Literatura

Estratégias de subjetificação na ficção contemporânea de mulheres: exílio, migração, errância e outros deslocamentos

Subjectification strategies in contemporary fiction by women: exile, migration, wanderings and other types of displacement

Lúcia Osana Zolin
Universidade Estadual de Maringá, Brasil

Estratégias de subjetificação na ficção contemporânea de mulheres: exílio, migração, errância e outros deslocamentos

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 40, núm. 2, 2018

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 09 Fevereiro 2018

Aprovação: 10 Julho 2018

Resumo: O artigo pretende refletir sobre a ficção contemporânea de mulheres, frequentemente marcada por processos de deslocamentos de ordem diversa, como exílio, migração, errâncias, representados/as como estratégias de subjetificação dos sujeitos no contexto pós-moderno. A pulsão de errância, muitas vezes, é aí solicitada como parte do esforço para a (re)construção identitária de personagens (quase sempre femininas), consubstanciado no repúdio de heranças genealógicas e nacionais, as quais são substituídas por afiliações a comunidades afetivas e a territórios descentrados. Teóricos da condição exílica, sobretudo Nouss (2016), nos subsidiarão nessas reflexões.

Palavras-chave: literatura de autoria feminina, literatura contemporânea, exiliência, subjetificação.

Abstract: Current investigation analyzes contemporary fiction by women, frequently marked by different types of displacement processes, such as exile, migration and wanderings, represented as strategies of subjectification of agents in post-modernity. The wandering trend is frequently required as an effort for the identity (re)construction of characters (practically all females) coupled to the shunning of genealogical and national inheritance, replaced by filiations for affective communities and decentralized territories. Theoreticians of displacement conditions, such Nouss (2016), will foreground current analysis.

Keywords: women´s literature, contemporary literature, exiliance, subjectification.

Introdução

A pesquisa ‘Literatura brasileira contemporânea de autoria feminina: escolhas inclusivas?’ que vimos coordenando na Universidade Estadual de Maringá nos últimos três anos revela que cerca de 25% dos romances publicados por mulheres pelas editoras Rocco, Record e Companhia das Letras, entre os anos de 2000 e 2015 tematizam questões e trajetórias de personagens relacionadas a exílio, migração, errância e outros deslocamentos.

Isso, certamente, não nos causa estranhamento, já que vivenciamos um momento marcado pela valorização da mobilidade e do encurtamento de distâncias, seja em termos virtuais, seja em decorrência das facilidades contemporâneas de que dispõe o indivíduo que deseja transpor fronteiras, adentrar outros territórios, conhecer/confrontar culturas ‘outras’; ou, por outro lado, anseia encontrar-se consigo próprio, (re)construir identidades e/ou questionar heranças identitárias essencializadas, genealogias nacionais ou familiares. Em igual medida, o mundo contemporâneo presencia, atônito, a crise de refugiados mulçumanos que chegam à Europa, atingidos pelo terrorismo, por guerras civis e pela miséria, entre outras violências, em busca de abrigo e de melhores condições de vida. Todos em alguma medida, e guardadas as devidas proporções, obviamente, experimentam certa ‘condição exílica’, a sensação de estar fora de lugar, pisando com receio, muitas vezes, com assombro, o território do ‘Outro’, condição essa que as terminologias utilizadas para lhes especificar as experiências não lhes abarcam as especificidades.

Para além de classificações/limitações sociopolíticas como a de sujeito exilado, (i/e)migrante, expatriado ou, simplesmente, deslocado que levam em conta, sobretudo, as polaridades de lugares de partida e de chegada ou condições jurídicas, o pesquisador francês Alexis Nouss (2016) toma a figura do/a exilado/a e/ou do/a migrante em sentido ontológico (‘ser exilado’), histórico e político do termo, declinado em diferentes circunstâncias temporais e espaciais. Nessa ordem de ideias, cria o neologismo ‘exiliência’:

Núcleo existencial comum a todas as experiências de sujeitos migrantes, quaisquer que sejam as épocas, as culturas e as circunstâncias que as acolhem ou que as provocam, a exiliência declina-se em condição e consciência, podendo inclusive acontecer que as duas, em graus distintos, não coincidam: pode alguém sentir-se em exílio sem ser concretamente um exilado (consciência sem condição), como pode alguém ser um exilado em concreto, sem contudo sentir-se em exílio (condição sem consciência) (Nouss, 2016, p. 53).

De acordo com o teórico, o sintagma bipolarizado ‘condição e consciência’ traduz as ligações entre interioridade e exterioridade, sensações e sentimentos, o quadro real e o psíquico, os dados empíricos e o modo como tais dados são apreendidos. Sendo assim, há que se adentrar o território da ética para abordar a questão, já que se trata de pensar reações possíveis da consciência face à condição exílica.

Desenvolvimento

Do ponto de vista da literatura brasileira de autoria feminina, pensar a ‘exiliência’ de mulheres das últimas décadas do século XX a esse início, já bem adiantado, do XXI implica percorrer um caminho que avança paralelamente aos desdobramentos do feminismo e suas conquistas rumo à superação da famigerada ‘condição feminina’, condição de oprimida, de subjugada, de silenciada, enfim.

Clarice Lispector, em A hora da estrela (1977), constrói uma Macabéa deslocada, marcada pelo ‘não ser’ e pelo ‘não te’; não ter, sobretudo, um lugar além das páginas do livro cuja escritura está sendo encenada. Migrante nordestina, ela experimenta a exiliência de que fala Nouss (2016) declinada apenas em condição, já que não tem consciência do quanto é estrangeira na cidade que, nas palavras do narrador, lhe é ‘inconquistável’. Embora leitor/a e narrador percebam a condição exílica que alicerça toda a trajetória da personagem, ela própria parece só se dar conta disso na sua ‘hora de estrela’, momento fugaz em que experimenta uma espécie de epifania na qual fica sugerido, no seu campo de consciência, o descortino da sua exiliência.

Na década seguinte, A república dos sonhos (1984), de Nélida Piñon faz emergir importantes reflexões acerca da condição exílica e da exiliência de mulheres a partir da perspectiva da mulher, ecoando certo movimento observado na ficção brasileira dos anos 80 “[...] de interrogar a inscrição do sujeito no conjunto do patrimônio cultural e no devir transcultural da Nação” (Tonus, 2012b, p. 87). Nesse sentido, avultam os estudos do imigrante como figura literária. Segundo Leonardo Tonus (2012a, p. 63),

[...] o imigrante e sua descendência passam a ocupar um lugar central em autoficções (Salim Miguel, Nur na escuridão, e As aves de Cassandra, de Per Johns) e nos chamados romances familiares (Raduan Nassar, Lavoura arcaica, Lya Luft, A asa esquerda do anjo, Milton Hatoum, Relato de um certo oriente e Dois irmãos, e Nélida Piñon, A república dos sonhos). Do mesmo modo, aos conflitos geracionais, associam-se agora os conflitos decorrentes de uma pretensa desterritorialização que a presença de vozes descentradas, hibridas e bastardas, expurgadas de suas escórias, vem corroborar.

De fato, o romance de Piñon explora, com maestria, a saga familiar de Madruga no Brasil, para onde veio ainda menino ‘fazer a América’, explorando-lhe os sonhos e, principalmente, as agonias peculiares à sua condição de imigrante. No entanto, para além das pelejas do patriarca pela plena cidadania, vislumbrada na perda jamais consumada do rótulo de estrangeiro que, a despeito do sucesso empresarial, o marginalizaria até o fim, a trajetória de Eulália remete à condição exílica em uma dimensão que transcende a experiência transcultural: ela não só está em um país que não é o seu, mas também presa a um destino de mulher que além de não lhe conferir plenitude existencial, ela intui não ser o único possível. Tanto o pai, quanto o marido lhe haviam explicado “[...] a vida pela metade [...]” (Piñon, 1984, p. 14). Dito de outro modo, permitiram-lhe saber apenas o que rezava a cartilha do patriarcado: Dom Miguel, ‘excessivamente zeloso com a filha’, ‘a mantinha quase num cárcere encantado’, conservando-a “[...] dentro da casa, para que se esquecesse da paisagem de Sobreira, por meio de histórias e frutas sumarentas colhidas da horta [...]” (Piñon, 1984, p. 441); Madruga, por seu turno, “[...] manteve a vida, rigorosamente secreta, fora das grades da casa [...]”, não “[...] permitiria que Eulália sofresse [...]”, bastava-lhe “[...] a saúde frágil, e ainda a inclinação para o devaneio [...]” (Piñon, 1984, p. 126). A ‘exiliência’ da personagem, portanto, tomada no seu sentido mais amplo, ou seja, na cisão com a terra natal, com o mundo vislumbrado para além dos muros da casa, e, sobretudo, com certa parte de si, espoliada antes que ela pudesse apreendê-la, parece declinada em condição e em consciência. Em alguma medida, a personagem sabe-se apartada do que foi e viveu na terra natal, mas também da plenitude existencial que poderia experimentar, não fossem as amarras de gênero.

Também Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, põe em cena a protagonista Lena experimentando a ‘exiliência’, conceituada por Nouss (2016), declinada em condição e em consciência: de um lado, ela se vê forçada a deixar o país, fugindo dos horrores da Ditadura Militar, e a vivenciar os terrores e os temores do exílio e da clandestinidade; de outro, vivencia a subjetivação da experiência exílica, mesmo estando já de volta ao Brasil, quando, na casa da mãe, tenta se convalescer, equacionando os traumas da ditadura que, propagando-se em diversas direções e provocando toda sorte de cisões, a impediam de exercer o jornalismo e de tocar a vida adiante.

Ao que nos parece, esses romances, a exemplo de outros publicados por mulheres na mesma década de 1980, como também é o caso de A asa esquerda do anjo (1981) de Lya Luft, retratam a exiliência de mulheres, declinada, nos termos referidos por Nouss (2016), em condição e, sobretudo, em consciência, por meio de um discurso alicerçado na crítica da dominação masculina e nos seus ecos disseminados em práticas de poder. Tais protagonistas, ao colocarem em perspectiva a condição exílica a que são submetidas, para além dos desdobramentos da própria desterritorialização, na esfera das relações hierarquizadas de gênero, fomentam o debate feminista e a revisão de valores tão cara ao contexto em que emergem.

Na literatura brasileira recente escrita por mulheres, as chamadas narrativas ‘de’ ou ‘sobre’ a imigração, tão comuns nos anos 80, como salienta Tonus (2012a), se propagam de maneira bastante intensa, embora revestidas com nova roupagem, segundo as influências do contexto sociocultural em que emergem. A pesquisa ‘Literatura brasileira contemporânea de autoria feminina: escolhas inclusivas?’, a que nos referimos no início dessas reflexões, analisou, a partir de uma perspectiva epistemológica feminista, 88 romances publicados por mulheres na última década e meia, com atenção especial no modo de construção de cada uma das 369 personagens consideradas fundamentais para o desenrolar dos acontecimentos. O objetivo central foi perscrutar se as escolhas dessas escritoras quando do desempenho da tarefa de representar o outro são inclusivas, no sentido de trazerem para a cena literária práticas e discursos vedados a seguimentos sociais marginalizados e/ou de minorias; saliente-se aí nosso olhar interessado em reconhecer (ou não) apadrões de comportamento, tradicionalmente, interditados à mulher, como é o caso da livre transposição de fronteiras. Nesse recorte, 102 personagens (27,6%), integrantes de 21 romances[1] (25%), vivenciam intensas experiências de deslocamentos. A pulsão de errância, aqui tomada nos termos de Michel Maffesoli (2001), é representada, com maior recorrência, como parte de um esforço de (re)construção identitária de suas protagonistas, flagradas em momentos de crise em que problematizam os valores estabelecidos, de ordem genealógica e/ou nacional, recebidos como espécies de heranças compulsórias que, embora de uma maneira ou de outra lhes pesassem como fardos às costas, nunca puderam renegar. Esse esforço, não raro, acaba por redundar no repúdio a tais heranças, as quais são substituídas por afiliações a comunidades afetivas e a territórios descentrados. De outro lado, a referida pulsão de errância funciona como estratégia de afirmação de si como sujeitos de suas histórias, de modo que o deslocar-se nos parece sinalizar autonomia, agência, bem como capacidade de repudiar os confinamentos compulsórios de certos sistemas políticos, ideológicos e/ou familiares que aprisionam em nome de seus valores e de seus afetos. Seja como for, a pulsão de errância, como sugere o sociólogo francês acima citado, tão recorrentemente representada nessas narrativas, parece implicar uma espécie insurgência contra o compromisso de residência que prevaleceu durante toda a modernidade, em que as massas foram domesticadas, assentadas no trabalho e fixadas no seu devido lugar, de onde poderiam ser mais facilmente dominadas.

O ir e vir que permeia a trajetória das/os protagonistas dessas narrativas, nesse sentido, é impulsionado por uma multiplicidade de situações derivadas, grosso modo, do desejo ou da necessidade de (re)construção identitária e de processos de subjetivação que, como tal, pressupõe agência. No caso de Uma ponte para Terebin (2006), de Letícia Wierzchowski, romance inspirado na trajetória do avô da escritora, Jan Wierzchowski (2006), as viagens do protagonista entre a Polônia e o Brasil têm motivação política. Trata-se da história de um imigrante polonês que veio para o Brasil anos antes de a Polônia ser invadida pela Alemanha, durante a 2º Guerra mundial, no entanto, acaba por voltar para lá, como voluntário da guerra, por não suportar acompanhar só pelos jornais notícias permeadas de palavras como ‘centenas’, ‘milhares’, ‘bombardeios’, ‘refugiados’, ‘avanço’, ‘invasão’, sabendo estarem lá, em meio a tudo isso, rostos e nomes de familiares e amigos que lhe eram tão caros. Enquanto isso, a esposa Anna fica sozinha no Brasil, vivenciando uma dolorosa e corajosa espera, que inclui cuidar de um filho doente e saber que, agora, entre os destroços da guerra, perambula um rosto seu. Embora seja ele o exilado, num certo sentido, ela também experimenta uma espécie de condição exílica, peculiar por ser vivenciada na terra natal, fazendo saltar aos olhos do/a leitor/a que a sua imobilidade não era, certamente, um desejo seu, mas uma imposição daquele contexto de guerras e de condições pouco favoráveis às mulheres.

Já em Judite no país do futuro (2008), de Adriana Armony, a protagonista, depois de uma infância de privações, vem da Palestina para o Brasil ainda adolescente, fugida da guerra, da fome, da pobreza, onde formou família. No presente da narrativa, já idosa, rememora sua trajetória permeada das agruras da condição exílica, declinada em condição e em consciência. Mas é em Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, que se vê representada no romance contemporâneo de autoria feminina a súmula da exiliência feminina, declinada em condição e em consciência, conforme pondera Nouss (2016). A condição exílica de Kehinde se desdobra, no contexto da diáspora africana, motivada por interesses econômicos e de poder, em um doloroso processo que tem início, ainda na infância, com a sua captura e tráfico para o Brasil, junto a outros/as negros/as que seriam igualmente escravizados/as. A problematização da exiliência da protagonista está, nesse sentido, associada à perda da identidade africana, materializada na cisão com a terra natal, com a família, com suas crenças, com sua língua e até com seu próprio nome, conforme se pode constatar no fragmento que segue:

Não sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo. Mas o pior de todas as sensações mesmo não sabendo direito o que significava, era a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar dentro de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família, estava indo para um lugar que não conhecia, sem saber se ainda era para presente ou, já que não tinha mais a Taiwo, para virar carneiro de branco (Gonçalves, 2011, p. 61).

A despeito de toda ordem de imobilidades que sua condição de mulher negra e escrava lhe impunha, sua longa trajetória é permeada de idas e vindas, por meio das quais ela vai (re)conquistando e (re)construindo a identidade e a cidadania espoliadas pela escravidão e pelos preconceitos, literalmente, sentidos na pele. Há que se salientar, nesse sentido, que tanto a viagem de volta à África, após conseguir comprar sua liberdade e a do primeiro filho, quanto a de retorno ao Brasil, já idosa, em uma última e definitiva tentativa de reencontrar o outro filho, vendido pelo pai branco para pagar dívidas de jogo, remetem à agência que marca profundamente a trajetória da personagem. Por meio da primeira, ela (re)conquista sua cidadania via independência financeira e retomada das relações com seu povo e suas origens; com a segunda, ela reforça sua condição de mulher-sujeito, desde o princípio demonstrada em meio a suas escolhas e dores.

Ao retratar experiências exílicas de mulheres em contextos tão disfóricos e/ou representá-las em situações de deslocamentos diversos, esses romances fazem avultar, cada um a seu modo, figuras femininas empenhadas em processos de reterritorialização e na (re)construção de suas identidades, num longo, lento e árduo processo de subjetivação que pressupõe agência e empoderamento.

Já em romances como Voltar a Palermo (2002), de Luzilá Gonçalves Ferreira, e Mar azul (2012), de Paloma Vidal, as experiências exílicas, relacionadas com a Ditadura Militar na Argentina, sejam elas vivenciadas pela própria narradora, caso do romance de Vidal, seja por personagens secundárias como ocorre no romance de Gonçalves Ferreira, são propagadas, no presente das narrativas, na trajetória de ambas as narradoras-protagonistas, afetadas cada uma a seu modo por seus desdobramentos. No primeiro caso, tendo morado por dois anos na Argentina, ocasião em que experimenta uma intensa história de amor com Nino, um professor de bandoneón[2], militante de esquerda levado, anos depois, pelos militares e mantido prisioneiro político por mais de dez anos, Maria, uma professora universitária brasileira, ao encontrar, vinte anos mais tarde um bilhete dele nas páginas de um livro, decide voltar a Buenos Aires na expectativa da retomada daquela história que, no entanto, não se realizaria. Não só porque, após a sua volta para o Brasil, Nino se reintegrara à vida de casado, antes suspensa, face à insanidade mental da esposa, a qual ele se empenha veementemente em reverter; mas também porque ele volta do ‘cativeiro’ completamente alheio a tudo, imerso em um estado de coisas em que ela, certamente, não caberia. O percurso da narradora-protagonista, todavia, nessa viagem que, a princípio, se fundava em um possível reencontro de um amor do passado, acaba por se converter em uma grande reflexão acerca de toda sorte de condições exílicas que emanam daquele contexto de repressão que se seguiram aos anos em que viveu na Argentina. Ao mesmo tempo em que rememora o passado, ela o coteja com os relatos da ditadura que se lhe vão apresentando. Aí avultavam os conflitos familiares gerados por posicionamentos diferentes frente ao Regime, as sombras de desconfiança que colocava todos sob suspeita, os relatos de atos públicos que acabavam em morte, o sumiço de líderes religiosos e intelectuais, críticos do sistema, com quem ela travara contato no passado, o desaparecimento de jovens idealistas, e, em meio a tudo, o empoderamento de mulheres na defesa de filhos e maridos perseguidos. Trata-se, enfim, de uma trajetória de uma mulher que, preparada para resgatar uma história de amor do passado, se vê no âmago dos destroços de um regime político totalitarista, responsável por aniquilamentos de toda ordem, desenraizamentos forçados, projetos de vida desestabilizados, histórias de amor interrompidas, famílias desestruturadas ou esfaceladas… tudo somado, o resultado aponta para a “[...] metamorfose profunda [...]” (Ferreira, 2002, p. 72) que, segundo a personagem, se opera nela: “Eu voltava sozinha. Mas voltava mais rica, com a alma e o coração carregado de imagens fortes” (Ferreira, 2002, p. 215). Talvez, mais sensível aos grandes dilemas de ordem política, eivados de perdas irreparáveis, de batalhas de jovens idealistas que se alegravam em “[...] lutar por algo que os ultrapassava” (Ferreira, 2002, p. 46). Ela que se “[...] julgava inteligente e esclarecida, progressista e lúcida [...]” (Ferreira, 2002, p. 71), quando o assunto eram os desmandos de estruturas políticas de extrema-direita, até então, apenas se comovia ou “[...] votava em favor dos que apregoavam mais justiça, mais igualdade, mais democracia” (Ferreira, 2002, p.71).

Em Mar azul (Vidal, 2012), a viagem se dá em sentido contrário: embora não haja referências explícitas aos locais em que a história transcorre, fica sugerido que a cidade natal de onde provém a narradora-protagonista é Buenos Aires, sendo o Rio de Janeiro a cidade estrangeira na qual ela se encontra no presente da narrativa, já na maturidade rumo à velhice, e que lhe serve de cenário para suas rememorações de cenas e de acontecimentos do passado. Como em Algum lugar (Vidal, 2009), o primeiro romance da escritora, também aqui são recorrentes imagens de imigrantes, exilados e viajantes, em movimentos que fazem emergir as relações estabelecidas com os lugares de destino, com ênfase no desconforto suscitado pelos ‘desencontros’ entre a língua materna e aquela falada nesses novos espaços. É nesse contexto que, entre o desempenho de atividades domésticas cotidianas, as visitas a médicos de especialidades diversas e os passeios nos arredores que incluem pequenas compras e a natação, essencial à saúde, vai, aos poucos, fruindo a leitura dos diários do pai e, ao mesmo tempo, escrevendo suas próprias reminiscências no verso das suas páginas. Trata-se de uma rotina que, se a princípio não gera expectativas, tão corriqueira parece, vai aos poucos descortinando em meio à solidão exílica peculiar aos expatriados, a rememorações, insinuações e sugestões, uma espécie de projeto seu de inquirir o passado a procura de pistas da sua presença na trajetória do pai, bem como da presença dele na sua. Ambas afetadas de forma incontornável pela Ditadura Militar Argentina; no caso da dela, duplamente afetada: por meio da perda da sua melhor amiga, adolescente desaparecida, vítima dos desmandos e das atrocidades da ditadura; assim como pela constante ausência do pai, sempre de partida, em função de seus envolvimentos com aparelhos de esquerda, até exilar-se definitivamente no Brasil. Do ponto de vista dessas nossas reflexões, importa salientar que, mais uma vez, o deslocamento espacial da protagonista para o Rio de Janeiro parece relacionado ao processo de subjetificação pelo qual ela passa. Trata-se, a nosso ver, de parte de uma estratégia sua de enfrentamento do passado, em busca de respostas para suas inquietações identitárias. E se, a princípio, ela resiste, numa tentativa de autoconvencer-se de que deseja esquecê-lo, vai avançando por entre lembranças e escritos, insinuando ao/a leitor/a, por meio do longo diálogo com a amiga da adolescência que abre a narrativa, ter conseguido seu intento – contar pra todo mundo os desdobramentos das experiências forjadas a ferro e a fogo pelas mãos da Ditadura Argentina.

Já os romances A chave de casa (2010), de Tatiana Salém Levy, e Rakushisha (2007), de Adriana Lisboa, têm suas protagonistas inseridas em contextos de viagem, vivenciados no mundo contemporâneo e, portanto, regidos por parâmetros feministas, fazendo emergir representações de mulheres cujas trajetórias, se não remetem à exiliência, conforme a conceitua Nouss (2016), por não se classificarem, propriamente, como migrantes, são, em grande medida, marcadas e afetadas pela desterritorialização. São personagens flagradas em situações de deslocamento que, ao experimentarem a sensação de dispersão e de vulnerabilidade das metrópoles, cujos rostos, língua, cultura e valores são tão diferentes dos seus, acabam imersas em questionamentos acerca de si, de seus lugares e papéis em um mundo, trágica e finalmente, percebido como dessemelhante, plural e instável. Deslocam-se no espaço e, em meio a sensações que as colocam em uma espécie de condição exílica, ainda que sabidamente provisória, operam viagens interiores, circulam por “[...] memórias individuais e coletivas, ‘espaços de linguagem’, para onde convergem a infância, a busca das origens, e do espaço identitário” (Cury, 2012, p. 20-21).

Ambas as personagens empreendem descobertas acerca de si e do outro. Celina, a protagonista de Rakushisha (ao lado de Haruki) consegue sintetizar o enfrentamento da morte da filha, espécie de nó em sua trajetória que há anos a mantinha imersa em um mundo de sombras, fracassadas que eram as tentativas de esquecimento. A solidão que experimenta em Kyoto, enquanto se dá conta de “[...] que não pertence, que não entende, que não fala [...]” (Lisboa, 2007, p. 134), deflagra, em meio às cenas corriqueiras do cotidiano, fragmentos de memória num movimento contínuo e natural que, ao final, acaba por possibilitar à personagem a reorganização do trauma, num movimento que inclui o perdão do outro e a reconstrução de si: “[...] estive reaprendendo a andar [...] depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguém vai se importar muito, afinal quem somos nós se não menos do que anônimos aqui” (Lisboa, 2007, p. 12).

De maneira similar, a narradora de A chave de casa (Levy, 2010), tendo recebido do avô a chave da casa da família na Turquia, bem como a missão de ir ao seu encontro, parte, não sem resistência, em busca das origens familiares, cujos ecos habitam a memória de seus antepassados e a sua, assombrando-lhes com ancestrais códigos morais e práticas culturais, propagadas, sob o manto do afeto, quase sempre em forma de opressão e de repressão. A viagem, nesse sentido, configura-se como metáfora de enfrentamento. A busca da casa ganha foros de busca pelas tradições culturais e genealógicas da família, visando, num certo sentido, a superação de influências restritivas sobre sua trajetória e, de outro lado, o redimensionamento de suas identidades: apesar de não se reconhecer, inicialmente, como turca, passar a questionar a sua brasilidade, ponderar a sua acidental natalidade portuguesa, ela acaba por resgatar-se a si própria, compreendendo e assimilando seu hibridismo identitário, revendo, enfim, suas heranças e as equacionando em novas bases. No dizer de Brandão (2015, p. 150, grifo do autor),

O ‘sair de casa’ dessa protagonista implica não apenas sair de si mesma, mas ir de encontro – e confrontar – aos seus próprios fantasmas (da mãe, do avô, do amante, da escrita) para poder reconstruir-se afetivamente, que é o que ocorre quando ela retorna a Portugal, tendo já descoberto que a ‘chave de casa’ era ela mesma (ou estava dentro dela mesma).

Ao vivenciarem o choque oriundo do embate involuntário entre o ‘silêncio’ entendido, nos termos de Orlandi (1997), como a solidão do sujeito em face dos sentidos, e o ‘estranhamento’, que Lopes (2002) define como decorrência do “[...] jogo entre o distante e o próximo, o igual e o diferente, o arcaico e o moderno [...]” (Lopes, 2002, p. 176), ambas as personagens experienciam a ‘exiliência’ declinada na consciência do não pertencimento. Todavia, passam da dor que tal condição pressupõe para a esperança de plenitude vislumbrada no conhecimento de si e das questões que lhes permeiam as trajetórias.

As tramas ou histórias que constituem o romance Com que se pode jogar (2011), de Luci Collin, também são construídas de modo a enfatizar os processos migratórios empreendidos pelas três personagens centrais da narrativa. São personagens que, ambientadas em espaços socioculturais diferentes, vivenciando conflitos igualmente distintos, casualmente costurados pela atuação de uma quarta personagem que lhes marca definitivamente as trajetórias, empreendem, cada uma a seu modo, deslocamentos espaciais configurados como lutas pela sobrevivência. Trata-se de uma espécie de jogo, como sugere o título do romance e as ‘convocatórias’ que antecedem cada uma das histórias, constituído de debates e batalhas no entorno de questões de ordem socioeconômica, identitária e existencial. Ana Elisa Strobel de Medeiros é a primeira das personagens-protagonistas cujas histórias, drasticamente afetadas pela atuação de Rhuam, o elo entre elas, constituem a totalidade do romance. A advogada de sucesso, no presente da narrativa, autoexila-se em uma remota propriedade rural, junto aos três filhos pequenos, após ver o marido, um promotor de justiça renomado, ser assassinado gratuitamente, já que ela não suspeita que se trata de uma represália a determinada conduta profissional dele. Sendo assim, ela vislumbra na experiência exílica uma possibilidade de se reinventar face ao trauma da violência sem sentido da cidade grande. Já Melanta faz o percurso inverso: após ter sido sexualmente molestada pelo irmão mais velho e assistir o mais jovem ser acusado e punido pelo delito, deixa pai e mãe idosos e doentes em um lugarejo distante e parte para a cidade grande em busca de meios para sustentá-los. O romance se completa com a trajetória de Lena, adotada ainda bebê por um casal abastado, estudou nas melhores escolas e usufruiu de tudo o que o dinheiro pôde comprar até que, na adolescência, descobre detalhes de seu processo de adoção. A rebeldia vem, sobretudo, na direção da mãe que teria escolhido “[...] um bebezinho bem subnutrido, o pior de todos, o mais fudido [...] ” (Collin, 2011, p. 99), pago por ele com um “[...] cheque cheio de zeros [...] ” (Collin, 2011, p. 99) e o levado consigo para ser cuidado por uma de suas empregadas. Não fora, como lhe haviam contado, adotada com quatro dias de vida, mas comprada, em nome da filantropia, com dois meses, parecendo “[...] um bicho: o corpo cheio de feridas, sarna e piolhos” (Collin, 2011, p. 131). Daí a vida desregrada, o desprezo pelo dinheiro e pelo status da família, a gravidez, as drogas, a prisão e o aborto espontâneo, antes da errância pela Europa, da paixão por outro expatriado, de voltar ao Brasil e de se vingar, com a ajuda dele, do promotor de justiça, a quem atribui a culpa pela perda do filho, decorrente das agruras sofridas enquanto prisioneira, bem como da mãe, roubando-lhe bens. Todas as três, ao se perceberem em situação-limite, reagem por meio de saídas estratégicas do lugar de opressão. O deslocar-se dessas personagens, impulsionado seja pelo ‘desejo de outro lugar’, nos termos de Maffesoli (2001), seja pela crua impossibilidade de permanência, implica agência, no sentido de conquistar para si um lugar em que possam pousar os pés e se sentirem donas de seus destinos. Daí o lançar-se em mundos desconhecidos em busca de sobrevivência, perambular por centros e periferias de grandes cidades a procura de respostas, ou, por fim, isolar-se no campo num ato de preservação de si e daqueles que ama.

Fazendo caminhos inversos aos das protagonistas de Rakushisha (Lisboa, 2007) e de A chave de casa (Levy, 2010), que se lançam no mundo despersonalizado das metrópoles das multidões, da fragmentação e da descontinuidade, tal como a Ana da narrativa de Collin (2011) acima referida, as protagonistas de Paisagem com dromedário (2010), de Carola Saavedra, e de Paraíso (2014), de Tatiana Salém Levy, têm suas trajetórias marcadas por ‘escapadas’ para refúgios isolados, experimentando uma configuração exílica delineada com traços e contornos mais esgarçados: no primeiro, Érika, uma artista plástica se exila voluntariamente em uma remota ilha vulcânica, onde grava mensagens destinadas a Alex, artista como ela, com quem viveu uma intensa história de amor à qual, mais tarde, se junta a amiga Karen, transformando-a em um triângulo amoroso, até que esta morre acometida por um câncer agressivo. Numa espécie de roteiro cinematográfico, constituído das mensagens gravadas e de informações que as permeiam, situando-as no tempo, no espaço e no ambiente, a trajetória da personagem vai se desdobrando e fazendo emergir uma espécie de crise identitária, configurada, de um lado, no desejo de compreender as razões de ter abandonado Karen no momento em que ela mais precisava dela:

A mãe de Karen queria me pedir um favor. […] Queria que eu visitasse a filha, ou ao menos que ligasse pra ela. Para dizer o quê, eu perguntei. […] Desculpa? Sinto muito? O que a gente diz para alguém que vai morrer?(Saavedra, 2010, p. 40).

De outro, na inquietude instaurada pela dúvida de não saber até que ponto ela espelha em si a personalidade de Alex, como insinuam alguns, face às obras assinadas em conjunto:

Antes de Karen costumávamos trabalhar juntos, agora me lembro. Assinávamos Alex e Érika Z. Lembra? E nossos nomes formavam uma única marca, um único som. Alex e Érika Z. Muitos diziam que você me carregava nas costas, você o grande artista, e eu apenas aquela que te acompanhava. Aquela que nunca seria tão talentosa, tão importante, aquela que nunca teria nada novo a dizer. Sempre. Poucos viam, naquilo nosso, algo que pudesse ser meu. Mas era, você sabia. Muito ali era meu (Saavedra, 2010, p. 66).

Embora as gravações sejam endereçadas a Alex, a narradora-protagonista o faz sem pretensões de que ele as ouça. Ao invés disso, parece-nos tratar-se do simulacro de confissões, comentários ou depoimentos que, na verdade, consistem em estratégias de autoconhecimento, espécie de exercício retrospectivo, cuja finalidade é pôr luz sobre as significações de suas escolhas, bem como do modo como se relaciona com ‘o outro’ e, sobretudo, reconhecer a direção que deseja imprimir à sua história. A sugestão que fica é que se, ao final da experiência, ela, num certo sentido, repete as mesmas práticas, dando um simples ‘adeus’ ao homem com quem viveu, na ilha, uma história que avançava rumo ao casamento, e que depositava na relação uma esperança de ser feliz, é porque se reconheceu assim, incapaz de se doar, uma espécie de monstro, não no sentido de “[...] ser contrário à natureza [...]” (Saavedra, 2010, p. 45), mas, conforme aponta a etimologia da palavra, “[...] ser que vinha anunciar a vontade dos deuses”, espécie de arauto sem poderes para “mudar a vontade dos deuses” (Saavedra, 2010, p. 45-46). E, sendo assim, não está em jogo na narrativa problematizar o comportamento da personagem como mais nobre ou menos nobre, tampouco tecer juízos de valor sobre ética ou afetos, parece antes lançar um olhar pessimista em direção ao sujeito contemporâneo, cuja existência carece de sentido. Eis a direção em que avança a sua trajetória após a experiência exílica na ilha. De igual maneira, dá-se nesses termos a conquista da subjetificação desencadeada por tal experiência.

Também em Paraíso (Levy, 2014), a escritora Ana, após ter recebido a notícia que poderia ter contraído Aids num relacionamento casual, se refugia no sítio de uma amiga, enquanto espera, angustiada, o resultado do exame, para escrever. Soma-se a isso o fato de estar atemorizada pela maldição lançada sobre as mulheres da família, por uma sacerdotisa escravizada por seus antepassados, no século XIX, antes de ser enterrada viva, ao ser descoberta grávida de seu senhor pela esposa dele. A solidão e a escrita, nesse sentido, funcionariam como coadjuvantes na decisão de exorcizar esses fantasmas, talvez imaginários, por meio do enfrentamento que a pesquisa e a redação do romance exigiriam.

Mais uma vez, o exílio voluntário, permeado de medo e solidão, é retratado na ficção contemporânea de mulheres como uma prática que remete à agência. A despeito de problemas de linguagem que o romance possa ter, face ao argumento histórico, como assinalam alguns críticos; ou relacionados ao fato de a escritora, sob certos olhares, retomar lugares-comuns, como o do idílio amoroso entre artistas no recanto paradisíaco, o tema da subjetivação da mulher é orquestrado em meio às memórias da personagem-escritora, afloradas em decorrência de sua condição exílica, escolhida como estratégia para dirimir os fantasmas que há cinco gerações assombram as mulheres de sua família.

De modo especial, em um contexto que apesar, dos avanços feministas, a violência contra a mulher é registrada diariamente, em números cada vez mais alarmantes, o fato de Ana ir alinhavando, por entre as teias da trama, histórias de mulheres vitimadas por agressões de ordem diversa, ao que nos parece, legitima o argumento da narrativa relacionado à ‘maldição’ e lhe confere nova roupagem. Isso implica dizer que o tal sortilégio acaba por ser desmistificado de modo que o que lhe poderia ser atribuído, como o estupro sofrido por sua mãe, o assédio sexual que o padrasto lhe impunha, a violência simbólica vislumbrada na predisposição do parceiro ocasional em infectá-la com o HIV, aos quais se somam, no presente da narrativa, os constantes espancamentos sofridos pela caseira, seguidos do esfaqueamento, ao que tudo indica, também, executado pelo ex-marido, tem sua verdadeira razão de ser na violência contra as mulheres, aprendida culturalmente e passada de geração a geração até ecoar no mundo contemporâneo. Nessa ordem ideias, a exiliência experimentada pela protagonista redunda na rememoração/escritura de trajetórias femininas que fazem aflorar, entre outras questões, a da violência contra a mulher e a necessidade da agência feminina, de sua resistência e empoderamento, sendo já um exemplo disso a lucidez com que a protagonista olha para e registra a problemática.

Considerações finais

Não seria absurdo afirmar, tendo em vista as reflexões tecidas nas páginas anteriores, que, na literatura de autoria feminina publicada nos últimos quinze anos, a exiliência feminina, declinada em condição e/ou em consciência, conforme nos ensina Nouss (2016), é representada como estratégia de subjetificação de mulheres. Não aos moldes da tradição literária de mulheres dos anos 1980 e arredores, em que, não raro, personagens femininas são representadas como mulheres empoderadas, lutando com todas as forças e armas disponíveis contra a dominação masculina e a consequente opressão da mulher. Exílios voluntários, viagens e outros deslocamentos remetem, como acreditamos ter demonstrado, a partir do recorte analisado, a outras situações, avultadas em tempos mais favoráveis às mulheres, empenhadas em problematizar não as relações de gênero moldadas no seio do patriarcado, mas esforços de (re)construções de identidades femininas em si mesmas problematizadas, ou, simplesmente, de (re)conhecimento de si e de seu lugar no mundo.

Sendo assim, se no caso de Eulália, deA república dos sonhos (1984), de Nélida Piñon, tal esforço é consubstanciado no árduo processo de reconhecimento dos cerceamentos sofridos pela ideologia a que se liga sua casta familiar; e se, no de Lena, de Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, na reconstrução de uma vida estilhaçada pelas reverberações dos desmandos da Ditadura Militar, assentada na ordem patriarcal, nas obras publicadas após os anos 2000, as questões representadas tendem a ser da ordem do existencial, embora sempre questões coletivas as emoldurem.

No caso de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, questões de gênero e de etnia impulsionam o processo de empoderamento de Kehinde, a despeito de todo um sistema atuar contra; todavia, não poderia ser diferente, já que o romance é ambientado em tempos de escravidão e de subserviência feminina.

Situação bem diferente é a de Maria, personagem desenhada pela pena de Luzilá Gonçalves Ferreira, em Voltar a Palermo (2002), em que o esforço implicado na viagem a Buenos Aires é despendido na direção do alargamento dos seus horizontes políticos e pessoais; assim como o é, no caso de Mar azul (2012), de Paloma Vidal, no resgate da ascendência da narradora estilhaçada por entre os escombros deixados pela Ditadura Argentina; no redimensionamento das heranças genealógicas e nacionais da protagonista de A chave de casa (2010), de Tatiana Salém Levy; em Rakushisha (2007), de Adriana Lisboa, no enfrentamento da morte da filha empreendido por Celina; em Paisagem com dromedário (2010), de Carola Saavedra, no reconhecimento identitário da protagonista; e, por fim, em Paraíso (2014), de Tatiana Salém Levy, na superação de temores advindos de heranças genealógicas e na problematização das novas questões que, a despeito libertação há muito galgada via feminismo, incidem sobre e ainda perturbam a mulher contemporânea.

Referências

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Notas

[1] A chave de casa, de Tatiana Salém Levy (2010); A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi (2011); Azul corvo, de Adriana Lisboa (2009); Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna (2002); Consolação, de Betty Milan (2009); Corpo estranho, de Adriana Lunardi (2011); Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna (2006); Dois rios, de Tatiana Salém Levy (2011); Enquanto Deus não está olhando, de Débora Ferraz (2014); Judite no país do futuro, de Adriana Armony (2008); Mar azul, de Paloma Vidal (2012); Mil e uma noites de silêncio, de Mayra Dias Gomes (2009); O outro lado da sombra, de Mariana Portella (2014); O segredo do oratório, de Luize Valente (2012); Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra (2010); Paraíso, de Tatiana Salém Levy (2014); Por escrito, de Elvira Vigna (2014) ; Rakushisha, de Adriana Lisboa (2007); Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2006); Uma ponte para Terebin, de Letícia Wierzchowski (2006); Voltar a Palermo, de Luzilá Gonçalves Ferreira (2002).
[2] Espécie de acordeom, instrumento folclórico de origem alemã que chegou à Argentina na primeira década do século XX, e conquistou o lugar de símbolo da música de tango por melhor expressar a melancolia, a paixão e a profundidade do Tango Argentino.
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