Literatura

Literatura em anos iniciais e a BNCC

Literature in the initial years and the BNCC

Mirian Hisae Yaegashi Zappone
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Camila Mossi de Quadros
Universidade Estadual de Maringá, Brasil

Literatura em anos iniciais e a BNCC

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 43, núm. 1, e53280, 2021

Universidade Estadual de Maringá

Recepción: 21 Abril 2020

Aprobación: 20 Octubre 2020

Resumo: No ano de 2018, foi implementada a Base Nacional Curricular Comum no Brasil – BNCC com o objetivo de centralizar e uniformizar os conteúdos curriculares a serem abordados por todas as escolas da educação básica. Neste documento, o ensino de língua portuguesa aparece inserido no campo de linguagem e suas tecnologias e o ensino de literatura é apresentado, como historicamente tem sido, dentro do conteúdo geral desta disciplina. Quanto ao trabalho com os textos literários, a BNCC propõe que ele deve ser nuclear no ensino médio, como também no ensino fundamental. Em razão de a literatura configurar-se como um conteúdo dentro do componente de Língua Portuguesa, ou seja, por não se constituir como um componente curricular específico, torna-se importante uma leitura atenta da BNCC no sentido de verificar: i) como os conteúdos relacionados ao ensino de literatura são apresentados no documento, ii) os tipos de textos literários propostos para leitura e iii) os encaminhamentos metodológicos propostos pelo documento em relação à leitura da literatura, ou seja, como o documento propõe que sejam lidos os textos literários na escola. O corpus utilizado para a análise desses elementos é constituído pelas habilidades de Língua Portuguesa apresentadas na BNCC que se referem ao ensino de literatura dos anos iniciais – fundamental I. Tendo em vista tais objetivos, o artigo discute sumariamente momentos-chave do ensino de língua e literatura, bem como apresenta considerações teóricas sobre leitura literária, baseada em postulados dos novos estudos de letramento e em autores como Chartier (1999), Candido (1975-1981), Hansen (2005) e Aguiar (2000).

Palavras-chave: BNCC, ensino de literatura, leitura literária, letramentos literários.

Abstract: In 2018, the Common National Curriculum Base in Brazil - NCCB (BNCC in Portuguese) was implemented in order to centralize and standardize the curricular content to be addressed by all basic education schools. In this document, the teaching of Portuguese language appears inserted in the field of language and its technologies and the teaching of literature is presented, as historically it has been, within the general content of this discipline. As for the work with literary texts, NCCB proposes that it should be nuclear in high school, as well as in elementary school. Due to the fact that literature is configured as a content within the Portuguese Language component, that is, as it does not constitute itself as a specific curricular component, it is important to carefully read the NCCB in order to verify: i) how the contents related to the teaching of literature are presented in the document, ii) the types of literary texts proposed for reading and iii) the methodological approaches proposed by the documents in relation to the reading of the literature, that is, how the document proposes to read the literary texts in school. The corpus that is accessed for the analysis of these elements is constituted by the Portuguese language skills that refer to the teaching of literature in the early years - fundamental I. In view of these objectives, the article briefly discusses key moments in the teaching of language and literature, as well as presents theoretical considerations on literary reading, based on postulates of the new literacy studies and on authors such as Chartier (1999), Candido (1975-1981), Hansen (2005) and Aguiar (2000).

Keywords: teaching of literature, reading of literature, literary literacy.

Introdução

O ensino de literatura é um desafio que esbarra em diversos obstáculos que vão dos ideológicos aos materiais. No Brasil, a baixa circulação e o alto preço dos livros, aliados ao sucateamento do sistema público de ensino, criam uma condição pouco favorável ao desenvolvimento de práticas de leitura da literatura. Sobretudo, a visão positivista de educação, explícita ou implícita na história do ensino de literatura no país e nos documentos oficiais que regulamentam os currículos, relega a literatura a segundo plano, pois não é reconhecida como um conhecimento com finalidades práticas. Indiferentemente a todo o cabedal teórico que atesta a importância da literatura para a formação humana, para o exercício da cidadania e, além disso, como um direito à herança cultural da humanidade, a literatura figurou poucas vezes como um componente curricular específico na história do ensino brasileiro, caracterizando-se, sempre, como um dos conteúdos dentre os do componente curricular Língua Portuguesa.

No ano de 2018, foi implementada a Base Nacional Comum Curricular no Brasil – BNCC, cujo objetivo era definir “[...] o conjunto orgânico e progressivo de ‘aprendizagens essenciais’ que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica (Base Nacional Comum Curricular [BNCC], p. 7, 2018). O documento, que abarca os três níveis do ensino básico (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) se constrói a partir da premissa de que todos os alunos do sistema de ensino brasileiro devem ter acesso ao mesmo conhecimento, a fim de que todos os alunos tenham acesso aos mesmos conteúdos curriculares. Neste documento, o ensino de língua portuguesa aparece inserido no campo de linguagem e suas tecnologias e o ensino de literatura é apresentado dentro do conteúdo geral da disciplina. Quanto ao trabalho com os textos literários, a BNCC propõe que ele deve ser nuclear no ensino médio e no ensino fundamental.

Homologada em um contexto político bastante tenso e crítico da política nacional (após o processo de impeachement da presidente Dilma Rousseff e posse do presidente Temer), a BNCC já vinha sofrendo uma série de críticas por parte de pesquisadores e professores em função de seu alinhamento a políticas neoliberais e de seu caráter produtivista, uma vez que implicaria em substituição de uma visão mais ampla e global da educação brasileira por uma visão simplificadora na qual o currículo ganharia centralidade, tal como afirma Grabowski (2019, p. 49-50):

Ela [proposta da BNCC] substitui as demandas por igualdade de condições, melhoria da infraestrutura das escolas públicas, valorização profissional dos professores, apoio financeiro aos jovens estudantes de baixa renda e aumento dos investimentos em educação ao patamar de 10% conforme determina a meta 20 do Plano Nacional da Educação (PNE), por uma solução de ordem meramente curricular e de aprendizagem. O Ministério da Educação abandona, com esta proposta de BNCC, o direito à educação em nome dos ‘direitos de aprendizagem’.

Ao adotar essa política educacional de caráter curricular, o governo estaria anulando seu dever de estado (prover condições favoráveis ao desenvolvimento da educação) e transferindo a responsabilidade dos processos educacionais unicamente para o desempenho dos estudantes e para o trabalho dos professores. Esses seriam, por sua vez, os únicos responsáveis pelo fracasso ou sucesso escolar, a ser revelado por meio de avaliações externas. A esse propósito, é importante ressaltar que as noções de competência e de habilidade adotadas na BNCC alinham-se ao enfoque das avaliações internacionais como as da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês) (BNCC, 2018, p. 13). Evidencia-se, assim, outro aspecto crítico da BNCC: sua elaboração e implementação pressupõem o atendimento direto às avaliações externas, visando um objetivo pragmático. Pragmatismo que também pode ser observado em relação à ênfase dada ao preparo dos estudantes para o mundo do trabalho, já que as competências gerais estipuladas como objetivos centrais de todos os componentes curriculares devem ser desenvolvidas a fim de que os estudantes possam “[...] resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BNCC, 2018, p. 13), tal como afirma o texto no qual se apresentam os fundamentos da BNCC. Enfim, tais críticas, levando em consideração o contexto geral, parecem ser pertinentes e corretas em relação aos pressupostos da BNCC.

Não obstante essas críticas, a BNCC foi homologada em dezembro de 2018 e, a partir de então, tornou-se a referência nacional para a formulação dos currículos das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e, também, das propostas pedagógicas de todas as instituições escolares. Sendo documento de caráter normativo, sua importância se torna capital no cenário do ensino básico brasileiro que, segundo o Censo escolar 2018, apresentou mais de 48 milhões de matrículas. Dentre esse contingente, mais da metade dos estudantes matriculados encontram-se no ensino fundamental, com 27,2 milhões de matrículas. Considerando que, segundo o Censo 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010), praticamente metade da população brasileira (mais de 109 milhões de pessoas) permanece na escola em torno de 9 a 11 anos, ou seja, possui ensino fundamental completo, incompleto ou médio incompleto, o ensino fundamental ganha especial relevância porque o que se ensina nesse estágio de escolarização constituirá, em muitos casos, a única educação formal recebida por quase metade da população brasileira. Nesse sentido, as políticas e os conteúdos para esse nível de ensino devem ser alvo de pesquisas e estudos, devido à sua importância e a seu impacto na vida dos brasileiros. Nesse sentido, muito embora a BNCC apresente pontos limitadores quanto a seus fundamentos epistemológicos e políticos, é preciso analisar com meticulosidade como os conteúdos de cada um dos componentes curriculares são nela apresentados, sobretudo em relação ao ensino de literatura, cuja função na escola, como se verá, ultrapassa o status de mero conteúdo escolar, podendo atuar fortemente na formação social, ética, cultural e humana dos estudantes.

Sobre o ensino de literatura no Brasil

Em relação à situação muito particular do Brasil enquanto país colonizado, a história do ensino de literatura, assim como de outras disciplinas, é marcada por ausências e precariedades advindas do sistema político-econômico extrativista e exploratório instaurado por Portugal e que só muito tardiamente veio a valorizar a educação. Assim, partindo do ensino religioso dos jesuítas e passando pelas escolas informais do período colonial, o estabelecimento pleno de um sistema educacional só se deu em nosso país a partir do século XX, com a instituição do ensino médio obrigatório (em 1931, com a reforma de Francisco Campos), com certa universalização do ensino fundamental e com a ampliação dos cursos de nível superior. Neste panorama, vale investigar como a literatura tornou-se conteúdo escolar no nível médio de ensino e o status deste conteúdo escolar em visão diacrônica.

Razzini (2010) destaca que, no Brasil, o ensino secundário, ou seja, o ensino anterior ao nível superior, só foi sistematizado quando as aulas régias avulsas passaram a ser substituídas por aulas ministradas em liceus, colégios públicos ou mesmo por seminários e escolas superiores. Haidar (1972), por sua vez, assinala que, nesse mesmo contexto, medidas centralizadoras foram adotadas pelo governo a fim de uniformizar o currículo escolar. Uma das estratégias para tal uniformização foi a adoção dos programas do Colégio Pedro II como modelos a serem seguidos. Seja pela qualidade, por sua situação geográfica ou pela formação acadêmica de seus professores, o Colégio Pedro II se tornou um modelo de ensino secundário para escolas de todo o Brasil. Ao cotejar a legislação do nível secundário brasileiro juntamente com os programas e manuais didáticos adotados por esta instituição de ensino, Razzini (2010) identifica quatro fases do ensino de língua portuguesa por meio das quais se pode observar, também, o ensino de literatura. Nessa trajetória, destacam-se tanto a paulatina valorização da Língua portuguesa e da literatura quanto aspectos metodológicos de seu ensino.

A primeira fase, que abrange os anos de 1838 a 1869, caracteriza-se pela subordinação ao Latim, já que o estudo da gramática nacional se baseava em práticas e nos conteúdos das aulas de Retórica e Poética, tais como leitura e recitação. Em análise dos compêndios e programas deste período, Razzini (2010) destaca o peso de autores portugueses tanto nas obras didáticas quanto nas seletas utilizadas para leitura, além da presença maciça do Latim e da retórica.

Na segunda fase (1870-1890), fato importante é a inclusão do Português nos Exames Preparatórios, o que levou ao novo status desta disciplina, culminando com o aumento de sua carga horária, além da inclusão de conteúdos como composição. Chama atenção o fato de que, nas aulas de gramática, junto às gramáticas propriamente ditas, os textos didáticos utilizados sempre se valiam de textos literários (de autores portugueses e nacionais) a partir dos quais os estudos de gramática e de sintaxe eram feitos, ou seja, a literatura figurava, precipuamente, como modelo de língua a ser seguido pelos alunos nos exercícios de composição, ou mesmo em exercícios ortográficos. O estudo do texto literário per si se concentrava nos anos finais, destacando aspectos teóricos dos gêneros literários (prosa/poesia) além de análises de estilo, declamação e composição (Razzini, 2000).

Entre 1890 a 1930, terceira fase aludida por Razzini (2010), em plena onda republicana e nacionalista, observa-se o aumento do status da disciplina Português, uma vez que seus conteúdos passam a ser exigidos para a entrada em todos os cursos superiores, distinção não aplicada à literatura, uma vez que a disciplina História da Literatura Nacional era estudada apenas pelos raros alunos que se tornavam bacharéis em Letras nos cursos do Colégio Pedro II. Nesse período, verifica-se o declínio da Retórica e da Poética e a franca ascensão da literatura nacional[1]. As sugestões de atividades didáticas presentes nos programas do Colégio Pedro II sugerem que a literatura era utilizada para estudo da gramática normativa, para estudos de recitação, de vocabulário, exemplos de composição, evidenciando uma abordagem voltada para a aquisição da língua em sua variante culta.

A quarta fase referida por Razzini (2010) inicia-se em 1931 com a instituição da obrigatoriedade de conclusão do ensino secundário para acesso ao ensino superior, somada ao definitivo desaparecimento dos Exames Preparatórios por força da reforma Francisco Campos (1931). A presença do estudo da língua portuguesa se intensifica, uma vez que tal reforma propunha a língua como elemento de ‘unidade espiritual’ e de organização e conservação da cultura brasileira. O estudo da literatura, por sua vez, se iniciava a partir do último ano do primeiro ciclo e continuava nas três séries do segundo ciclo, nos quais se enfatizavam noções gerais sobre literatura, escolas literárias, figuras de linguagem, versificação, gêneros literários, bem como a história da literatura portuguesa e brasileira. Nota-se, portanto, uma especialização maior do ensino de literatura em relação aos momentos anteriores, além de uma ampliação do corpus literário, que passou a abranger autores/obras mais contemporâneos à época.

Nesse longo período referido por Razzini nota-se que, em relação aos objetos de estudo de literatura, houve uma paulatina substituição dos conteúdos de Poética e de Retórica pelos textos de literatura portuguesa e, posteriormente, de literatura nacional (brasileira), com forte ênfase, ao final do período, para os autores contemporâneos à época. Com relação às práticas de leitura, nota-se, como salienta Zilberman (1999), ao estudar alguns dos compêndios adotados no período, que se tratava de uma leitura intensiva (Chartier, 1999), ou seja, leitura de um conjunto de textos não muito grande, e do qual se faziam leituras repetidas, em voz alta, com a finalidade de memorização dos textos lidos para apreensão do bem falar e do bem escrever, ao mesmo tempo em que se aprimorava o gosto literário.

A partir da década de 1960, aprovadas as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 4.024, 1961), Razzini (2010) assinala que o latim se torna optativo e o vernáculo ganha, cada vez mais, centralidade nos currículos. O objetivo do ensino de Língua Portuguesa passa a ser o de propiciar ao estudante o domínio da expressão oral e escrita. Assim, reforça-se o caráter do uso social da língua ao invés do enfoque gramatical e estilístico, e mesmo nacionalista, tal como se observara até então. As análises de Razzini chegam até o final da década de 1960.

As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelo cerceamento político da Ditadura, que trouxe consequências no plano educacional: o ensino de Língua Portuguesa deixa, efetivamente, de centrar-se no bem falar e escrever (cujas raízes eram a Retórica e Poética) e nos pressupostos ideológicos da representação identitária do país para enfatizar o aspecto de seu uso, ou seja, a eficácia da comunicação dos sujeitos. A partir desse momento, a disciplina Língua portuguesa muda seu nome e passa a ser referenciada por ‘Comunicação e expressão’, além de ampliar seus objetos de estudo para textos de outras modalidades, além do verbal, e a incluir o estudo de autores contemporâneos. Os livros didáticos passam a apresentar textos de natureza variada e a fazer associações com a cultura de massa. A literatura, um dos conteúdos presentes nos exames vestibulares, ganha espaço e força no ensino médio, à época nomeado 2º grau.

Uma mudança paradigmática na legislação educacional acontece, efetivamente, a partir dos anos 1990, quando as normativas educacionais passam a apresentar um claro discurso no qual a educação é associada diretamente ao mundo do trabalho e às práticas da vida social. Principais normativas governamentais para o ensino de nível médio, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM, 1999), as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM, 2006), e mesmo os PCNEM+, aderem, em relação ao componente curricular de Língua Portuguesa, ao discurso do pragmatismo do ensino. Em relação ao tratamento dado à literatura, vê-se ora uma afirmação da cultura letrada por meio da ênfase no ensino dos textos literários canônicos, ora uma relativização da noção de cultura, que permite a inclusão de textos de circulação popular e de massa no rol de textos a serem estudados na escola.

Esta apresentação sumarizada da história do ensino de literatura no Brasil evidencia que mudanças ideológicas, culturais, políticas e sociais se encarregaram de produzir variações tanto no repertório dos textos e de autores estudados nas aulas de literatura nas escolas brasileiras, quanto variações em relação às práticas de leitura propostas/efetivadas a partir deles. Quanto à seleção de textos, esta se inicia (de meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX) com textos da cultura clássica, nas aulas de Retórica e Poética, passando por textos da literatura portuguesa até chegar aos autores brasileiros. Posteriormente, a partir das décadas de 1980, ao lado dos autores da literatura nacional são propostos textos de circulação social tais como as histórias em quadrinhos, tiras de jornal, textos jornalísticos e outros até chegarmos, nas décadas de 1990, nos gêneros textuais, patrocinando a leitura de bulas, de outdoors, de enciclopédias e outros. A constatação mais importante, entretanto, refere-se ao fato de que a literatura nunca se configurou como disciplina autônoma. Embora seja discutida nas normativas e políticas educacionais, sua presença na escola atrela-se diretamente ao ensino de língua ou de linguagens, evidenciando sua posição secundária no rol dos componentes curriculares, muito embora textos literários sejam lidos para o ensino de gramática e língua, sendo presença que se expande além das aulas de literatura. Pensando nessa história ou situando-se dentre dessa história, é preciso, portanto, investigar como a BNCC, enquanto nova orientação governamental, se insere em relação a essa série histórica, verificando os tipos de textos ficcionais indicados para leitura e os modos de leitura para eles propostos.

Sobre as especificidades da leitura de textos literários

Sendo essa uma discussão que coloca em tela modos de ler, pois, afinal, interessa saber como o documento da BNCC propõe a leitura de textos literários, torna-se importante discutir o estatuto da leitura literária. Para fazê-lo, a presente análise apoia-se no conceito de letramento. Segundo Kleiman (2004) e Street (1999), letramento refere-se “[...] ao conjunto de práticas sociais que usam a escrita como um sistema simbólico, e que a usam dentro de padrões tecnológicos para finalidades específicas e em contextos específicos” (Kleiman, 2004, p. 19). Isso significa que todas as formas de apropriação da escrita, seja no caso da leitura, seja no caso da produção da escrita, configuram-se como letramento. Desse modo, ao se pensar na(s) leitura(s) ou na produção de textos literários, fala-se, também, em letramento e, por extensão, em letramento literário, ou seja, dos usos da escrita literária. Sendo a leitura e a produção de textos literários práticas de letramento, pode-se, por comparação, compreender essas práticas de uso da escrita literária a partir das características do letramento apresentadas por Mary Hamilton (2000), entre as quais se destacam: i) o fato de os letramentos estarem associados a diferentes domínios da vida; ii) o fato de as práticas de letramento serem moldadas ou padronizadas por instituições sociais, bem como pelas relações de poder, fazendo que algumas práticas se tornem mais dominantes e influentes do que outras. Essas duas características de letramento revelam-se esclarecedoras para a compreensão da leitura de textos literários enquanto práticas de letramento. Isso porque permitem compreender que as formas de ler (textos literários ou não) estão relacionadas a diferentes contextos e a objetivos bastante definidos.

Sendo a questão dos contextos e objetivos de suma importância quando se pensa nas práticas de leitura, é preciso que se leve em consideração que o espaço escolar, contexto no qual a leitura dos textos literários se realiza de modo mais frequente, modela ou amolda as práticas de letramento nele realizados. Ao discutir o tema da leitura literária, Hansen (2005) assinala que os objetivos do ensino de literatura na escola brasileira estão relacionados a valores católicos, burgueses, críticos e liberais herdados do século XIX, visando a formação humana dos estudantes, muito embora tais objetivos nem sempre sejam alcançados:

[...] os programas atuais de ensino de literatura da escola pública são orientados crítica, estética e politicamente por noções católicas, liberais ou marxistas, que definem a finalidade da leitura de ficção pelos alunos da escola secundária como aprimoramento da sensibilidade, formação moral do caráter, conscientização de problemas sociais, reflexão, resistência, desautomatização do hábito, crítica da sociedade administrada, politização etc. (Hansen, 2005, p. 41).

Na fala do autor, destaca-se o fato de que a leitura da literatura na escola está voltada para a formação da sensibilidade, do caráter, da visão crítica no sentido político, social, cultural, aspecto que parece nortear grande parte das orientações legais que versam sobre a literatura.

Pensando, ainda, na leitura da literatura feita nesse contexto específico, que é a escola, portanto em uma instituição social que tem por função o ensino e a formação dos estudantes, observa-se, como se destacou na segunda característica do letramento, apresentada anteriormente, que ela se molda pelas relações de poder estabelecidas nesse espaço. Ou seja, a leitura de textos literários feita na escola diferencia-se da leitura feita dos mesmos textos em outros espaços sociais, de modo a constituir padrões ou práticas típicas deste espaço, já que a escola se constitui como uma comunidade de intérpretes específica, constituindo modos de ler singulares.

Ao discutir a leitura enquanto uma prática, ou seja, enquanto um fazer, uma ação dos leitores, Chartier (1999) caminha na mesma direção ao afirmar que a leitura dos leitores são influenciadas por dois fatores: i) pelos códigos e convenções que regem as práticas de uma comunidade de dependência, ou seja, pelas regras de leitura próprias às diversas comunidades de leitores e ii) pelas formas discursivas dos textos lidos (romance, um poema, uma epopeia etc.) e pelas formas materiais (tipos de letra, divisão em partes, formato do livro). Para Chartier (1999), os autores/editores procuram, por meio das formas discursivas e materiais de seus textos, demarcar sentidos nos textos que produzem, tornando essas formas elementos importantes no momento de leitura.

A partir dos novos estudos de letramento e das proposições de Chartier (1999), ambas referentes à leitura e, por extensão, à leitura de textos literários, podemos concluir que as práticas de leitura de textos literários, quando realizadas na escola, são demarcadas pelas relações de poder que acabam por influenciar fortemente a comunidade de leitores formada por professores e alunos. No contexto escolar, esses modos de ler, imbuídos dos objetivos e funções do ensino de literatura na escola brasileira, a saber, patrocinar a formação humana dos estudantes, no sentido assinalado por Hansen (2005), tal como exposto anteriormente, fizeram com que fossem eleitos como parâmetros para a leitura escolar da literatura os modos de ler da cultura letrada, na qual os leitores de literatura mais autorizados são os críticos literários, para os quais interessam, fundamentalmente, os aspectos artísticos da escrita ficcional. Assim, a leitura mais adequada ou pertinente dos textos literários a ser feita na escola, seria aquela capaz de evidenciar o estatuto artístico e ficcional dos textos, tal como o faz a crítica literária. Para essa comunidade de leitores (os críticos literários, historiadores, professores universitários, professores de literatura), os protocolos de leitura baseiam-se, fortemente, no que Chartier (1999, p. 12) chamou de “[...] formas discursivas dos textos”.

Sendo assim, a leitura dos textos literários feita na escola não se constitui em prática ‘natural’, ou seja, não basta ao estudante saber ler (no sentido de decodificar) para que ele possa produzir uma leitura pertinente de textos literários ou uma leitura literária, termo proposto por Hansen (2005). Na escola, é preciso aprender a ler literatura segundo um modelo de leitura que valoriza as formas discursivas e estéticas dos textos. Em outras palavras, a leitura do texto literário precisa ser aprendida pelo estudante; e deve, portanto, ser ensinada/mediada por um leitor mais experiente, o professor.

Tal leitura possui, portanto, especificidades que, neste texto, serão observadas a partir da fala de alguns críticos. Segundo Hansen (2005), o texto literário constitui-se em um ato de fingimento, sendo um ato de fingir o possível, ou seja, constitui-se em um ato pseudorreferencial e, ainda, autorreferencial, pois se trata de uma referência a ele mesmo, já que os objetos, seres e ações nele propostos não encontram um correspondente no mundo real: os elementos, ideias, pessoas, fatos nele representados são, em verdade, inexistentes. Por isso, pode-se dizer que a ficção é sempre autorreferencial. Sendo ficção e criando-se por meio de mecanismos textuais e linguísticos que produzem especificidades relacionadas aos modelos de textos existentes para a criação ficcional, bem como por meio dos diversos estilos artísticos, para que a leitura de um texto ficcional possa ser adequada, o leitor deve levar em conta os ‘procedimentos técnicos do ato de fingir’:

[...] no caso da ficção literária definida como produto do ato de fingir, e aqui retorna a questão da leitura, não há evidentemente uma interpretação correta no sentido de interpretação verdadeira e outras falsas, pois a ficção é metáfora. Mas há evidentemente [...] interpretações adequadas que refazem os procedimentos técnicos do ato de fingir – e serão melhores quanto mais forem exaustivas dele ou adequadas a ele (Hansen, 2005, p. 18).

Para Hansen, o leitor precisa refazer os procedimentos técnicos do ato de fingir utilizados nos textos literários que, por sua vez, são demarcados pelos diferentes estilos artísticos e pelos diversos gêneros. Ora, como bem estabeleceu a teoria literária, cada gênero literário apresenta uma maneira de fingir, e estilos de construção estética advindos dos diversos períodos em que foram compostos. Constituem, portanto, aspectos fundamentais para seus leitores, uma vez que eles funcionam como reguladores sociais da recepção. Segundo Hansen (2005), é a compreensão desses mecanismos que permitirá a realização da leitura literária, ainda que esta seja sempre incompleta e parcial:

Para que uma leitura se especifique como leitura literária, é consensual que o leitor deva ser capaz de ocupar a posição semiótica do destinatário do texto, refazendo os processos autorais de invenção que produzem o efeito de fingimento. Idealmente, o leitor deve coincidir com o destinatário para receber a informação de modo adequado. Essa coincidência é prescrita pelos modelos dos gêneros e pelos estilos que funcionam como reguladores sociais da recepção, compondo destinatários específicos dotados de competências diversificadas: mas a coincidência é apenas teórica, quando observamos o intervalo temporal e semântico existente entre destinatário e leitor. Assim, a leitura literária é uma poética parcial ou uma produção assimétrica de sentido (Hansen, 2005, p. 19-20).

Levando em consideração essas proposições de Hansen (2005), a leitura literária ideal nunca seria possível; ela não existiria, pois não haveria um leitor ideal, uma vez que a coincidência exata entre momento de produção do texto e o de leitura seria impossível. Sendo a escola um espaço no qual os modos de ler da cultura letrada se impõem, torna-se tarefa do/a professor/a buscar mecanismos que favoreçam o conhecimento, por parte dos estudantes, desses elementos reguladores da recepção e que lhes permitiriam uma recepção adequada do texto. Ao conhecer tais elementos, há possibilidade de se diminuir a distância temporal, espacial, social, linguística entre texto e leitor/a, permitindo que este possa reconstruir os preceitos que, no tempo, definem a estrutura fictícia do texto, de maneira que, ao fim da leitura, o/a leitor/a seja capaz, inclusive, de ressignificar o tempo e espaço no qual habita (em seu presente de leitor real), tal como afirma Hansen (2005).

Outro crítico que pode ilustrar que a leitura de textos literários implica especificidades é Flávio Aguiar (2000). Para ele, a obra de arte, no caso, a literária, “[...] se constitui num objeto único, diferente de todos os demais, que pode espelhar o mundo em volta, mas dele se distingue radicalmente. Merece, portanto, um tratamento específico, um preparo especial para ser apreciado” (Aguiar, 2000, p. 20). Como se nota, para o autor, a leitura de textos literários possui um estatuto particular, ou seja, possui especificidades que se referem à compreensão, por parte do leitor, do ‘decoro’ particular de cada obra. Para o autor, os textos literários são regidos por modelos de ficcionalização que são característicos, de modo que, num romance, se pode esperar a presença de personagens; que a história vivida por esses personagens seja contada por um narrador, que pode ou não participar dos acontecimentos narrados; que, num romance, há a criação de uma expectativa quanto ao desenrolar dos acontecimentos, formando um enredo coerente e organizado numa sequência temporal, ainda que esta não seja a mesma apresentada durante a narração. Do mesmo modo, esse decoro pode ser observado em outros gêneros, como em uma poesia, na qual se espera ouvir a voz de um falante (eu lírico) cuja fala se caracteriza pela subjetividade construída pela proximidade entre o eu e o mundo, pelo uso de recursos sonoros como rimas, aliterações, ritmo e outros, devido à relação do gênero com a música. Enfim, para Aguiar (2000), o decoro do texto literário diz respeito às mesmas questões apresentadas por Hansen, ao associar os gêneros e os estilos como reguladores de uma recepção mais pertinente ou adequada dos textos literários:

Há um comportamento, portanto, que é próprio desse mundo, e que só a ele pertence. A esse conjunto de expectativas geradas e de gestos que com elas estejam de acordo, chamamos decoro. Um conceito fundamental para entender o valor de uma obra literária, até porque muitos efeitos surpreendentes derivam de quebras pertinentes do decoro, que geram ironia e despertam a reflexão (Aguiar, 2000, p. 21).

Há, na fala desses dois críticos, uma ênfase ao fato de que a leitura de textos literários, pensados como textos ficcionais de caráter artístico, deve observar os modos de ficcionalização que, por sua vez, estão diretamente relacionados aos diversos gêneros e estilos artísticos da escrita literária. Nesse sentido, essa leitura deve colocar entre parênteses a emoção, o sentimento, a história contada e focalizar o(s) modo(s) de composição do texto, já que a literatura, entendida como arte da palavra por esses leitores autorizados, vale por seu poder de expressão, como afirma Candido, na introdução de sua Formação da Literatura Brasileira:

Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua importância quase nunca é devida à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, ‘mas à maneira por que o faz’ (Candido, 1975-1981, p. 34).

É que sendo obras literárias, não documentos biográficos, a emoção neles é elemento essencial apenas como ponto de partida, o ponto de chegada é a reação do leitor, e esta, tratando-se de ‘leitor culto’, só é movida pela ‘eficácia da expressão’ (Candido, 1975-1981, p. 35).

Em ambas as citações, o crítico reforça o aspecto artístico como elemento principal a ser observado pelo ‘leitor culto’ que, diferentemente de leitores outros - que podem se interessar mais pelas emoções ou pelos acontecimentos representados no texto -, deve atentar-se aos artifícios de construção literária. Entretanto, a compreensão de tais elementos não se configura como o objetivo final da leitura, já que são apenas aspectos auxiliares no objetivo maior do leitor culto, que tem como meta compreender a visão geral que a obra apresenta sobre o mundo:

Entende-se agora porque, embora concentrando o trabalho na leitura do texto, e utilizando tudo mais como auxílio de interpretação, não penso que esta se limite a indicar a ordenação das partes, o ritmo da composição, as constantes do estilo, a imagens, fontes, influências. Consiste nisso e mais em analisar a visão que obra exprime do homem, a posição em face dos temas, através dos quais se manifestam o espírito ou a sociedade (Candido, 1975-1981, p. 35).

Evidentemente, a leitura dos leitores cultos (críticos literários, professores universitários e outros) é aqui apresentada como uma leitura que se coloca, ou tem se colocado, na escola, como uma leitura modelar. Uma vez que textos literários se constituem em objetos de estudo na escola, as leituras mais autorizadas dos mesmos acabam por se constituir em modelos de leitura, ou seja, a escola procura desenvolver práticas de leitura que se alinhem às práticas já constituídas em torno da crítica literária. Isso não significa que a escola efetive uma leitura tal qual a dos críticos, mas que tem em seu horizonte que seus estudantes possam, minimamente, ler os textos literários considerando seus artifícios estéticos e observando neles a visão de mundo e a interpretação da vida social que eles propõem.

Nesse sentido, para alcançar o objetivo do ensino de literatura em seu sentido formador dos sujeitos, ou seja, como forma de “[...] aprimoramento da sensibilidade, formação moral do caráter, conscientização de problemas sociais, reflexão, resistência, desautomatização do hábito, crítica da sociedade administrada, politização [...]” como bem apontou Hansen (2005, p. 41, é preciso ofertar aos estudantes os conhecimentos mínimos relativos às formas literárias e aos estilos artísticos. Enfim, é preciso que eles conheçam o decoro particular dos textos literários e saibam, ainda, como explorar essas formas de expressão de modo a compreender a interpretação do mundo e da vida que elas expressam.

O ensino de literatura na BNCC: um estudo das habilidades

O texto da BNCC é construído a partir dos conceitos de competências e habilidades, sendo essas as bases para a construção das proposições para o ensino de todos os componentes curriculares. No documento, “[...] competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BNCC, 2018, p. 8). A BNCC apresenta 10 competências gerais cujo desenvolvimento é objetivo de todos os componentes curriculares. A fim de desenvolver tais competências, o documento apresenta, para cada disciplina, um conjunto de habilidades específicas, sendo essas compreendidas no documento como “[...] aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares” (BNCC, 2018, p. 29) e que estão relacionadas “[...] a conteúdos, conceitos e processos” (BNCC, 2018, p. 28). O componente Língua Portuguesa apresenta, para as cinco séries do Ensino Fundamental – anos iniciais, um total de 206 habilidades.

Em relação à primeira proposição deste artigo, ou seja, verificar como os conteúdos de literatura são propostos na BNCC, observa-se que, dentre essas 206 habilidades, apenas 30 se referem a conteúdos de literatura, o que parece, em uma visada preliminar, um número reduzido (14,5%). No entanto, grande parte dessas habilidades são previstas para mais de uma série, de modo que 13 delas são indicadas para a 3ª, 4ª e 5ª séries e 5 delas para as cinco séries, de modo que, embora em termos quantitativos seja um percentual pequeno de habilidades, ao se somar a quantidade de vezes que elas devem ser trabalhadas, o quantitativo de habilidades sobre para 84, de modo a representar 40% da frequência de habilidades. Esse fato permite matizar uma análise meramente quantitativa das habilidades relacionadas ao ensino de literatura em relação a outros conteúdos e evidencia a relevância dos conteúdos de literatura dentro do componente Língua Portuguesa.

Conforme explicitação do próprio texto da BNCC, as habilidades são apresentadas em forma de código alfanumérico nos quais constam as iniciais do nível de escolaridade (EF) seguidos da(s) série(s) para a(s) qual(is) a habilidade é indicada (13, logo, para a 1ª, 2ª e 3ª séries); as iniciais do componente curricular (LP- Língua Portuguesa) e o número da habilidade (04), dados esses que caracterizariam a habilidade (EF13LP04), como exemplo. Em relação ao texto das habilidades, cada uma delas inicia-se por um verbo no infinitivo que indica o processo cognitivo a ser desenvolvido, seguido de um complemento que indica o(s) objeto(s) de conhecimento a serem mobilizados na habilidade e, finalmente, modificadores do(s) verbo(s) ou dos complemento(s) que apontam o contexto ou especificações sobre a aprendizagem esperada, como se nota no exemplo da habilidade EF04LP17 – Identificar [processo cognitivo], em textos dramáticos [objeto de conhecimento], marcadores das falas das personagens e de cena [especificação]. Em relação aos processos cognitivos esperados, dentre as 30 habilidades relativas ao ensino de literatura, esta análise pode inferir um conjunto de 4 grupos de processos cognitivos que passam a ser descritos e apresentados por meio de Quadros sinóticos (Figura 1).

O menor conjunto de habilidades é formado pela presença do verbo ‘apreciar’, que aparece 3 vezes, e se relaciona diretamente com o campo artístico literário. Pressupõe o desenvolvimento de processos cognitivos relacionados ao desenvolvimento do gosto e da apreciação. A prática de linguagem pressuposta nessas habilidades é a apreciação estética, ou seja, espera-se que os alunos possam observar a dimensão lúdica e estética dos textos literários. Notadamente, as três habilidades que propõem esse processo cognitivo do apreciar possuem como objetos de conhecimento apenas os textos versificados, evidenciando que no nível fundamental - anos iniciais - os alunos podem mais facilmente interagir com formas métricas, cujo aspecto sonoro as associa ao estético e ao lúdico.

Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – as habilidades do ‘apreciar’.
Figura 1.
Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – as habilidades do ‘apreciar’.
Elaborado pelas autoras.

O segundo conjunto de processos cognitivos, apresentados na Figura 2, relaciona-se à produção oral ou escrita de textos literários e à reprodução de suas estruturas, e pode ser observado a partir dos verbos ‘declamar’, ‘recontar’, ‘reescrever’, ‘criar’, ‘produzir’, totalizando 6 habilidades, e que contribuem de modo indireto para o conhecimento da literatura, uma vez que para realizar tais processos, o aluno precisa ter alcançado uma compreensão global dos textos lidos ou ouvidos, de modo a relacionar adequadamente aspectos como a ordenação sequencial das ações vividas pelas personagens, o espaço da ação, no caso de textos narrativos; ou ainda, quem fala num poema, do que fala, a quem fala, no caso de poemas. Nota-se, no entanto, que o foco desses processos cognitivos está nas atividades de produção (recontar, reescrever), tanto que seus objetos de conhecimento são contação de história (oralidade) ou escrita individual ou coletiva (produção escrita), ainda que tenham como base e objeto textos literários.

Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – as habilidades de ‘reprodução’.
Figura 2.
Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – as habilidades de ‘reprodução’.
Elaborado pelas autoras.

Como se nota na Figura 3, os verbos ‘ler’ e ‘compreender’ indicam os processos cognitivos presentes no terceiro grupo de habilidades. Considerando-se que os anos iniciais têm como um de seus objetivos alfabetizar o aluno, em muitas das habilidades desse grupo, o sentido do verbo ‘ler’ refere-se à atividade de decodificação propriamente dita, uma vez que nas 1ª e 2ª séries trabalha-se a aquisição do sistema alfabético tanto em relação à pratica da escrita quanto da leitura. Tal aspecto pode ser observado em habilidades nas quais se faz referência à leitura silenciosa e à leitura em voz alta (EF35LP21), bem como na presença, em todas as habilidades do grupo, da ênfase à questão da autonomia da leitura, observada em expressões como ‘com certa autonomia’, ‘de maneira autônoma’, ‘com autonomia e fluência’, evidenciando que os processos cognitivos requeridos são a leitura (decodificação) de textos literários associada à compreensão de algumas de suas particularidades: para os textos narrativos, aspectos como enredo, tempo, espaço, personagens, narrador e a construção do discurso indireto e discurso direto; para textos versificados, compreensão de rimas, sons e jogos de palavras, imagens poéticas (sentidos figurados) e recursos visuais e sonoros. Nota-se, ainda, que, em algumas habilidades, os objetos de conhecimento são apresentados de forma genérica por meio da expressão ‘textos literários’, de modo a não se especificar gêneros, o que permite a exploração, por parte de professores, de livros didáticos de gêneros diversos, mesmo que não tenham sido elencados na BNCC.

 Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – as habilidades de ‘ler e compreender’.
Figura 3.
Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – as habilidades de ‘ler e compreender’.
Elaborado pelas autoras.

O quarto grupo de processos cognitivos refere-se aos verbos ‘observar’, ‘perceber’, ‘identificar’, ‘reconhecer’, ‘relacionar e diferenciar’ (apresentados na Figura 4 em ordem de menor para maior intensidade/especificidade), e diz respeito a atividades mentais que implicam a realização de reconhecimento, de distinção entre modos de composição e/ou de aspectos específicos dos gêneros literários, de localização de determinado elemento/aspecto/característica. Esse conjunto de habilidades é mais numeroso e abarca processos cognitivos que implicam uma especialização maior do conhecimento relativo à literatura, pois por meio do desenvolvimento desses processos cognitivos, espera-se oferecer aos alunos a capacidade de compreender o funcionamento dos elementos que constroem o processo de ficção dos textos literários, como se nota na habilidade (EF35LP24) - Identificar funções do texto dramático (escrito para ser encenado) e sua organização por meio de diálogos entre personagens e marcadores das falas das personagens e de cena – de modo que o aluno pode associar o modo dramático ao seu modo composicional caracterizado pela presença de diálogos, ausência de narrador, presença de rubricas. Ou ainda, em relação a textos narrativos, o aluno desenvolverá um conhecimento sobre o modo de construção da forma narrativa, que se estabelece a partir da presença de um enredo, de personagens situadas temporalmente, de ações, de desfecho que são organizados pela voz de um narrador. Por ser um conjunto de habilidades de maior especialização em relação ao conhecimento da literatura, há pertinência em que esse conjunto de processos seja o mais numeroso entre as habilidades. Os objetos de conhecimento trabalhados nessas habilidades são os textos literários em geral, sendo que, em várias habilidades, há indicação específica para textos narrativos, textos dramáticos e textos versificados. Notadamente, em relação a poemas visuais, poemas concretos, minicontos e ciberpoemas, o verbo utilizado para caracterização do processo cognitivo pressuposto na habilidade é ‘observar’, evidenciando um grau menos especializado que envolve apenas a atenção minuciosa ao objeto, ou seja, não se espera que, com relação a esses gêneros, o estudante tenha um grau mais aprofundado como se espera para os demais gêneros.

Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – habilidades de ‘identificação’.
Figura 4.
Habilidades do componente Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos Iniciais – BNCC – relacionadas ao ensino de literatura e agrupadas segundo critério dos processos cognitivos – habilidades de ‘identificação’.
Elaborado pelas autoras

Como se trata do conjunto de habilidades mais especializado, nas habilidades desse grupo, todos os objetos de conhecimento estão definidos (textos dramáticos, textos versificados, textos narrativos), inclusive com referência a modificadores que especializam ainda mais o conhecimento no que tange a seus aspectos mais significativos, tal como se nota na habilidade (EF35LP29), que tem como objeto de conhecimento textos narrativos e dos quais devem ser estudados “cenário, personagem central, conflito gerador, resolução e o ponto de vista com base no qual histórias são narradas, diferenciando narrativas em primeira e terceira pessoas”, ou ainda, os textos versificados, sobre os quais é preciso conhecer efeitos de sentido decorrentes do uso de recursos rítmicos e sonoros e de metáforas (EF35LP31).

Por fim, restam dois últimos processos cognitivos que se mostram gerais e dizem respeito a todos os gêneros e estilos literários: i) relacionar textos com ilustrações (EF15LP18), habilidade proposta para as cinco séries e que pressupõe que o estudante possa, ao longo dessa etapa de escolaridade, efetuar relações entre elementos verbais e imagens porventura presentes nos textos literários, aspecto bastante importante considerando o imbricamento entre os diversos elementos multissemióticos presentes na produção literária infantil e juvenil; ii) selecionar livros para a leitura nos espaços variados onde textos literários podem ser encontrados, tais como meios digitais, biblioteca, cantinho de leitura, sala de aula (EF35LP02), habilidade que pressupõe a conjugação de todas as demais habilidades, uma vez que o aluno, ao ser paulatinamente formado para a leitura de textos ficcionais e seus diferentes gêneros e modos composicionais, poderá desenvolver a capacidade de selecionar os textos e autores de sua preferência a partir de leituras anteriores e formar seu repertório de leituras.

Em relação aos objetos de conhecimento privilegiados nas habilidades relativas ao ensino de literatura, o que se pode observar é que se trata dos gêneros literários em verso e prosa, com predomínio dos textos narrativos, textos poéticos e textos dramáticos, esses últimos positivamente resgatados, uma vez que não eram gêneros privilegiados em momentos anteriores. A título de exemplificação, a BNCC sugere alguns subgêneros tais como: repentes, emboladas, cordel, contos de assombração, de fada, contos acumulativos, contos populares, minicontos infantis, ciberpoemas, poemas visuais, poemas concretos e outros, evidenciando um repertório amplo que abarca desde o popular até os textos ficcionais multissemióticos.

Considerações finais

A análise das habilidades de Língua Portuguesa presentes na BNCC, que dizem respeito ao ensino da literatura, demonstra uma preocupação bastante evidente em formar um leitor capaz de conhecer as diversas formas composicionais do texto literário. Nesse momento de escolarização (anos iniciais), a preocupação reside na aquisição do sistema alfabético e no desenvolvimento de habilidades que possam iniciar o leitor na leitura de textos literários, atendendo à premissa de que o texto literário possui particularidades em relação a texto pragmáticos. Nesse sentido, a proposta da BNCC é produtiva e coerente com os propósitos do ensino de literatura nesse espaço muito particular que é a escola, uma vez que, como se procurou demonstrar, a leitura de literatura no espaço escolar se alinha aos preceitos da crítica literária que pressupõe o conhecimento dos artifícios de criação ficcional, o que demanda conhecimentos sobre as formas de construção literária (os diversos gêneros e suas especificidades). Ou seja, na proposição de leitura do texto literário implícita nas habilidades da BNCC, observa-se a tentativa de construção de habilidades que possam levar o leitor escolar a se apropriar/reconhecer/identificar os traços composicionais dos diversos gêneros literários de forma a “[...] valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural [...]”, conforme prevê a competência geral 3 da BNCC (BNCC, 2018, p. 9). Entretanto, como se afirmou anteriormente, tal leitura não pode e nem deve se configurar como mera catalogação ou classificação dos textos, ressaltando as proposições de Candido (1975-1981) já apresentadas, que enfatizam que a análise das formas de expressão são apenas um momento dessa leitura que, para se tornar completa, deve ser capaz de compreender a visão de mundo, a posição do texto em relação à sociedade, ao homem, à própria vida. Muito embora, para essa faixa de escolaridade, não haja habilidades que ressaltem esse aspecto da leitura de textos literários, podemos exemplificar sua presença no documento a partir da habilidade EF69LP44, relativa aos anos finais do Ensino Fundamental, que propõe o desenvolvimento da capacidade de:

Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentes visões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas e considerando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção (BNCC, 2018, p. 159).

Desse modo, acena-se na BNCC um modo de leitura de textos literários que se mostra pertinente aos objetivos do ensino de literatura no contexto escolar, que intenta formar leitores cuja experiência estética possa conduzir à formação humana dos estudantes, no sentido mencionado a partir das ideias de Hansen (2005).

Quanto ao repertório de leitura, nota-se uma ampliação do corpus de textos literário. Se olhamos para a história sumária do ensino de literatura apresentada neste artigo, observa-se, na BNCC, avanço em relação a momentos anteriores. Isso se deve ao fato de que os textos canônicos não figuram com exclusividade, uma vez que há indicação recorrente de textos multissemióticos (ciberpoemas, poemas visuais, minicontos infantis), de texto de tradição popular (cordel, emboladas, repentes, contos de assombração), fazendo crer que na escola podem conviver tanto o tradicional com o popular e o digital, numa clara incorporação da diversidade cultural e multimodal característica do mundo contemporâneo, o que representa uma assimilação da multiculturalidade presente em nosso cotidiano e na qual os textos literários deixam de se configurar como as únicas produções culturais de valor, o que não significa sua desvalorização, mas a incorporação de outras produções culturais ficcionais também. Muito embora a BNCC tenha sido alvo de críticas pertinentes em relação a suas bases epistemológicas, alinhadas a uma visão produtivista da educação como meio para formação de indivíduos para o mundo do trabalho e também por seu alinhamento às políticas internacionais de avaliação escolar (PISA, OCDE), um olhar mais atento às habilidades propostas para os componentes curriculares, no caso específico, as habilidades de Língua Portuguesa relacionadas ao ensino de literatura nos anos iniciais, revela que o documento pode induzir práticas de leitura frutíferas. Nessas, além da formação cultural e estética do estudante, pode-se vislumbrar, também, sua formação humana, de modo a promover uma visão crítica de si e do mundo que o cerca.

Sendo apenas prospectivas, vale lembrar que as orientações da BNCC precisam ser efetivadas no âmbito da escola; capítulo à parte, já que, no contexto de barbárie neoliberal, caracterizada por uma escola pública sucateada, com professores fragilizados e sem um direcionamento político efetivamente voltado para a educação criticada, o que se pode ter, por ora, são apenas esperanças de que as letras da BNCC se tornem conhecidas e compreendidas pela comunidade educacional, a fim de se tornarem práticas reais na escola brasileira.

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Notas

[1] Importante material didático desse período é a Antologia Nacional (1895), de Carlos de Laet e Fausto Barreto. Enfatizando a autonomia da literatura brasileira por meio da separação de autores portugueses e brasileiros, este livro apresentava uma organização cronológica de autores, em ordem inversa, portanto, um recorte historiográfico no qual se fazia o reconhecimento da literatura brasileira que acabou por estabelecer um modelo de ensino de literatura, além de permanecer na escola brasileira por mais de setenta anos.

Notas de autor

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