Linguística
Saussure e seu CLG (curinga da linguística geral)
Saussure and his Glj (general linguistics joker)
Saussure e seu CLG (curinga da linguística geral)
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 42, núm. 1, e48579, 2020
Universidade Estadual de Maringá

Recepção: 02 Julho 2019
Aprovação: 03 Março 2020
Resumo: O presente artigo faz uma breve recuperação das principais contribuições de Saussure para a Linguística a partir do Curso de Linguística Geral (CLG) e o quanto seu legado influencia as mais variadas áreas do conhecimento humano. Daí a analogia feita à carta curinga do baralho, que, em alguns jogos, serve para completar qualquer sequência de cartas. Para isso, discorremos, ainda que brevemente, sobre os marcos conceituais de língua, sistema e valor presentes no CLG, a fim de construir uma ponte entre esses conceitos e o processo de tradução, pensando sobre de que forma a tradução poderia se reconfigurar a partir de uma perspectiva saussuriana da língua e do valor linguístico. Assim, este artigo tem como objetivo colocar em diálogo as noções presentes no Curso de Linguística Geral, especialmente o conceito de valor linguístico, com o trabalho de tradução, no qual a apreensão dos valores linguísticos é fundamental para que haja uma adequada transposição de significado de uma língua para a outra. A importância da manutenção do valor linguístico na tradução é ilustrada por uma breve análise de excertos de um capítulo da obra Pollyana, de Eleanor Porter (2017). As reflexões aqui apresentadas apontam que seria redutor pensar em uma tradução apenas como a correspondência estéril de termos ou signos tomados isoladamente, como uma composição em si mesmos de significado e significante, despertando a consciência acerca da necessidade de respeitar as redes associativas que configuram o valor linguístico do signo ao traduzir.
Palavras-chave: linguística, curso de linguística geral, língua, valor linguístico, tradução.
Abstract: The present article visits some of the major contributions given to Linguistics by Saussure based on the Course in General Linguistics (CLG) and to highlight to what extent his legacy influences nowadays the most varied areas of human knowledge. Hence the analogy made with the Joker which in some card games serves to complete any sequence of cards. For that, we speak, albeit briefly, on conceptual milestones of language, value and system present in the CLG trying to build a bridge between these concepts and the process of translation, thinking about how the translation could be reconfigured from a saussurian perspective of language and linguistic value. So, this article aims to put into dialogue the concepts present in the Course in General Linguistics, especially the concept of linguistic value, with the translation process, in which the apprehension of the linguistic values is fundamental to an adequate transposition of meaning from one language to the other. The importance of maintaining linguistic value in translation is illustrated by a brief analysis of excerpts from a chapter of the book Pollyanna by Eleanor Porter (2017). The reflections presented here indicate hoe limited it would be considering a translation uniquely as a sterile matching of terms or signs taken isolatedly, as a composition in themselves of signified (French Signifié) and signifier (French Signifiant), raising awareness about the need to respect the associative networks that configure the linguistic value of the sign in the moment of translation.
Keywords: linguistics, course in general linguistics, language, linguistic value, translation.
Introdução
Mais de cem anos após a publicação do CLG (Curso de Linguística Geral), o legado de Saussure continua despertando interesse de pesquisadores e explicando fenômenos das mais variadas áreas do conhecimento, sejam elas intrínsecas à Linguística, como a Linguística Textual, a Enunciação, a Análise do Discurso, a Fonologia, sejam elas extrínsecas, como a Psicanálise, a Antropologia, a Literatura entre tantas outras. Todas elas encontram na teoria saussuriana ‘a carta certa para fechar seu jogo (o curinga)’.
Dentre as inúmeras contribuições de Saussure, as quais beneficiaram os mais variados campos do saber, destacamos a Linguística, que teve a sua história modificada a partir da publicização das ideias saussurianas graças ao trabalho de Charles Bally e Albert Sechehaye, protagonistas na organização e na compilação das anotações tomadas a partir das aulas ministradas pelo linguista na Universidade de Genebra, no período de 1907 a 1911.
O Curso de Linguística Geral impôs um novo olhar para o modo como o estudo das línguas e da linguagem era conduzido e marcou tudo que se chama atualmente de ‘as ciências da linguagem’. Uma das mais contundentes contribuições da obra foi a definição do objeto para a ciência Linguística, não precisamente explícito até então. Saussure (2006) delimitou a língua como o ‘objeto integral e concreto’ dessa ciência, a qual necessitava ter suas bases estabelecidas, como afirma o próprio autor, ao tratar da Gramática Comparada: “[...] tal escola [...] não chegou a constituir a verdadeira ciência da Linguística. Jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo” (Saussure, 2006, p. 10).
Conforme já afirmamos, a obra Saussuriana, detalhada, complementada e enriquecida pelos Escritos de linguística geral, publicados originalmente em 2002, teve seus conceitos ampliados, deslocados ou até mesmo questionados pelos muitos teóricos que também fizeram a ciência avançar após Saussure. Entretanto, muitos desses conceitos permanecem como faróis no oceano, servindo de guia para que possamos pensar as muitas atividades que envolvem a linguagem, dentre elas a escrita, a leitura e a tradução. Esta última, especialmente, se configura como um amálgama das duas atividades anteriores: é uma escrita intimamente ligada a uma leitura, e é fundamental que as regras que governam o jogo estabelecido pela língua sejam claramente compreendidas pelo tradutor.
Assim, este texto tem como objetivo colocar em diálogo as noções presentes no ‘Curso de linguística geral’, especialmente o conceito de valor linguístico, com o trabalho de tradução, no qual a apreensão dos valores linguísticos é fundamental para que haja uma adequada transposição de significado de uma língua para a outra. Para isso, organizamos este artigo da seguinte forma: dedicamos uma seção à discussão das ideias saussurianas; em seguida, discorremos acerca de questões específicas da tradução, para, por fim, ilustrarmos a importância do conceito de valor para a tradução por meio da análise de excertos de um capítulo da obra Pollyana, de Eleanor Porter, traduzida para o português por Márcia Guimarães e publicada pela Editora Autêntica em 2017. Por fim, apresentamos as considerações finais.
O signo e o valor linguístico em Saussure
Entre os inúmeros conceitos sistematizados pelo linguista genebrino, damos destaque, tendo em vista o objetivo deste trabalho, ao conceito de signo, por meio do qual o autor critica uma visão considerada muito simplista da língua: aquela que considera que o signo une um nome a uma coisa. Nessa visão, Saussure (2006) defende que a unidade linguística é uma coisa dupla, constituída de dois termos, ambos psíquicos e unidos em nosso cérebro por um vínculo de associação: o significante e o significado. Para o Saussure (2006), o signo não une uma coisa a uma palavra, mas um conceito/significado a uma imagem acústica/significante; os dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro.
Para Saussure (2006), o signo linguístico tem duas características principais: a arbitrariedade e a linearidade do significante. Em seu primeiro princípio, a arbitrariedade do signo, Saussure (2006) define que o laço que une o significante ao significado é arbitrário. Já a imotivação é a segunda faceta: arbitrário é o contrário de motivado, quer dizer, não há nenhuma relação necessária entre o conceito e a imagem acústica, não há nada no significante que lembre o significado. Mesmo os signos de cortesia, que têm certa expressividade, não têm um ‘valor intrínseco’ que faça com que as pessoas os empreguem, e sim uma regra. Para Saussure (2006, p. 83), o "[...] signo ser arbitrário não significa que o significado dependa da livre escolha do falante [...]", uma vez que não está nas mãos do indivíduo a capacidade de mudar nada num signo linguístico, já que esse é social.
O segundo princípio, a linearidade do significante, é uma característica das línguas naturais, segundo a qual os significantes, uma vez produzidos, dispõem-se uns depois dos outros numa sucessão temporal ou espacial, representando uma extensão que é mensurável numa só dimensão, numa linha (Saussure, 2006). Dessa forma, um signo linguístico se apresenta após o outro, formando uma cadeia. Para o linguista, não há possibilidade de simultaneidade de dois elementos.
O princípio saussuriano segundo o qual a língua não é uma nomenclatura traz a implicação de que a língua é uma forma e não uma substância. É aí que surge a noção de valor linguístico, de acordo com a qual a unidade - o signo - é definida pelo seu valor, derivado das oposições com as demais unidades da língua, seja em relação ao aspecto material, seja em relação ao seu aspecto conceitual - ou à unidade de modo global.
A troca figurada nessas ‘delimitações recíprocas de unidades’ produz valores, isto é, ligações arbitrárias entre significantes e significados e relações reguladas em um sistema entre as unidades. Segundo Normand (2007), em Saussure, as unidades linguísticas só podem ser compreendidas do ponto de vista linguístico em suas relações com outras, não sendo observáveis em si mesmas. Ainda de acordo com a autora, “[...] valor e arbitrário servem mutuamente de fundamento uma para a outra; valor aparece como a maneira linguística de retomar a noção filosófica de arbitrário” (Normand, 2007, p. 79). Normand (2007) esclarece que a mudança linguística somente se produz nessas condições e, diferentemente de um código, é tão inevitável quanto imprevisível: “[...] o signo está em condições de alterar-se porque se continua” (Saussure, 2006, p. 89).
A noção de valor linguístico de Saussure (2006) é central para o entendimento de como as línguas são concebidas e é parte constitutiva fundamental do legado intelectual do linguista. Ela traz a natureza opositiva do signo, destacando algo que, embora pareça simples e quase óbvio, é de grande complexidade: os valores são “[...] definidos não positivamente pelo seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são” (Saussure, 2006, p. 136)
Inclusive, essa é uma inquietação do linguista em relação à forma com que os demais estudiosos vinham até então tratando a língua – por unidades isoladas – desconsiderando o sistema, fazendo-lhes, desse modo, uma crítica metodológica. Assim, Saussure (2006) nos apresenta uma outra lógica, a lógica das relações. Fora das relações não há nada, apenas a ilusão de que existe algo. A relação significante/significado deve ser sempre considerada à luz do sistema linguístico em que o signo se insere. O valor é construído exclusivamente nas relações que ocorrem no interior de uma, e apenas uma língua.
Dessa forma, a noção de valor permite que se analisem as unidades da língua a partir das suas relações, descobrindo em si o fundamento da sua significação, sem recorrer a elementos de ordem extralinguística. Esse princípio nos remete novamente à analogia entre a língua e o jogo de cartas: a carta curinga é a carta do baralho que, em certos jogos, muda de valor conforme a combinação de cartas que o jogador tem em mãos, assim como o signo linguístico saussuriano, que assume um valor conforme a combinação de signos presentes e ausentes no enunciado.
Ainda no capítulo sobre o valor linguístico, Saussure (2006) se questiona se valor e significação seriam equivalentes. Para fins didáticos, ele faz um esforço para diferenciar a significação de valor, tomando momentaneamente o signo isolado do sistema. Em sua preocupação metodológica, ele explica que a significação estaria ligada a uma porção do signo, seria o significado isolado de um signo. Tomemos, por exemplo, o signo ‘chocolate’ e suporemos que, isoladamente, tenha um significado: alimento à base de cacau. É nesse momento que aparece o paradoxo saussuriano do valor, pois, ao mesmo tempo que o significado é parte do signo, seu valor está em dependência das relações estabelecidas com as demais unidades linguísticas. Portanto, a significação do signo contribui para constituir seu valor, mas este, por sua vez, se renova pelas relações que esse signo estabelece com os demais signos da língua, seja pelas relações associativas, seja pelas relações sintagmáticas. Agora, tomemos o signo em uma combinação sintagmática na seguinte frase: ‘O time local levou um chocolate’. O signo ‘chocolate’ assume um outro valor: goleada. Então, para Saussure (2006), o valor é derivado da situação recíproca de partes da língua; a quantidade de ideia ou matéria fônica que um signo contém é de menor importância se comparada com o que há em torno dele, nos outros signos.
Essa visão de língua enquanto sistema é percebida após 81 anos por Halliday, expoente da Linguística Sistêmico-Funcional. Segundo Lirola (2007), a Gramática Sistêmico-Funcional é parte da tradição Linguística europeia desenvolvida por Saussure. Segundo a autora, “[...] ele estabeleceu o chamado conceito État de langue[1] e salientou que a finalidade da língua deve ser a de descrever esse estado”[2] (Lirola, 2007, p. 19, grifo da autora, tradução nossa). Destarte, influenciado por Saussure, Halliday se pergunta:
Como podemos tentar compreender a língua em uso? Olhando para o que o falante diz na relação com o que poderia ter dito, mas não disse, como uma atualização na envolvência de um potencial. Daí a envolvência ser definida paradigmaticamente: usar a língua significa fazer escolhas na envolvência de outras escolhas (Halliday, 1978, p. 52).
A partir da natureza social dos signos e da importância de se estudá-los na relação uns com os outros, Saussure (2006) apresenta mais uma possibilidade de ‘jogo’ com seu ‘Curinga’ da Linguística Geral, agora para a área da tradução. Segundo Gadet (1996), ele recusa a comparação entre as línguas, trazendo um divisor de águas para esse campo: traduzir não é substituir um termo por outro.
Noção de valor na tradução: quando o tradutor joga suas cartas na mesa
O conceito de valor linguístico, nessa perspectiva, configura-se como uma carta fundamental no jogo da tradução, resolvendo problemas e ajudando o tradutor em suas escolhas. Na tradução, a passagem de uma língua para outra só seria possível de forma eficaz, sem perda de sentido, levando em consideração a reconstrução das redes associativas que configuram os valores linguísticos.
De acordo com Munday (2008), no processo de tradução, o tradutor entra em contato com um texto original escrito (texto-fonte) em uma língua verbal original (língua-fonte), o qual é vertido em um texto escrito (texto-alvo) em uma língua verbal diferente (língua-alvo). Dessa forma, a tradução, segundo Catford (1965), foi configurada como uma operação fundamentalmente linguística, como um processo de substituição de um texto de uma língua por outro, em uma língua diferente.
A concepção de tradução teve significativas mudanças no decorrer dos séculos, e ainda hoje há diversas teorias que buscam explicar o seu papel. Segundo Arrojo (1986), o processo de tradução geralmente é descrito através dos fenômenos de transferência ou de substituição. O teórico Catford (1965), por exemplo, afirma que a tradução é o ato de substituir um material textual de uma língua-fonte por outro equivalente em uma língua-alvo.
Eugene Nida, citado por Arrojo (1986), compara as palavras a vagões de carga. De acordo com sua descrição, a carga pode ser distribuída entre os vagões irregularmente: um vagão poderá ter muita carga; outro, pouca. Em outras circunstâncias, uma carga grande precisará ser dividida entre diversos vagões. De forma semelhante, ele sugere que há palavras que ‘transportam’ mais de um conceito, enquanto outras se agrupam para formar apenas um.
Sendo assim, o essencial no processo de tradução é que os elementos significativos do texto-fonte cheguem à língua-alvo e possam ser utilizados pelos leitores. Uma teoria da tradução similar à de Catford ou Nida é baseada em uma teoria linguística na qual o significado de uma palavra (ou de um texto) pode ser depreendido sem que haja um contexto comunicativo (Arrojo, 1986). Em contrapartida, a autora defende que a tradução seria impossível se os significados pudessem ser transportados de uma maneira estável.
Arrojo (1986, p. 22) acrescenta que “[...] ainda que um tradutor conseguisse chegar a uma repetição total de um determinado texto, sua tradução não recuperaria nunca a totalidade do ‘original’”. A partir disso, fica entendido que, embora o tradutor procure ser fiel ao texto ‘original’, a tradução sempre passará pelo seu processo de leitura e interpretação.
Os desenvolvimentos mais fascinantes na área da Tradução têm ocorrido na busca por novas concepções, com o intuito de indicar um novo ‘paradigma’ nos Estudos de Tradução. Por conseguinte, houve um distanciamento da abordagem prescritiva da tradução. Inclusive, o objeto de estudo mudou nos últimos anos, segundo Munday (2008, p. 15, tradução nossa), partindo “[...] da tradução como primariamente conectada ao ensino/aprendizagem de línguas ao estudo específico do que acontece na tradução (e em torno dela), no ato de traduzir e, agora, nos tradutores”[3]. O debate acerca dos tipos de tradução (literal e de sentido) teve uma longa duração na história da tradução e ainda persiste atualmente.
Após as discussões acerca da tradução ‘literal’ ou ‘livre’, estudiosos optaram por uma observação mais sistemática da tradução desde as décadas de 1950 e 1960. Os assuntos de frequente consideração tinham a ver com o significado e a ‘equivalência’, abordados por Roman Jakobson, em um trabalho publicado em 1959 adotando a analogia de Saussure quanto ao significante e ao significado.
Jakobson (2007) analisa o problema da equivalência no significado entre palavras em idiomas diferentes. Ele alega que a equivalência não é completa entre as unidades de código. Assim, com o intuito de ter uma mensagem ‘equivalente’ entre língua-fonte e língua-alvo, as unidades de código acabam sendo distintas, considerando-se que pertencem a dois sistemas de signos diferentes (línguas) que organizam a realidade de modos distintos. As questões de significado, equivalência e traduzibilidade passaram a ser comuns nos Estudos de Tradução na década de 1960 e foram abordadas ‘cientificamente’ através de um novo método usado pelo americano Nida.
A partir de 1940, a teoria de tradução de Nida foi desenvolvida em concordância com seu trabalho prático de tradução da Bíblia. Essa abordagem sistêmica se vale de conceitos teóricos da semântica, da pragmática e da sintaxe, especialmente advinda da produção de Noam Chomsky sobre a estrutura sintática. Partindo disso, portanto, vemos que o ponto central da pesquisa de Nida é o afastamento da ideia de palavras ortográficas com um significado imutável. Ele focaliza os esforços na conceituação funcional de significado, alegando que uma palavra ‘adquire’ sentido de acordo com o seu contexto e é capaz de responder diferentemente conforme a cultura de inserção.
As expressões já mencionadas anteriormente, a saber, ‘literal’ translation (tradução literal), ‘free’ translation (tradução livre) e ‘faithful’ translation (tradução fiel), foram ignoradas e substituídas por dois tipos de equivalência (formal e dinâmica). Nida (apud Munday, 2008, p. 42, tradução nossa) explica que a equivalência formal “[...] concentra a atenção na mensagem em si, tanto na forma como no conteúdo”[4]. Além disso, a mensagem na língua-alvo deve estar o mais próximo possível dos elementos da língua-fonte. Logo, a equivalência formal é conduzida à estrutura do texto-fonte, influenciando na precisão e na correção da tradução.
Já a equivalência dinâmica (ou funcional) é fundamentada no “[...] princípio de efeito equivalente [...]” e, como denomina Nida, citado por Munday (2008, p. 42, tradução nossa), “[...] a relação entre o receptor e a mensagem deveria ser substancialmente a mesma que existiu entre os receptores originais e a mensagem” (Nida apud Munday, 2008, p. 42, tradução nossa) [5]. Por conseguinte, a tradução precisa ser adaptada às exigências linguísticas e culturais do receptor, tendo em vista o objetivo de atingir a naturalidade de expressão. Na verdade, ele assegura que a meta da equivalência dinâmica é expressar “[...] o equivalente natural mais próximo da mensagem na língua-fonte”[6] (Nida apud Munday, 2008, p. 42, tradução nossa). Esse método orientado pelo receptor leva em conta adaptações gramaticais, lexicais e culturais, com a finalidade de obter naturalidade, e a língua do texto-alvo não pode sofrer interferências da língua-fonte. Embora saibamos que nem sempre é viável resolver as tradicionais divergências entre conteúdo e forma, Nida salienta que é melhor manter a correspondência no significado do que a correspondência no estilo, posto que o efeito equivalente precisa ser alcançado.
A respeito da tradução, Saussure (2006, p. 135) pondera: “[...] se as palavras estivessem encarregadas de representar os conceitos dados de antemão, cada uma delas teria, de uma língua para outra, correspondentes exatos para o sentido; mas não ocorre assim”. A partir da adaptação de um de seus exemplos, ao falar sobre línguas diferentes, apresentamos a seguinte frase: ‘Acabaram com o porco ontem’. Agora, imaginemos, apenas para fins de exercício, que um tradutor teria como missão passar esse enunciado para o Inglês, sem ter acesso ao restante do texto. A frase, assim posta, isolada, sem o estabelecimento de relações com o que vem antes ou o que vem depois, não permite ao tradutor definir se se trata de uma orgia gastronômica ou algum ritual macabro envolvendo o sacrifício de animais, ou apenas uma situação de abate, ou ainda a referência a uma pessoa a partir de seu apelido. Ao passar para o Inglês, o tradutor teria de fazer uma escolha: ou usar o signo pork ou o signo pig, ambos remetendo à porco; porém, um refere-se à carne e o outro ao animal, sendo assim signos diferentes, diferença inexistente na língua portuguesa, que dispõe de apenas um signo para referir-se tanto ao animal quanto à sua carne.
Percebe-se a seriedade e o perigo de tal escolha, que na tradução que preza pela manutenção do sentido deve ser feita seguindo a teoria de valor de Saussure, de acordo com a qual só se poderia fazer a escolha acertada, nesse caso, estabelecendo relações com os demais signos e aceitando a noção da total dependência: “[...] uma forma não significa, mas vale – esse é o ponto cardeal. Ela vale, por conseguinte ela implica a existência de outros valores” (Saussure, 2006, p. 30).
Assim, é possível pensar, a partir do que é proposto por Saussure, que não há uma equivalência plena (sequer parcial) de termos e de sentidos; há uma atualização no sistema de valores, que se dá por meio do estabelecimento de relações. O valor do signo, e não o signo, é o responsável pela possibilidade da tradução eficiente. Desse modo, as diversas maneiras de traduzir que privilegiam a observação da forma seriam ineficientes, bem como as que se dizem observar o sentido. Porém, a tradução que observa os valores da língua a partir das relações, trabalhando em prol da manutenção do sentido, tem mais chances de ser bem sucedida. A tarefa central da tradução, então, seria recriar as noções e as correspondências de valor na transposição de uma língua para outra.
Espiando cartas alheias
De posse da noção saussuriana do valor linguístico, optamos, apenas para fins de prática reflexiva, observar trechos de uma tradução feita da obra literária Pollyana, de Eleanor H. Porter (2017), a partir da fala da personagem Nancy. Assim, procuramos realocar a noção de valor e sua função em relação ao sistema linguístico, considerando-a, então, como noção na escolha dos termos na tradução para a manutenção do sentido.
Sabemos o quanto é difícil a tarefa da tradução, já que traduzir um texto requer uma recriação das relações entre os signos de uma língua-fonte para uma língua-alvo, mantendo o sentido. Com base nisso, é missão do tradutor reconfigurar as articulações, as combinações e, até mesmo, as ausências dos signos e de seus valores num dado sistema linguístico. Conforme Silva e Seidel (2016, p. 88), “[...] a tessitura das articulações possíveis na/da língua é o elemento central e fundante de uma concepção de tradução como um processo de reconstrução de valores no interior de determinada língua”.
A obra
O livro Pollyanna foi escrito por Eleanor H. Porter e publicado em 1913. A obra tem inúmeras edições no mundo todo. Como texto-fonte, em Inglês, para análise, optamos pela versão disponibilizada eletronicamente em 2019; como texto-alvo, em português, optamos por consultar a tradução de Márcia Soares Guimarães, publicada pela Editora Autêntica em 2017, por se tratar de uma versão bastante recente. A respeito da tradução de Guimarães, levamos em conta a linguagem contemporânea e a escolha pela manutenção do tom clássico da escrita de Porter. A tradutora já foi professora de inglês e morou no exterior, fatos que deveriam, supomos nós, contribuir para a fluidez de sua tradução e incidir sobre a manutenção do sentido.
A tradução da língua-fonte para a língua-alvo
Tomando apenas algumas falas da personagem Nancy, empregada da família, com quem a personagem Pollyanna passa a maior parte do tempo, já é possível termos uma forte revelação quanto ao (não) emprego do princípio saussuriano na tradução feita. A personagem no texto-fonte apresenta em sua fala um traço característico muito forte, presente em todos os enunciados.
A autora da obra original, Eleanor Porter, deu a sua Nancy um discurso de alguém não-escolarizado, talvez do interior, como é facilmente percebido em suas falas pelo emprego de termos que não são de um Inglês padrão, a começar pelo uso da estrutura sintática ‘ain’t’, em que estão de forma contracta unidos dois termos: um verbo auxiliar - inexistente na norma culta - e a palavra not.
Ain’t é uma contração de ‘am not’, ‘are not’, ‘did not’, ‘does not’, ‘will not’, ‘have not’, ‘has not’ podendo, então, ser usada com qualquer sujeito, além de empregada para representar qualquer tempo verbal, ignorando a máxima da língua inglesa segundo a qual existe um verbo auxiliar para cada tempo verbal. É considerada de uso não padrão, vindo do ‘povo comum’, usada pela classe baixa da população. Hoje em dia, a palavra é bem informal e geralmente vista como ebonics, termo que se refere a um dialeto usado por afro-americanos, nos EUA, conhecido como Black American English[7].
A tradutora, em seu texto-alvo, escolhe por não fazer a manutenção do valor ao traduzir a fala de Nancy para a língua padrão. A comparação entre o texto-fonte e o texto-alvo evidencia duas Nancys diferentes, como se fossem até mesmo personagens diferentes, pois, ao modificar a fala da personagem, a tradutora modifica a própria personagem, já que a variedade linguística falada por um indivíduo faz parte da sua identidade. Ao fechar os olhos, a imagem que o leitor faz da Nancy de Porter e da Nancy de Guimarães acaba sendo distinta.
Figura 1 traz em contraste algumas falas do texto-fonte e do texto traduzido. As partes sublinhadas indicam o que seria o traço mais característico da variedade não padrão presente na fala de Nancy embora a fala da personagem, praticamente em sua totalidade, marque tal identidade.
Voltemos, agora, nosso olhar para o princípio saussuriano do valor. Pensando na manutenção do valor linguístico, fica evidente que dizer (1) ‘Não sou sua Tia Polly não...... de jeito nenhum’ não tem o mesmo valor do que dizer (2)’Eu num é sua tia Polly, mesmo’[8].
Se imaginarmos a voz da personagem ao dizer os dois enunciados, teremos timbres e entonações muito diferentes. Vejamos ainda um outro caso da perda de valor na tradução no seguinte trecho: “‘when them two tries ter live tergether; and I guess she’ll be a-needin’ some rock ter fly to for refuge. Well, I’m a-goin’ ter be that rock, Timothy; I am, I am!” (Porter, 2019, p. 22). Nessa passagem, há inconsistências de estrutura sintática, de acordo com a gramática padrão, e de pronúncia representados pela ortografia alterada dos significantes. Numa tentativa de entender o que apresenta a passagem na língua-fonte para podermos entender como ela poderia ser na língua-alvo sem que se perdesse o valor na tradução, fizemos uma marcação em cores.

Em vermelho, temos o emprego do pronome desempenhando uma função sintática diferente da esperada na norma culta, ou seja, na gramática padrão se esperaria o emprego do pronome pessoal e não do pronome oblíquo: them = they; em azul, temos conjugação e aspecto verbal utilizados em inconformidade com a gramática padrão: tries = try; needin’ = need; em laranja, temos a ortografia representando a forma com que a personagem pronuncia os significantes: ter = to; tergether = together; ter = to; a-goin’ = going; ter = to.
Vejamos a diferença da frase na forma apresentada na língua-fonte, na fala de Nancy, e como seria na norma-culta da língua, conforme ilustra a Figura 2:

A seguir, na Figura 3, apresentamos uma proposta de tradução que busca manter o valor dos signos na fala da Nancy quando transposta para a língua-alvo: ‘Quando elas as duas tentá vivê ajuntada; eu acho que ela vai aprecisá de um lugá firme pra mode se escondê. Bom, eu vô sê esse lugá Timothy, eu vô, eu vô’.
Comparando a tradução de Guimarães com essa que acabamos de fazer, temos a seguinte situação:

A comparação entre as duas traduções evidencia que o valor dos signos da fala da Nancy na tradução de Guimarães (Porter, 2017) não foi mantido. Ao ler, o leitor imagina, ouve, sente. Em uma tentativa de ‘leitura em voz alta’ das falas da Nancy de Guimarães e da nossa Nancy, imaginemos o que aconteceria. Por certo, o leitor se sentiria tentado a dar uma entonação diferenciada e timbre diferente para as duas Nancys. Por conta do valor do signo, não só o signo é outro, mas a Nancy é outra.
A análise foi feita a partir de um excerto apenas do texto, tendo por intuito ilustrar o que ocorre no decorrer de toda a obra. Para fins de recorte e para evitar repetição, se tomou este como exemplo ilustrativo da escolha pela tradução feita na obra e do impacto desta escolha no leitor e na experiência de leitura.
Considerações finais
Uma característica interessante sobre a tradução é sua necessidade de comunicação com vária áreas. Munday (2008) afirma que a tradução tem uma relação com a Linguística, com as Línguas Modernas e com Literatura Comparada, com os Estudos Culturais, a Filosofia e, ultimamente, com a Sociologia e com a História. É imprescindível esclarecer que a conexão dos Estudos de Tradução com outras disciplinas não é invariável, o que justifica as mudanças ocorridas com o passar do tempo. Outros tipos de ligação acabam aparecendo quando se trata da área dos estudos aplicados de tradução, como o treinamento de tradutores.
Tal característica aponta para o caráter complexo da atividade, que reúne em si uma série de exigências e acaba sendo alvo de muita crítica e palco de muita divergência entre seus membros. Trata-se de uma tarefa de muita coragem, que merece respeito e admiração, já que, uma vez traduzido um texto e entregue, não há como voltar atrás. Não se recolhe uma carta posta em jogo. Dentre as várias analogias feitas com a área da tradução, poderíamos pensar em um terreno de areia movediça, em que não se sabe de antemão onde se está pisando, dada a sua dificuldade.
Compreendemos que as noções de língua, sistema e valor são pilares fundamentais para a tradução; as relações estabelecidas na língua, as ‘companhias’ de um signo constituem, segundo Saussure, o valor linguístico. Para além de significante e de significado, o valor é o elemento que conduzirá as relações entre a língua-fonte e a língua-alvo. A escolha por um termo da língua, pois, significa sua relação com todos os outros termos presentes e ausentes.
Neste trabalho, propusemos uma releitura da noção de valor em Saussure, trazendo-a para o campo da tradução, dada a sua grande contribuição para o entendimento da língua. Sabemos que isso implica uma mudança de ponto de vista para a tradução que já se debate com seus conflitos internos: nem totalmente fiel à estrutura, nem totalmente fiel ao sentido, nem totalmente fiel ao público-alvo – entre outras opções – deveriam balizar a escolha do tradutor. Buscar correspondências entre termos isolados ignorando o valor que assumem no enunciado seria, sob nosso ponto de vista, um enorme equívoco da tradução.
É preciso, portanto, compreender que, se a língua é um ‘sistema’ de signos, é porque esses signos se relacionam entre si – do contrário, não seria um sistema – e incidem uns sobre os outros, estabelecendo diferentes valores no interior do próprio sistema. O valor do signo, e não o signo, é o que deve ser levado em conta na hora da tradução. A tarefa central da tradução, então, seria a de promover a manutenção do valor linguístico na transposição de uma língua para outra.
A não manutenção do valor linguístico pode ser uma escolha, mas, como todas as escolhas, terá uma consequência – que, por sua vez, será irreversível. Pensemos no leitor que leu apenas a tradução de Pollyanna feita por Guimarães (Porter, 2017). A Nancy desse leitor será para sempre aquela Nancy que foi apresentada a ele no texto.
É claro que necessitamos pontuar as impossibilidades da tradução, levando em conta aquilo que as línguas têm de dessemelhante: as especificidades, os contrastes e as ausências, mas é evidente também que precisamos sugerir uma solução: o valor linguístico, dessa maneira, configura-se como uma das saídas viáveis, a ‘carta possível para fechar o jogo’. O valor deveria conduzir a tradução. Essa atitude aliviaria em grande parte a angústia vivida pelo tradutor diante dos inúmeros impasses. Traduzir, portanto, é saber ler o jogo, perceber o valor que está faltando e completá-lo com o curinga. E completar valores, por sua vez, implica frequentemente ter de mexer no jogo inteiro, já que o valor linguístico só existe na totalidade dinâmica do sistema.
Referências
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Notas
Autor notes
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