Literatura

‘Panela velha é que faz comida boa’: tópica e inversão de tópica na poesia lírica grega

Commonplace and inversion in Greek lyric poetry

Luiz Carlos André Mangia Silva
Universidade Estadual de Maringá, Brasil

‘Panela velha é que faz comida boa’: tópica e inversão de tópica na poesia lírica grega

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 41, núm. 1, 2019

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 17 Abril 2018

Aprovação: 13 Setembro 2018

Resumo: No acervo de epigramas do livro V da Antologia Grega ou Palatina podemos encontrar diferentes grupos de poemas relacionados entre si pelo uso reiterado das mesmas tópicas ou lugares-comuns, constituindo assim subgêneros líricos. Focalizaremos 10 poemas circunscritos, respectivamente, à tópica da ‘profecia ameaçadora’, à do ‘regozijo com o cumprimento da profecia’ e àquela que denominaremos ‘panela velha, comida boa’ (esta última uma inversão das expectativas tradicionais), a fim de demonstrar a relação existente entre os três tipos de tópicas e os processos de inovação próprios da poética antiga.

Palavras-chave: Poesia grega, lírica erótica, análise literária, tópica ou lugar-comum.

Abstract: In this article we translate and analyse ten erotic poems extracted from Five Book of Greek Anthology. These poems show three topics or commonplaces – the threat prophecy, the gloading over fulfillment and the compliment of old women – and in our analyses we focus on relationship between them and the innovation processes in Greek lyric poetry.

Keywords: Greek poetry, erotic lyric, literary analysis, literary commonplace.

Introdução[1]

Não me interessa se ela é coroa

Panela velha é que faz comida boa

(Sérgio Reis, violeiro brasileiro)

Os gêneros literários gregos podem ser apreciados tanto por seus aspectos formais como por questões de conteúdo. No primeiro caso, trata-se de aproximar textos por características como metro e ritmo (os ‘gêneros’ por excelência, épico, lírico, dramático e suas subespécies) e, no segundo, de aproximá-los pela recorrência de uma tópica ou de estruturas mais ou menos formulares. Esta última compreensão dos gêneros considera a presença, na definição de Cairns (1972, p. 6), de “[…] um conjunto de elementos primários ou logicamente necessários que em combinação distinguem este gênero de cada outro gênero”[2]. Desenvolver uma análise da tópica nos gêneros (ou subgêneros) líricos antigos, como propõe Cairns, é útil porque nos prepara para o reconhecimento de certas estruturas frequentes na poesia clássica – afinal, o enquadramento do poema em certo gênero é sempre um desejo do poeta e uma exigência de seu público, já que ambos comungam de “[…] um corpo comum de conhecimento e expectativa” (Cairns, 1972, p. 7)[3] e o público espera pelas fórmulas conhecidas. Trata-se na verdade de um processo intertextual bastante sofisticado que tem na alusão um de seus mais importantes recursos – como define Vasconcellos (2007, p. 250, grifo do autor):

Embora estejamos conscientes de que o fenômeno da intertextualidade, se o tomarmos, como tantas vezes se faz, no sentido amplo de interdiscursividade, está presente em todo texto e em todo discurso, achamos conveniente recortar nesse fenômeno o caso da ‘arte alusiva’ dos poetas antigos, uma espécie de arte compositiva da qual fazia parte a citação mais ou menos indireta dos predecessores.

A alusão assim entendida deve ser pensada tanto em relação a discursos anteriores concretos (evocação de certo poema em particular) como, mais abstratamente, em relação às fórmulas disponíveis na cultura, pois a “[…] existência na Antiguidade de fórmulas muito numerosas de temas que foram adiante de uma geração à outra” (Cairns, 1972, p. 32)[4] permitem ambos os processos. Rieu (2013, p. 57), atento aos processos envolvendo a composição das obras de Homero, afirma (e isso se aplica a qualquer bardo clássico) que “[…] a prática dos poetas antigos consistia em construir seus edifícios com a ajuda de tijolos tirados de estruturas preexistentes”, referência clara aos recursos da poética antiga.

Com as análises dos poemas (que pertencem, formalmente, ao gênero epigrama, por sua brevidade e pelo verso elegíaco), demonstraremos que eles desenvolvem gêneros líricos conhecidos na poesia clássica. Procuraremos reconhecer neles, na perspectiva da análise tópica, os elementos primários (o eu, o tu e a relação estabelecida entre eles) e os secundários, os tópoi ou lugares-comuns propriamente ditos que “[…] ajudam, em combinação com os elementos primários, a identificar um exemplo de gênero” (Cairns, 1972, p. 6)[5]. A aparente pobreza de uma poética centrada na ‘arte alusiva’ dará lugar à percepção de que diferentes mecanismos de inovação estavam disponíveis ao poeta antigo e que a incorporação de discursos anteriores nunca é feita de modo ingênuo. Assim, evidenciaremos neste artigo a riqueza existente no processo de composição antigo, focalizando os expedientes que circunscrevem os poemas a gêneros líricos específicos, com ênfase no processo inovador de construção de uma antitópica.

A profecia ameaçadora

A profecia ameaçadora constitui, no âmbito da poesia grega, um gênero ou subgênero lírico que pode ser relacionado ao convite amoroso e ambos ao carpe diem, uma vez que o convite amoroso e a profecia ameaçadora encontram, na efemeridade da vida, a urgência de desfrutá-la pois, como afirma Achcar (1994, p. 127), “A passagem do tempo é sempre a justificativa do convite”. Trata-se de um gênero, no sentido que estamos apreciando, submetido a um tipo maior, o da profecia como um todo, sendo a profecia ameaçadora, de matriz erótica, uma forma particular de seu desenvolvimento: “Embora não mencionado por tratadistas antigos, pode-se considerar que há um gênero ‘profecia’ e que dele se desenvolveu uma forma particular de ‘profecia ameaçadora’” (Achcar, 1994, p. 127-128, grifos do autor). O gênero profecia pode ser definido assim, nas palavras de Cairns (1972, p. 85):

O falante se encontra em situação que não lhe agrada e a culpa ou responsabilidade por isso recai, em sua opinião, sobre o destinatário. O falante adverte/profetiza/deseja que o destinatário possa no futuro encontrar-se em diferente condição, em que não mais incomode o falante. O objetivo da ameaça é induzir o destinatário a agir mais rapidamente para aliviar o atual desconforto do falante (Tradução do trecho apud Achcar, 1994, p. 128).

Quanto à profecia ameaçadora, Cairns (1972, p. 85) estabelece, na sequência de suas ideias, que “O gênero é comumente usado quando o falante está apaixonado pelo destinatário e quando o falante está desconfortável porque o destinatário não cederá à sua paixão”[6]. A situação discursiva, neste caso, envolve, um falante (o eu lírico), um destinatário (no caso, uma jovem indiferente aos apelos do eu lírico) e a mensagem, a profecia ameaçadora. A situação discursiva constitui os elementos primários do gênero. A mensagem nos fornece a evidência dos interlocutores envolvidos ou os elementos primários, mas também os elementos secundários, os lugares-comuns (tópoi) – vocábulos, expressões, metáforas, afins ao gênero em questão.

Nos três casos analisados adiante, a profecia ameaçadora constitui o gênero poético. Em nossas análises, procuraremos evidenciar a presença dos elementos tópicos primários e secundários, demonstrando o pertencimento dos poemas a este gênero e os recursos de que faz uso para inovar. Passemos ao primeiro caso:

(1) Πέμπω σοι, Ῥοδόκλεια, τόδε στέφος, ἄνθεσι καλοῖς

αὐτὸς ὑφ᾽ ἡμετέραις πλεξάμενος παλάμαις.

ἔστι κρίνον, ῥοδέη τε κάλυξ, νοτερὴ τ᾽ ἀνεμώνη,

καὶ νάρκισσος ὑγρός, καὶ κυαναυγὲς ἴον.

ταῦτα στεψαμένη, λῆξον μεγάλαυχος ἐοῦσα·

ἀνθεῖς καὶ λήγεις καὶ σὺ καὶ ὁ στέφανος.

Oferto-te esta guirlanda,

oh Rodocleia, que eu próprio

enlacei de belas flores

com as minhas hábeis mãos.

Há lírios e rubros cálices

e anêmonas pantanosas

e narcisos delicados

e violetas azuladas.

Coroada com as flores,

abandona o teu orgulho,

pois floresces e feneces

assim como esta guirlanda[7].

O poema acima (Rufino, AP5, 74), associado à tópica do carpe diem, com a brevidade da vida manifesta no fenecer das flores, também pode ser relacionado à tópica do convite amoroso (a consequência da brevidade é a urgência da entrega ao amor), ou, ainda, enquadrado na tópica da profecia ameaçadora, sobretudo por seu arremate (v. 5-6), em que o eu lírico censura a cortesã Rodocleia por sua beleza intocada (por ele!), beleza que compara com flores, cujo viço não é duradouro. Os gêneros mencionados (carpe diem, convite amoroso e profecia ameaçadora) são fronteiriços e fazem, ou podem fazer, uso dos mesmos elementos primários (estrutura discursiva) e secundários (tópoi).

No poema, vemos o eu lírico dirigindo-se à sua interlocutora, a cortesã Rodocleia, a quem oferece uma guirlanda (stéphos, v. 1) que ele próprio (autós, v. 2) trançou (pleksámenos, v. 2) com as mãos (palámais, v. 2), feita com as mais belas flores (ánthesi kalôis, v. 1). A entrega da guirlanda a uma cortesã, comum entre os epigramistas da Palatina, constitui por si só um convite amoroso: ela é a marca da predisposição do amante para o amor. Seguidamente, no poema, ele especifica, um a um, os tipos de flores enlaçadas: na guirlanda há lírio (krínon, v. 3), rosa rubra (rhodée kályks, v. 3), anêmona (anemóne, v. 3), narciso (nárkissos, v. 4) e violeta (íon, v. 4). Se o primeiro dístico destaca a ação do eu lírico de tecer a guirlanda, o segundo, como se vê, focaliza cada flor em particular envolvida nessa ação.

Uma vez composta, a guirlanda já pode ser doada: nos versos 5-6, entregando o presente, o amante pede que Rodocleia abandone (lékson, v. 5) seu orgulho (megálaukhos, v. 5), obstáculo que os afasta. De posse da guirlanda e atenta à fugacidade de seu viço, beleza e perfume, Rodocleia é exortada a refletir sobre o fenecimento de suas qualidades – afinal, também ela (kaì sý, v. 6), assim como uma guirlanda, floresce (anthêis, v. 6) e fenece (légeis, v. 6) celeremente. O termo que encerra o poema é justamente ‘guirlanda’, vocábulo mais frequente na Palatina (stéphanos, v. 6). Note o leitor que essa palavra, encerrando o poema, constitui uma síntese de tudo o que pretende o poema: colocar diante dos olhos da amante (e do leitor) o objeto-símbolo da brevidade da beleza. Ele representa, a um só tempo, o elogio ao viço floral e feminil, bem como sua rápida passagem. É o verso final que permite encaixar adequadamente o poema no gênero da profecia ameaçadora: com a comparação entre beleza floral e beleza feminina e o destaque para ideia de florescer e fenecer que a ambas atinge, o eu lírico vaticina sua profecia.

Não deixemos de mencionar que o nome da cortesã Rodocleia, embora compareça em outros poemas de Rufino (permitindo até vislumbrar um circuito ligado a essa cortesã), se em outros casos ocorre sem motivação, no presente ele se relaciona apropriadamente ao tema: composto de rhódon (‘rosa’) e kléos (‘fama’), o nome Rhodókleia destaca a presença floral de seu renome, informando que a amante é renomada por seu viço (ao pé da letra, ‘renomada pela rosa, pelo viço’). Essa explicação, em tudo concorde com o tema do poema, deve ser alinhada ainda a outra, em que o termo ‘rosa’ pode ser entendido como uma metáfora para designar a genitália feminina; note que esse segundo sentido faz da cortesã uma amante renomada por seu sexo, o que de novo está de acordo com o mundo de nossos personagens.

(2) Οὕτως ὑπνώσαις, Κωνώπιον, ὡς ἐμὲ ποιεῖς

κοιμᾶσθαι ψυχροῖς τοῖσδε παρὰ προθύροις.

οὕτως ὑπνώσαις, ἀδικωτάτη, ὡς τὸν ἐραστὴν

κοιμίζεις· ἐλέου δ᾽ οὐδ᾽ ὄναρ ἠντίασας.

γείτονες οἰκτείρουσι· σὺ δ᾽ οὐδ᾽ ὄναρ . ἡ πολιὴ δὲ

αὐτίκ᾽ ἀναμνήσει ταῦτά σε πάντα κόμη.

Que durmas assim, Conópion,

do modo como tu fazes

com que eu adormeça: junto

de frias portas fechadas.

Durmas assim, injustíssima,

do modo como adormeces

este teu amante: nem

mesmo em sonho piedade.

Vizinhos se compadecem.

Tu, nem em sonho. Teus cachos,

de repente encanecidos,

hão-de recordar-te disso.

O poema acima (Calímaco, AP 5, 23) deve ser associado, e corretamente, ao gênero kômos. Cairns (1972, p. 87), que cita este poema de passagem, entende que os tópoi que o confeccionam foram antes produzidos nesse gênero maior (o gênero ‘festa’ ou ‘serenata’). Há quem nomeie a situação discursiva acima, sem dúvida submetida ao gênero festa (como o convite amoroso se submete ao carpe diem), com o termo paraklausíthyron, isto é, ‘lamento diante de uma porta fechada’, frequente entre os poetas da Palatina. Trata-se da seguinte situação discursiva (elementos primários): o amante, trancado para fora do lugar de encontro, faz súplicas à cortesã, que não o atende (ou porque não quer, ou porque possui em seu leito outro amante). Note que o tipo de tópica tratada aqui permite relacionar o poema com o kômos, como também permite que se veja nele uma peça do gênero profético, particularmente de profecia ameaçadora de caráter erótico; o poema pode ainda ser relacionado, de modo mais ou menos direto, com o gênero do carpe diem, pela imagem da velhice que impele a fruir o tempo que passa. O pertencimento do poema ao gênero da profecia ameaçadora é, em nosso entender, o mais adequado, se nos fiarmos na configuração antes apresentada, a saber, de que um falante, em situação de desconforto, deseja que o outro ocupe o mesmo lugar em momento futuro, amando sem ser amado (Cairns, 1972, p. 85).

Quer o amante (tòn erastén, v. 3) dormir com Conópion (v. 1), mas só consegue dormir diante de uma porta fria: os verbos que sinalizam essa ação são hypnósais (que aparece duas vezes no poema, v. 1 e v. 3) e koimâsthai e koimízeis (v. 2 e v. 4). A cortesã, porém, recusa-se a recebê-lo – daí que seja chamada de injustíssima (adikotáte, v. 3): ela mantém fechadas as portas (prothýrois, v. 2), por isso sentidas como frias (psykhrôis, v. 2). Note que a relação deste poema com o gênero do lamento diante de porta fechada (o paraklausíthyron) é evidente, ainda que nós prefiramos interpretá-lo à luz do gênero profecia ameaçadora.

Sentir pena (eléou, v. 4) do amante abandonado, ela não sente nem em sonho (oud’ónar). Notemos que a expressão ‘nem em sonho’ ocorre duas vezes no poema (v. 4 e 5), o que acentua a indiferença de Conópion. Se ela, porém, não se comove, é diferente o que se passa com os vizinhos (géitones, v. 5), pois eles sim se compadecem (oiktéirousi, v. 5), mas nada podem fazer pelo eu lírico.

Apenas nos versos finais surge a profecia de fato: apontando para o futuro, o eu lírico evoca as cãs (polié, v. 5) como as vingadoras da situação presente; elas virão tingir de branco a cabeleira (kóme, v. 6) da cortesã, punindo sua soberba; ela então se lembrará (anamnései, v. 6) de todos os males (tâuta pánta, v. 6) causados ao eu lírico no momento presente. Note que essa punição será súbita, repentina (autík’, v. 6), como costuma ser a chegada da velhice.

Parece pertinente, enfim, ver neste poema a predominância da tópica da profecia ameaçadora, materializada particularmente nos versos finais, mas, sobretudo, no fecho do poema: tanto ou mais importante do que a abertura (no poema analisado anteriormente, o termo final era ‘guirlanda’, stéphanos, emblemático para aqueles versos), o poema encerra com a palavra ‘cabelos’ (kóme) – cabelos que materializarão, no vaticínio do eu lírico, a passagem do tempo. Eis, pois, os elementos tópicos secundários que, ao lado dos elementos primários (eu, tu e mensagem), constroem o ambiente de separação dos amantes.

Destaquemos por último que o nome da cortesã Konópion (v. 1) constitui forma diminutiva de kónops (‘mosquito’, donde ‘Mosquitinha’), cuja relação com o poema fica por conta da criatividade do leitor (impertinente, pequena, entre outras possibilidades).

(3) ῾Ιμερτὴ Μαρίη μεγαλίζεται· ἀλλὰ μετέλθοις

κείνης, πότνα Δίκη, κόμπον ἀγηνορίης·

μὴ θανάτῳ, βασίλεια· τὸ δ᾽ ἔμπαλιν, ἐς τρίχας ἥξοι

γήραος, ἐς ῥυτίδας σκληρὸν ἵκοιτο ῥέθος

τίσειαν πολιαὶ τάδε δάκρυα· κάλλος ὑπόσχοι

ψυχῆς ἀμπλακίην, αἴτιον ἀμπλακίης.

A desejável Maria –

quanta arrogância! Castiga

oh veneranda Justiça,

sua altivez e soberba,

mas não com a morte. Ao contrário:

possa a velhice alcançar-lhe

os cachos, possa com rugas

sua face ressecar.

As cãs vinguem minhas lágrimas.

A beleza da garota

pague pelo engano da alma,

por ser a causa do engano.

Assim como no primeiro poema analisado, temos neste (Juliano, AP 5, 298) outra vez a separação dos amantes causada pela soberba feminina (no segundo caso, não se menciona a causa da separação dos amantes). No dístico inicial, apenas um termo exalta qualidades eufóricas da cortesã Maria (Maríe, v. 1), que é desejável (Himerté, v. 1), ao passo que todos os outros recortam apenas seus defeitos (no entendimento do eu-lírico): ela é arrogante (megalízetai, v. 1), de exagerada altivez (kómpon, v. 2) e soberba (agenoríes, v. 2). Tais atributos impedem o êxito do amante, que não consegue acesso à menina; daí que ele invoque a Justiça (Díke, v. 2), deusa capaz de punir a cortesã por seus excessos. A punição com a morte (mè thanátoi, v. 3), porém, não é o que ele pretende. Sádico, ele deseja que Maria experimente longamente a privação da beleza: a Justiça puna a altivez dela com a velhice (géraos, v. 4) que acinzenta cachos (tríkhas, v. 3), com as rugas (rhytídas, v. 4) que ressecam (sklerón, v. 4) a face (rhéthos, v. 4), com as cãs (poliaí, v. 5) que são a melhor forma de vingar (tíseian, v. 5) as lágrimas (dákrya, v. 5) derramadas por amantes desprezados.

Nos versos finais, insistindo na ideia de punição, o eu lírico reitera que deseja ver consumida a beleza (kállos, v. 5) de Maria como forma de paga pelo engano de sua alma (psykhês amplakíen, v. 6), pois foi a beleza excessiva que impeliu a cortesã na direção da soberba; então, que a beleza pague pelo engano, por ser a causa do engano (áition amplakíes, v. 6). Destaquemos que o termo ‘engano’, repetido no verso final e último vocábulo do poema, pode ser entendido como o elemento que colabora, como os outros tópoi destacados, para a relação desse poema com o gênero de profecia ameaçadora. A ideia de engano, erro, ofensa, sinônimos de amplakíe, parece de fato ser suficiente para demandar a expiação solicitada pelo amante pelo comportamento da cortesã, materializada em profecia.

Mais do que nos casos anteriores, neste último poema a profecia ameaçadora é clara e direta: quase todo o texto constitui um inventário em que as etapas e os objetivos da vingança são delineados; o vocabulário bem recorta o envelhecimento (com termos como rugas, cãs, velhice, pele ressecada) que deve se chocar com a soberba, arrogância e beleza de Maria.

Nos três casos analisados até aqui, cremos ter confirmado o pertencimento de cada um deles ao gênero da profecia ameaçadora. Por vezes fronteiriços com outros subgêneros de tópica semelhante (carpe diem, convite amoroso, kômos, paraklausíthyron), demonstramos que esses casos podem ser bem apreciados se relacionados ao gênero de profecia ameaçadora, o que permite vislumbrar a migração tópica que confecciona os poemas abaixo.

Regozijo com o cumprimento da profecia

A tópica do regozijo com o cumprimento da profecia constitui um desdobramento, uma continuidade da situação discursiva que vimos antes. Na tópica da profecia ameaçadora, os amantes estavam jovens e algum obstáculo os afastava (a soberba feminina nos poemas 1 e 3, a possível presença de um amante rival no poema 2). Na tópica do regozijo pelo cumprimento da profecia, os interlocutores estão velhos (embora não se mencione o envelhecimento do eu lírico), privados dos atrativos juvenis. O eu lírico, para desforra, assume o discurso e lembra à cortesã de sua previsão antiga, ora realizada: o envelhecimento ceifou os melhores frutos dela.

A tópica em questão é comentada por Achcar, que esclarece o fato de que tópoi de certos gêneros líricos podem se transformar em novos gêneros e que, nesse sentido, podemos considerar a tópica do regozijo com o cumprimento como um interplay da tópica da profecia ameaçadora, assim como a profecia representa um interplay da tópica do carpe diem:

[…] em muitos poemas de ‘profecia ameaçadora’ o topos implicado é o carpe diem. Pode-se portanto falar de um parentesco entre esses dois gêneros, como o interplay que Cairns apontou entre a ‘profecia ameaçadora’ e o ‘regozijo com o cumprimento’. Esse jogo entre gêneros decorre de uma regra básica, gerativa, da composição genérica: gêneros podem transformar-se em tópoi de outros gêneros, e tópoi podem desenvolver-se em novos gêneros (Achcar, 1994, p. 132-133, grifos do autor).

Esse parentesco, interplay ou desdobramento da tópica de um gênero em outro é ‘uma regra básica’ e, no presente caso, evidencia um antes e um depois da situação discursiva. Procuraremos demonstrar como a construção do regozijo com o cumprimento da profecia leva em conta seu antecedente (de outro modo, o regozijo seria forçoso, já que a advertência no passado não teria ocorrido) e como, particularmente, a regra de migração de tópoi de um gênero a outro confecciona, de fato, novos gêneros, a exibir uma poética que tem em grande conta a utilização dos mesmos ‘tijolos’ literários.

(4) Οὐκ ἔλεγον, Προδίκη, ‘Γηράσκομεν;’ οὐ προεφώνουν

‘ἥξουσιν ταχέως αἱ διαλυσίφιλοι;’

νῦν ῥυτίδες καὶ θρὶξ πολιὴ καὶ σῶμα ῥακῶδες,

καὶ στόμα τὰς προτέρας οὐκέτ᾽ ἔχον χάριτας.

μή τις σοι, μετέωρε, προσέρχεται, ἢ κολακεύων

λίσσεται; ὡς δὲ τάφον νῦν σε παρερχόμεθα.

Eu não te dizia, Pródice:

‘Estamos envelhecendo’?

Eu não falava: ‘A ruptura

dos amantes virá rápida’?

Eis que chegaram as rugas,

as cãs, envergou-se o corpo

e há muito a boca perdeu

aquelas graças primevas.

Ninguém te corteja, airosa,

nem com súplicas te adula?

Ora passamos por ti

como diante de um túmulo.

Neste poema (Rufino, AP 5, 21), o tempo pretérito ocupa o primeiro dístico e pode ser percebido pelas formas verbais (Ouk élegon, v. 1, ‘Eu não te dizia?’; ou proephónoun, v. 1, ‘Eu não falava?’): o eu lírico evoca o passado e relembra sua premonição antiga, que mencionava a velhice como um obstáculo à atração dos amantes: ‘Estamos envelhecendo’ (Geráskomen, v. 1) é o que ele dizia. A consequência disso, já sinalizada naquela ocasião, seria a futura (héksousin, v. 2, ‘virá’) separação dos amantes (dialýphiloi, v. 2), separação que com muita rapidez (takhéos, v. 2) iria acontecer.

Eis que a profecia se cumpriu: o eu lírico, no segundo par de versos, pontua um a um os atributos, antes louváveis, agora detestáveis da cortesã Pródice. O dístico abre com o advérbio ‘agora’ (nyn, v. 3), estabelecendo claramente a distância temporal e as mudanças que ela ocasionou: no presente momento, o que há são rugas (rhytídes, v. 3), cabelos brancos (thríks polié, v. 3), um corpo envergado (sôma rhakôdes, v. 3) e uma boca (stóma, v. 4) cujas graças primeiras (tàs protéras kháritas, v. 4) não existem mais (oukét’, v. 4). Diante de tal mudança, profetizada outrora pelo eu lírico, resta à cortesã apenas o desprezo de seus antigos amantes: indaga-se, com ironia, se há ainda quem lhe corteje (prosérkhetai, v. 5), quem lhe suplique (líssetai, v. 6) os favores sexuais com bajulação (kolakeúon, v. 5). É evidente que nada disso acontece mais e a antiga profissional do sexo, Pródice, já não possui ao pé de si nem novos nem antigos amantes. A ênfase no tempo presente ocorre outra vez no dístico final: ‘agora’ (nyn, v. 6), afirma o eu lírico, ‘passamos diante de ti’ (se parerkhómetha, v. 6) como se diante de um ‘túmulo’ (táphon, v. 6).

A crueldade com que o eu lírico aborda o tema do envelhecimento da cortesã, na comparação com um túmulo, deve estar relacionada ao fato de que Pródice tenha sido outrora demasiado soberba: o termo ‘airosa’ (metéore, v. 5), em uso acentuadamente irônico, parece permitir essa inferência. Assim, do mesmo modo que as belas cortesãs apresentadas na análise da tópica da profecia ameaçadora, outra vez é a soberba a causa (ou uma das causas) do afastamento dos amantes. Vale destacar que, se o termo que recorta a atitude de soberba da cortesã aponta para o alto (‘airosa’), a imagem final do túmulo decididamente aponta para o baixo, para o chão, quase que a projetar a queda das nuvens ao chão sofrida por ela.

O poema 4 confirma a relação existente entre a situação discursiva da tópica da profecia ameaçadora e esta, a do regozijo com o cumprimento da profecia. No tempo presente, a velhice é empecilho ao desfrute dos prazeres sexuais oferecidos pela amante. Salientemos, por fim, que a desforra do eu lírico em reconhecer seu antigo objeto de desejo destituído de graças (afirmado com amarga crueldade) está focada na passagem do tempo em relação à cortesã, pois ele não percebe a si mesmo (ou pelo menos não coloca a si mesmo em evidência) como sujeito à passagem do tempo (é claro que para o regozijo, a estratégia de mirar apenas o outro é literariamente mais viável, com o risco de o deleite pela profecia cumprida soar amargamente a ambos). Quanto ao nome, Prodíke (v. 1), ao pé da letra, combina preposição e substantivo (pró, ‘diante’, ‘acima’, ‘por causa de’, e díke, ‘justiça’) e pode ser lido de diversos modos (o adjetivo pródikos é conhecido: ‘defensor’, ‘advogado’, ‘vingador’): ‘a que está colocada diante da justiça ou acima dela’ ou, quem sabe, ‘a que foi punida’. No primeiro caso, o nome poderia ser relacionado ao passado da cortesã; no segundo, ao presente, ocasião em que foi ‘punida’.

(5) Ἡ πάρος ἀγλαΐῃσι μετάρσιος, ἡ πλοκαμῖδας

σειομένη πλεκτὰς, καὶ σοβαρευομένη,

ἡ μεγαλαυχήσασα καθ᾽ ἡμετέρης μελεδώνης,

γήραϊ ῥικνώδης, τὴν πρὶν ἀφῆκε χάριν.

μαζὸς ὑπεκλίνθη, πέσον ὀφρύες, ὄμμα τέτηκται,

χείλεα βαμβαίνει φθέγματι γηραλέῳ.

τὴν πολιὴν καλέω Νέμεσιν πόθου, ὅττι δικάζει

ἔννομα, ταῖς σοβαραῖς θᾶσσον ἐπερχομένη.

Ela, que antes se orgulhava

do próprio brilho e agitava

as tranças de seus cabelos,

transbordante de altivez;

ela, que outrora negava

cada um dos meus cuidados –

com as rugas da velhice

perdeu a graça de outrora.

Seu seio está pendurado,

as sobrancelhas caíram,

nos olhos nenhuma luz,

na boca – falas senis.

Afirmo serem as cãs

a Vingança do desejo –

chegam mais cedo às soberbas

e punem conforme a lei.

O poema acima (Agatias, AP 5, 273) apresenta o eu lírico a regozijar-se com a decadência de seu antigo objeto de desejo. Ele principia por lembrar sua interlocutora da soberba (metársios, v. 1; este termo é sinônimo de metéore, que apareceu no poema anterior) e altivez (sobareuoméne, v. 2) manifestas no passado (‘Ela, que antes...’, He páros..., v. 1), decorrentes de seu esplendor (aglaíeisi, v. 1) ainda sem máculas; as tranças de seus cabelos (plokamîdas plektás, v. 1-2) eram razão suficiente para que a cortesã pavoneasse por aí, a agitá-las (seioméne, v. 2) e a recusar desdenhosa (megalaukhésasa, v. 3) a atenção, os cuidados (meledónes, v. 3) do amante. Depois dessa digressão, pontuando qualidades e excessos no passado, o eu lírico focaliza o presente, marcado pela passagem do tempo: a graça de outrora (tèn prìn khárin, v. 4) dá agora lugar a uma velhice (gêrai, v. 4) repleta de rugas (rhiknódes, v. 4); os seios (mazós, v. 5), antes eram firmes e belos, estão agora pendentes (hypeklínthe, v. 5), os pelos das sobrancelhas (ophrýes, v. 5) caíram (péson, v. 5), o olhar (ómma, v. 5) já não possui qualquer brilho, está embaciado (tétektai, v. 5), os lábios (khéilea, v. 6) só balbuciam (bambáinei, v. 6) palavras senis (phthégmati póthou, v. 6). Com essa detalhada descrição dos efeitos da velhice sobre a cortesã, o eu lírico opõe passado e presente, glória e decadência, e caminha para a conclusão: verdadeira vingadora do desejo (póthou, v. 7), a deusa Némesin (v. 7), personificação da Vingança, é a grande aliada dos amantes rejeitados: com cabelos brancos (‘cãs’, polién, v. 7), ela pune (dikázei, v. 7) as mulheres soberbas (tâis sobarâis, v. 8) mais cedo (thâsson, v. 8) do que as mulheres comuns, essa é a lei (énnoma, v. 8).

Notemos que este poema guarda muitas semelhanças com o de número 3, cuja tópica é a da profecia ameaçadora: lá, a ideia de punição se faz presente na evocação à deusa Díke, ‘Justiça’, convidada a vingar (tíseian, v. 5) as lágrimas derramadas pelo eu lírico por causa de Maria; aqui, quem deve cumprir a tarefa é a deusa Nêmesis, a quem se associa o verbo dikázo (‘fazer justiça’). Nos dois poemas, por agentes diferentes, a punição desejada é a chegada dos cabelos brancos (o termo polié ocorre em ambos os poemas), isto é, a velhice. Destaquemos, portanto, que ambas as tópicas utilizam-se dos mesmos tópoi: no caso da profecia ameaçadora, a punição da cortesã é anunciada como um desejo para o futuro; no caso do regozijo com o cumprimento, ela é a constatação de que a cortesã já foi punida.

(6) Τήν ποτε βακχεύουσαν ἐν εἴδεϊ θηλυτεράων,

τὴν χρυσέῳ κροτάλῳ σειομένην σπατάλην,

γῆρας ἔχει καὶ νοῦσος ἀμείλιχος· οἱ δὲ φιληταί,

οἵ ποτε τριλλίστως ἀντίον ἐρχόμενοι

νῦν μέγα πεφρίκασι· τὸ δ᾽ αὐξοσέληνον ἐκεῖνο

ἐξέλιπεν, συνόδου μηκέτι γινομένης.

Aquela que um dia fôra

a mais formosa mulher,

que lassa dançava aos toques

de douradas castanholas,

hoje a velhice a domina

e amargas enfermidades.

Os seus amantes que outrora

suplicavam-lhe favores

ora temem encontrá-la.

Aquela lua crescente

eclipsou-se – nunca mais

ela entrou em conjunção.

No poema acima (Macedônio, AP 5, 271), vemos uma vez mais o eu lírico a principiar (v. 1-2) pela recordação do passado (como em 4 e 5), destacando as qualidades que a cortesã já ostentou em outros tempos: ela era, outrora (pote, v. 1), de uma formosura (eídeï, v. 1) superior à de qualquer mulher (thelyteráon, v. 1) e era frenética como uma bacante (bakheúousan, v. 1); cheia de lassidão (spatálen, v. 2), ela se agitava (seioménen, v. 2) ao som de douradas castanholas (khryséoi krotáloi, v. 2). O passado assim recortado em seus aspectos positivos dá lugar, nos versos que seguem, a um presente decadente, em que apenas velhice (gêras, v. 3) e enfermidades (nôusos améilikhos, v. 3) são os principais ‘atributos’. Diante dessa mudança, os amantes (hoi philetái, v. 3), os mesmos que outrora (pote, v. 4) vinham (erkhómenoi, v. 4) até ela e lhe suplicavam com insistência os favores (trillístos, v. 4), eles agora (nyn, v. 5) correm dela, pois temem (pephríkasi, v. 5) encontrá-la.

Se o poema 4 encerrava com a imagem de um túmulo, signo da decadência feminina, este faz uso de uma imagem igualmente interessante, a sinalizar a decadência: em metáfora astronômica, a cortesã é comparada, por seu passado, com uma lua crescente (auksosélenon, v. 6); no entanto, ela obscureceu de todo, efeito de um eclipse (eksélipen, v. 6) – envelhecida, ela nunca mais (mekéti, v. 6) entrou em conjunção (synódou, v. 6). Essa imagem, que sintetiza o resultado presente da passagem do tempo perceptível na cortesã, também evoca contrastes interessantes (claro e escuro, belo e feio, apogeu e decadência).

Destaquemos uma vez mais que o poema analisado, centrado na tópica de regozijo com o cumprimento da profecia, constrói em detalhes um antes (evidente nos advérbios e nas formas verbais do pretérito) e um depois (também percebido pelas mesmas categorias gramaticais), em que passado e presente se contrastam e exibem um processo de declínio: assim como em todos os outros casos analisados, de profecia ameaçadora ou de regozijo com o cumprimento da profecia, também no poema acima a velhice não agrega, no contexto erótico, qualquer valor, mas apenas signos negativos, depreciativos, signos que repelem os amantes. Salientemos que essa ideia de velhice como decadência, somada à negligência com os prazeres próprios da juventude, confirmam a relação dessas duas tópicas com a do convite amoroso (circunscrita à do carpe diem), em que o convite resultava da percepção de que a beleza é efêmera; sem ela, a cortesã tornou-se odiosa aos olhos daqueles que a admiravam.

‘Não me interessa se ela é coroa’

Uma visão depreciativa da velhice, no contexto específico da lírica erótica antiga, confirma a ideia de que as atrações sexuais estão para a juventude. Como vimos, todos os signos da beleza ligam-se, nos casos analisados, à beleza juvenil; se tal beleza não pode no presente (profecia ameaçadora) ou não pôde no passado (regozijo com o cumprimento da profecia) ser desfrutada, não foi pela sua inexistência ou ineficácia, mas decorrente da vaidade feminina (sempre apresentada pelos olhos de um eu lírico masculino). No âmbito da poesia erótica, portanto, a juventude determina a beleza, já que a velhice é entendida como algo repelente (comparável, para evocar os versos analisados, a um túmulo ou uma lua eclipsada).

Paralelamente, porém, à visão difundida pelos poemas analisados – a velhice como signo de repulsa –, os poetas da Palatina (algumas vezes, os mesmos nomes que exaltam a beleza juvenil, como Rufino, por exemplo) inovaram em suas composições ao subverter a expectativa de uma visão pejorativa da velhice em contexto erótico. Os casos que seguem abaixo demonstram não só a construção de uma nova visão da velhice, mas sobretudo – e isso nos interessa particularmente – a confecção de um novo subgênero lírico, denominado por nós de ‘panela velha, comida boa’.

Os processos de migração de tópoi de um gênero para outro, a confeccionar novos subgêneros líricos já foram abordados anteriormente, com base em Achcar. Demonstraremos como, aliada a essa regra da poesia antiga, um processo produtivo, bastante criativo, por que não dizer subversivo, pode ser reconhecido entre os poetas do livro V da AP: trata-se de construir um novo subgênero com base na inversão dos lugares-comuns previstos. Nada de muito novo, teoricamente, se nos atentarmos ao que os estudiosos do setor estabelecem:

[…] o tópico se distingue, amiúde – ideal seria poder dizer ‘sempre’ – por sua possível realização inversa, ou, melhor dizendo, por suas possíveis realizações inversas, em função da maior ou menor complexidade significativa dos elementos que, como faces de um poliedro, constituem-no (Escobar, 2000, p. 146, grifo do autor).[8]

A capacidade de inversão de uma tópica é quase que uma regra geral (‘ideal seria poder dizer sempre’), mas não se deve imaginá-la como uma troca de lados de uma moeda, pois a inversão de tópica pode assumir diferentes facetas (não como uma moeda, mas um ‘poliedro’). De qualquer forma, ainda que prevista teoricamente, a inversão de uma tópica será sempre menos frequente do que a alusão à tópica regular, tradicional – daí seu valor elevado: “Porém, o verdadeiro tópico admite, por sua vez, uma possível inversão. [...] Tal inversão é menos frequente, mas – por causa precisamente de sua relativa infrequência ou inverossimilhança – mais rico do ponto de vista literário” (Escobar, 2000, p. 147)[9]. O uso da tópica invertida eleva o valor literário do poema, por seu uso pouco frequente ou raro.

Quanto às causas que motivam a inversão da tópica, o mesmo estudioso justifica:

As causas concretas da inversão podem ser muito variadas. Podem ser devidas à mera saturação que produz o emprego reiterado de determinados tópicos, a qual conduz à sua aplicação antifrástica ou satírico-paródica; em outros casos intervém a vontade deliberada de praticar um uso enviesado ou transgressor (Escobar, 2000, p. 147).[10]

Saturação, uso antifrástico, satírico-paródico, enviesado ou transgressor: quaisquer que sejam os motivos, o uso de uma antitópica ligada aos gêneros analisados agradou aos poetas da Palatina. Os poemas que seguem têm seu sentido afirmado na inversão da tópica anterior, produzindo uma antitópica que elogia o que antes depreciava, que acena para o que antes evitava: tanto a tópica da profecia ameaçadora quanto a do regozijo com seu cumprimento tinham seu foco dirigido à beleza juvenil, aos atrativos com que ela adorna as cortesãs; mas a urgência com que eles devem ser apreciados, fundada na percepção da brevidade da vida (o que enlaça estes poemas com a tópica do carpe diem e a do convite amoroso), encontrava um obstáculo que vinha com a beleza: a arrogância.

Invertendo toda essa expectativa, os poemas, porém, exibem a mesma estrutura discursiva (os elementos primários da composição de gênero): um eu lírico masculino dirige a um tu feminino uma mensagem (o poema em si), com elogio às suas qualidades. A inversão concentra-se não nos elementos primários, mas nos secundários, os lugares-comuns propriamente ditos e a diferença em relação aos poemas antes analisados é que a velhice não representa motivo de repulsa, mas de atração.

A frequência com que a antitópica de elogio a cortesãs velhas ocorre na Palatina não deve nos induzir à ideia de que esse elogio constituiu um lugar-comum (outros exemplos dessa antitópica são os poemas 26 e 48, sem análise aqui). Ele pode ser melhor compreendido, teoricamente, na relação que estabelece entre as tópicas da profecia ameaçadora e do regozijo com seu cumprimento, esses sim lugares-comuns. Afinal, ainda que a vereda do elogio a cortesãs velhas tenha sido seguida por diferentes poetas e, depois deles, constitua de fato um lugar-comum literário (e não mais um antilugar-comum), os poetas da Palatina foram os pioneiros no tratamento do tema, como informa Waltz, comentando o caso mais antigo do livro V (Filodemo, séc. II-I a.C.), analisado adiante:

Nós encontramos aqui, pela primeira vez, o desenvolvimento deste tema tão frequente em todas as épocas: os elogios ‘a uma bela velha’ são um lugar-comum caro a todas as literaturas. Mas, para os gregos, uma ideia supersticiosa se relacionava a este fenômeno de uma beleza conservada até uma idade anormal, porque eles viam aí o efeito de um favor excepcional dos deuses (Waltz, 1960, p. 26, nota 2, grifo do autor).[11]

Convertido, posteriormente, em lugar-comum, o elogio a belas velhas principia por ser uma inversão de tópica, particularmente se considerarmos que a beleza em idade avançada era entendida como ‘anormal’ pelos gregos de diversas épocas. Seja para evitar o desgaste da tópica tradicional, seja para transgredi-la, seja ainda apenas como mero recurso retórico, a questão é que a composição desta tópica invertida estabeleceu uma nova perspectiva de elogio, seguida por muitos, fato que parece confirmar a qualidade da inversão. Vamos a ela.

(7) Πρόκριτός ἐστι, Φίλιννα, τεὴ ῥυτὶς ἢ ὀπὸς ἥβης

πάσης· ἱμείρω δ᾽ ἀμφὶς ἔχειν παλάμαις

μᾶλλον ἐγὼ σέο μῆλα καρηβαρέοντα κορύμβοις,

ἢ μαζὸν νεαρῆς ὄρθιον ἡλικίης.

σὸν γὰρ ἔτι φθινόπωρον ὑπέρτερον εἴαρος ἄλλης,

χεῖμα σὸν ἀλλοτρίου θερμότερον θέρεος.

As tuas rugas, Filina,

eu prefiro a todo sumo

da juventude. Desejo

possuir nas minhas mãos

muito mais estes teus pomos

pendentes e teus mamilos

do que aqueles seios hirtos

com idade juvenil.

O teu outono supera

toda e qualquer primavera

e o teu inverno é mais quente

do que verão estrangeiro.

O poema acima (Paulo Silenciário, AP 5, 258) apresenta, já no verso inicial, a qualidade (já não defeito) da cortesã Filina de possuir rugas (rhytís, v. 1); o eu lírico, simpático a isso, prefere (Prókitós, v. 1) tais rugas sem hesitação, em lugar do sumo (opós, v. 1) que deriva de toda beleza juvenil (hébes páses, v. 1-2), oposição clara entre uma mulher madura e outra nova. O termo ‘rugas’ já compareceu em nossas análises, nos poemas 3 (rhytídas, v. 4) e 4 (rhytídes, v. 3), como signo de desapreço: em 3, a menção a rugas constituía uma ameaça lançada ao futuro e representava o desejo do eu lírico em ver a bela face de Maria tornada odiosa pela velhice; em 4, sua chegada converteu a cortesã Pródice em objeto de repulsa (para deleite do eu lírico): antes desejável, ela agora se assemelha a um túmulo. Aqui, no entanto, as rugas surgem como superiores às qualidades juvenis e encontram abrigo seguro no desejo do eu lírico.

A depreciar a juventude, o eu lírico segue exaltando a velha Filina: mesmo seus pomos ou seios (mêla, v. 3) pendentes (karebaréonta, v. 3) e a flacidez de seus mamilos (korýmbois, v. 3) não são inferiores aos seios rijos (mazòn órthion, v. 4) da idade juvenil (helikíes, v. 4); eles são o que mais (mâllon, v. 3) o eu lírico deseja (himéiro, v. 2) segurar nas mãos (palámais, v. 2). Notemos que até aqui a oposição esperada entre velhice e juventude não se realiza como tópica: diferentemente dos poemas vistos anteriormente, em que a velhice só agrega valores depreciativos no contexto erótico, agora, todavia, ela apresenta signos de apreço e os atributos que ela impinge à cortesã não mais repelem, ao contrário, tornam-na superior a outras mulheres.

Nos versos finais, o poeta arremata sua nova percepção da beleza feminina com uma metáfora (procedimento semelhante ao do poema 4, mas mais próximo ao do 6) ligada às estações do ano: ainda que as qualidades da cortesã Filina estejam ligadas ao outono (phthinóporon, v. 5) e ao inverno (khêima, v. 6), trata-se de um outono que supera (hypérteron, v. 5) a primavera (éiaros, v. 5) de qualquer outra (álles, v. 5) cortesã jovem, e de um inverno mais quente (thermóteron, v. 6) do que verão (théreos, v. 6) estrangeiro (allotríou, v. 6).

Apreciada em detalhe, portanto, e com suas qualidades comparadas às estações do ano, a velha Filina é exaltada e convertida em objeto de desejo. Percebamos que isso constitui o avesso das expectativas correntes, evidentes nas tópicas antes analisadas, em que velhice e mundo erótico não se conjugam. A inovação – mais propriamente, a inversão – insuflou novo ânimo na poesia lírica erótica, pelo inesperado de sua visão. Destaquemos, por fim, que o nome da cortesã, Filina (Phílinna, v. 1), derivado de phíle (‘amada’), de philéo (‘amar’, ‘querer bem’), colabora com sua apreciação no contexto, já que ela é ‘Querida’.

(8) Οὔπω σου τὸ καλὸν χρόνος ἔσβεσεν, ἀλλ᾽ ἔτι πολλὰ

λείψανα τῆς προτέρης σῴζεται ἡλικίης,

καὶ χάριτες μίμνουσιν ἀγήραοι, οὐδὲ τὸ κάλλος

τῶν ἱλαρῶν μήλων ἢ ῥόδου ἐξέφυγεν.

ὦ πόσσους κατέφλεξε τὸ πρὶν θεοείκελον ἄνθος […]

O tempo não consumiu

tua beleza. Ao contrário:

muito ainda se conserva

da primeira juventude.

Permanecem joviais

teus encantos: não fugiu

a beleza de tua rosa

ou de tuas maçãs risonhas.

Oh, teu aspecto divino

a quantos incendiou…

No poema acima (Rufino, AP 5, 62), falta provavelmente o último verso, o que não impede, porém, uma leitura bastante completa de suas linhas; recusamos a emenda proposta pelo corretor da Palatina, como Waltz (1960, p. 44), que a apresenta mas não traduz. O eu lírico, atento à beleza perene da cortesã, enlaça presente com passado e não procura depreciar a juventude, como no poema anterior: lá, as qualidades da velhice (rugas, seios pendentes) eram preferidas aos da idade juvenil, eram mesmo superiores aos de outra época. No poema acima, porém, a exaltação da cortesã leva em conta o fato de que ela permanece jovem para além da mocidade. Contra a sua beleza (kálos, v. 1), não teve força o tempo, pois ela permanece incorrupta (ésbesen, v. 1), de modo que muito ainda (éti, v. 1) resta (pollá léipsana, v. 1-2) salvaguardado (sóizetai, v. 2) de sua primeira juventude (protéres helikíes, v. 2). Os encantos (khárites, v. 3) continuam ainda intactos, sem traços de velhice (agéraioi, v. 3), a beleza (kállos, v. 3) não fugiu (ekséphygen, v. 4) das risonhas maçãs (hilarôn mélon, v. 4) e da rosa (rhódou, v. 4) desta cortesã. Este verso é bastante curioso: a menção a ‘maçãs’ (mélon, v. 4) pode referir-se às maçãs do rosto (daí serem risonhas) como pode referir-se aos seios, sentido frequente do termo neste contexto (ele compareceu assim no poema 7, v. 3, por exemplo); quanto ao vocábulo ‘rosa’ (rhódou, v. 4), ele pode apenas colaborar para a evidência da vitalidade, do viço da pele que a cortesã ostenta, como pode estar aqui em sentido sexual: o termo designa tanto a flor como a parte pudenda feminina, conforme atestado em dicionário. Ambas as imagens convêm ao poema: maçãs e rosa, como elementos vegetais, relacionam-se ao mundo de Afrodite; por outro lado, seios e vagina aludem igualmente ao seu universo e recortam as qualidades que deve ter uma cortesã, profissional do amor. De qualquer forma, a duplicidade de sentidos colabora com os sentidos eróticos do poema e deve ser considerada.

O verso final apresenta um elogio retrospectivo: em lugar de uma exaltação ao presente, evidente no viço da cortesã, alude-se ao passado: se ela permanece jovem e bela, afirma o eu lírico, a quantos (póssous) a flor de sua beleza (o poema encerra com a palavra ánthos, ‘flor’) de outrora (prín) não terá incendiado (katéphlékse) com seu aspecto divino (theoéikelon). Este último termo, que destaca o aspecto divino da cortesã, embora constitua um pleonasmo regular nos poemas (elogio a qualidades ‘divinas’ das cortesãs são comuns na AP), pode relacionar-se com aquela ideia defendida por Waltz, de que uma ideia supersticiosa está ligada à beleza conservada para além do tempo, favor singular concedido pelos deuses. Assim entendido, o termo ‘aspecto divino’ (theoéikelon) pode ser lido ao pé da letra e recorta, pois, no caso presente, o apadrinhamento desta cortesã pelos deuses.

Salientemos que, diferentemente do poema anterior, em que a velhice é apreciada em oposição à juventude, neste último o elogio recorta as qualidades femininas que escaparam do envelhecimento: se elas garantem a beleza no presente, que se poderá dizer da beleza do passado, fonte do mais completo ardor para os amantes. Embora não constitua um elogio à velhice em si, mas à juventude que vence a velhice, o poema confecciona uma antitópica e estabelece uma visão inovadora para uma cortesã idosa.

(9) Ἑξήκοντα τελεῖ Χαριτὼ λυκαβαντίδας ὥρας,

ἀλλ᾽ ἔτι κυανέων σύρμα μένει πλοκάμων,

κἠν στέρνοις ἔτι κεῖνα τὰ λύγδινα κώνια μαστῶν

ἕστηκεν, μίτρης γυμνὰ περιδρομάδος,

καὶ χρὼς ἀρρυτίδωτος ἔτ᾽ ἀμβροσίην, ἔτι πειθὼ

πᾶσαν, ἔτι στάζει μυριάδας χαρίτων.

ἀλλὰ πόθους ὀργῶντας ὅσοι μὴ φεύγετ᾽ ἐρασταί,

δεῦρ᾽ ἴτε, τῆς ἐτέων ληθόμενοι δεκάδος.

Já sessenta primaveras

soma a bela Caritô

mas ainda estão escuros

os fios de suas melenas.

E no busto ainda teso

jaz o mármor dos mamilos

e seus seios ficam firmes

mesmo de faixas despidos.

E a pele, sem ruga alguma,

destila ambrosia ainda,

sedução de toda espécie

e miríades de graças.

Não eviteis, oh amantes,

tais desejos maturados

– vinde até ela e esquecei

as suas dezenas de anos.

O poema acima (Filodemo, AP 5, 13) é o único dentre os casos coligidos na Palatina a explicitar a idade da cortesã. E o faz sem nenhuma reserva, mas de modo abrupto, pois a idade de Caritô abre o poema: sessenta (Heksékonta, v. 1) estações do ano (lykabantídas horas, v. 1) foram completadas (telêi, v. 1) pela cortesã. Não obstante, os seus sessenta anos não excluem uma vasta gama de atrativos: permanecem ainda (éti ménei, v. 2) escuros (kyanéon, v. 2) os fios de seus cabelos (sýrma plokámon, v. 2), permanecem ainda (éti hésteken, v. 3-4) em seu busto (stérnois, v. 3) seios (mastôn, v. 3) cujas pontas (kónia, v. 3) são rijas como o mármore (lýgdina, v. 3); seus seios, mesmo desnudos (gymná, v. 4), não carecem de faixas (mítres, v. 4) que os sustentem (peridromádos, v. 4), pois não estão pendentes, mas firmes. Assim como os cabelos e os seios, a pele da cortesã é digna de elogios: o eu lírico segue em sua apreciação de Caritô destacando que a cútis (krós, v. 5) não exibe rugas (arrytídotos, v. 5), o que a torna capaz ainda (ét’, v. 5) de destilar (stázei, v. 6) um gosto ou um aroma de ambrosia (ambrosíen, v. 5) e de seduzir completamente (peithò pâsan, v. 5-6) qualquer amante ainda (éti, v. 5), já que essa pele ostenta ainda (éti, v. 6) inumeráveis (myriádas, v. 6) graças (kharíton, v. 6).

Como se vê, o eu lírico insiste no uso do advérbio ‘ainda’ (éti), que ocorre cinco vezes no poema. Tal repetição colabora para a exaltação da beleza de Caritô considerada em relação à juventude: não se trata, como vimos no poema 7, de uma exaltação das novas qualidades adquiridas pela cortesã dentro da idade avançada; o elogio se alinha mais ao poema 8, em que a qualidade da cortesã decorre, não da velhice, mas da permanência da juventude fora de época, de modo que a velhice em si não é percebida.

Depois de pontuar as qualidades ainda presentes na sexagésima primavera da cortesã Caritô, o eu lírico exorta os amantes (erastái, v. 7) que por acaso ignorem seus atributos a procurar por ela: ‘não eviteis’ (mè phéuget’, v. 5) ‘os desejos maturados’ (póthous orgôntas, v. 5), afirma ele; ‘vinde até ela’ (dêur’ite, v. 8), uma vez que tais desejos permitem o completo esquecimento (lethómenoi, v. 8) de suas dezenas (dekádos, v. 8) de anos (etéon, v. 8). Interessante nesses versos finais a expressão ‘desejos maturados’: ela sugere a ideia de que existem desejos ainda ‘verdes’ e que a maturidade e a experiência de Caritô garantem um prazer de intensidade superior ao de jovens cortesãs.

Destaquemos, por fim, que o nome da cortesã aparece motivado no poema: Kharitô (v. 1) é vocábulo decalcado em kháris (‘graça’, ‘dom’), termo que aparece atribuído à cortesã no verso 6, predicando sua pele (pele que destila miríades de kharíton, ‘graças’, ‘encantos’), além de comparecer em outros poemas (como em 8, v. 3; em 5, v. 4; em 4, v. 4). Assim, o nome Caritô é, por si só, uma alusão à graça (nesse caso, intacta) que ela possui, nome que bem poderia ser traduzido por ‘Graça’ ou ‘Gracilda’ em vernáculo. Consideremos ainda que tal nome não exclui a relação da cortesã com os deuses, uma vez que o termo Kháris, personificado, evoca as três Graças que compõem o cortejo de Afrodite, outra vez relacionando dons femininos e favores divinos...

Considerações finais

Neste artigo, o leitor pôde conhecer um pouco dos recursos literários disponíveis ao poeta antigo. Alinhada à expectativa dos seus ouvintes ou leitores, espera-se que o poeta faça uso de um conjunto de ‘tijolos’ tradicionais – os tópoi ou lugares-comuns – a fim de enquadrar seus versos em certo (sub)gênero poético. A qualidade do poema decorre do jogo bem realizado com tais convenções. Nos casos analisados, vimos a visita a lugares-comuns bem conhecidos (tópica da profecia ameaçadora e regozijo com seu cumprimento), mas particularmente a inversão dessa tópica tradicional (tópica da panela velha, comida boa): se as duas primeiras prescrevem a recusa, a censura e o desapreço por mulheres velhas em contexto erótico, esta última representa uma novidade fomentada pela lírica antiga. Destaquemos que um dos poemas (número 7) foi capaz de apreciar a velhice por si mesma, vendo rugas e flacidez como um atributo superior, ao passo que os outros (8 e 9) apreciaram a juventude conservada na velhice. De qualquer forma, a qualidade dessa inversão talvez deva ser medida em função de sua eleição a lugar-comum, já que as consequências foram a cristalização de uma nova visão erótica da velhice. Arrematemos com um último poema, em que o eu lírico não teme se aproximar de uma cortesã velha; o poema (Anônimo, AP 5, 304) pode ser circunscrito à tópica da panela velha, comida boa e faz uso das fases da uva metaforicamente:

(10) Ὄμφαξ οὐκ ἐπένευσας·ὅτ᾽ ἦς σταφυλή, παρεπέμψω.

μὴ φθονέσῃς δοῦναι κἂν βραχὺ τῆς σταφίδος.

Verde, tu não consentiste;

madura, me repeliste.

Ao menos não me recuses

agora que és uva passa.

Referências

Achcar, F. (1994). Lírica e lugar-comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo, SP: Unesp.

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Vasconcellos, P. S. (2007). Reflexões sobre a noção de ‘arte alusiva’ e intertextualidade no estudo da poesia latina. Clássica, 20(2), 239-260. doi: 10.24277/classica.v20i2.147

Waltz, P. (1960). Anthologie grecque. Tome II: anthologie palatine, livre V (Pierre Waltz & Jean Guillon, trad.). Paris, FR: Les Belles Lettres.

Notas

[1] As ideias deste artigo foram apresentadas na forma de palestra em evento científico na Universidade Estadual de Maringá em 2017.
[2] “[...] a set of primary or logically necessary elements which in combination distinguish that genre from every other genre.”
[3] “[...] a common body of knowledge and expectation.”
[4] “[...] existence in antiquity of very many formulae of subject-matter that were passed down from one generation to another [...]”.
[5] “[...] help, in combination with the primary elements, to identify a generic example.”
[6] “The genre is commonly used when the speaker is in love with the addressee and when the speaker is uncomfortable because the addressee will not yield to his passion.”
[7] As traduções do grego são de nossa responsabilidade e se embasam nas ideias teóricas de Paes (1990); a edição para os textos originais é a de Paton (1999), sempre cotejada com a de Waltz (1960); a citação dos termos gregos leva em conta sua posição nos textos gregos, não na tradução. São nossas ainda as traduções de todos os textos estrangeiros citados, salvo indicação em contrário.
[8] “[...] el tópico se distingue a menudo -ideal sería poder decir ‘siempre’- por su possible realización inversa, o, mejor dicho, por sus possibles realizaciones inversas, en función de la mayor o menor complejidad significativa de los elementos que, como caras de un poliedro, lo constituyen [...]”.
[9] “Pero el verdadero tópico admite, a su vez, una possible inversión. [...] Tal inversión es menos frecuente, pero -a causa precisamente de su relativa infrecuencia o inverosimilitud- más rica desde el punto de vista literario.”
[10] “Las causas concretas de la inversión pueden ser muy variadas. Puede deberse a la mera saturación que produce el empleo reiterado de determinados tópicos, la cual conduce a su aplicación antifrástica o satírico-paródica; en otros casos interviene la voluntad deliberada de praticar un uso sesgado o transgresor.”
[11] “Nous rencontrons ici, pour la première fois, le développement de ce thème si fréquent à toutes les époques : les compliments ‘a une belle vieille’ sont un lieu commun cher à toutes les littératures. Mais, pour les Grecs, une idée superstitieuse s’attachait à ce phénomène d’une beauté conservée jusqu’à un âge anormal, parce qu’ils y voyaient l’effet d’une faveur exceptionnelle des dieux.”
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