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O poder demiúrgico de linguagens naturais e artificiais em Galatea, de Emily Short
Vinícius Carvalho Pereira
Vinícius Carvalho Pereira
O poder demiúrgico de linguagens naturais e artificiais em Galatea, de Emily Short
The demiurgic power of natural and artificial languages in Galatea, by Emily Short
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 42, núm. 2, e52629, 2020
Universidade Estadual de Maringá
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Resumo: O mito grego de Pigmalião e Galatéia, de que se derivam múltiplos intertextos nas artes plásticas, no teatro, na literatura e no audiovisual, atravessa eras, linguagens e mídias em sua potência de significação. Permeada por temas como o amor entre criador e criatura, o poder demiúrgico da criação artística e a força motriz do desejo, a história do artista que se apaixona pela escultura a ponto de dar-lhe vida é um recorrente motivo na ficção científica e em outros contextos que envolvem arte e tecnologia. Entre outras atualizações do mito, merece destaque a obra eletrônica de ficção interativa Galatea, de Emily Short (2000), como programa computacional em que o leitor/usuário interage com uma interface textual para entabular diálogo com uma personagem que faz as vezes de amada de Pigmalião. Nesse processo, cada novo input digitado pelo leitor/usuário desencadeia inaudita resposta ou ação da interlocutora digital; a estátua vai então progressivamente ganhando vida nessa conversa, à medida que o desejo de ler o texto se torna também desejo de vê-la mover-se, redarguir, colocar-se. Diante desta obra de ficção interativa, gênero da literatura eletrônica ainda pouco estudado pela comunidade acadêmica de Letras no Brasil, o presente trabalho pretende analisar a dimensão demiúrgica que linguagem natural e código de programação assumem quando, imbricados, dão vida, pelo diálogo, à personagem de Galatéia. Para tanto, serão utilizados referenciais teóricos que discutem as relações entre semioses humanas e maquínicas (Hayles, 2005), a ficção interativa como gênero de literatura eletrônica (Montfort, 2005) e o papel de linguagens naturais e artificiais na criação de Golems ou outros autômatos (Nazario & Nascimento, 2004).

Palavras-chave:GalateaGalatea,ficção interativaficção interativa,linguagens naturaislinguagens naturais,linguagens de programaçãolinguagens de programação.

Abstract: The Greek myth of Pygmalion and Galatea, from which many intertexts in fine arts, drama, literature and audiovisual works derive, has crossed ages, languages and media in its potencies of meaning. Marked by themes as the love between creator and creature, the demiurgic power of artistic creation, and the motive power of desire, the story of the artist who falls in love with a sculpture to the point of giving it life is a recurrent motif in horror, sci-fi and in other genres that involve art and technology. Among other actualizations of this myth, special attention should be given to the electronic work of interactive fiction Galatea, by Emily Short (2000), as a computer program in which the reader/user interacts with a textual interface to converse with a character that stands for Pygmalion’s beloved one. In that process, each new input typed by the reader/user triggers an unexpected reply or action by the digital interlocutor. Thereby the statue comes progressively alive in this dialogue, as the desire to read the text also becomes the desire to see her move, answer, take stances. Considering this piece of interactive fiction, a genre of electronic literature that has still been little studied by scholars in Brazil, this paper aims to analyze the demiurgic power taken by natural language and programming code when, together, they give life to Galatea through dialogue. To do so, we herein use references on the relations between human and machinal semiosis (Hayles, 2005), on interactive fiction as a genre within electronic literature (Montfort, 2005), and on the role of natural and artificial languages in the creation of golems and other automata (Nazario & Nascimento, 2004).

Keywords: Galatea, interactive fiction, natural languages, programming languages.

Carátula del artículo

Literatura

O poder demiúrgico de linguagens naturais e artificiais em Galatea, de Emily Short

The demiurgic power of natural and artificial languages in Galatea, by Emily Short

Vinícius Carvalho Pereira
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 42, núm. 2, e52629, 2020
Universidade Estadual de Maringá

Recepción: 13 Marzo 2020

Aprobación: 30 Junio 2020

Introdução

O mito grego de Pigmalião e Galatéia, de que derivam múltiplos intertextos nas artes plásticas, no teatro, na literatura e no audiovisual, atravessa eras, linguagens e mídias em sua potência de significação. De acordo com o mito (Bulfinch, 2004), Galatéia, obra-prima do escultor Pigmalião, era, aos olhos do artista, indefectível materialização do feminino, praticamente indistinguível de mulheres de carne e osso. Tomado de amores por sua criação mais perfeita, o artista roga a intercessão da deusa Afrodite, que acaba por conceder-lhe a realização de íntimo desejo: a estátua devém mulher, e o marfim se torna músculo e pele, branca como o leite (gála, em grego) a que alude o nome Galatéia, ou como a rocha de que fora talhada. O casal se torna, pois, rica matriz arquetípica na cultura ocidental, revestindo-se de significações consteladas em torno do tema amoroso entre criador e criatura.

Como metáfora das intrincadas relações entre arte, ciência e tecnologia – forças criadoras que se derivam, em última medida, de paixões humanas –, o mito vai ganhando novos contornos em diferentes épocas, nas quais essas três esferas de atuação recebem distintas conotações no imaginário. Nos séculos XIX, XX e XXI, por exemplo, ainda permeada por temas como o amor entre criador e criatura, o poder demiúrgico da criação artística e a força motriz do desejo, a narrativa do artista que se enamora da obra a ponto de dar-lhe vida é adotada como um recorrente tropo na ficção de horror, na ficção científica e em outros gêneros que aproximam arte e tecnologia, segundo a premissa de que um construto artificial pode se assemelhar fortemente a um ser humano.

Uma estátua, um autômato, um golem, um robô, uma inteligência artificial, ou o que o valha podem sempre, afinal, ser antropomorfizados por agência de uma paixão, culminando em uma dinâmica ciborgue[1] de afetos. Nesse contexto, variadas conformações de criaturas artificiais, que Nazario (2004) classifica como biomágicas, biomecânicas e bioeletromecânicas, segundo o processo de criação e a matéria inorgânica ou orgânica de que são feitas, pontuam as reedições da história de Pigmalião e Galatéia, com destaque, nos dias de hoje, para os engenhos de tecnologia digital.

No presente artigo, analisamos mais detidamente a releitura do mito que realiza a artista Emily Short na obra de ficção interativa Galatea[2] (2000), programa computacional em que o leitor/usuário interage com uma interface textual para entabular diálogo com uma personagem automatizada que faz as vezes da amada de Pigmalião. Nesse colóquio com a máquina, cada novo input digitado pelo leitor/usuário desencadeia inaudita resposta ou ação da personagem interlocutora, e a estátua vai progressivamente ganhando vida nessa conversa, à medida que o desejo de ler o texto se torna também desejo de vê-la mover-se, redarguir, colocar-se.

Diante dessa obra de ficção interativa, gênero da literatura eletrônica ainda pouco estudado pela comunidade acadêmica de Letras no Brasil, este artigo tem por objetivo analisar a dimensão demiúrgica que linguagem natural e código de programação assumem quando, imbricados, dão vida, pelo diálogo, à personagem Galatea. Para tanto, procede-se, inicialmente, a uma discussão panorâmica dos conceitos de literatura eletrônica e do gênero ficção interativa, a fim de definirem-se as bases técnico-estéticas em que se desenvolve a obra de Short e sob qual perspectiva esta pode ser tomada como um projeto literário experimental. Na sequência, discute-se como tal obra de engenho digital é animada por um desejo que se estrutura enquanto hibridação de linguagens naturais e artificiais. Por último, apresentam-se as considerações finais e as referências bibliográficas e webgráficas que nortearam a redação deste texto.

Cumpre ressaltar ainda que, em se tratando de obra ficcional de cariz interativo, sua potencialidade se atualiza na interface de diferentes maneiras a cada sessão de leitura, a depender das escolhas do leitor e dos comandos que este digita enquanto opera o sistema. Desse modo, não seria possível a qualquer estudo uma análise exaustiva da materialidade de Galatea; há que se proceder, portanto, à leitura de um dos vários percursos possíveis na obra, determinado pelas ações do humano junto ao sistema e pelas respostas deste aos inputs daquele. Adotamos aqui tal postura metodológica, destacando as mensagens trocadas entre usuário e programa computacional e a intrincada dinâmica de sobredeterminação de linguagens nessa trajetória.

Literatura eletrônica e ficção interativa: jogos de linguagem

Entre as variadas propostas literárias experimentais desenvolvidas nos últimos cem anos, superando convenções de códigos, mídias, temas, formas e protocolos de leitura, vêm ganhando espaço de circulação e atenção da comunidade acadêmica projetos artísticos que aliam a palavra e as tecnologias digitais.

Diferentes nomenclaturas são adotadas para designação desse campo artístico em formação, tais como ‘literatura cibernética/ciberliteratura’, ‘literatura digital’, ou ‘literatura eletrônica’, sendo esta última a opção adotada neste artigo para fins de padronização. Ainda que se reconheça que cada um desses adjetivos atrelados ao substantivo ‘literatura’ denota a especificidade do campo por uma associação particular (respectivamente, ao eletrônico, em oposição ao elétrico; ao cibernético, por referência à comunicação entre máquinas; e ao digital, em oposição ao analógico), o conjunto de obras recobertas pelos três termos é praticamente o mesmo, o que justifica seu uso intercambiável por muitos autores.

Se a nomenclatura utilizada para descrever esse campo é variada, também o são as delimitações concebidas por diferentes pesquisadores. Como se trata de um fenômeno relativamente recente na história da literatura, não são poucas as tentativas de formulação de definições; no entanto, como as tecnologias digitais que caracterizam essas formas literárias evoluem com muita velocidade, os conceitos também rapidamente ficam datados. De tal sorte, adota-se aqui uma definição de literatura eletrônica significativamente abrangente, postulada pela Electronic Literature Organization (maior grupo mundial de estudos sobre o tema hoje): textos que contêm “[...] um aspecto literário importante que aproveita as capacidades e contextos fornecidos por um computador independente ou em rede” (Hayles, 2009, p. 21).

Contudo, como não são poucas as ‘capacidades e contextos fornecidos por um computador independente ou em rede’, a definição acaba por recobrir um universo demasiado vasto de formas artísticas. Assim, para fins de categorização de subgêneros de literatura eletrônica, a maior parte dos pesquisadores leva em consideração as potencialidades da mídia digital mais pronunciadas em cada obra. Autores como Hayles (2009), Funkhouser (2012) e Rettberg (2019) elencam, entre outros subgêneros da literatura eletrônica, a hipertextual, que apresenta arquitetura multilinear, distribuída em lexias conectadas por links; a generativa, que consiste em processos (semi)automáticos de produção textual por meio da combinatória de elementos por ação de algoritmos sobre bancos de dados; e a hipermídia, que concatena elementos verbais e não verbais, escritos e sonoros, estáticos e dinâmicos, em interfaces computacionais.

Além desses, vêm se multiplicando, embora mais lentamente, estudos sobre o subgênero da ‘ficção interativa’, classificação atribuída à obra Galatea por pesquisadores como Montfort (2005) e Swanstrom (2013). Também fazem referência a Galatea como ficção interativa algumas comunidades de autores e leitores interessados no tema, tais quais as que mantêm iniciativas como a Interactive Fiction Technology Foundation (IFTF), que trabalha para a manutenção e difusão de obras do gênero; o Interactive Fiction Community Forum, que congrega listas de discussão especializadas; e a Interactive Fiction Database, maior repositório online hoje dedicado à ficção interativa.

No verbete Interactive Fiction (donde a popular sigla IF) da enciclopédia The Johns Hopkins Guide to Digital Media, Short informa que o termo ‘ficção interativa’ foi muitas vezes usado de maneira inespecífica para designar “[...] qualquer história que permita ao leitor participação para alterar a apresentação ou o resultado da narrativa, especialmente obras [...] que são comercializadas para um público de videogames, mas enfatizam o desenvolvimento narrativo em detrimento de desafio de jogabilidade” (Short, 2014, p. 289[3]). No entanto, a autora aponta para o fato de que, após a década de 80, o termo passou a ser cada vez mais propriamente empregado para designar obras que partilham características formais de jogos do tipo text adventure, em que o leitor/jogador controla por meio de comandos em linguagem natural personagens em um mundo narrativo simulado por um sistema computacional; este, por sua vez, também é representado ao leitor/jogador na forma de sequências narrativas e descritivas em linguagem natural (na maioria dos casos, a língua inglesa) escrita na interface.

A exposição acima e a história do desenvolvimento da ficção interativa, cujas primeiras manifestações foram os jogos computacionais textuais Adventure e Zork, lançados nos Estados Unidos na década de 70, apontam para um dos princípios estruturantes dessas formas narrativas: sua posição ambígua entre o contar e o jogar, que Hutcheon (2011) aponta como modos distintos de engajamento com histórias.

O modo contar (romance) nos faz mergulhar num mundo ficcional através da imaginação; o modo mostrar (peças e filmes) nos faz imergir através da percepção auditiva e visual – a última relacionada à perspectiva na pintura renascentista. O modo participativo (videogames) nos faz imergir física e sinestesicamente (Hutcheon, 2011, p. 47).

Frente à ambivalência entre a palavra literária e o ludo na ficção interativa, Montfort (2005) prefere o termo “interator” para designar o sujeito que lê/joga com sistemas dessa natureza para produção e consumo da narrativa. Ademais, ao situar a ficção interativa dentro do campo da literatura eletrônica, Hayles (2009) ressalta que tal gênero, em comparação aos demais, apresenta componentes mais intensas do universo dos games, conquanto elementos lúdicos possam ser encontrados em outras formas de literatura em mídia digital. Com vistas a balizar alguns limites (muito embora porosos) entre os universos da literatura eletrônica e dos videogames, Hayles (2009, p. 25) parafraseia Markku Eskelinen, para quem “[...] nos jogos o usuário interpreta a fim de configurar, ao passo que, nas obras cujo interesse principal é narrativo, o usuário configura para interpretar”.

Tal formulação nos ajuda a compreender a ficção interativa como experimento narrativo no âmbito da literatura eletrônica: se, nesse caso, ‘o usuário configura para interpretar’, é porque, segundo Short (2014), toda obra de IF é um sistema composto por dois módulos principais, um parser e um modelo computacional do universo narrado, cuja integração permite o funcionamento dialógico com o interator, que desencadeia ações no sistema (isto é, configura-o) para obter como resposta na tela sequências textuais a serem lidas e interpretadas.

Grosso modo, pode-se dizer que o parser é o que permite ao computador processar input do usuário na forma de linguagem natural, identificando as relações sintáticas entre os constituintes frasais. Trata-se, pois, da funcionalidade que, junto com um banco de dados lexical (definidor das palavras reconhecidas pelo sistema), garante o diálogo entabulado entre usuário e máquina, operando correspondências entre as linguagens humana e de programação.

A seu turno, o modelo computacional do universo narrado se constitui como regras, métodos ou funções

[...] representadas em código, que podem rastrear informações tais como a localização do jogador dentro de um mapa de salas, os objetos situados nas salas e aqueles carregados pelo jogador e as qualidades ou estados dos objetos: caixas abertas, portas destrancadas, monstros raivosos, e assim sucessivamente (Short, 2014, p. 289[4])

É, portanto, o conjunto de regras que define se o usuário pode ou não agir sobre algum elemento narrativo/computacional, como abrir determinada porta, conversar com um personagem, tocar ou pegar certo objeto etc., e quais são as mudanças no universo narrado acarretadas por cada uma dessas ações.

Da combinação desses dois módulos[5] advêm o funcionamento computacional de toda ficção interativa e, por conseguinte, os protocolos de leitura que lhe são associados. Numa típica sessão de interação com a obra, o interator começa acessando o sistema, que lhe apresenta na interface, por meio de signos verbais escritos, uma situação inicial da narrativa – geralmente, nos moldes clássicos de instanciação de tempo, espaço, personagem e foco narrativo. O interator deve, então, digitando em seu teclado, escrever o que deseja que seu personagem faça diante dessa situação. O sistema processa tal input por meio do parser e do modelo computacional do universo narrado, apresentando nova situação narrativa na tela, em resposta à ação definida pelo interator. Este, por sua vez, deve digitar a próxima ação a ser executada por seu personagem, e assim sucessivamente, até que uma situação narrativa última (isto é, um desfecho para a história) seja exibida na tela, para a qual não há nova possibilidade de input.

Para fins de clareza do processo descrito, a Figura 1 mostra a captura de tela de uma interação possível com a obra Galatea, executada em uma máquina virtual Z-machine[6], em um computador MacBook Air.

Uma rápida observação dessa janela permite a identificação da estrutura geral da obra e seu modo de funcionamento: na parte superior, observa-se um breve paratexto com elementos referentes a copyright, versionamento e possibilidade de acesso a um menu de ajuda; logo a seguir, sob a rubrica ‘Gallery’s End’ (‘Fim da galeria’), apresenta-se a situação inicial da narrativa, descrevendo o espaço em que a história se desenrola (uma galeria de arte) e a personagem principal, Galatea, com quem o interator deve dialogar para gerar novos blocos textuais e poder proceder à leitura. Mais abaixo, alternam-se os comandos digitados pelo interator (identificados pela cor verde e pelo sinal de >) e as respostas do sistema.

Cumpre ressaltar que nem todos os comandos são interpretados com eficácia pelo parser, culminando em respostas padrão semelhantes a mensagens de erro (‘Não compreendi essa frase’, ou ‘Você não consegue colocar em palavras a sua pergunta’, tradução nossa[7]). Por outro lado, os inputs corretamente processados levam à apresentação de novas sequências textuais, as quais fazem a narrativa avançar, como, por exemplo, quando em resposta a comandos como ‘touch the pedestal’[8] (‘tocar o pedestal’) ou ‘look at the spotlight’ (‘olhar para o foco de luz’), o sistema narra novos acontecimentos ou descreve percepções sensoriais deles decorrentes.


Figura 1:
Interface de Galatea.
Short (2000).

Na IF, parte do desafio do interator é adivinhar que inputs devem ser digitados para fazer o enredo progredir sem mensagens de erro. Em ficções interativas mais comerciais, muito próximas de jogos de role playing e exploração de cavernas e masmorras, eram comuns situações em que o jogador se perguntava se deveria, por exemplo, escrever ‘atacar o dragão’, ‘observar o dragão’, ‘tocar o dragão’, ou ‘conversar com o dragão’, para que o personagem pudesse avançar para o próximo desafio. Porém, o repto não se limitava à escolha da ação correta: ela deveria também ser enunciada adequadamente, ou seja, de maneira que o parser e o banco lexical do sistema pudessem interpretá-la. Isso significa que, caso o interator deduzisse que a forma apropriada de avançar na narrativa fosse conversar com um dragão, precisaria ele também formular um enunciado que a máquina pudesse processar. Apenas por tentativa e erro descobriria, então, se o sistema estava programado para compreender ‘conversar com o dragão’, ‘interpelar o dragão’, ou ‘falar com o dragão’.

Essa dinâmica de constantes dúvidas sobre o que digitar para obter a resposta certa leva Montfort (2005) a afirmar que a forma literária tradicional mais próxima da ficção interativa é a charada. Em tal gênero, de origens orais populares impossíveis de datar com precisão, o adivinhador deve, a partir de um enunciado enigmático, prover uma resposta verbal geralmente breve, como a solução ‘chuva’ à proverbial charada ‘O que é, o que é? Cai de pé e corre sentado’, ou como os comandos a serem dados em Galatea, ou outras IFs, diante de situações narrativas apresentadas pela máquina. Sem isso, a adivinhação não se resolve e o enredo não se desenrola, mantendo-se em suspenso a realização do texto.

O caráter performático da linguagem é outro elemento comum à charada e à ficção interativa. Em ambos os gêneros, o texto com o enigma a ser solucionado é tanto uma pergunta a ser respondida quanto uma ação a ser tomada. Afinal, desde a esfinge, sabe-se que responder a uma adivinha é agir sobre o estado de coisas no mundo: ou liberando o sujeito de um desafio, ou encaminhando-o a novo enigma, ou mesmo punindo-o por seu insucesso. Dinâmica semelhante orienta as IFs, substituindo-se a esfinge pelo computador e Édipo pelo interator.

Se nos formatos mais comuns de ficção interativa as escolhas do interator envolvem a exploração de masmorras e cavernas, adivinhando comandos apropriados ao cenário, como atacar, fugir, pilhar e vasculhar, em Galatea os desafios são de outra ordem. Na obra de Short, premiada[9] por sua originalidade, não há uma aventura a ser empreendida, e sim um intrincado diálogo com uma estátua falante, de nome Galatea, a qual está em exibição em uma galeria, conforme descrito na situação inicial que a IF apresenta: “Fim da galeria. Não iluminada, exceto pelo único foco de luz; não mobiliada, exceto pela faixa de demarcação em veludo preto. E um cartaz em um pequeno suporte. No pedestal está Galatea” (Short, 2000[10]).

Diante da estátua, o interator pode tentar tocá-la, rodeá-la, movê-la, mas sem muito sucesso. Logo percebe que o mais acertado é fazê-la falar, dando voz à criatura por meio do diálogo. O desafio, então, é descobrir que inputs podem incentivar Galatea a se expressar, narrando seu passado, descrevendo sua visão de mundo, argumentando sobre suas perspectivas, num processo em que se beneficia o interator cujo repertório inclui o conhecimento do mito grego. A charada é, pois, de ordem pragmática: como entabular um significativo diálogo com um construto artificial que na verdade são dois: Galatea, a estátua personagem, no plano ficcional; e Galatea, a obra de ficção interativa, que contém a primeira? Em ambos os casos, é só uma operação de linguagens que anima tais criaturas e permite ao exercício do desejo transformar a obra de arte em mulher. A adivinhação constituinte da charada e da IF ganha, portanto, dimensões de magia semiótica nesta obra, em que os signos verbais e computacionais revelam seu poder demiúrgico, conforme se analisa na próxima seção.

O poder demiúrgico de linguagens naturais e artificiais em Galatea

O poder criador da palavra como sopro de vida sobre a matéria inerte, mistério anímico da linguagem, marca mitologias e religiões variadas, do Verbo cristão à cabala judaica, do nomoteta platônico às cosmogonias não ocidentais. Em muitos desses sistemas narrativos, cabe a uma entidade suprassensorial o dom da criação por meio da palavra sussurrada como espírito que se insuflasse sobre elemento do reino mineral, tal qual o barro ou a pedra, a fim de dar-lhe vida animal ou vegetal.

Ao par desse arquétipo da criação divina pelo logos, correspondem numerosas narrativas sobre empreitadas humanas de também conceder vida à matéria inorgânica, valendo-se para tanto do que paradoxalmente nos afasta da natureza e nos remete às deidades criadoras: o poder da palavra. Todavia, se as criações divinas se fazem pelo verbo falado, as humanas frequentemente se dão pela escrita, num movimento que, ao mesmo tempo em que nos aproxima do sagrado, condena-nos ao profano: a escrita é forma artificial da linguagem dita natural; é aparência em oposição a uma suposta essência do verbo; é corpo em contraponto ao espírito do som descarnado, num sistema que a metafísica platônica e posteriormente as sociedades judaico-cristãs associaram ao erro, à imitação e à matéria decaída, conforme a arguta análise de Derrida (1973).

Talvez uma das mais célebres narrativas com o mote da criação não divina por meio da escrita seja a lenda do Golem, surgida na cultura judaica no século XVI e disseminada no mundo ocidental em paralelo ao longo processo diaspórico pelo qual passaram essas comunidades (Nazario & Nascimento, 2004). Entre as várias transmutações da narrativa arquetípica, destaca-se um mesmo conjunto de mitologemas: um rabino que constrói um boneco de argila e anima-o por uma palavra mágica escrita (em algumas versões, riscada sobre a testa do humanoide; em outras, em um papel introduzido em sua boca); a criatura que ganha a vida e passa a agir sob comando do criador, servindo-lhe a uma série de propósitos (ora heroicos, ora banais, a depender da versão do mito); a rebeldia do Golem, que cresce descontroladamente e se torna uma ameaça; e, por fim, sua destruição, pelo apagamento da palavra mágica.

Para além da produtividade desses motivos na ficção de horror e na ficção científica, interessa aqui pensar a potência demiúrgica de que se reveste a letra nessa lenda. É o Verbo que opera a magia animista sobre o barro (tal qual nos mitos de Adão e de Epimeteu); porém, por ser palavra humana, e não divina, há que ser punida com a posterior rebeldia da criatura e sua destruição. Os mistérios da linguagem e da vida, associados de maneira tão intrincada na cabala, advêm de uma concepção subjacente do mundo como combinatória de signos, em uma língua que só (os) deus(es) fala(m), mas que o homem quer aprender a manipular por meio de artifícios técnicos, desde a escrita até os dispositivos digitais e os experimentos de engenharia genética.

Tal perspectiva parece pertinente para a abordagem da ficção interativa Galatea, seja para interpretar os diálogos com a personagem homônima, centro gravitacional do conteúdo narrado na obra, seja para compreender o funcionamento de seu sistema como projeto de gênero específico da literatura eletrônica.

Conforme enunciado na seção anterior do presente artigo, nessa obra de Emily Short o interator não avança pela exploração de espaços ou pelo combate a monstros; é pelo diálogo com a personagem principal que a narrativa se constrói. Nesse sentido, a linguagem é não só a via de acesso a Galatea, mas também um dos temas que propiciam o diálogo com a estátua e até mesmo intervenções de vozes externas à narrativa. Por exemplo, se o interator resolve dirigir-se à estátua e digita o input ‘talk to galatea’ (‘falar com galatea’), que a máquina não é capaz de processar, pois não reconhece a estrutura sintática, recebe de pronto uma instrução de como formular suas sentenças: “[Para falar com alguém, tente FALAR COM <pessoa> SOBRE <assunto> ou PEGUNTAR A <pessoa> SOBRE <assunto>” (Short, 2000[11]).

Nesse feedback, interessante polifonia se insinua, uma vez que os colchetes indicam tratar-se de uma intervenção exógena ao universo narrado: é como se o sistema tivesse uma voz própria, um nível narrativo acima daquele em que se desenrolam os diálogos entre o personagem controlado pelo interator e a estátua. A alternância entre caixa alta e baixa, bem como os sinais de < e >, reforçam o caráter extradiegético dessa resposta, que explicita recursos tipográficos não fônicos da linguagem dos sistemas computacionais, os quais não existiriam num enunciado emitido pela personagem Galatea no plano ficcional. Assim, num gesto simultaneamente fático e metalinguístico, o sistema comunica ao interator como este deve estruturar seus inputs, tanto em termos de padrões sintáticos quanto de escolhas lexicais, a fim de poder dialogar com a estátua.

De posse dessa instrução, pode o interator digitar nova pergunta, agora seguindo os padrões pré-determinados, como em ‘ask galatea about her creation’ (‘perguntar a galatea sobre sua criação’). No entanto, mais uma vez o sistema não é capaz de interpretar a sentença (talvez por não reconhecer o substantivo ‘creation’). Nesse caso, a resposta apresentada pela máquina é uma mensagem de erro seguida por mais pistas[12] de como avançar – e eis-nos de volta à lógica da charada, que Montfort (2005) atribuíra ao modus operandi de ficções interativas:

Você não consegue colocar em palavras a sua pergunta. ‘Você poderia tentar falar comigo’, ela induz. ‘Não é educado ficar apenas encarando. E eu estou muito entediada de ficar aqui’. (Uma tentativa de engajar o público – o elemento proativo... você enquadra as palavras para a sua apreciação, mas descobre que não consegue chegar a uma primeira frase completa. Há algo mais aqui; ansiosa, fria, visceral. Melhor prestar atenção) (Short, 2000[13]).

Também aqui a polifonia se revela, mas agora entremeando a voz de Galatea (entre aspas) e a de um narrador em terceira pessoa, que emite uma avaliação sobre a interação verbal com a personagem, lançando mão de imagens diegéticas (como a inabilidade de se expressar verbalmente por uma condição emocional determinada pela cena) para dizer, mais uma vez, que o input não foi processado pelo parser. Porém, esta não é uma simples mensagem de erro: as palavras do interator já começaram a operar seu feitiço animista, dando vida à personagem, que, mesmo como estátua, enuncia suas primeiras sentenças metalinguísticas. Encaixada no feedback do sistema sobre a necessidade de reformular o input está a fala de uma Galatea que quer ser interpelada e encoraja nova abordagem (‘Você poderia tentar falar comigo’), sugerindo como deve proceder o interator. Afinal, é só pela interação com uma personagem controlada por alguém do outro lado da tela do computador que essa estátua pode ganhar ares humanos – não há aqui a intervenção de Afrodite em benefício de algum Pigmalião.

Entre as várias formas como o diálogo com a estátua poderia se desenvolver, a depender dos assuntos introduzidos pelo interator, uma das vias possíveis seria em torno do tema da linguagem, caro a este estudo. Neste caso, digitando ‘ask galatea about speaking’ (‘perguntar a galatea sobre falar’), recebe-se a seguinte réplica:

‘Quando você se tornou capaz de falar?’ você pergunta. ‘Eu sempre compreendi as palavras; elas foram as primeiras coisas que conheci’. A voz dela é naturalmente baixa – tons altos – mas há algo errado com a modulação, como se a qualquer momento ela pudesse começar a gritar. ‘Mas na verdade falar – não até que eu despertasse’ (Short, 2000[14]).

Com base nessa resposta do sistema, algumas considerações interessantes podem ser feitas a respeito da hibridação entre linguagem humana e linguagem de programação, cruzamento semiótico que tem o poder de animar ambas as Galateas: a personagem e o sistema computacional homônimo, subjacente à obra de ficção interativa.

Em primeiro lugar, note-se que, apesar de o input do interator ter uma sintaxe aparentemente canhestra ao falante humano de inglês – para quem soaria mais natural algo como ‘ask Galatea about how she learned to speak’ (‘perguntar a Galatea sobre como ela aprendeu a falar’), ou ‘ask Galatea about her speaking capability’ (‘perguntar a Galatea sobre sua capacidade de falar’) –, a sentença digitada recebe uma resposta significativa do sistema. Este reconhece a palavra ‘speaking’ e a construção da frase, estritamente de acordo com o padrão indicado pela voz extradiegética supracitada: ‘PERGUNTAR A <pessoa> SOBRE <assunto>’. Tal dinâmica revela que há, sim, uma relação de correspondência entre a linguagem humana e a linguagem que o sistema está programado para processar, mas não se trata de uma equivalência entre os dois códigos: o humano tem de escrever sua frase em uma sintaxe que não é exatamente a sua para ser bem entendido. Só assim pode o módulo do parser fazer a mediação entre ambas as linguagens (o inglês e o código de programação), garantindo a comunicação entre o maquínico e o humano, ou entre o cibernético e o orgânico, numa dinâmica como a que Castro (2014) chamara de poética do ciborgue, instituída como hibridização artística entre esses dois polos.

Além disso, é interessante notar como, na resposta do sistema, o input ‘ask galatea about speaking’ (‘perguntar a galatea sobre falar’) é parafraseado em termos coerentes com o universo diegético por intermédio do discurso direto (“‘Quando você se tornou capaz de falar?’ você pergunta”). Isso quer dizer que, em vez de o input ser integrado ‘cru’ na materialidade do discurso narrativo que a máquina gera, no formato ‘PERGUNTAR A <pessoa> SOBRE <assunto>’, as ações do interator sofrem reformulação quando inseridas no texto ficcional a ser lido a partir das respostas do sistema. Assim, na história gerada, o que a personagem controlada pelo interator disse à estátua é uma versão ficcionalizada (‘Quando você se tornou capaz de falar?’) do input que o usuário do sistema digitara na interface. Para garantir a coerência da narrativa, em que Galatea tem de falar e agir antropomorfizada, conforme o mito grego, tem ela de ser interpelada também em sintaxe humana no texto ficcional. De tal sorte, há aí um jogo de reconversão entre as linguagens processadas por humanos e por máquinas, que permite ao sistema funcionar e à estátua ganhar vida enquanto fala, simulando a linguagem natural de seu interlocutor. Sem a ação desses diferentes códigos, o sistema permanece inerte e a personagem Galatea existe apenas como potência ou devir. Sua realização textual depende, afinal, de atos engendrados como signos.

Apesar das óbvias diferenças entre as linguagens das pessoas e as dos computadores que a análise da interação acima ressalta, cruzando os planos intradiegético (em que transcorre a comunicação entre a personagem controlada pelo interator e a peronsagem Galatea) e extradiegético (em que se dá a metacomunicação entre o usuário e o sistema computacional Galatea), a obra de Emily Short nos chama a atenção para um ponto de convergência fundamental entre esses níveis discursivos: a potencialidade que todo regime de signos tem de desencadear significações e ações.

Nesse diapasão, Hayles (2005) destaca que a premissa saussureana de língua, erigida em torno de diferenças de significantes e suas correspondentes diferenças de significados, é aplicável tanto às linguagens humanas quanto aos códigos de programação (guardadas as devidas diferenças de escopo). Mas a autora vai mais além, reforçando outra semelhança entre elas: o caráter performativo do código e sua capacidade de, além de expressar ideias, ‘fazer’ coisas, o que os estudos de Pragmática já haviam descoberto para as línguas naturais e encapsulado na máxima ‘how to do things with words’.

Nas palavras de Hayles (2005, p. 48[15]): “O código se tornou indiscutivelmente tão importante quanto a linguagem natural, o que requer que seja executado como comandos que a máquina pode processar”. De tal sorte, em Galatea é justamente o encontro entre a linguagem computacional e a linguagem humana – e a tradutibilidade entre ambas proporcionada pelo parser, que enceta ações no sistema e na narrativa por meio de comandos, os quais animam o programa e a personagem – as duas Galateas – a agir.

A magia demiúrgica é aqui o poder de fazer acontecer, ou transformar o signo em procedimento: transmutação como a do mármore em carne ou a do barro em Golem, como sói, nas mitologias, ao desejo verbalizado. No mundo real, a seu turno, palavra alguma é capaz de fazer uma estátua falar (como nos lembra a anedota sobre Michelangelo e seu Moisés esculpido à perfeição, mas infenso à admoestação ‘Por que não falas?’), porém na ficção e no mito tudo é possível. E, num sistema de ficção interativa, ou em qualquer outro programa computacional, esse possível se torna executável, conforme o caráter performativo a aproximar charada, algoritmo e ficção como condões linguageiros.

Ainda acerca da centralidade da linguagem nesse processo interativo e seu poder generante de vida na obra-prima de Pigmalião, podemos retomar a resposta de Galatea ao input ‘ask galatea about speaking’ (‘perguntar a galatea sobre falar’), sobretudo quando ela afirma ‘Eu sempre compreendi as palavras; elas foram as primeiras coisas que conheci’. Sendo as palavras a primeira coisa que Galatea conheceu – quer ainda como estátua, quer já como mulher –, é a elas que associa seu processo de criação, e não à ferramenta do escultor ou à intervenção de Afrodite, como no mito grego. Galatea é, pois, obra de linguagem, mais do que de mármore ou de cinzel; chega mesmo a atrelar o despertar de sua consciência à emergência da capacidade de falar: ‘Mas na verdade falar – não até que eu despertasse’.

Curioso sobre a criatura animada por distintos expedientes semióticos, como Golem em cuja testa se escrevesse em linguagem humana e em código de programação, pode o interator sentir-se impelido a fomentar mais especulações metalinguísticas por parte de Galatea. Para tanto, o melhor expediente[16] é referir-se a termos que a interlocutora já empregara[17] em suas respostas, como o substantivo ‘words’ (‘palavras’), em sua última fala. Nesse caso, se o interator submetesse o input ‘ask galatea about words’ (‘perguntar a galatea sobre palavras’), receberia a seguinte réplica: “‘Eu só conheço as palavras que o ouvi dizer. Sempre compreendi a fala dele. Há certas coisas, no entanto, sobre as quais ele nunca falava – que eu vi ou pensei para mim mesma – e para elas não tenho palavras’” (Short, 2000[18]).

Pela primeira vez no percurso interativo realizado nesta análise, aparece aqui uma menção, ainda que indireta, a Pigmalião (na obra, referido como Pygmalion, em inglês). Por meio de pronomes como ‘him’, ‘his’ e ‘he’ (‘o’, ‘dele’ e ‘ele’), uma figura masculina se insinua no discurso de Galatea, mas sem alusão à paixão que, no mito grego, culmina na humanização da estátua. Em vez disso, a relação que a estátua reconhece com seu criador é linguística, o que sugere novamente o poder anímico de que a linguagem se reveste nessa obra como diálogo humano-máquina: Galatea só conhece as palavras que de Pigmalião ouviu, e para seus pensamentos próprios – formulados fora da esfera de ação dele –, ela ainda não dispõe de léxico.

No plano ficcional, essa reflexão vai se adensando como uma insatisfação crescente da personagem por não ter total agência sobre si, posto que se trata ainda de uma escultura presa a um pedestal na galeria de arte onde todo o diálogo transcorre. Porém, do ponto de vista das mídias e códigos mobilizados na obra, há algo mais. Se a Galatea ficcional não consegue conceber o mundo fora da linguagem de Pigmalião, permanecendo restrita ao universo lexical do criador, algo semelhante se passa com o sistema Galatea: este também só conhece as palavras selecionadas por sua criadora – Emily Short, uma ‘Pigmalião do digital’ – e gravadas no banco de dados. Qualquer tentativa de fugir a esses limiares redunda em não processamento pelo sistema e reiterada mensagem de erro, que não poderia ser mais irônica: ‘Você não consegue colocar em palavras a sua pergunta’.

A linguagem é, para ambas as Galateas, personagem e sistema, o que lhes permite estar no mundo, mas é ao mesmo tempo o que lhes limita esse mundo: mágica e contramágica demiúrgica. Nesse sentido, aproximamo-nos mais uma vez da lenda do Golem, a quem não se permitiu crescer desmesuradamente, dado que o rabino, ao ver a criatura rebelar-se, impôs-lhe um fim por meio de operações sígnicas, apagando parte da palavra escrita em sua testa. Conforme Nazario e Nascimento (2004, p. 18),

[...] o Rabino, mediante artifício e repetição de fórmulas mágicas, apaga da palavra 'emet (verdade) a letra Aleph, na transliteração, o sinal ('), que indica a aspiração da letra hebraica, representando o vento, o fôlego da vida. Ao se apagar a letra, o som aspirado do Aleph, desaparece o som vocálico do ‘e’, e a palavra 'emet – ‘verdade’ – torna-se met – ‘morto’.

Também no caso de Galatea, a força performática da linguagem é determinante para o seu fim, seja quando o sistema exibe uma resposta última, depois da qual não há possibilidade de digitar novo input, seja quando o leitor decide abandonar a obra, ou por não ter compreendido seu funcionamento, ou por ter se entediado após captar sua mecânica geral. Em qualquer desses casos, novamente uma imbricação de linguagem natural e linguagem de máquina opera a magia profana, mas agora para interromper a vida, isto é, o funcionamento da estátua e do programa computacional epônimo.

O tema dos limites de expressão (e, portanto, de ação e de existência) de Galatea, criatura refém de seu processo linguístico (verbal e algorítmico) de criação, resta mais evidente se o interator digitar o input ‘ask galatea about language’ (‘perguntar a galatea sobre a linguagem’), a fim de incitar a personagem a expressar mais considerações sobre o tema. Nesse caso, recebe uma réplica mais intensa, que vai sugerindo um gradual rumo ao termo da narrativa, da sessão de leitura, do jogo, dado que lúdicas são as ficções interativas. Como no mito do Golem, a verdade, ou a informação trocada no diálogo com a interlocutora digital, vai cedendo lugar à morte, ou ao silêncio, lá onde não há mais linguagem, pondo-se fim ao feitiço.

‘Não há mais nada a dizer’, ela diz. ‘Você ouviu tudo o que eu sei’. Você sente uma pontada de decepção. Outras coisas sobre essa obra são tão promissoras: a atenção meticulosa ao detalhe no corpo, a delicadeza das expressões faciais, a variabilidade do humor. Há aqueles que chamariam isso de inconsistência, ou falta de uma visão artística coerente; mas você já viu demasiadas obras que os estereótipos tornaram animadas. A insinuação de instabilidade –. Mas obra nenhuma vai ter uma recepção crítica séria com um banco de dados tão patético. E é isso (Short, 2000[19]).

Recusando-se a responder mais perguntas, talvez porque não tem a opção de colocar as suas próprias, senão redarguir às que se lhe impõem, Galatea vai encaminhando a conversa para um possível fim. Da resposta da estátua, destacam-se duas simbólicas frases: ‘Não há mais nada a dizer’ e ‘Você ouviu tudo o que eu sei’. Estas, além de indicarem um desejo de calar, conotam sua impossibilidade de falar para além dos limites rígidos de seu banco de dados. Tudo o que pode dizer já está dito, ou pelo menos programado, no sistema: a linguagem demiúrgica é a de um deus caprichoso, ou de um artista relapso, que não concebe Galatea com possibilidades infinitas de expressão. Sua fala é precisa, mas não criativa.

Ainda que esta resposta não seja forçosamente a derradeira, pois pode o interator desencadear mais algumas trocas antes de uma situação narrativa final (em que não haveria possibilidade de mais inputs e réplicas), seu conteúdo já aponta para um possível ponto de closure, em que se pode elaborar uma gestalt da narrativa como um todo, mesmo que lábil ou instável: ‘A insinuação de instabilidade’, nas palavras de Galatea. Nesse sentido, as indicações metalinguísticas dos limites da linguagem e, por conseguinte, de até onde podem ir ambas as Galateas, personagem e sistema, se coadunam com um dos tipos de fechamentos ficcionais previstos por Calvino (2001) em sua conferência ‘Cominciare e finire’, acerca de incipits e desfechos de obras literárias. Entre outras formas de concluir narrativas, o escritor italiano destacava a estratégia de desmascarar a ilusão realista da história, quebrando a quarta parede e referindo-se explicitamente à matéria narrada como texto. Trata-se, nesse caso, de uma forma de terminar o relato não pelo fim das sequências de eventos que compõem o enredo, as quais podem prosseguir, num plano potencial, muito além da materialidade discursiva, mas sim pela explicitação do relato como tal.

No contexto da ficção interativa, em que os limites da narrativa são imprevisíveis tanto em termos de conteúdo quanto de extensão, o interator frequentemente não se sente impelido a percorrer o texto em sua inteireza, senão à simples exaustão de seu próprio desejo de interagir com a máquina. Nesse caso, depois de um percurso cheio de erros e acertos, ora recebendo a mensagem de “Você não consegue colocar em palavras a sua pergunta”, ora descobrindo ao acaso modos de avançar na narrativa, pode o interator sentir-se satisfeito ou entediado ao ler, na resposta de Galatea supracitada, que ‘Não há mais nada a dizer’. Então, se opta por abandonar o jogo e fechar o sistema ao ver referências metalinguísticas a um possível final, condicionado pelos limites da programação da obra, o interator põe termo ao efeito mágico da linguagem e seu poder animista, tomando este como um ponto para encerrar sua leitura, logo após a quebra da quarta parede. Deixando de digitar inputs e fechando o sistema, as duas Galateas param de funcionar, não mais mobilizando as capacidades interativas providas por sua programação, ou, nas palavras da voz narrativa, por seu “banco de dados (tão) patético”. Findas as operações performativas de linguagem, natural e artificial, finda também o feitiço demiúrgico que fizera da estátua, por algum tempo, mulher e interlocutora.

Considerações finais

Ao longo do presente artigo, analisou-se a obra de ficção interativa Galatea, de Emily Short, como releitura da narrativa mítica de Pigmalião e Galateia no âmbito da literatura em mídia digital. Para tanto, procedeu-se inicialmente a uma revisão expositiva de temas como o mito grego em questão, a literatura eletrônica, a ficção interativa, a lenda judaica do Golem e as relações entre linguagens naturais e artificiais na composição de textos de IF.

Na hipótese de leitura aventada neste estudo, enfocou-se o papel que a associação entre tais linguagens desempenha na concessão de vida à personagem de Galatea, como em um feitiço demiúrgico que, pela articulação dos signos em inglês e em código de programação, animasse a estátua. Ao passo que, no mito grego, é a intervenção de Afrodite que faz do mármore carne, nessa IF é a força performativa das linguagens que transforma o potencial em atual – ou os textons em scriptons, nos termos de Aarseth (1997). Assim, o que era apenas texto programado vira texto narrado a ser lido na interface de Galatea como ficção sobre uma obra de arte que devém humana pela força dos códigos.

Nesse experimento literário e computacional, retomam-se questões caras ao mito grego, como os temas do amor entre criador e criatura e do poder demiúrgico da criação artística, em paralelo a uma densa reflexão sobre o quanto podem as linguagens, em sua dimensão performativa. Sob tal perspectiva, pode-se dizer que lá está sempre o desejo, articulado como força motriz por meio dos signos, a propulsionar as transformações de Galatea, a personagem, e de Galatea, o sistema, a partir de interações por meio do diálogo.

Cumpre, por fim, destacar a parcialidade desta análise, dado que se trata da leitura de um único percurso, entre inúmeros possíveis outros, através da narrativa de Galatea. Se já é lugar-comum na academia que qualquer empreitada interpretativa do literário é parcial, dada a impossibilidade de abarcar toda a potência significativa de um texto, tal situação é duplamente verdadeira para uma obra de ficção interativa. Afinal, para além da inexequibilidade de uma ‘interpretação’ total, há aqui a de uma ‘leitura’ total, dado que, a cada novo input que o interator digita, uma réplica diferente pode ser emitida pelo sistema, resultando num texto que é sempre materialmente distinto de si mesmo. A magia linguageira que anima ambas as Galateas é, pois, sempre movediça, ilusória, traiçoeira, como também costumam ser as profanas criações humanas no espaço da ficção.

Material suplementario
Referências
Aarseth, E. (1997). Cybertext: perspectives on ergodic literature. Baltimore, MD: The John Hopkins University Press.
Bulfinch, T. (2004). O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro.
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Notas
Notas
[1] Embora uma análise dos elementos morfológicos da palavra ciborgue aponte para uma combinação de raízes referentes ao cibernético e ao orgânico, o termo pode ser usado (como fazemos aqui) para designar, de modo mais amplo, as relações de hibridação entre o maquínico e o humano em geral.
[2] Ao longo deste texto, adota-se a grafia em inglês, ‘Galatea’, para referências à obra de Emily Short, que gera narrativas escritas nessa língua.
[3] “[…] any story that allows reader participation to alter the presentation or outcome of the narrative, especially works […] which are marketed to a video game audience but emphasize narrative development over gameplay challenge”.
[4] “[…] represented in code, which may track information such as the player’s location within a map of rooms, the objects located in the rooms and those carried by the player, and the qualities or states of objects: open boxes, unlocked doors, angry monsters, and so on”.
[5] Cabe ressaltar que, conforme Short (2014), a presença de ambos os módulos é o que distingue a ficção interativa de outros gêneros da literatura eletrônica: por exemplo, narrativas hipertextuais não apresentam parsers, ao passo que chatterbots (ou robôs conversacionais) não dispõem de modelos computacionais do universo narrado.
[6] Uma Z-machine, ou máquina Z, é um tipo de interpretador virtual, criado em 1979 pela Infocom (maior empresa comercializadora de ficções interativas à época) para execução de arquivos com text adventures. Mesmo com o fim da era comercial da ficção interativa e a falência da Infocom, muitos artistas independentes ainda produzem obras de IF para execução em máquinas Z, que funcionam facilmente em diferentes sistemas operacionais. Este é, por exemplo, o caso de algumas obras de Emily Short.
[7] “I didn’t understand that sentence” e “You can’t form your question into words”.
[8] Todos os inputs digitados pelo interator são grafados em minúsculas neste artigo, considerando que o sistema de Galatea não distingue caixa alta e caixa baixa nas entradas textuais.
[9] Segundo Montfort (2020), Galatea foi agraciada em 2000 com o prêmio ‘Best of Show’ no IF Art Show e com o prêmio XYZZY na categoria de personagem não jogador. Além disso, dado o ineditismo de sua proposta conversacional, mais do que exploratória, a obra foi incluída no volume 1 da Electronic Literature Collection, uma das antologias online de literatura eletrônica de maior prestígio nos dias de hoje.
[10] “The Gallery’s End. Unlit, except for the single spotlight; unfurnished, except for the defining swath of black velvet. And a placard on a little stand. On the pedestal is Galatea”.
[11] “[To talk to someone, try TELL ABOUT or ASK ABOUT .]”
[12] Graças ao módulo “modelo computacional do universo narrado”, que acompanha o funcionamento do parser, pode a obra ser programada para, depois de um certo número de tentativas de comunicação fracassada, emitir uma reposta da personagem Galatea indicando pistas de como interagir com o sistema. Do contrário, um interator menos experiente poderia ficar para sempre preso num mesmo ponto da narrativa, digitando continuamente inputs não processáveis pelo sistema e recebendo reiteradamente a mesma resposta: “Você não consegue colocar em palavras a sua pergunta”.
[13] “You can’t form your question into words. ‘You might try speaking to me’, she prompts. ‘It’s not polite merely to stare. And I’ve gotten very bored, standing here’. (An attempt to engage the audience – the proactive element... you frame the words for your review, but you find that you can’t get as far as a complete first sentence. There’s something more here; anxious, chilly, visceral. Better pay attention).
[14] “’When did you first start to be able to speak?’ you ask. ‘I’ve always understood words; they were the first things I knew of’. Her voice is naturally low – alto tones – but there’s something wrong with the modulation, as though at any moment she might start to scream. ‘But actually to speak – not until I woke up’”.
[15] “Code has become arguably as important as natural language because it causes things to happen, which requires that it be executed as commands the machine can run”.
[16] Emily Short lista essa estratégia de interação, entre outras, numa mensagem extradiegética acessível ao interator a qualquer momento, bastando-lhe digitar o input ‘help’ na interface. Nesse momento, é suspensa a comunicação entre a personagem controlada pelo interator e a personagem de Galatea para se estabelecer uma metacomunicação entre o usuário e o sistema, que apresenta sugestões para formulação de inputs mais produtivos no desenrolar da narrativa. Mais uma vez, em se tratando de gênero tributário da charada, conforme Montfort (2005), a ficção interativa apresenta uma série desafios que, muitas vezes, requerem ‘dicas’ para serem superados.
[17] Recurso semelhante é usado na interação oral cotidiana entre falantes que se alternam trocando turnos e retomando palavras usadas pelo interlocutor.
[18] “I only know the words that I heard him say. I always understood his speech. There are some things, though, that he never talked about – that I have seen or thought of for myself – and for those I have no words”.
[19] “‘There’s nothing else to say’, she says. ‘You’ve heard what I know’. You feel a twinge of disappointment. Other things about this piece are so promising: the meticulous attention to detail on the body, the delicacy of the facial expressions, the variability of mood. There are those who would call that inconsistency, or lack of a coherent artistic vision; but you’ve seen too many pieces stereotypes made animate. The hint of instability – But no piece is going to get a serious critical reception with such a pathetic database. And that’s that”.
Notas de autor

viniciuscarpe@gmail.com


Figura 1:
Interface de Galatea.
Short (2000).
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