Linguística

Dicionário enquanto gênero textual: por uma proposta de categorização

Renato Rodrigues Pereira
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Odair Luiz Nadin
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Brasil

Dicionário enquanto gênero textual: por uma proposta de categorização

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 41, núm. 1, 2019

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 23 Julho 2018

Aprovação: 21 Janeiro 2019

Resumo: A depender da tipologia do dicionário: monolíngue, bilíngue, especial de língua, especializado etc., podemos encontrar distintas e importantes informações que contribuem sobremaneira com o consulente em seu processo de busca por conhecimentos. Em termos gerais, os dicionários são repertórios léxicos organizados em estruturas mais ou menos estáveis que nos possibilitam diferentes tipos de consulta. Para tanto, o conhecimento das estruturas lexicográficas sói resultar prerrogativa a todos aqueles que queiram usufruir das potencialidades que os repertórios lexicográficos possuem. Constituídos por uma série de componentes dispostos em uma estrutura global, eles mantêm uma característica dialógica entre suas partes, caracterizando-se como um dos diferentes gêneros textuais existentes. Por isso, compreender o dicionário como gênero permite-nos aproveitar de forma mais eficiente as informações linguísticas e extralinguísticas registradas na obra. Neste artigo, ao refletirmos a respeito do dicionário enquanto gênero textual, orientamo-nos pelos princípios teóricos relacionados aos gêneros textuais e, também, alicerçamo-nos nos fundamentos teórico-metodológicos da Lexicografia, pois estes viabilizam o planejamento e a elaboração dos mais diferentes tipos de obras. Desse modo, demonstramos a possibilidade e a pertinência em considerar o dicionário como um gênero textual e não apenas como um suporte de textos.

Palavras-chave: gênero textual, dicionário, Lexicografia.

Abstract: Depending on the typology of the dictionary: monolingual, bilingual, special language, specialized etc., we can find different and important information that contribute greatly with the consultant in his process of searching for knowledge. In general terms, dictionaries are lexical repertoires organized into more or less stable structures that allow us different types of consultation. Therefore, the knowledge of lexicographic structures usually results prerogative to all those who want to take advantage of the potential that the lexicographic repertoires have. Constituted by a series of components arranged in a global structure, they maintain a dialogical characteristic between their parts, being characterized as one of the different existing textual genres. Thence, understanding the dictionary as a genre allows us to take advantage of the linguistic and extralinguistic information registered in the work more efficiently. In this article, as we reflect on the dictionary as a textual genre, we are guided by the theoretical principles related to textual genres, and we also base ourselves on the theoretical-methodological foundations of Lexicography, since these enable the planning and elaboration of the most different types of works. In this way, we demonstrate the possibility and the pertinence in considering the dictionary as a textual genre and not only as a text support.

Keywords: genre, dictionary, Lexicography.

Introdução

Em face da infinidade de gêneros (textuais[1] ou discursivos[2]) na sociedade, existe um texto em especial, o dicionário, que sempre nos chamou a atenção devido ao fato de não ser comum haver um consenso no mundo acadêmico quanto à sua categorização: se um ‘Gênero textual’ ou um ‘Suporte de gêneros’[3] (doravante GT e SG, respectivamente). Muitos e distintos são os estudos sobre os gêneros. Consequentemente, as teorias e suas terminologias divergem a depender da linha teórica que o pesquisador adota. Em Nadin (2013), por exemplo, defendia-se o dicionário como um suporte “[...] pelo qual veiculam-se diferentes gêneros textuais[4]” (Nadin, 2013, p. 143, tradução nossa).

Neste contexto, apresentamos neste artigo algumas reflexões sobre o dicionário e sua categorização dentro dos estudos dos gêneros. Para tanto, orientamo-nos pelos princípios teóricos relacionados aos GT e à Lexicografia – ciência que se ocupa, entre outras questões, da elaboração de dicionários[5].

Dos gêneros textuais

Em Bakhtin (1992), encontramos que o ser humano se serve da língua e, a partir do interesse, intencionalidade e finalidade específicos de cada atividade, realiza enunciados linguísticos de maneiras diversas. As situações comunicativas em seus contextos estabelecem condições de comunicação que variam de acordo com as distintas esferas sociais (científica, ideológica, oficial, cotidiana etc.) e, por consequência, produzem seus “[...] tipos relativamente estáveis de enunciados [...]” (Bakhtin, 1992, p. 279). A estes enunciados, o autor os chama de gêneros do discurso ou discursivos.

Os gêneros discursivos estão nas diferentes esferas da atividade humana e refletem os objetivos comunicativos dos diferentes setores (Bakhtin, 1992). Por isso, os gêneros são tipos e/ou formas como os enunciados escritos ou orais são utilizados. Por exemplo, em um contexto de produção acadêmico-científica em que devemos escrever um artigo para uma revista científica, devemos seguir algumas normas estruturais de forma e linguagem; ao escrevermos uma carta aberta, o mesmo acontece, uma vez que precisamos imprimir nesse gênero suas características que foram convencionadas pela sociedade ao longo dos tempos e de forma natural, de acordo com as necessidades comunicativas; da mesma forma, quando proferimos uma palestra ou conferência de abertura de um evento ou mesa redonda, há todo um protocolo que costuma ser seguido.

Bakhtin (1992), ao denominar os gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados, mostra que tais tipos podem sofrer modificações. Isso acontece porque as sociedades se desenvolvem e são influenciadas por outras culturas, dependendo dos acontecimentos sócio-históricos pelos quais passam e suas necessidades comunicativas. Assim, um gênero que hoje possui uma estrutura mais ou menos estável pode, no futuro, adquirir nova roupagem para atender as necessidades da sociedade. Para este autor,

As mudanças históricas dos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso. [...] Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso são correias de transmissão que levam a história da sociedade à história da língua (Bakhtin, 1992, p. 285).

Percebe-se que as alterações nos gêneros com o passar dos tempos estão relacionadas às práticas sociais, ou seja, às mudanças na vida social que implicam mudanças nos discursos orais, escritos e, por consequência, nos gêneros. Logo, é natural que haja heterogeneidade de gêneros para cada esfera da atividade humana que, por sua vez, produz gêneros que lhe são necessários.

No âmbito da lexicografia ocorre o mesmo. Os dicionários produzidos no Brasil no início do século XX, por exemplo, eram distintos dos que são produzidos na contemporaneidade, pois a sociedade e suas necessidades mudaram. Da mesma forma, as orientações teóricas e metodológicas da Lexicografia também têm passado por diversas transformações.

Devido às incontáveis relações sociais presentes em cada cultura, bem como as distintas variedades de gêneros, Bakhtin (1992) os divide em dois grupos, a saber: primários e secundários. Sobre o assunto, o autor ressalta que:

Não há razão para minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado. Importará, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre o gênero do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo) (Bakhtin, 1992, p. 280).

Os gêneros primários relacionam-se às situações comunicativas cotidianas, espontâneas, informais, como a carta, o bilhete, o diálogo cotidiano. Os gêneros secundários, por sua vez, se constituem como situações comunicativas mais complexas, como na esfera científica, religiosa, jornalística, acadêmica etc. Trata-se, pois, do uso mais elaborado da linguagem para construir uma ação verbal em situações de comunicação mais complexas.

Marcuschi (2008, p. 149), em seu tempo, define genericamente GT como “[...] formas de ação social [...]” e também algo de difícil definição formal. O autor propõe que, dependendo da perspectiva em que se observa, os GT podem ser: uma categoria cultural, um esquema cognitivo, uma forma de ação social, uma estrutura textual, uma forma de organização social e/ou uma ação retórica.

O autor sugere esse ponto de vista abrangente baseado no fato de que os GT são entidades sociodiscursivas imprescindíveis a qualquer situação comunicativa, seja ela escrita ou verbal. De acordo com esse autor, é impossível não se expressar através de textos. Os GT se configuram, pois, como textos sociocomunicativos utilizados no dia-a-dia. Assim, pode-se dizer que toda comunicação ocorre por meio de um GT.

Como entidades sociodiscursivas, os gêneros manifestam, inclusive, as regras de funcionamento e até de controle da sociedade. Segundo Marcuschi (2008), determinados gêneros expressam o exercício do poder social e cognitivo realizado por alguns segmentos dando maior ou menor legitimidade ao discurso. Por exemplo, os textos passados de simples dizeres para um artigo científico, uma publicação em alguma revista especializada ou em um jornal, ganham maior reconhecimento. Quanto a isso, Marcuschi (2005, p. 29) destaca que “[...] os gêneros textuais operam, em certos contextos, como formas de legitimação discursiva, já que se situam numa relação sociohistórica com fontes de produção que lhes dão sustentação muito além da justificativa individual”.

Nesse contexto, destacamos o dicionário que, pelos seus aspectos formais e funcionais, resulta em um texto possuidor de estrutura relativamente estável dentro da sociedade e que reflete, assim como os diversos textos existentes em uma comunidade linguística, as diferentes ideologias do povo de que é representante. No entanto, apenas essa definição não costuma dar conta de muitos questionamentos acadêmicos quanto a categorização desse texto. Seria o dicionário um GT ou um SG? Com base nessa indagação já mencionada na introdução deste artigo, discorremos sobre essa problemática na sequência e apresentamos uma proposta justificada de categorização de uma obra lexicográfica.

Gêneros textuais, suportes de gêneros e dicionários: definições e categorização

Comecemos nossa reflexão com as palavras de Marcuschi (2008, p. 173), quando afirma que “[...] equivocam-se os manuais quando falam no dicionário como portador de gênero, pois ele próprio é um gênero”. Da mesma forma, equivocam-se quando tratam a “[...] embalagem como gênero, já que ela é um suporte [...]”. Pontes (2009, p. 26), assim como Marcuschi (2008), ressalta a possibilidade de conceber o dicionário como um gênero textual, considerando-o como passível de ser entendido no âmbito de análise da Linguística Textual.

Nessa mesma linha de raciocínio, Berdet e Rodrigo (2002) ressaltam que o dicionário faz parte de um grupo de textos que podem ser classificados como textos científicos e, como tal, possui unidade de significado de comportamento comunicativo, sendo uma estrutura simbólica formada por unidades menores que compartilham um propósito genérico em comum dentro de uma dada sociedade. Krieger (2006, p. 142, inserção dos autores), por sua vez, considera que “[...] a obra dicionarística não se resume a uma listagem [de palavras], mas, como um texto, possui regras próprias de organização”.

Como os autores supramencionados não ressaltam características mais detalhadas do dicionário enquanto gênero como forma de justificar suas assertivas, apresentamos aqui algumas reflexões com o objetivo de tentar legitimar o dicionário como GT em sua hiperestrutura[6] e funcionalidade e não somente como um SG, pois cada parte do dicionário mantém relação hierárquica e, pode-se dizer, de dependência com outra.

O SG, de acordo com Marcuschi (2008, p. 174), é “[...] um locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”. Gênero, por sua vez, são discursos que se materializam na forma escrita ou oral. Essa distinção entre suporte e gênero nem sempre é feita com precisão. Marcuschi (2008) afirma que ele mesmo, em trabalhos pretéritos, identificou o outdoor como um gênero, mas que hoje admite que o outdoor é um suporte público para vários gêneros, com preferência para publicidades, propagandas, convites, entre outros da esfera discursiva comercial. Ao utilizar o exemplo mencionado, o autor sugere que se trate o suporte na relação com outros aspectos, quais sejam: domínio discursivo[7], formação discursiva, gênero e tipo textual[8]. Para ele,

A relação entre eles não constitui uma ordem hierárquica, já que não há um sistema de subordinação interna. Veja-se que o ‘jornalismo’ é um ‘domínio discursivo’, ao passo que o ‘jornal’ é seguramente um ‘suporte’ e que a ‘ideologia capitalista norte-americana’ se oferece como uma esfera de ‘formação discursiva’ bastante nítida, sendo a ‘reportagem jornalística o gênero textual’ em questão e as sequências ‘narrativas’ internas seriam o ‘tipo textual’ dominante no caso de uma ‘reportagem’ sobre a Guerra no Iraque publicada no New York Times (Marcuschi, 2008, p. 174, grifo do autor).

No caso do dicionário, podemos fazer uma adaptação dos aspectos apresentados por Marcuschi. Vejamos: no âmbito do ‘domínio discursivo acadêmico’, temos o subdomínio lexicografia; o dicionário, por sua vez, é o GT, pois todas as disposições textuais ali existentes dialogam entre si; o livro impresso, a internet ou qualquer meio eletrônico pode servir como ‘suporte’ do dicionário; a ‘ideologia’ existente nas entrelinhas de um dicionário, especialmente nas definições, acontece de acordo com a esfera de ‘formação discursiva’ do lexicógrafo ou da equipe de lexicógrafos, representantes da sociedade cujo dicionário é reflexo de aspectos inerentes a ela; ‘os tipos textuais’ dominantes em um dicionário dependem da tipologia de dicionário[9], suas diferentes partes, bem como das intenções do lexicógrafo em relação aos potenciais consulentes. Ou seja, a depender da tipologia do dicionário, distintas e complementares serão as tipologias textuais predominantes na front matter (doravante páginas iniciais) ou na back matter (páginas finais), assim como nos verbetes.

Se se trata de ‘dicionários para aprendizes’ de uma língua estrangeira ou ‘dicionários escolares’, por exemplo, possivelmente a obra se caracterizará, de forma geral, como de tipologia textual descritiva, já que esses tipos de dicionários são representantes de uma parte do léxico numa perspectiva sincrônica e em contextos de uso. Servem, portanto, como modelo para as reflexões dos consulentes e suas escolhas no momento de produzir ou compreender discursos.

Fuentes Morán (1997), ao discorrer sobre o plano hiperestrutural de um dicionário, ressalta que uma obra lexicográfica como um texto está composto por uma série de componentes primários organizados em uma estrutura global e que, com base nessa estrutura, é possível caracterizar “[...] o tipo, o gênero, a classe, etc. de texto de que se trata e determinar a ordem global de seus componentes[10]” (Fuentes Morán, 1997, p. 48, tradução nossa).

Ressaltamos, pois, que embora os textos presentes na hiperestrutura se diferenciem uns dos outros por seus conteúdos e funções comunicativas, não se pode olvidar que, na elaboração de um dicionário, esses distintos textos se comunicam, ou deveriam se comunicar. Dessa forma, o dicionário é o resultado de intenções comunicativas de caráter informacional que, segundo Fuentes Morán (1997), pode ser caracterizado como um “[...] texto elaborado com uma construção determinada que se descreve em uma estrutura global[11]” (Fuentes Morán, 1997, p. 49, tradução nossa).

O dicionário, assim sendo, possui uma estrutura formal, linguística e funcional que, em sala de aula, não consideramos pertinente que seja descrito ou analisado em suas partes isoladamente, pois se corre o risco de não haver compreensão plena de todas suas possibilidades de informação. Ou seja, ao lermos um ‘prefácio de dicionário’ com nossos alunos, o faremos de forma dialógica com as outras partes da obra. O mesmo acontece quando vamos diretamente às informações contidas em um verbete e nos deparamos com siglas, símbolos, abreviaturas, remissivas e que somente após recorrermos às informações de uso nas partes iniciais do dicionário passamos a fazer uma leitura mais fluente do verbete, como demonstramos na sequência de nossas reflexões.

Vejamos, por meio da Figura 1, o esquema que propomos para representar o dicionário em sua categorização:

Representação do dicionário em sua categorização (elaboração
própria dos autores).
Figura 1
Representação do dicionário em sua categorização (elaboração própria dos autores).

Pela figura, classificamos a Lexicografia como um ‘subdomínio do domínio discursivo acadêmico’ que, por sua vez, possibilita distintos GT. No âmbito de nossas reflexões, os principais GT do labor lexicográfico são os dicionários, os glossários, os vocabulários, por exemplo; e os secundários, mas não de menor valor, como as monografias, as dissertações, as teses, os artigos científicos[12], todos com temáticas relacionadas à teoria e prática lexicográfica e que, por suas funcionalidades, possibilitam estudos de natureza metalexicográfica que visam novos produtos lexicográficos condizentes com as diferentes necessidades existentes e emergentes.

Ressaltamos, nesse contexto, as palavras de Marcuschi (2008, p. 194): “[...] muitos gêneros são comuns a vários domínios”. Isso significa que os gêneros textuais que são estabelecidos em situações comunicativas complexas, a exemplo da jornalística e acadêmica, também são pertencentes a outros domínios discursivos, como os de natureza instrucional, o científico, o educacional, nas palavras do autor.

Todos os gêneros mencionados possuem estruturas formais, linguísticas e funcionalidades que variam de acordo com o público-alvo. Muitos desses GT são veiculados por meio de livros impressos, eletrônicos e internet. O livro, por suas características físicas, serve de suporte para os mais distintos gêneros, assim como a internet. A ‘dissertação de mestrado, a tese de doutorado, o romance’ são exemplos de GT dispostos, em sua maioria, em ‘suportes textuais’[13] dos tipos livro e internet.

Os dicionários, por sua vez, têm sido organizados para ambos os suportes mencionados alhures, possibilitando, pois, uma maior abrangência e facilitando o trabalho de consulta. Tomemos como exemplos para nossa explanação o Dicionário didático de português (1998, doravante DDP), de Maria Tereza Camargo Biderman. Trata-se de uma obra lexicográfica destinada a escolares de língua materna.

Primeiro, lembremos que todo GT é produzido em contextos comunicativos que visam a atender públicos bem específicos. O dicionário, como GT elaborado para sanar dúvidas de potenciais consulentes, costuma ser estruturado conforme as intenções do lexicógrafo que, por sua vez, objetivou elaborá-lo consoante as necessidades de um público-alvo.

No caso do dicionário de Biderman (1998), temos uma obra destinada prioritariamente para estudantes de língua materna que se encontram na educação básica, ou seja, do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental; e da 1ª à 3ª série do Ensino Médio. Esta obra visa a atender às necessidades desses estudantes com informações organizadas em linguagem bastante compreensível, de forma a assegurar “[...] um entendimento eficaz da palavra procurada” (Biderman, 1998, p. 5).

Conforme a autora, a principal característica da obra, em comparação com outros dicionários destinados ao estudante do Ensino Médio, “[...] é o fato de este ser um ‘dicionário contextual’ da língua portuguesa” (Biderman, 1998, p. 6, grifo nosso). A pesquisadora, ao discorrer sobre o papel dos exemplos e do contexto no prefácio do dicionário, esclarece que

[...] não existe nenhuma entrada, ou acepção de palavra, que não esteja explicitada por um contexto. Na verdade, não se consegue evidenciar claramente o significado de uma palavra, a não ser colocando-a em contexto. Em menos ainda, o uso específico de um dado registro de linguagem, ou uma regência determinada de um verbo (Biderman, 1998, p. 5).

Um dos grandes diferenciais do DDP é a sistematicidade ao exemplificar os significados e usos de “[...] toda e qualquer palavra e de cada acepção de um vocábulo” (Biderman, 1998, p. 5).

Desde o prefácio da obra, nas páginas iniciais, Biderman (1998) apresenta informações com linguagem clara e objetiva aos estudantes, apresentando conteúdos informativos sobre: definição e função do dicionário; a nomenclatura; o papel dos exemplos e do contexto. Ademais, em forma de texto escrito em prosa, a lexicógrafa discorre na sequência sobre os tipos de informações existentes no dicionário. A autora descreve as características do dicionário, principalmente aquelas voltadas às informações que podem ser adquiridas na microestrutura de cada verbete. Como informação complementar, Biderman (1998) apresenta também, mais especificamente às páginas 12-19, uma retrospectiva histórica da língua portuguesa referente à formação dessa língua, assim como uma lista de abreviações. Ainda nas páginas iniciais, a lexicógrafa acrescenta, às páginas 20-28 e sob a denominação de ‘apêndice’, paradigma das três conjugações regulares; locuções prepositivas, adverbiais, conjuncionais, pronominais e denotadores expressivos; e nomes de países, suas capitais e nomes gentílicos (pátrios) correspondentes.

Como se percebe pelas descrições anteriores, todas as partes do DDP se comunicam. Isso evidencia a natureza de gênero do dicionário. Como já explicitado anteriormente, quando estamos em sala de aula com nossos alunos e esses buscam significados de palavras, é natural que eles se deparem com sinais contidos nos verbetes que, sem a leitura sobre o que eles significam, tornariam problemático seu entendimento. Da mesma forma, se um aluno recorrer às informações de uso e ao prefácio de dicionário como gêneros independentes, possivelmente, também terá problemas de compreensão integral do conteúdo, uma vez que precisará recorrer às diferentes partes da obra para poder visualizar as informações registradas no texto em questão. Vejamos um trecho do item 2. Gramática (forma e função das palavras), em que Biderman (1998, p. 7, grifo nosso) informa: “Todas as palavras-entrada são seguidas imediatamente da categoria gramatical (classe de palavras) em que ela se classifica: apurado adj., chamar v., funeral s.m., fundura s.f., etc. ‘Cf. lista de abreviações’”. Nota-se que a própria autora faz uma chamada para informações importantes para o entendimento dos verbetes. Outro fato que também nos chama a atenção nas informações de uso é quando a lexicógrafa alerta o consulente quanto à divisão silábica e à tonicidade das palavras, a saber:

Todas as entradas contêm a divisão silábica da palavra, com a indicação da sílaba tônica do vocábulo. Por exemplo: a-pu-ro, ro-che­-do, mi-li-tân­-cia, ques-tio-ná-vel, in-ters-tí-cio, mi-no-ri-a, po-de-ri-o, le-nha, sa-ir. Contudo, as normas ortográficas não estabelecem princípios claros para a separação silábica, quando ocorrem encontros vocálicos em que o primeiro elemento é uma semivogal /y/ ou /w/ - grafada i ou u – podendo formar uma sílaba com a vogal seguinte. Dependendo da velocidade da prolação, pode-se pronunciar esse encontro como ditongo (dito crescente) ou como hiato. Assim, seguindo sugestão de Celso Cunha em sua gramática, optei pela não-separação, sobretudo em sílaba átona (pretônica ou postônica). Portanto, separou-se da seguinte forma: cá-rie, dia-go-nal, dia-le-tal, fa-mí-lia, es-pi-ri-tua-li-da-de, es-miu-çar, fia-ção, mi-li-tân-cia, mo-ne-tá-rio, nu-tri-cio-nis-ta (Biderman, 1998, p. 6).

Um aluno que não tenha se atentado para essas informações nas páginas iniciais do dicionário, possivelmente não conseguirá adquirir o máximo possível de conhecimento oferecido na microestrutura. A título de exemplo, citamos abaixo um verbete com outros tipos de marcações que também carecem de entendimento por parte do aluno e que, consequentemente, induzirá o leitor a reconhecer as páginas iniciais da obra:

beque s.m be-que. [é]. Jogador que joga na defesa entre a linha média e o gol. Vavá jogava como beque. // pl: beques/ sin: zagueiro/ obs: orig. ingl. Back (Biderman, 1998, p. 141).

Será que o aluno, sem antes ter lido as informações de uso, ou de forma contrária, ao ir buscar o significado da palavra ‘beque’ e se deparar com as seguintes marcações be-que [é], conseguirá abstrair o necessário sobre a palavra, caso ele não tenha ouvido alguém pronunciá-la?

Frente ao exposto e na esteira de nossas reflexões, portanto, ratificamos a assertiva de Rodriguez Barcía (2016), para quem o

[…] dicionário é um gênero discursivo singular no qual se registra um número finito de palavras e locuções de uma língua ou de uma matéria determinada junto com o significado delas, assim como outra série de informações linguísticas de índole diversa; sua organização mais habitual é a alfabética e a cultura da sociedade cuja obra é representante é sempre presente, da mesma forma que influencia de forma determinante na sociedade (Rodríguez Barcía, 2016, p. 17, tradução nossa)[14].

A autora, ao referir-se ao dicionário como um gênero discursivo singular, permite-nos juntamente com Marcuschi (2008), Berdet e Rodrigo (2002), Krieger (2006) e também Abad Nebot (2001, apud Pontes, 2009) entender o dicionário como um GT possuidor de características peculiares de composição, dialógicas, de estilo, conteúdo temático e propósitos específicos, consoante às explicações realizadas no decorrer deste artigo.

Considerações finais

As reflexões fomentadas com este artigo tiveram a intenção de demonstrar a possibilidade de categorizar o dicionário como um GT. Pelo exposto, ratificamos epistemologias a respeito dos gêneros, sobretudo em relação ao fato de apresentarem aspectos específicos que os definem em sua composição. Nesse sentido, é em conformidade com a esfera comunicativa, o domínio discursivo, o propósito do enunciador e o contexto em que vai circular que se dá a constituição dos gêneros. No caso do dicionário, podemos entendê-lo como um GT, uma vez que possui aspectos estruturais formais e funcionais mais ou menos estáveis que o caracterizam como tal.

Salientamos, nesse contexto, que embora possamos tentar trabalhar com nossos alunos de forma isolada com um determinado componente do dicionário, como o verbete, por exemplo, ainda assim, precisaremos recorrer às outras partes do dicionário com o intento de uma melhor compreensão. Isso ocorre devido ao fato de as partes constituintes de um dicionário manterem relação dialógica. Todas as partes de um dicionário são elaboradas com o objetivo de propiciar a melhor compreensão possível aos potenciais consulentes.

Ressaltamos ainda que o dicionário entendido como um SG não se adéqua às teorias sobre os estudos a respeito dos GT, como explicitamos no decorrer deste artigo. Nos ‘suportes’, embora muitos abarquem diferentes gêneros de um determinado domínio discursivo, cada texto ali disposto pode possuir independência, ou seja, pode ser lido ou estudado separadamente do conjunto de gêneros veiculado por um determinado suporte.

Referências

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Notas

[1] Gêneros textuais “[...] são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas” (Marcuschi, 2008. p. 155).
[2] A respeito das terminologias ‘gêneros textuais’ e ‘gêneros discursivos’ e suas distinções, não nos detemos a discorrer sobre essa problemática, uma vez que esse não é nosso objetivo com este artigo. No entanto, àqueles que se interessarem pela temática, podem consultar (Dias, Mesquita, Finotti, Otoni, Lima, & Rocha, 2011). Com a revisão bibliográfica que as autoras oferecem ao discutir a diferenciação existente entre as terminologias, o leitor pode adquirir uma visão ampla das linhas de raciocínio teóricas de diferentes estudiosos. Em nosso artigo, com exceção de quando nos referimos a Bakhtin, utilizamos o termo ‘gênero textual’.
[3] Sobre o assunto, sugerimos Cf. Wiegand e Fuentes Morán (2009).
[4] “[...] por el cual se vehiculan diferentes géneros textuales”.
[5] A lexicografia é uma ciência cujos princípios teóricos e metodológicos possibilitam estudos de diferentes ordens, a depender das intenções investigativas do pesquisador. Investigações com objetivos de elaborar dicionários de distintas tipologias, propor parâmetros de organização hiper, macro y microestruturais de repertórios lexicográficos, e também de como usar obras lexicográficas, enquanto material didático que são, demandam conhecimentos epistemológicos que, graças aos avanços dos estudos de natureza etalexicográfica existentes, hoje são possíveis aos que se dedicam ao labor científico da lexicografia. Para mais informações acerca do assunto, conferir Fernandez Sevilla (1974), Werner (1982), Wiegand (1984), Hernández (1989), Lara (1997), Porto Dapena (2002), Azorín Fernández (2003) entre outros.
[6] O termo ‘hiperestrutura’ é apresentado por Wiegand (1988, apud Fuentes Morán, 1997) e serve para referir-se a estrutura geral do dicionário, em suas três partes canônicas - front matter, word list e back matter.
[7] Marcuschi (2008, p. 194) nos explica que ‘domínio discursivo’ é uma “[...] esfera da vida social ou institucional (religiosa, jurídica, jornalística, pedagógica, política, industrial, militar, familiar, lúdica etc.) na qual se dão práticas que organizam formas de comunicação e respectivas estratégias de compreensão”.
[8] Entende-se por tipo textual, ou tipologias textuais, as sequências linguísticas de enunciados, que podem ser narrativas, descritivas, dissertativas, preditivas etc. Marcusch (2008, p 154-161) e Schneuwly (2004, p. 19-34) discorrem a esse respeito.
[9] Como exemplo, citemos os dicionários bilíngues, os monolíngues escolares ou para aprendizes, os semibilíngues, os gerais, os etimológicos, entre outros.
[10] “[...] el tipo, el género, la clase, etc. de texto del que se trata y determinar el orden global de sus componentes”.
[11] “[...] texto diseñado con una construcción determinada que se describe en una estructura global”.
[12] Ressaltamos que as monografias, as dissertações, as teses e os artigos científicos são gêneros textuais escritos da esfera acadêmica e, por isso, pertencentes também a outros domínios discursivos.
[13] Para mais informações sobre tipos de suporte, sugerimos a leitura de Marcuschi (2008).
[14] […] diccionario es un género discursivo singular en el que se recoge un catálogo de voces y locuciones de una lengua o de una materia determinada junto con el significado de estas, así como otra serie de informaciones lingüísticas de diversa índole; su ordenación más habitual es la alfabética, y se nutre de la cultura en la que está inserta, a la vez que influye de manera determinante en la sociedad.
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