com o transcendente, Deus, um codinome para o sagrado/sublime, e não somente, torna-se o imperativo no percorrer de todas as coisas, por mais insignificantes que sejam: submerso na água por onde nadam os peixinhos, atrás do vão da escada, entre as frestas das janelas, em todos os lugares. Sua presença é tão potente que pode estar compreendida nos mais escabrosos lugares por onde o ser humano circunda. Esse é verdadeiramente o imperativo do sublime na narrativa de Hilda Hilst, numa paroxística feição da palavra que reinventa o mundo ficcional em ambientes de reflexão profunda acerca das experiências humanas, sem deixar de lado suas excrescências mais vis. À maneira do sagrado antigo, o sublime na obra A obscena Senhora D torna-se condição emoldurada de um diálogo transgressor com o grotesco e suas ‘impurezas’ profanas. Como ressalta Georges Bataille (1987, p. 113),
[...] a transgressão fundava o sagrado, cujos aspectos impuros não eram menos sagrados que os aspectos contrários. O conjunto da esfera sagrada se compunha de puro e impuro [...];
do mesmo modo, sublime e grotesco são aspectos contraditórios de uma mesma esfera: não se separam.
A função transgressora do sagrado/sublime nas narrativas de Hilda Hilst recupera exatamente essa essência impura do sagrado, dando-lhe vigor festivo e criativo. Ao adicionar em Deus, o sagrado, uma identidade suína, bestial, a senhora D derruba o modelo ideal de transcendência, ao mesmo tempo em que provoca as instâncias de sua existência:
Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? Ó, buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? (Hilst, 1993, p. 54).
De maneira iconoclasta, a obscena Hillé derruba a imponência dos altares para dizer que Deus, o sagrado, está para além dessas convenções estabelecidas. Seu tratado com essa instância ultrapassa o consentimento religioso, desembocando numa vertiginosa angústia existencial de procura do ‘OUTRO’, usufruindo, para isso, de uma tragicidade cômica que dessacraliza o discurso sobre as concepções tradicionais do sagrado (como intocável), para torná-lo vórtice recondicionado ao buraco das ‘partes baixas’, ratificando um movimento muito característico dos textos hilstianos em suas ambivalências amalgamadas: o sagrado que se mistura ao profano, o baixo que imerge no alto, o claro que se entremeia ao escuro. À semelhança das tragicidades cômicas antigas e medieval que refaziam o ‘lugar do alto’ e o ‘lugar do baixo’ através da inversão de papéis e motivos - como nas festas de acolhida ao imperador Augusto César, recebido por seus legionários com gritos de pederasta e cantos obscenos (Minois, 2003); e nos carnavais medievais em que os fiéis, dentro das igrejas, relinchavam ao invés de responderem o ‘amém’ (Bakhtin, 1999) - a obra hilstiana performatiza a palavra em suas imagens, fazendo crer que não há lugar para um ‘ponto final’ enquanto houver absurdamente “[...] criancinhas no Cambodja engolindo capim, folhas, o inchaço, as dores, a morte aos milhares” (Hilst, 1993, p. 54) e vizinhos preocupados com o bacalhau:
[...] tu não lembra que meu marido pifô quando não pude fazer aquele bacalhau tu não lembra? começou berrando cadê o bacalhau mulhé e eu dizendo porra Juvêncio que bacalhau? (Hilst, 1993, p. 66).
A tragicidade no absurdo de sua existência, portanto, consolida o tempo cíclico de reconstrução do mundo em sua não linearidade.
É nesse decurso que Hilda Hilst se vale de um bestiário, que, à maneira de outros autores como Lautréamont e Bataille, insiste na subversão cíclica do alto e do baixo como condição humana e divina (Moraes, 1999). Ao associar Deus e porco, a escritora destrona a relação com o divino como medida inalcançável. Sua autoridade blasfemadora em outorgar tais papéis a Deus coíbe qualquer atitude de afastamento incomensurável do sagrado com o humano, aumentando, assim, a possibilidade de diálogo entre seus personagens e o ‘OUTRO’:
[...] rebaixado ao nível dos atos mais abjetos, o Deus-porco de Hilda Hilst já não é mais a medida inatingível que repousava no horizonte da humanidade [...] (Moraes, 1999, p. 119).
Nessa condição, em que Hillé protagoniza uma relação com o divino, subjaz a profunda tragicidade existencial; um aspecto trágico que corre sob o parâmetro de dois caminhos: o da exuberância derrisória (nas máscaras e nos gracejos na janela) e o do desterro existencial (nos vãos da escada). Ao relacionar com Deus a figura bestial do porco, a escritora recondiciona, dialogicamente, o lugar ‘do alto’ e ‘do baixo’ numa veia blasfematória que faz lembrar a dicacitas (ou causticidade romana, na Idade Antiga), riso mordaz que rejeita a ordem e a moral. Assim,
[...] rebaixado ao nível dos atos mais abjetos, o Deus-Porco de Hilda Hilst já não é mais a medida inatingível que repousava no horizonte da humanidade [...] (Moraes, 1999, p. 119),
mas é um ‘porco’ que se desloca: semanticamente, por vezes porca (no sentido ancestral) e daí seu caráter sublime; por vezes porco (gênero masculino, somente), retomando a dimensão impura e grotesca. Logo, Hillé procura atingir o todo, que é um inominável afronteiriço (sublime e grotesco) e sua procura concreta está na elucidação desse possível encontro: que não é finalizado; a tragicidade da narrativa, portanto, passa a residir, primordialmente, nessa complexa relação de encontro e desencontro com o incomensurável, o qual Hillé não consegue atingir.
A senhora D não procura a salvação, ela persegue o entendimento, o “[...] compreender o jogo brinquedo do Menino Louco” (Hilst, 1993, p. 37), a presença profícua do sagrado-porco, cuja experiência impossibilita qualquer esquecimento:
Quem sou eu para te esquecer Menino Precioso, Luzidia Divinóide Cabeça? se nunca fazes parte do lixo que criaste, ah, dizem todos, está em tudo, no punhal, nas altas matemáticas, no escarro, na pia, nas criancinhas mortas, no plutônio, no actínio, na graça do teu pimpolho, no meu vão de escada, nesta palha, em Ehud morto (Hilst, 1993, p. 48).
É na impossibilidade racional de abranger Deus que reside a angústia de Hillé. O sagrado parece inalcançável e impessoal: inalcançável porque não pode ser detido pela experiência humana, e impessoal porque existe para todos, indefinidamente: ‘uma prostituta’ (Bataille, 1987). Semelhante a Baudelaire que afirma ser Deus “[...] o mais prostituto dos seres” (Maffesoli, 1985, p. 25), pois se dá a todos sem qualquer distinção e promissória, Hillé entende que esse doar-se de Deus ao mundo é o preciso obstáculo que o afasta da possibilidade de ser detido.
O corpo inebria-se, assim, em objeto por onde a morte finca suas garras; instrumento pelo qual a senhora D se vale para sentir, viver e compreender a morte e o fim das coisas. É na (in)consistência do corpo que a ‘pestilenta senhora’, a morte, parecia aparecer.
Hillé, na convivência com o sagrado, dá-se conta desse invariável ressentimento humano, que consiste em saber-se no caminho para o fim; é por isso que, em determinado momento, ela questiona esse ‘OUTRO’ sobre o sentido em que se fundamenta a vida, já que permitiu a ela ser conivente com toda espécie de finitude, ferimento e miséria:
[...] porque não me tocaste, Senhor, e nem me pensaste sóbrio os ferimentos, porque nem o calor da ponta dos teus dedos foi sentido por mim, porque mergulho num grosso emaranhado de solidões e misérias e te buscando emerjo de mim mesma, as mãos cheias de lodo e de poeira, este meu rosto-encarnado sem vivez reside em mim há séculos, lapidescente na superfície mais fervilhante e rubro logo abaixo, eterno em dor com a tua esquivez (Hilst, 1993, p. 82).
Nos encantos sublimes de suas reflexões, a senhora obscena leva todos os dias a perguntar exatamente sobre esse caminho para o (in)finito. Ela quer entender por que Deus, que é inominável e incomensurável, permite que cheguemos à vida para morrer; ou por que cria o mundo para vê-lo destruído todos os dias na morte de suas criaturas: “[...] a vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender” (Hilst, 1993, p. 59). E ressalta: “[...] ter sido. E não poder esquecer. Ter sido. E não mais lembrar. Ser. E perder-se” (Hilst, 1993, p. 74).
Note-se que Hillé reivindica de Deus a força transcendente, o toque, a presença concreta. Nessa relação do existir e do inexistir, ele passa a ser o único capaz de intermediar o sentido das coisas. À semelhança do ascetismo dos santos, Hillé compreende que é na relação amorosa com o Senhor que o caminho para o entendimento, para a consciência acerca da vida e da morte se sedimentam. Assim, a personagem chama atenção para uma mística erótica que a faz dialogar com a vida e rebelar-se contra qualquer ideia finita e limitada de Deus (como desconhecido) e da morte (como limite). Nesse erotismo, que passa pelo corpo e pela alma, pelas instâncias do sagrado e do profano, do sublime e do grotesco, persiste a luta pelo direito incondicional do ser-humana, numa fusão erótica que “[...] possui uma virtude salvadora: ela constitui uma forma de luta contra a adversidade social e natural” (Maffesoli, 1985, p. 61). Em outras palavras, é o erotismo como energia vitalizante e criadora (Bataille, 1987) que faz com que Hillé não se mate; ela precisa lutar todos os dias para entender o significado das coisas que lhe são primordiais: a compreensão de sua paixão (transcendência) e de sua derrelição (a morte).
Na personagem Hillé, vemos as profundas reflexões de uma mulher que vive as angústias da inexatidão de seu tempo real com aquele internalizado e a descrença no significado da própria vida. Destilando um tempo que congrega o antes, o durante e o agora, a Senhora D ocupa o lugar das transições: transições de angústias (‘eu à procura da luz numa cegueira silenciosa’), transições de alegrias (‘quem sou eu para te esquecer Menino Precioso’) e transições do pensar (‘de onde vem o Mal, senhor?’) (Hilst, 1993). E o tempo é o seu tempo-próprio: tempo de fluxos de consciências, tempo de desordens, tempo de admoestações, tempo de gritos-máscaras-silêncios, permeado por vivências que lhe são únicas e legitimamente construídas por seu eu-no-mundo.
Considerações finais
Ficção contemporânea, por excelência, A obscena Senhora D reluz, nos percalços do narrador atual, um constructo de individuação que se dissemina na autoria engajada com seu tempo, fazendo-se onda sobre ondas, abaulando no vagar das intempéries literárias:
Ora o leitor é deixado fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa das máquinas. O procedimento de Kafka, de encurtar completamente a distância, encontra-se nos extremos nos quais é possível aprender mais sobre o romance atual [...]. Seus romances - se é que eles de fato ainda cabem nesse conceito - são a resposta antecipadora a uma condição do mundo em que a atitude contemplativa virou escárnio total, porque a ameaça permanente de catástrofe não permite a mais ninguém a observação desinteressada, nem mesmo sua reprodução estética (Adorno, 1983, p. 272).
Nessa obra, constatamos que sublime e grotesco são permeados por várias camadas que se dão em performances contraditórias não excludentes, (re)engendrando-se, ciclicamente, ao modo do sagrado e do profano antigos, numa relação que é, antes de tudo, promíscua. Assim, A obscena Senhora D transita pela literatura como um fluxo de consciência intermitente e veloz, com agregações de múltiplas falas, invenções, neologismos, transbordamentos e rastros “[...] voltados sobre si mesmos, dissecados num laboratório erudito de referências religiosas, científicas, filosóficas, linguísticas e literárias” (Pécora, 2002, p. 13). Entre o sagrado e o obsceno, está a morte que é vivida por Hillé como a caminhada ascendente para um fim: não necessariamente o fim da vida; talvez o fim do entendimento? A preocupação da personagem reside na finitude como objeto do incompreensível, que é, em si mesma, uma extensão da transcendência: “[...] a vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender” (Hilst, 1993, p. 59). Sua angústia é ver que Deus, manifestado nas pessoas, nos altares, na morte ou na vida, como um todo, não pode ser compreendido: o que promove um fluxo agônico ainda maior, dado ser esse entendimento a busca existencial da personagem.
Verdadeiro caleidoscópio da performance da palavra-imagem, A obscena Senhora D, de Hilda Hilst, reverbera-se em tons contrastantes que ora se expõem à sombra e à luz (nas temáticas universais da literatura), ora se conscientizam da condição humana embrutecida, absolutamente passageira e frágil de Ser-ilimitado-no-mundo.
Referências
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Autor notes
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