Linguística

Entre a concessão e a adversidade: orações introduzidas por aunque no espanhol sob o viés funcionalista

Talita Storti Garcia
Universidade Estadual Paulista, Brasil
Mariana Alves Machado Pelegrini Felipe
Universidade Estadual Paulista, Brasil

Entre a concessão e a adversidade: orações introduzidas por aunque no espanhol sob o viés funcionalista

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 41, núm. 1, 2019

Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 05 Outubro 2018

Aprovação: 21 Março 2019

Resumo: Este trabalho investiga as orações do espanhol falado introduzidas por aunque, juntor que, de acordo com os compêndios gramaticais, na língua espanhola, pode assinalar uma relação concessiva ou adversativa. Sob a perspectiva da teoria da gramática discursivo-funcional (Hengeveld & Mackenzie, 2008), pretende-se averiguar como o fenômeno da sobreposição semântica entre concessão e adversidade é concebido e, de maneira específica, investigar em quais níveis e camadas do modelo essa sobreposição ocorre. Os resultados mostram que os casos duvidosos postulados pela perspectiva tradicional se dão no domínio interpessoal, quando constituem funções retóricas e funções interacionais.

Palavras-chave: espanhol peninsular falado, gramática discursivo-funcional, concessão, adversidade, aunque.

Abstract: This work investigates the sentences of the spoken Spanish introduced by aunque, connector that, according to the grammatical compendiums, can indicate a concessive or adversative relation in Spanish language. From the perspective of the functional discourse grammar theory (Hengeveld & Mackenzie, 2008), we intend to investigate how the phenomenon of semantic overlap between concession and adversity is conceived and, in a specific way, to investigate in which levels and layers of the model this overlap occurs. The results show that the dubious cases postulated by the traditional perspective occur in the interpersonal domain, when they constitute rhetorical functions and interactional functions.

Keywords: spoken peninsular spanish, functional discourse grammar, concession, adversity, aunque.

Introdução[1]

A concessão, na literatura tradicional do espanhol, é concebida como uma oração subordinada que apresenta um obstáculo para o cumprimento da ação expressa na oração principal, mas não chega a impedi-la. A adversidade, por sua vez, é postulada pelos estudiosos tradicionalistas e descritivistas como “[...] aquele tipo oracional no qual se contrapõem uma oração afirmativa e uma negativa” (Sánchez, Martín, & Matilla, 1980, p. 174, tradução nossa).[2] Diversos trabalhos (König, 1994; Crevels 2000; Flamenco García, 1999; Neves, 1999; Matte Bon, 2003; Real Academia Espanhola, 2009), no entanto, afirmam que “[...] tanto nos enunciados concessivos quanto nos adversativos há dois elementos de informação que se contrastam entre si” (Matte Bon, 2003, p. 211, tradução nossa)[3]

Essa proximidade semântica se potencializa quando o relator/nexo[4] que introduz determinadas construções é aunque, pois essa conjunção, conforme entendem a Real Academia Española (2009), Rivas Muiño (1989) e Matte Bon (2003) pode introduzir estruturas concessivas e também adversativas, fenômeno conhecido como ‘sobreposição semântica’.

A ocorrência que segue ilustra os casos de orações introduzidas por aunque no córpus utilizado neste trabalho seguida da admissível substituição de aunque por pero, conforme se observa em (1a), se assumidas as diferentes leituras que a construção pode receber:

(1) ya hemos conseguido muchas cosas pues que no teníamos hace muchísimos años ¿no? aunque todavía quedan nos quedan muchísimas para- para estar a otros niveles de otros sitios (8, H-AH, 20)[5]

já conseguimos muitas coisas que não tínhamos há muitos anos, não? Embora ainda restam muitas para conseguir a fim de chegar a patamares de otros lugares[6].

(1a) ya hemos conseguido muchas cosas pues que no teníamos hace muchísimos años ¿no? pero todavía quedan nos quedan muchísimas para- para estar a otros niveles de otros sitios

já conseguimos muitas coisas que não tínhamos há muitos anos, não? Mas ainda restam muitas para conseguir a fim de chegar a patamares de outros lugares.

O nexo aunque é muito produtivo na língua e tem sido alvo de vários estudos recentes. Parra (2016), Olbertz, Garcia e Parra (2016) e Garcia e Felipe (2016) descrevem usos de aunque em contextos do espanhol falado e escrito, e também reconhecem que o juntor transita entre valores concessivos, adversativos e até condicionais. Partiremos dos usos já reconhecidos por Parra (2016) para descrever o trânsito de aunque entre os valores concessivo e adversativo, visto que a autora o concebe em termos discursivo-funcionais em contextos do espanhol falado e escrito.

O objetivo deste trabalho é investigar o fenômeno da ‘sobreposição semântica’ em contextos oracionais introduzidos por aunque sob a hipótese de que esse fenômeno se dá apenas quando as orações envolvidas ocorrem no domínio interpessoal.

O universo de investigação consiste em amostras extraídas do Projeto PRESEEA (Proyecto Sociolingüístico del Español de España y de América), disponível em http://preseea.linguas.net. Por delimitação do córpus, restringimos as amostras à cidade de Alcalá de Henares devido ao estágio mais avançado de organização dos inquéritos de áudio.

Considerando os objetivos estabelecidos para esta investigação, cada ocorrência foi analisada de acordo com os seguintes fatores: (1) nível e camada em que as orações se estabelecem, a saber: movimento, ato discursivo, pertencentes ao nível interpessoal e conteúdo proposicional, do nível representacional; (2) pressuposição das orações envolvidas, ou seja, ponto de vista do ‘falante’ com relação ao conhecimento/desconhecimento do Ouvinte, sendo considerada pressuposta a informação dada/conhecida e não pressuposta a informação nova/desconhecida; (3) factualidade da oração principal e da oração introduzida por aunque, tendo em vista o valor de verdade/realidade das orações, sendo factual o ‘ato discursivo’ assertivo; (4) tempo e modo verbal das orações: correlação modo-temporal entre a oração principal e a oração introduzida por aunque; (5) posição da oração introduzida por aunque com relação à oração principal: anteposta ou posposta, tomando o verbo da oração principal como referência.

Este artigo se organiza da seguinte forma: na primeira seção problematizamos os conceitos trazidos pela literatura a respeito dos usos concessivos e adversativos de aunque. Na segunda seção, apresentamos os princípios teóricos da gramática discursivo-funcional que embasam a análise dos dados. Na terceira seção apresentamos os conceitos sobre concessão no âmbito discursivo-funcional. Na quarta seção, por sua vez, exploramos os dados com base nos critérios apresentados de modo a estabelecer relações entre eles. Por fim, nas Considerações Finais, sistematizamos os resultados e evidenciamos as contribuições desta pesquisa.

Orações introduzidas por aunque: o fenômeno da sobreposição semântica

Vários são os trabalhos (König, 1994; Bosque & Demonte, 2000; Neves, 1999; Matte Bon, 2003; Real Academia Española, 2009) que reconhecem a proximidade semântica entre concessão e adversidade. Afirmam Flamenco García (1999, p. 3809, tradução nossa) que “[...] as relações de concessão e de adversidade fazem referência a domínios nocionais muito próximos”[7] sob argumento de que ambas apresentam elementos de informação contrastantes entre si.

No período concessivo, segundo a Real Academia Española (2009), a oração subordinada constitui um obstáculo, uma razão ineficaz que contradiz o que está expresso na oração principal, mas não impede que a ação expressa na principal se realize. Matte Bon (2003) adota uma concepção lógico-semântica das construções concessivas, em que a oração principal (que pode ser representada por p) poderia interferir na ocorrência da oração concessiva (representada por q), mas não interfere e, assim, propõe o esquema Aunque p, q, em que aunque representa o nexo concessivo.

A adversidade, por sua vez, é reconhecida por autores como Cascón Martín (2000) e Sánchez et al. (1980) como uma contraposição entre duas ideias ou como uma contraposição entre duas orações, uma afirmativa e outra negativa. Gili Gaya (1955) defende que, independente da ordem em que apareçam na sentença, uma condição para que haja adversidade é sejam expressos “[...] juízos de qualidade lógica diferente, um afirmativo e outro negativo (ou vice-versa)” (Gili Gaya, 1955, p. 257, tradução nossa)[8], o que resulta no esquema lógico-semântico p, pero q (Matte Bon, 2003).

Um teste comumente realizado a fim de comprovar a aproximação dos dois tipos semânticos é a substituição de aunque por pero. Do ponto de vista lógico semântico, essa relação pode ser elucidada pelo esquema Aunque p, q = p, pero q (Flamenco García, 1999, 3812)[9].

A sobreposição semântica ocorre, segundo a Real Academia Española (1931), porque a conjunção aunque apresenta valor primitivo concessivo, mas adquiriu, ao longo do tempo, valores adversativos. Para König (1994, p. 681, tradução nossa), “[...] determinadas sentenças concessivas se confundem com as de valor adversativo a tal ponto que estabelecer distinção entre as duas seria algo impossível”[10]. Partimos, neste trabalho, do pressuposto de que concessão e adversidade são tipos oracionais substancialmente distintos em diversos aspectos. Flamenco García (1999) propõe, com base na perspectiva lógico-semântica que adota, elencar algumas estratégias para diferenciar esses dois tipos semânticos: relação do nexo com seus membros e possibilidade de recorrência de construções com mais de dois membros. Esses dois critérios, no entanto, não parecem dar conta de explicar essa ‘sobreposição’.

Garcés (1994) chama a atenção para um importante fator que pode ajudar nessa distinção. Trata-se da forma verbal da oração que apresenta o juntor, pois a substituição de aunque por pero só é possível quando o verbo da oração subordinada ocorre no indicativo. Os exemplos (2) e (3), no subjuntivo, e (4) e (5), no indicativo, ilustram tal distinção:

(2) Saldremos a comprar, aunque llueva (exemplo adaptado de Garcés, 1994, p. 24)[11].

(3) *Saldremos a comprar, pero llueva (exemplo adaptado de Garcés, 1994, p. 24)[12].

(4) Es un chico muy interesante aunque se muestra un poco distante (Garcés, 1994, p. 24).[13]

(5) Es un chico muy interesante pero se muestra un poco distante (Garcés, 1994, p. 24)[14].

Como se observa, a substituição de aunque por pero não é possível em contextos cujo verbo ocorre no subjuntivo, o que se comprova pelo contexto agramatical de (3), mas é possível quando o verbo da oração subordinada ocorre no indicativo.

O uso do indicativo geralmente se relaciona a contextos ‘reais’, ‘factuais’, enquanto o subjuntivo, a contextos ‘hipotéticos’, ‘contrafactuais’ ou ‘semifactuais’. É importante mencionar, no entanto, que nossos dados revelam ocorrências no subjuntivo em contextos ‘reais’, ‘factuais’, o que atribuímos à pressuposição do falante (cf. Flamenco García, 1999, p. 3829) com relação ao que está sendo apresentado no discurso como factual.

É pertinente observar ainda que a substituição de aunque por pero é possível quando a oração subordinada está posposta à principal, pois, quando a subordinada antecede a principal, a substituição dos juntores não é possível, como comprova (6) e (7) a seguir e suas paráfrases em (6’) e (7’):

(6) [Aunque llueve] [voy a salir].

*[Pero llueve] [voy a salir].

(7) [Voy a salir] [aunque llueve].

[Voy a salir] [pero llueve].

Como se pode perceber, os critérios oferecidos pelos estudiosos para distinguir as relações de concessão e de adversidade são basicamente sintáticos, já que distância do nexo com relação aos demais termos, alteração de ordem, recorrência de estruturas e formas verbais se relacionam à morfossintaxe da língua. Destaca-se, nesse cenário, o trabalho de Flamenco García (1999), que, apesar de valer-se de critérios majoritariamente sintáticos para distinguir os dois tipos oracionais, reconhece que “[...] se existe alguma diferença entre concessão e adversidade, ela diz respeito às diferentes estratégias que decidam utilizar o falante no seu intercâmbio comunicativo” (Flamenco García, 1999, p. 3810, tradução nossa)[15].

Ibba (2007), valendo-se de princípios pragmáticos, afirma que os nexos adversativos introduzem informação remática, nova, não pressuposta, conforme mostra o exemplo (8) a seguir de Garcés (1994), enquanto as orações concessivas introduzem informação conhecida entre os interlocutores, portanto, temática, pressuposta, como se observa na ocorrência (9), a seguir:

(8) Haz lo que quieras, pero no cuentes con mi aprobación (Garcés, 1994, p. 23-24)[16].

(9) en los pueblos se ha perdido bastante con// no sé por qué/// sí/ yo es que claro/ nací en un pueblo y- y aunque me venga aquí con ocho años/ con ocho años ya eres una persona madura// entre comillas ¿no? (17, M-AH, 5).

Em (8), conforme Ibba (2007), a oração introduzida por pero apresenta a ‘informação nova’, de caráter restritivo, a fim de limitar, negar (ou mesmo restringir) o conteúdo da oração anterior has lo que quieras. Em (9), por outro lado, o conteúdo apresentado na oração concessiva aunque me venga aquí con ocho años pode ser considerado pelo Falante como um fato já conhecido por seu Ouvinte, quem poderia conhecer por meio de conhecimento de mundo ou partilhado que o Falante chegou muito jovem à cidade. Essas informações contextuais, na GDF, se relacionam ao componente contextual.

Um questionamento que surge, no entanto, é se as concessivas também podem introduzir conceitos primários ou informações novas, não pressupostas. A ocorrência dada anteriormente em (4), repetida por conveniência em (10) a seguir, mostra que a oração concessiva aunque [el chico] se muestra un poco distante pode ser considerada uma informação não pressuposta:

(10) Es un chico muy interesante aunque se muestra un poco distante (Garcés, 1994, p. 24)[17].

Como se pode perceber, a distinção entre orações concessivas e adversativas em espanhol, em especial no que diz respeito aos casos introduzidos por aunque, é bastante complexa e ainda pouco explorada na literatura, que se limita a critérios morfossintáticos para tentar distinguir esses dois tipos oracionais e generaliza o denominado parentesco lógico a todos os tipos oracionais introduzidos por aunque.

Considerações teóricas

Um princípio fundamental da perspectiva funcionalista é o de subordinar o estudo do sistema linguístico ao uso (Neves, 1997). Dik (1989, 1997), em um modelo que considera os aspectos semânticos e pragmáticos no processo interacional, concebe os fatores atrelados às intenções e à capacidade pragmática do falante como indispensáveis para a produção das expressões linguísticas.

Nesse sentido, a Gramática Discursivo-Funcional, desenvolvida a partir dos pressupostos da gramática funcional (GF) - Dik (1989, 1997) - é uma teoria sobre a gramática que tenta refletir as evidências psicolinguísticas em sua arquitetura básica. Seu modelo teórico parte da intenção do falante, ou seja, dos elementos que se relacionam à interação, em direção à articulação, passando pelos aspectos semânticos, sintáticos e morfológicos. Essa organização descendente (top-down) é motivada pela “[...] suposição de que um modelo de gramática será mais eficaz quanto mais sua organização se assemelhar ao processamento linguístico no indivíduo” (Hengeveld & Mackenzie, 2008).

Essa teoria tem como objetivo explicar os fenômenos morfossintáticos e fonológicos codificados em uma língua, considerando que esses fenômenos refletem aspectos pragmáticos e semânticos da formulação.

O modelo teórico apresenta um componente gramatical e três componentes não-gramaticais: conceitual, contextual e o de saída. O ‘componente conceitual’ está ligado à intenção comunicativa no processo de fala, às conceptualizações e a questões extralinguísticas. Ele age como ‘força motriz’ do componente gramatical; o ‘componente de saída’ é responsável por gerar as informações a partir do componente gramatical; sendo entendido como uma tradução das expressões concebidas pelo componente gramatical; o ‘componente contextual’, por sua vez, compreende, além da forma, a descrição do conteúdo, o contexto e as relações sociais presentes no processo de fala. Esses três componentes: conceitual, contextual e de saída interagem com o componente gramatical, que se destaca por ser estruturado em termos de níveis (interpessoal, representacional, morfossintático e fonológico) e camadas hierarquicamente organizados.

O nível interpessoal se relaciona aos aspectos pragmáticos da interação. Compreende as camadas do movimento (M), do ato discursivo (A) e do conteúdo comunicado (C). O movimento é uma unidade que pode oferecer a possibilidade de uma reação por parte do destinatário do ato de fala, que pode ser uma resposta ou uma objeção. Essa reação, por sua vez, também deve ser entendida como um movimento. Destacamos também o ato discursivo, que é compreendido como a unidade básica do discurso, considerado a menor unidade linguística do comportamento comunicativo, já que as relações de oposição são concebidas, neste nível, como relações que ocorrem entre dois atos discursivos, um nuclear e outro subsidiário. No caso da concessão, o ato subsidiário, representado pela oração concessiva, apresenta uma ‘função retórica’, uma vez que se relaciona ao modo de ordenação no discurso, expressando uma objeção real ou não (apenas possível) para o que é apresentado no Ato anterior. Em (11), a função retórica Concessão é atribuída à oração aunque esté mal preguntarlo, conforme representado por (11’):

(11) O trabalho foi bastante fácil, embora (eu admita que) tenha levado mais tempo do que o esperado (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 54)[18] .

(11’) (MI: [(AI: – o trabalho foi bastante fácil – (AI)) (AJ: levou mais tempo que o esperado - (AJ))Conc] (MI)) (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 54)[19].

Nessa ocorrência, a relação entre as orações ‘o trabalho foi bastante fácil’ e ‘embora tenha levado mais tempo do que o esperado’ se manifesta no domínio do ato discursivo, visto que o falante, depois de emitir o primeiro ato discursivo, sente necessidade de conceder algo, sua ciência de que levou mais tempo do que o esperado.

Na adversidade, por sua vez, o ato discursivo marcado por meio do nexo mas (but) é o Nuclear, como exemplifica (12) e sua representação em (12’), o que faz com que o Conteúdo Comunicado deste Ato Discursivo seja comunicativamente mais relevante, pois o ato nuclear é ‘foi fácil’ e o ato subsidiário, que carrega a concessão, é ‘o trabalho levou mais tempo que o esperado’:

(12) O trabalho (admitimos) levou mais tempo que o esperado, mas foi fácil (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 55)[20].

(12’) (MI: [AI: - o trabalho levou mais tempo que o esperado – (AI))Con (AJ: - foi fácil – (AJ))] (MI)) (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 55)[21].

O nível representacional, diferentemente do nível interpessoal, se relaciona aos aspectos semânticos da expressão linguística. Esse nível também é hierarquicamente organizado em camadas: conteúdo proposicional (P), episódios (Ep), estados-de-coisas (E) e propriedades (F), respectivamente. Dessas categorias semânticas, interessa-nos o Conteúdo Proposicional (P), uma entidade de terceira ordem, aquela que faz referência a um constructo mental, não podendo ser localizada no tempo ou no espaço.

O nível morfossintático refere-se à codificação do que é expresso no nível interpessoal e no nível representacional. Cuida, portanto, dos aspectos estruturais da expressão linguística e dá conta das questões referentes tanto à morfologia quanto à sintaxe, já que, para a GDF, os princípios utilizados na formação de palavras são os mesmos utilizados na formação de sintagmas e orações (Hengeveld & Mackenzie, 2008). É formado pelas seguintes camadas: expressão linguística (LE), oração (CL), sintagma (XP) e palavra (XW). a expressão linguística pode ser constituída de pelo menos uma unidade que possa ser usada de forma independente, a qual pode ser uma oração, um sintagma ou uma palavra. Essas unidades não são parte uma da outra, mas podem combinar-se de diferentes maneiras: ‘equiordenação, cossubordinação e coordenação’(cf. Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 309).

Na ‘equiordenação’, há mútua dependência entre as unidades, como nas correlações, em que nenhuma das duas unidades poderia ser usada independentemente (cf. 13). Na ‘cossubordinação’, por sua vez, uma unidade poderia ser usada independentemente e a outra não (cf. 14). No último caso, o da ‘coordenação’, duas ou mais unidades não são constituintes uma da outra e poderiam ocorrer por si só (cf. 15):

(13) Ela canta tão bem quanto Mohan costumava cantar[22] (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 308).

(14) Quanto aos estudantes, eles ouviram as notícias ontem[23] (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 308).

(15) Os Celtics ganharam e os Rangers perderam[24] (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 308).

Na camada da oração, por sua vez, destacamos o processo da Subordinação, casos em que orações podem ocorrer como constituintes de outras.

O nível fonológico, último nível, também se refere à codificação, num processo em que a articulação é reflexo dos elementos semântico-pragmáticos, aqueles referentes aos níveis interpessoal, representacional e morfossintático, respectivamente, em um modelo que parte da interação como fator condicionante dos outros elementos que constituem a interação. É, portanto, o nível responsável pela articulação. Cabe a ele tratar dos aspectos da codificação que não são abrangidos no nível morfossintático. Ele recebe o input dos níveis interpessoal, representacional e morfossintático, transforma-o fonologicamente, e o envia para o componente de saída. É formado pelas seguintes camadas: enunciado (U), sintagma entonacional (IP), sintagma fonológico (PP), palavra fonológica (Pw), pé (F) e sílaba (S).

O lugar da concessão na GDF

A concessão é concebida, na GDF, primordialmente como uma função retórica, pois diz respeito às relações que envolvem falante e ouvinte. Função retórica, nessa perspectiva, é uma estratégia de que dispõe o falante tendo em vista suas percepções com relação ao ouvinte. O falante, nesse caso, ‘concede’ algo com relação ao que foi expresso anteriormente a fim de persuadir o ouvinte a aceitar o que foi expresso no ato discursivo nuclear (cf. Pezatti & Camacho, 2016). A oração concessiva é representada pelo ato discursivo subsidiário que expressa a concessão. Esse ato se refere ao conteúdo expresso no Ato Nuclear, imediatamente anterior, representado pela tradicional oração principal. Trata-se, portanto, de uma relação que ocorre no NI, entre dois Atos Discursivos, um nuclear e outro subsidiário:

(16) (1) ¿cua-cuántos años tienes? aunque esté mal preguntarlo

(2) yo ahora tengo: treinta y seis años (20, H-AH, 44).

(1) quantos anos você tem? Embora seja ruim perguntar isso

(2) eu agora tenho trinta e seis anos.

O ato discursivo subsidiário (AJ), representado pela oração concessiva (Con) esté mal preguntarlo, apresenta uma função retórica, uma vez que se relaciona ao modo de ordenação no discurso, expressando uma reconsideração para o que é apresentado no Ato Discursivo anterior, o nuclear (AI).

Como atestam Hengeveld e Mackenzie (2008), “[...] a ordem dos atos discursivos é importante [...]” (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 55, tradução nossa),[25] dada a natureza interacional dessa função, sempre voltada para a intenção do falante de persuadir, ‘ganhar’ o consentimento de seu interlocutor, o que resulta na posposição do ato subsidiário concessão ao ato nuclear, uma consequência da estruturação descendente (top down) desse modelo teórico.

A anteposição da oração concessiva à principal, segundo os autores, constitui uma importante pista morfossintática de que a relação de concessão se dá no nível representacional, entre dois conteúdos proposicionais. Nesse caso, quando a relação ocorre entre conteúdos, a concessão é uma função semântica, voltada exatamente para o conteúdo da oração principal, e não para o ato discursivo proferido. Não se trata, portanto, de uma função retórica, mas sim semântica, quando, de acordo com os autores, não é permitida a inserção de ‘Eu admita que’:

(17) Embora (*eu admita que) o trabalho tenha demorado mais do que o esperado, ele foi fácil (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 55)[26] .

Em (17), as orações envolvidas, a principal e a concessiva, constituem dois conteúdos proposicionais, no NR, entidade que pode apenas ser avaliada em termos de sua verdade, não pode ser localizada no espaço nem no tempo, o que se verifica em (17), já que demorar e ser fácil são atitudes proposicionais.

Além da atuação nessas camadas postuladas por Hengeveld e Mackenzie (2008), o ato discursivo e o conteúdo proposicional, Garcia e Felipe (2016) e Parra (2016) reconhecem a ocorrência desse tipo de adverbial na camada do movimento, a mais alta do NI, como já assinalava Garcia (2010) e Stassi-Sé (2012) para as concessivas do português.

Parra (2016), ao descrever os contextos introduzidos por aunque no espanhol falado e escrito, volta sua atenção para as relações concessivas que podem atuar em domínios mais amplos do que o interacional, domínios esses em que a concessão se configura como uma estratégia interativa, voltada para o jogo argumentativo empreendido pelos participantes da comunicação (Parra, 2016). Esses casos são também reconhecidos por Garcia e Felipe (2016), o que permite que neste trabalho, consideremos a atuação de aunque em três camadas: movimento, ato discursivo (NI) e conteúdo proposicional (NR).

Os casos de movimento configuram uma informação acrescentada pelo falante e se relacionam a todo o contexto discursivo (uma porção maior do discurso), não exatamente a outra oração posposta ou anteposta à oração nuclear, conforme exemplificado em (18):

(18) bueno es un bloque que tiene tres alturas/ bueno tiene cuatro bajo y: tres alturas// yo vivo en un tercero/ solamente hay dos viviendas por-por planta/ es decir que en total somos ocho-/ ocho co- diez ocho vecinos// (e:) y los bajos además son comerciales/ entonces realmente serían- serían seis vecinos/ (e:) la parte delantera pues da a la calle a la calle/ a R A/ y la parte trasera pues da a la C/ la C e:s un espacio: (e:) privado/ solamente de los: aunque no pasa la gente por allí/ pero vamos no hay tráfico rodado/ es una zona arbolada/ (m:) en la parte delantera pues hay un balcón y en la parte trasera pues una- una terraza/tiene cuatro habitaciones/ un salón/ un cuarto de baño/ cocina (32, H-AH, 8).

bom, é um bloco que tem três andares, eu moro no terceiro. Só tem duas moradias por andar, o que significa dizer que no total somos oito ou dez vizinhos, e o térreo são comércios, então realmente seriam seis vizinhos. A parte da frente então, dá para a rua R A e a parte de trás dá para a rua C, é um espaço privado, só dos ... embora não passe gente ali, mas, veja, não há muito tráfego, é uma área arborizada. Na parte da frente tem uma sacada e na parte de trás um terraço, tem quatro quartos, uma sala, um banheiro e cozinha.

Em (18), a oração concessiva aunque no pasa la gente por allí não se subordina à oração imediatamente anterior (la C es un espacio privado/ solamente de los) nem posterior (pero vamos no hay tráfico rodado). O que se observa é que o trecho posterior solamente de los foi interrompido para que a oração concessiva fosse inserida. Assim, essa oração concessiva introduzida por aunque se caracteriza por não se subordinar a nenhuma outra oração, ou seja, por ser morfossintaticamente independente de uma oração principal.

Stassi-Sé (2012) afirma que a relação de concessão, em casos como esse no português, pode exercer outro tipo de função, que se refere especificamente às circunstâncias da interação, ‘a função interacional’. Ao distinguir a ‘função interacional’ da função retórica e da função pragmática, a autora propõe a incorporação dessa função ao NI, a fim de “[...] discutir a orientação da função interacional que movimentos podem desempenhar nas situações de comunicação” (Stassi-Sé, 2012, p. 176). Isso se deve ao fato de que eles parecem fazer referência a uma estratégia do falante para organizar, e assim impulsionar a interação.

Os dados à luz da gramática discursivo-funcional

Nesta seção, apresentamos os dados e sua correspondente análise a partir dos critérios selecionados por meio de um critério norteador: a camada de atuação das estruturas encabeçadas por aunque. A camada se relaciona diretamente aos níveis, já que, como vimos, são hierarquicamente organizados em termos de camadas.

A análise dos dados vai ao encontro do que constatam trabalhos anteriores (cf. Parra, 2016; Olbertz et al., 2016; Garcia & Felipe, 2016) ao reconhecer que as orações introduzidas por aunque podem ocorrer no nível interpessoal ou no nível representacional, responsáveis, respectivamente, por 77 e 23% das ocorrências.

Observamos, no entanto, que algumas particularidades dos níveis permitem associar as construções que podem receber uma leitura adversativa a atuações que se dão no domínio pragmático. No domínio semântico, o valor concessivo da construção introduzida por aunque parece não gerar margem para possíveis interpretações adversativas. Vejamos:

(19) entonces existía como existen en muchísimos puntos de España el que llevabas/ la comida a que te la asasen o: el besugo o: tal/ (hh) aquí/ pues/ hombre (e:) la huerta/ aunque te parezca mentira/ aquí había huerta// en Alcalá de Henares había muchas huertas/ (50, H-AH, 14).

e então existiam e ainda existem, em muitos lugares da Espanha, aquele que levava a comida para que assassem, e tal, a horta ... embora pareça mentira, aqui tinha horta, em Alcalá de Henares tinha muitas hortas.

Em (19), aunque te parezca mentira antecipa possíveis objeções que o ouvinte possa colocar a respeito do que é apresentado na oração principal (aquí había huerta). Nesse caso, conforme observado em Garcia e Felipe (2016), a oração concessiva tende a ocorrer anteposta à principal, exercendo sobre ela ‘função semântica’. Ocorrências como essa representam os casos de oração concessiva apresentados nos compêndios normativos do espanhol.

Nossos dados mostram que em ocorrências desse tipo não é possível substituir aunque por pero, o que atesta a impossibilidade de uma interpretação adversativa, conforme comprova a paráfrase de (19) em (19’) a seguir:

(19’) *entonces existía como existen en muchísimos puntos de España el que llevabas/ la comida a que te la asasen o: el besugo o: tal/ (hh) aquí/ pues/ hombre (e:) la huerta/ pero te parezca mentira/ aquí había huerta// en Alcalá de Henares había muchas huertas/

A substituição do juntor aunque por pero é somente possível em casos como (20) e (21) a seguir, conforme atestam suas respectivas paráfrases:

(20) (2) ¿y los parientes nada/ aquí no tenéis ni familia ni nada aquí/ en Alcalá?

(1) no/ la gente de Ávila está en Madrid.

(1) la mayoría// o sea la gente de Y (e:) lo mismo/ los hermanos de mi padre se fueron a Madrid a- a trabajar a/ viven en Madrid// aunque siguen teniendo allí una casa de pueblo y tal ¿no?// (14, H-AH, 2).

(2) e os parentes … vocês não têm família aqui em Alcalá?

(1) não, as pessoas de Ávila estão em Madri

(1) a maioria, ou seja, os irmãos do meu pai foram para Madri para trabalhar e moram em Madri, embora continuem tendo lá uma casinha, não?

(20’) los hermanos de mi padre se fueron a Madrid a trabajar a/ viven en Madrid// pero siguen teniendo allí una casa de pueblo y tal ¿no?//

(21) (2) no está- no está tampoco bien/ no está bien pero- pero bueno [la construcción puente]

(1) sí es verdad

(2) en su momento: sí que tuvo su efecto

(1)

aunque ya se queda pequeño también

(2) também não está bem, mas [a construção da ponte]

(1) sim, é verdade

(2) no momento em que foi construída, teve seu efeito

(1) sim

(2) embora já fica pequena também.

(21’) (2) no está- no está tampoco bien/ no está bien pero- pero bueno [la construcción del puente]

(1) sí es verdad

(2) en su momento: sí que tuvo su efecto

(1)

(2) pero ya se queda pequeño también.

Ocorrências como (20) e (21) não são casos prototípicos de oração concessiva, pois não se encaixam no esquema lógico semântico Aunque p, q, mas são os casos ‘q, aunque p’, os quais permitem uma leitura adversativa, conforme atestam as paráfrases (20’) e (21’).

Nessas duas ocorrências, as orações envolvidas não se relacionam semanticamente, mas sim pragmaticamente. Representam os tipos oracionais que se relacionam à interação, quando o falante ‘concede’ algo ao ouvinte a fim de ‘considerar’, ‘acrescentar’ ou até ‘corrigir’ uma informação dada anteriormente. A concessão aqui é uma estratégia do falante para atingir seu objetivo na interação, o que caracteriza, na gramática discursivo-funcional, relações do nível interpessoal.

São esses casos que nos interessam neste estudo. Ocorrências desse tipo passam a corresponder, então, à totalidade de nossos dados (100%/120 ocorrências). Verificamos, nesse nível, que as orações prefaciadas por aunque podem ser de dois diferentes tipos.

O primeiro tipo diz respeito à oração concessiva que não se refere ao conteúdo da oração principal, mas se refere ao ‘ato’ representado pela oração principal, o que configura, no arcabouço da GDF, uma relação entre atos discursivos (54%/65 das ocorrências), camada definida por Hengeveld e Mackenzie (2008) como "[...] a menor unidade capaz de conter comportamento comunicativo [...]”, conforme representa a ocorrência (22) a seguir:

(22) (2) porque yo cuando se van los críos al colegio y me quedo un rato sola// digo «¡jo qué a gusto!»/ aunque luego los echas de menos pero:/ de momento (16, M-AH, 4).

(2) porque eu, quando levo os filhos para a escola e fico um pouco sozinha, penso: nossa, que bom!, embora logo a gente sente falta deles, mas no momento.

Em (22), o falante acrescenta uma informação contrastiva que corrige, limita e restringe (luego los echas de menos) o que está contido na oração anterior (digo ‘¡qué a gusto!’). Nesse caso, o falante acrescenta uma informação contrastiva, representada pela oração concessiva, para convencer seu ouvinte de que ama seus filhos e, assim, conseguir preservar sua face. Trata-se de uma relação entre dois atos discursivos, em que o ato subsidiário, representado pela oração concessiva, carrega a função retórica concessão (Conc) com relação ao ato nuclear anterior.

Essas relações constituem, portanto, ‘funções retóricas’, pois apresentam a função de guiar, persuadir ou convencer o interlocutor (Hengeveld & Mackenzie, 2008). Nesse caso, o falante, por meio da concessão, concede ao ouvinte a oportunidade de reconhecer que talvez o primeiro ato discursivo (digo «¡jo qué a gusto) não fosse por ele esperado (Keizer, 2015) ou não fosse por ele mal interpretado – no caso do ouvinte achar que o falante não gosta dos filhos - no momento da interação.

O segundo caso detectado em nossos dados (46%/55 das ocorrências) diz respeito à oração concessiva que não estabelece relação de dependência sintática com a oração anterior, mas, sim, relaciona-se a todo o contexto discursivo, pois corresponde a uma informação sintaticamente independente, que o falante considera importante acrescentar, como exemplificado em (23), a seguir, em que aunque se separaron ya tres veces corresponde a uma informação inserida, em um parêntese, que se relaciona a toda a porção discursiva em questão:

(23) y yo conmigo igual me decía que me tenía mucho cariño/ hombre yo lo sé porque yo también se lo tenía a él ¿no?/ y que he intentado ayudarle y yo le decía «pues si lo que tenéis que hacer es separaros» digo aunque se separaron ya tres veces/ ¿sabes? uno a una casa y otro al otro y la misma historia// y les dije «lo mejor es que lo dejéis»/ digo «más que nada por la niña» y digo «no puede» (11, M-AH, 23).

E ele me dizia que gostava muito de mim. Eu sei disso porque também gostava muito dele, né? E tentei ajudá-lo, dizendo ‘o que você tem que fazer é se separar’, digo, embora se separaram já três vezes, sabe? Um para uma casa e outro para outra e é a mesma história. E eu disse a eles ‘o melhor é que vocês se separem’, digo, ‘sobretudo pela menina’, e digo ‘não pode’.

Nesse caso, é possível observar que a oração aunque se separaron ya tres veces é um acréscimo de informação trazido pelo falante. Nesse caso, o vínculo estabelecido entre a oração com aunque e qualquer outro elemento presente no discurso se dá por meio de uma dependência que é pragmática (cf. Stassi-Sé, 2012). Trata-se de uma informação adicional, um adendo que o falante julga necessário mencionar para relembrar que o casal já se separou três vezes.

Nesse caso, a construção concessiva não se refere ao ato discursivo anterior, mas sim a toda a porção discursiva anterior e, em muitos casos, apresenta um funcionamento semelhante ao das estruturas parentéticas (Jubran, 2006). De acordo com a autora, os parênteses podem ser “[...] breves desvios de um tópico discursivo, que não afetam a coesão do segmento tópico dentro do qual ocorrem” (Jubran, 2006, p. 303). Representam comentários, acréscimos de informação que o falante julga necessário, podendo ter até mesmo um efeito perlocucionário, o que caracteriza, na GDF, um movimento, camada mais alta do nível interpessoal.

Movimentos são definidos como “[...] contribuições autônomas para a interação em desenvolvimento: podem requerer uma reação ou serem, eles próprios, uma reação”. Sua abrangência e complexidade podem, ainda, “[...] variar enormemente, do silêncio até um longo trecho de discurso” (Hengeveld & Mackenzie, 2008, p. 50-52, tradução nossa)[27].A relação concessiva entre movimentos diz respeito aos casos em que não é possível estabelecer uma oração principal, as quais constituem, conforme Stassi-Sé (2012), ‘funções interacionais’, atuando na organização do discurso. Esse tipo de estratégia interacional é o que a autora entende como ‘subordinação discursiva’ (nos termos de Kroon, 1997), casos em que as unidades do discurso podem ocorrer como subsidiárias em termos dos propósitos conversacionais do falante com relação a unidades discursivas mais centrais do mesmo tipo.

Os dados revelam, em resumo, que as construções introduzidas por aunque que podem receber leitura adversativa são as que atuam na camada do ato discursivo e do movimento, quando constituem, respectivamente, funções retóricas e funções interacionais respectivamente. Caracterizam-se por apresentarem informações contrastivas com relação ao ‘ato’ anterior ou a movimentos anteriores, o que pode ser atestado pelas paráfrases apresentadas a seguir em (22’) e (23’), em que se substitui aunque por pero sem prejuízo de interpretação:

(22’) porque yo cuando se van los críos al colegio y me quedo un rato sola// digo «¡jo qué a gusto!»/ pero luego los echas de menos pero:/ de momento.

(23’) digo pero se separaron ya tres veces/ ¿sabes?

Os dados indicam que essas construções são não pressupostas e factuais. A não pressuposição se explica pelo fato de que a informação dada na oração introduzida por aunque é trazida pelo falante pela primeira vez; trata-se de uma informação que o falante deseja acrescentar ao que se está sendo dito, algo que seu ouvinte ainda desconhece, tomado, então, pelo falante, como uma informação não pressuposta. Há casos, no entanto, em que o falante não se importa se o ouvinte sabe ou não do que se trata, ele apresenta o conteúdo comunicado contido no ‘ato’ ou no ‘movimento’ como novo, pois julga relevante no momento da interação. A factualidade, por sua vez, dá conta do valor de realidade dos eventos.

O quarto fator de análise, que trata da correlação modo-temporal entre oração principal e oração concessiva, revelou que a relação com a adversidade se dá apenas nos casos de indicativo na oração concessiva, qualquer que seja a correlação modo-temporal estabelecida.

No que diz respeito ao quinto fator, a posição, por sua vez, verificamos que as orações introduzidas por aunque que constituem funções retóricas são pospostas à principal, e não a antepostas. Ressaltamos que a posição da oração subordinada com relação à principal forma parte dos critérios apontados pela literatura para explicar a sobreposição de valores concessivos e adversativos.

O quarto e o quinto fatores, tempo e modo verbal e posição, pertencem ao domínio morfossintático. Nesse Nível, observa-se que essas orações constituem casos de cossubordinação, pois uma oração é independente e a outra, dependente.

Em resumo, o ‘misto’ concessivo/adversativo admitido por vários autores pode ser explicado dada a possibilidade de as estruturas adversativas serem ocorrências que contrastam informações que corrigem, limitam ou restringem e até adicionam informações contrastivas com o que foi dito anteriormente, o que caracteriza, na GDF, ‘função retórica’ (Hengeveld & Mackenzie, 2008) e ‘função interacional’ (Stassi-Sé, 2012), ambas do nível interpessoal.

Conclusão

A análise das orações prefaciadas por aunque no espanhol falado sob a perspectiva da gramática discursivo-funcional mostra que o chamado fenômeno da ‘sobreposição semântica’ entre concessão e adversidade ocorre apenas nos casos em que a relação se dá no domínio pragmático, ou seja, no nível interpessoal, quando o falante ‘concede’ ou ‘acrescenta’ uma informação ao ouvinte a fim de atingir seus propósitos comunicativos. Isso significa que são usos essencialmente voltados para os objetivos interacionais inerentes a todo e qualquer intercâmbio comunicativo.

Os resultados mostram que a conjunção aunque, concebida ora no rol das adversativas ora no rol das concessivas do espanhol, é, na verdade, um juntor que representa, no nível morfossintático, a função retórica concessão e a função interacional adendo. O misto concessivo X adversativo encontrado nos compêndios gramaticais e descritivistas do espanhol, nesse sentido, é explicado em termos pragmáticos, pois, da perspectiva discursivo-funcional, as relações de contraste, tais como as concessivas e as adversativas, são concebidas primordialmente como função retórica ‘concessão’.

Nas relações concessivas, segundo Hengeveld e Mackenzie (2008), o ato nuclear é comunicativamente mais saliente, e não o subsidiário (aquele que é marcado pelo juntor concessivo), que carrega a concessão. Já nos casos adversativos, é o ato nuclear que é marcado por ‘mas’, comunicativamente mais saliente. Isso significa que ambos os casos constituem funções retóricas, mas os atos discursivos apresentam estatutos diferentes.

Concluímos, portanto, que as estruturas concessivas de fato compartilham propriedades com as adversativas, visto que as ocorrências no NI nos levam a crer que, discursivamente, por serem estratégias voltadas para a interação em um mesmo prisma de contraposição de ideias, são usos que podem ser aproximados em determinados contextos. No entanto, a aproximação não justifica uma sobreposição ou um misto concessivo/adversativo, como postulam alguns autores, uma vez que fatores morfossintáticos, semânticos e pragmáticos refutam essa ideia: concessão e adversidade têm direções e pesos argumentativos distintos, e o falante se vale dessa distinção para atingir seus propósitos comunicativos, sejam eles quais forem.

Tendo isso em vista, os dados convergem em direção à nossa hipótese de que todo uso de aunque é concessivo, e o que permite uma leitura adversativa é, na verdade, uma questão de ordem pragmática. Concluímos ser a intenção, o propósito comunicativo que tem o falante com relação ao seu ouvinte o que motiva a direção argumentativa, distinta para concessão e adversidade.

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Notas

[1] O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – a quem agradecemos - Código de Financiamento 001.
[2] Son aquellas oraciones en las cuales se contraponen una oración afirmativa y otra negativa
[3] Los enunciados con oraciones concesivas y aquellos que incluyen una oración adversativa son enunciados en los que el hablante menciona dos elementos de información que contrastan fuertemente entre ellos
[4] Os termos ‘relator’, ‘nexo’, ‘conjunção’, ‘conector’ e ‘juntor’ aparecerão ao longo do trabalho de maneira indistinta, como sinônimos, já que não é objetivo central deste estudo examinar os valores que cada termo pode assumir em determinado contexto de uso.
[5] As indicações determinam respectivamente: o informante, o sexo do informante, o local em que foi realizada a pesquisa (Alcalá de Henares, no caso) e o número da entrevista correspondente ao trecho citado.
[6] As traduções de ocorrências presentes neste trabalho foram por nós realizadas a fim de auxiliar na interpretação dos leitores. Elas foram fieis aos tempos e modos verbais da ocorrência em espanhol, portanto, nem sempre obedecem à norma padrão da língua portuguesa. Estão localizadas logo abaixo de cada ocorrência, ou ao fim da página, em nota de rodapé.
[7] Las construcciones concesivas y adversativas hacen referencia a dominios nocionales muy próximos.
[8] Expresar juicios de cualidad lógica diferente, uno afirmativo y otro negativo (o viceversa).
[9] Embora p, q = p, mas q (tradução nossa).
[10] Such rhetorical concessives – as they are often called - are typically introduced by a connective of type (d) and / or the adversative conjunction but and may thus be indistinguishable from adversative sentences
[11] Sairemos para fazer compras, embora chova (tradução nossa)
[12] *Sairemos para fazer compras, mas chova (tradução nossa)
[13] É um garoto muito interessante, embora se mostre um pouco distante (tradução nossa)
[14] É um garoto muito interessante, mas se mostra um pouco distante (tradução nossa)
[15] Si existe alguna diferencia entre ellas [oraciones concesivas y adversativas], esta tendrá que ver con la distinta estrategia que decida utilizar el hablante en su intercambio comunicativo
[16] Faça o que quiser, mas não conte com minha aprovação
[17] É um garoto muito interessante, embora se mostra um pouco distante. Aqui optamos por manter o verbo no indicativo (se mostra) para ser fiel ao tempo verbal utilizado em espanhol.
[18] The work was fairly, although (I concede that) it took me longer expected.
[19] (MI: [(AI: – the work was fairly easy – (AI)) (AJ: it took me longer than expected - (AJ))Conc] (MI))
[20] The work (admittedly) took longer than expected, but it was easy.
[21] (MI : [AI : - the work took longer than expected – (AI))Con (AJ : - it was easy – (AJ))] (MI))
[22] She sings as well as Mohan used to sing.
[23] As for the students, they have heard the news yesterday.
[24] Celtic won and Rangers lost.
[25] Note that the order of discourse acts is again of importance here
[26] Although (*I concede that) the work took longer than expected it was easy.
[27] In terms of its interpersonal status, a Move may be defined as an autonomous contribution to an ongoing interaction (cf. Kroon’s 1995: 66 definition of the Move as a ‘minimal free unit of discourse’). More specifically, what is characteristic of a Move is that it either is, or opens up the possibility of, a reaction […] The complexity of a Move in discourse may vary from silence (for example, where the Reaction to an Initation is a shrug unaccompanied by any linguistic sign) to a lengthy stretch of discourse
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