Linguística
Análise do argumento por definição em redações do Enem
An analysis of the definition argument in Enem essays
Análise do argumento por definição em redações do Enem
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 43, núm. 1, e54423, 2021
Universidade Estadual de Maringá

Recepción: 23 Junio 2020
Aprobación: 16 Septiembre 2020
Resumo: ste trabalho tem pretende descrever como o argumento por definição ocorre em redações do Enem. Partimos do princípio de que a argumentação é intrínseca às línguas naturais (Koch, 2011; Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2014;Fiorin, 2017) e tomamos como base teórica a proposta de discussão de tipos de argumentos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014). Nesse contexto, consideramos que o orador (candidato do Enem) usa um discurso (redação) com vistas a persuadir o auditório (banca) sobre uma tese e deve usar argumentos específicos para isso. Nossa hipótese é de que o argumento por definição pode ser um dos elementos mais recorrentes na estrutura desse texto, já que o entendimento da estrutura dessa redação leva em conta a necessidade de o candidato dissertar sobre o tema. Nesse caso, ele poderá usar a definição e a redefinição como recursos para aprofundar o tema e indicar a direção argumentativa. Ao analisarmos 31 redações do Enem de 2018, com auxílio do programa Tropes, encontramos 11 verbos distintos relacionados ao argumento por definição. O caso mais recorrente foi do verbo ser, que aparece em 167 contextos dos 1.679 encontrados com verbos, sendo bastante frequente a estrutura em períodos compostos com orações subjetivas. Com isso, concluímos que o estudo da Nova Retórica pode contribuir para a caracterização do gênero redação do Enem, bem como para superar dificuldades encontradas no ensino de língua, em especial de textos argumentativos.
Palavras-chave: Nova retórica, argumento de identidade, argumentação, produção de texto.
Abstract: This work aims to describe the way in which the argument of identity appears in Enem essays. We assume that argumentation is inner in natural languages (Koch, 2011; Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2014;Fiorin, 2017) and we take the proposal of kinds of arguments shown in Perelman and Olbrechts-Tyteca (2014). Then, we consider that the speaker (Enem candidate) delivers a speech (essay) in order to persuade the audience (The Evaluation Commission) with respect to a thesis, by employing rhetorical elements for that. Our hypothesis is that the definition argument may be one of the most frequent resources in the structure of this text, since the comprehension of the essay structure considers the fact that the candidate must deeply discuss the problem. In this case, the candidate can use definitions (or redefinitions) as resources to deepen and to indicate his argumentative direction. After analyzing 31 essays from Enem (2018 edition), supported by Tropes software, we found 11 different verbs related to the argument by definition – even some of them cannot be analyzed in this way. The most frequent case was the ser (to be) verb, that appears in 167 contexts of 1.679 verbs found in the research, especially in compound periods in predicative contexts. Then, we conclude that the New Rhetoric studies can contribute to characterize the genre Enem essay as well as to solve some difficulties found in the teaching of writing, especially for argumentative texts.
Keywords: New rethoric, argument of identity, argumentation, writing.
Introdução
No prefácio da edição brasileira do Tratado da argumentação: a nova retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca (doravante P&O-T), Coelho (2014) recupera o percurso de origem, descrédito e posterior resgate da proposta de argumentação de Aristóteles, indicando que a ânsia por um caráter ‘científico’ em busca de uma ‘verdade’ em método cartesiano levou a Retórica a desaparecer da história das ciências. Em 1958[1], Perelman e Olbrechts-Tyteca resgatam, refletem e ampliam a proposta retórica[2] do antigo pensador grego e dão-lhe um caráter novo, denominando-a de ‘Nova Retórica’, exatamente com o intuito de romper “[...] com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes” (P&O-T, 2014, p. 1). No ambiente de contestação de uma linguagem e verdade únicas, Meyer (2014, p. XX) entende que “[...] a Nova Retórica é, então, o ‘discurso do método’ de uma racionalidade que já não pode evitar os debates e deve, portanto, tratá-los e analisar os argumentos que governam as decisões”. Para Meyer, essa abordagem oferece um modo de abertura ao pluralismo e à diversidade, algo que ainda hoje se faz necessário.
Sem dúvida, a argumentação é um campo plural e múltiplo, oferecendo diversas abordagens em diversas áreas. Como afirma Paulinelli (2014, p. 391),
[...] Os estudos sobre argumentação compõem um campo vasto, complexo e multidisciplinar, já que o próprio ato de argumentar encontra espaço em todos os lugares onde exista a abertura para a dúvida e para o conflito, em que não se disponha de uma verdade definitiva a respeito de um dado. Tal abertura faz com que a matéria seja do interesse de diversas áreas do conhecimento humano [...].
Para Fiorin (2015), Retórica e Linguística compartilham do caráter argumentativo dos atos linguísticos; por isso, a Retórica tem influenciado as análises linguísticas sobre textos argumentativos, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, em especial com a Nova Retórica, quando a aproximação entre elas se intensificou. Na Seção 3, exemplificamos essa influência na análise de redações do Enem.
Nesse contexto, podemos dizer que, ao tomar a linguagem como instrumento essencial para suas abstrações, o homem é capaz de agir por meio dela. Logo, assumimos a linguagem como um instrumento humano de ação sobre o mundo e as pessoas. E, ao tomarmos a argumentatividade como uma característica intrínseca às línguas naturais e que, por isso, perpassa todos os discursos (Koch, 2011;P&O-T, 2014; Fiorin, 2017), consideraremos que a ação linguística do homem se dá primordialmente pela argumentação.
Na perspectiva da Nova Retórica, essa ‘ação’ linguística pode ser entendida primordialmente como a persuasão, ou seja, a capacidade de um discurso de conquistar a adesão do auditório àquilo que se pretende defender; logo, os argumentos (ou as estratégias argumentativas) materializam essa ação. Nesse ponto, sem tomar a argumentação como objeto em si, diferentes vertentes na Linguística procuram entender como aspectos da linguagem estão relacionados na estrutura persuasiva de um texto, o que se pode observar em diferentes fontes na literatura (Paulinelli, 2014; Fiorin, 2015;Magalhães, 2013;Oliveira, 2016;Antonio & Nuss, 2018, para citar alguns exemplos). De forma similar, diferentes trabalhos analisam especificamente a contribuição da Nova Retórica para o ensino, do Ensino Fundamental à graduação (Teixeira, 2019; Santos, 2019, entre outros).
No campo da argumentação, Fiorin (2015) defende que a tradição retórica tem muito a ensinar, porque valoriza o caráter verossímil do que se diz e trabalha com produção de textos persuasivos. Na mesma seara, Paulinelli (2014) acredita que o olhar para os tipos de argumentos contribui para se entender o processo de constituição de um gênero; no caso do texto do Enem, isso pode ser um passo importante para se garantir uma boa avaliação no Exame: é um exercício de cidadania a partir de uma política educacional nacional (Oliveira & Cabral, 2017).
Nesse contexto, Garcez e Corrêa (2017) apresentam indicações de como a Retórica e a Nova Retórica contribuem para a análise do gênero redação do Enem. Diversos outros trabalhos têm relacionado a proposta da Nova Retórica com redações do Enem, tal como se observa em Magalhães (2013), Barros e Albuquerque (2014), Azevedo (2015), Oliveira (2016), Lima e Piris (2017), Oliveira e Cabral (2017), Pinheiro e Cortez (2017), entre outros. Essas pesquisas apresentam várias divergências e contestações. Alguns acreditam que a redação do Enem necessitaria de uma divisão melhor de competências e uma explicitação melhor da perspectiva teórica que a sustenta, já que não há uma linha balizadora (Pinheiro & Cortez, 2017). Outros vão na direção oposta: criticam a excessiva formatação do texto e seu modelo de ensino, o que parece indicar um modo único de composição textual (Azevedo, 2015). Outros ainda criticam a matriz de avaliação, a qual acreditam promover um ensino equivocado de argumentação, principalmente pelo foco em questões estruturais e linguísticas, quando deveria ser na argumentação como ferramenta para o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo (Lima & Piris, 2017).
No entanto, nenhum deles faz um trabalho amplo com o tipo de argumento que aqui se propõe: o argumento de identidade por definição – daqui em diante simplificado como argumento por definição, já que a noção de identidade está implícita nas definições, como se verá adiante. Partimos dos pressupostos da Nova Retórica de que a argumentação consiste no reforço ou refutação de uma tese/opinião, por meio de um discurso, o qual é direcionado pelo orador a um auditório. Com Lopes (1997, p. 164), entendemos as técnicas argumentativas como aquelas que “[...] permitem suscitar ou aumentar a adesão [do auditório] às teses apresentadas”. Assim, este trabalho centra-se num único subtipo, a partir das seguintes questões: é possível identificar a presença de argumentos por definição em redações do Enem? Se sim, como contribuem para a argumentação? Para isso, tomamos como base 31 redações disponibilizadas em uma Cartilha de Redações Nota 1000 (Felpi, 2018), referente ao Enem de 2018, com o objetivo de descrever de que forma as definições aparecem nesses textos e a contribuição que oferecem para a argumentação ali presente.
P&O-T (2014) reconhecem que tentar esquematizar os argumentos não é tarefa fácil, nem definitiva, de modo que um mesmo discurso pode ser analisado por diferentes perspectivas, estruturas e teorias. Assim, o que se pretende neste artigo é oferecer uma hipótese do modo como se estruturam e os efeitos que causam no auditório. Esse elo, dizem eles, é feito por quem interpreta o discurso de um orador dirigido a um auditório. É na posição de interpretantes do discurso das redações do Enem que nos colocamos neste trabalho.
Nova Retórica
As bases da Nova Retórica
O rompimento da tradição cartesiana como única via para expressão da racionalidade encontra no Tratado da argumentação o seu alicerce. Na proposta, reverencia-se a Retórica, aquela que, sem renunciar à racionalidade das demonstrações, recupera a herança aristotélica do trabalho com a racionalidade por ambas as vias – analítica e retórica. Nesse sentido, P&O-T (2014, p. 4) criticam “[...] a ‘ideia de evidência’, como característica da razão”, o que desprezaria os raciocínios a partir de opiniões, tão caros na filosofia de Aristóteles. Para eles, enquanto a demonstração é baseada em raciocínio lógico, “[...] a argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual” (P&O-T, 2014, p. 16). Assim, quem defende uma tese por meio dos argumentos escolhidos o faz sempre considerando outras possibilidades, ao contrário de quem demonstra. Para tanto, deve refletir se tais argumentos atingirão seu interlocutor.
Interpretando o Tratado a partir dos conceitos de Aristóteles, Fiorin (2017, p. 18) explica que, enquanto os raciocínios lógicos, típicos da demonstração, levam a uma conclusão necessária a partir de suas premissas, os raciocínios preferíveis (da argumentação) deixam abertas outras possibilidades, concordando com o que se disse acima. O autor exemplifica com o caso da dedicação de uma pessoa a uma profissão, como se vê a seguir. Para Fiorin, então, os raciocínios preferíveis levam a uma
[...] Conclusão possível, provável, plausível, mas não necessariamente verdadeira, porque as premissas sobre as quais ela se assenta não são logicamente verdadeiras. O silogismo dialético ou retórico é um exemplo desse tipo de raciocínio.Todo professor é dedicado.
Ora, André é professor.
Logo, André é dedicado (Fiorin, 2017, p18).
Para o autor, apesar da possibilidade, probabilidade e plausibilidade de que a conclusão seja verdadeira (Logo, André é dedicado.), isso depende mesmo das crenças e valores que envolvem o orador e o auditório. Aliás, P&O-T (2014) defendem que os melhores argumentos podem ser vãos, se não houver quem os ouça. Por isso, deve-se desejar a atenção e a adesão do interlocutor. Nesse sentido, para que uma argumentação desenvolva adequadamente seu papel persuasivo a respeito de uma determinada tese, deve-se partir da premissa retórica de que “[...] é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve” (P&O-T, 2014, p. 6). Assim, os autores consideram que todo discurso (falado ou escrito) se dirige a um auditório (interlocutor), sustentando que, “[...] quando utilizamos os termos ‘discurso’, ‘orador’ e ‘auditório’, entenderemos com isso [respectivamente] a argumentação, aquele que a apresenta e aqueles a quem ela se dirige” (P&O-T, 2014, p. 7).
Nesse sentido, pode-se considerar que todo orador, ao defender uma tese, constrói uma imagem de si mesmo, a qual contribui decisivamente para a persuasão, em especial pela confiança e credibilidade que passa. Para Fiorin (2017), essa construção se dá globalmente, de modo que não é dizendo Sou competente! que um professor passará a imagem de competente, mas à medida que mostra domínio do conteúdo ministrado em sala, manejo com a turma, entre outras questões compatíveis com o bom exercício docente. Por isso, o autor afirma que essa imagem se explicita nas marcas que são deixadas no texto. Ao mesmo tempo, esse orador cria uma imagem de seu auditório, levantando considerações a respeito de suas crenças e conhecimentos, o que é decisivo para a escolha de como deve construir seu discurso. Como sustentam P&O-T (2014, p. 23), “[...] o conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz”. Finalmente, ao discurso cabe o papel decisivo para que a argumentação se materialize. É ele que deverá elencar as premissas plausíveis, prováveis e possíveis, as quais poderão levar o auditório a aderir à tese proposta. Nesse sentido, Fiorin (2017) sugere que o discurso se situe no campo da verossimilhança, daquilo que não se submete à verdade, mas se parece com o verdadeiro.
Dadas essas condições, a linguagem tem um papel decisivo na estrutura da argumentação. P&O-T (2014) rejeitam uma relação unívoca entre uma palavra e uma ideia, mas destacam o valor que as noções adquirem numa argumentação. Por isso, consideram que elaborar e utilizar conceitos é uma forma de construir teorias capazes de compreender a realidade. A linguagem, portanto, torna-se essencial por ser instrumento eficaz de persuasão, mais que de (simples) comunicação. É esse o motivo para postularem tipos de argumentos distintos, os quais representam esquemas argumentativos com classificação específica sob o rótulo de ‘técnicas argumentativas’. Por razões de espaço e foco, neste trabalho passaremos, diretamente, às discussões sobre o argumento por definição.
Os quase-lógicos e o argumento por definição
Os argumentos quase-lógicos
O grupo com maior subdivisões no Tratado é assim chamado por se assemelhar aos raciocínios lógicos. Wachowicz (2010) compara a estrutura de alguns desses elementos com a das relações entre conjuntos, da matemática. Nesse sentido, a força persuasiva desses argumentos está exatamente no fato de serem próximos às incontestáveis demonstrações formais. P&O-T (2014) argumentam que é só uma semelhança, já que a argumentação traz consigo a possibilidade do contraditório. Os autores afirmam: “O que caracteriza a argumentação quase-lógica é, portanto, seu caráter não-formal e o esforço mental de que necessita sua redução ao formal. É sobre esse último aspecto que versará eventualmente a controvérsia” (P&O-T, 2014, p. 220). Para os autores, esses argumentos são tão importantes que, por vezes, a crítica a um posicionamento qualquer é feita levando em conta justamente o quanto de lógica (ou falta dela) reside na argumentação. Assim, quem contra-argumenta pode dizer que há uma contradição ou mesmo que é passional (e não lógico, portanto). Tais fatos apontam para o prestígio que esse tipo de argumento recebe nos trabalhos sobre argumentação. Entre as subclasses que compõem os argumentos quase-lógicos estão: o argumento por contradição e incompatibilidade; o argumento por comparação; o argumento por transitividade; o argumento por inclusão (ou divisão); o argumento de probabilidade; e o argumento por definição. Este, como é o foco de nosso trabalho, será discutido na subseção a seguir.
O argumento de identidade por definição
P&O-T defendem que esse tipo de argumento visa a uma identificação de elementos que fazem parte do evento discursivo. Dizem eles que “[...] todo uso de conceitos, toda aplicação de uma classificação, todo recurso à indução implica uma redução de certos elementos ao que neles há de idêntico ou de intercambiável” (P&O-T, 2014, p. 238). Mas, só será entendido como argumento, se usado com essa finalidade, não sendo nem evidente, nem totalmente arbitrário. Então, assumem as definições como o meio mais claro de criação de identidades: há uma relação lógica estabelecida por elas, igualando A e B (A=B), onde A é o definido e B o definidor.
Contrários à noção de que a significação das palavras seria totalmente arbitrária, os autores contra-argumentam, afirmando que as definições não só são mutáveis, motivadas e repensadas por uma série de fatores, como há uma série de raciocínios que visam a justificar, a refletir, a argumentar a favor de um ou outro tipo de definição. Nesse sentido, fica clara a preocupação de P&O-T de relacionar a definição com um caráter de escolha intencional por parte do orador, o que confere a essa estratégia o caráter persuasivo. Para eles, isso é importante porque há várias razões pelas quais se pode argumentar a favor ou contra um determinado significado ou conceito. Para eles é essencial que se entenda que:
[...] o caráter argumentativo das definições se apresenta sempre sob dois aspectos intimamente ligados, mas que, não obstante, é preciso distinguir, porque concernem a duas fases do raciocínio: as definições podem ser justificadas, valorizadas, com a ajuda de argumentos; elas próprias são argumentos. Sua justificação poderá fazer-se pelos mais diversos meios: um recorrerá à etimologia, o outro proporá substituir uma definição pelas consequências por uma definição pelas condições ou vice-versa. Mas todos aqueles que argumentam a favor de uma definição quererão que esta influa, de um modo ou de outro, sobre o uso da noção que, sem a intervenção deles, estaríamos inclinados a adotar [...] (P&O-T, 2014, p. 241-242).
Com isso, P&O-T (2014) reconhecem que as definições são uma estratégia importante na constituição do percurso argumentativo do ouvinte, porque, ou valoram uma noção em detrimento de outra(s), ou são elas mesmas argumentos para algo que se queira defender. Mostram também sua compreensão de que a definição de algo nunca é única ou totalmente arbitrária, mas atende a uma necessidade argumentativa. Sem a construção do orador, no entanto, o ouvinte poderia não ser levado a esse discernimento. Por isso, a opção apresentada pelo orador pressupõe outras, deixadas de lado, as quais também contribuem para o teor argumentativo da definição em jogo. Nesse sentido, a identidade criada faz avançar a argumentação; logo, afirmam que o uso da definição “[...] parece-nos o próprio padrão da argumentação quase-lógica” (P&O-T, 2014, p. 243).
Entendemos que esse ‘padrão’, referidos por eles ocorre porque, neste subtipo de argumento, há um vínculo de identidade entre duas partes, reduzida com força argumentativa ao encadeamento lógico de igualdade (=). Fiorin (2017, p. 118) entende que “[...] a definição é uma resposta à indagação Que é uma coisa? Portanto, definir é estabelecer uma relação de equivalência que visa dar sentido a um dado termo”. Para o autor, as definições podem relacionar-se a propriedades caracterizadoras de algo (intensionais) ou explicitar elementos que compõem algo (extensionais). Também podem aparecer traços de qualidade ou funcionalidade. Para Wachowicz (2010, p. 105), linguisticamente, os argumentos de identidade são, em geral, introduzidos por “[...] verbos indicadores de significado, como ser, significar, designar etc., no formato da sentença de definição do tipo X é Y”.
Nesse ponto, é importante indicarmos alguns aspectos discutidos na Seção 1, essenciais para a análise a que este trabalho se propõe. Primeiro, o auditório é essencial na consideração da argumentação e na linguagem: a interlocução linguística pressupõe sempre o outro a quem se dirige. Com isso, espera-se que o orador convença seu auditório sobre a tese com estratégias e recursos adequados. P&O-T (2014) indicam que o objeto do Tratado é o papel dos ‘recursos discursivos’ que contribuem para isso, ou seja, interessa-lhes como a estrutura do texto é mobilizada em prol da adesão a determinada tese. Depois, neste trabalho, o recurso ou estratégia em foco é o argumento por definição. Assim, assumimos com P&O-T que é necessário, sobretudo, que a definição apresentada seja utilizada em prol da persuasão. Depois, considerando que análises anteriores já apontam para um uso muito comum de verbos estativos como ser no Enem (Pereira, 2018; Silva, 2018; Bertucci, 2021), pretendemos descrever se essas ocorrências estão vinculadas à estrutura do argumento por definição. Assim, uma primeira hipótese é que o argumento de definição aparece nesse tipo de texto, em especial com o uso de ser. Para além disso, pelo tipo de texto sob análise, esperamos que outros verbos de identidade (significar, designar etc.) possam caracterizar esse argumento nos textos.
Nesse ponto, o Tratado se mostra como uma ferramenta importante para a análise linguística, já que, no ensino, uma dificuldade grande é chamar a atenção dos estudantes para o papel dos aspectos linguísticos na construção de sentidos. Consequentemente, trabalhar com o papel dos recursos linguísticos para a construção da argumentação pode ser importante.
A argumentação na redação do Enem
Entre os principais desafios da escola, no que tange ao ensino de língua, está a dificuldade de ensinar os estudantes a desenvolver produções textuais adequadas a seu nível de escolaridade, o que evidencia uma lacuna na sua formação acadêmica (Magalhães, 2013; Teixeira, 2019). Assim, o ensino de produção textual é essencial para se desenvolver um estudante autônomo e competente. Nesse sentido, alguns trabalhos orientam para a prática de argumentação e sua dimensão no ensino a partir das habilidades específicas, como o uso de estratégias argumentativas e recursos linguísticos que contribuam para a produção de texto, em especial da argumentação. Por isso, Teixeira (2019, p. 22) defende que “[...] a construção da argumentação em textos que visam à defesa de uma opinião central, ou tese, requer a utilização de um conhecimento sobre a forma composicional desses textos [...]”, forma essa que deve ser ensinada na escola.
Por isso, a argumentação aparece com grande destaque: um estudante autônomo e competente será capaz de interpretar bem os fatos do mundo e fazer escolhas adequadas para sustentar um ponto de vista sobre um determinado tema. Na perspectiva retórica, será um orador cujo discurso terá força persuasiva. Mais que isso, como afirmam Antonio e Nuss (2018, p. 520), “[...] dada a importância social dos textos argumentativos, o trabalho com esses textos merece lugar de destaque na sala de aula e em vestibulares e avaliações nacionais como o Enem”. Na redação desse Exame, fonte dos dados de análise deste trabalho, uma série de fatores estão em jogo para a avaliação do texto. Na sequência, trataremos um pouco dessa prova e, depois, de sua relação com a Nova Retórica.
A produção textual no Enem
A redação do Enem é chamada de texto dissertativo-argumentativo, uma mescla de tipos textuais. Cantarin, Bertucci e Almeida (2017, p. 83) consideram que dissertar é “[...] fazer uma reflexão teórica sobre um assunto [...]”, o que pressupõe que o autor lance mão de seu repertório sociocultural e utilize recursos de diferentes naturezas na exposição. Coroa (2017), ao comparar a possibilidade de caracterização dos tipos, sustenta que as características de organização textual são de difícil identificação para o tipo argumentativo, embora recorra
[...] Com muita frequência às relações lógicas para demonstrar a verdade daquilo que diz, como as de causa e consequência e as de condição.Comumente tais relações são expressas por conectivos de finalidade, de causa, de justificativa, como em ‘por causa das múltiplas realidades’ ou em ‘a fim de que, não importa quais sejam os resultados de nossos estudos, nosso compromisso’. Mas também a seleção lexical, como ‘complexa’, ‘múltiplas realidades’, ‘elementos significativos’, deve estar a serviço do objetivo (Coroa, 2017, p. 61).
Como se vê, a autora indica aspectos importantes para a caracterização do tipo argumentativo no texto do Enem, em especial o cuidado com as associações lógicas e a seleção lexical, que pode indicar o repertório do candidato. Pode-se dizer que a expressão ‘relações lógicas’ resgata a aproximação da argumentação com a demonstração, algo importante para o entendimento da proposta da Nova Retórica. Nesse caso, os argumentos ‘lógicos’, devem ser associados a dois subtipos específicos. Primeiro, aos ‘quase-lógicos’, que, como se viu na Seção 1.2, se reduzem a vínculos formais, ainda que não lógicas ou de demonstração, uma vez que se trata de argumentação. Depois, aos baseados na estrutura do real (como de causa e consequência).
A cartilha do Enem (Brasil, 2017) detalha que o candidato precisa defender um ponto de vista com argumentos consistentes e elencar uma proposta de intervenção para o problema discutido. Desse modo, o conjunto de textos analisados neste trabalho cumpriu de modo exemplar essas indicações, já que todos obtiveram a nota máxima pela banca de correção.
O mesmo material detalha as cinco competências avaliadas, indicando inclusive uma matriz de referência de notas, em que se apontam os motivos pelos quais os avaliadores atribuem notas de 0 a 200 para cada competência. A Figura 1 resume os objetivos de cada competência e a descrição do modo como se avalia um texto com nota máxima em cada uma delas.
Pode-se observar que as três competências mais diretamente relacionadas à argumentação são a 2, a 3 e a 4, sendo as duas primeiras mais diretamente ao conteúdo expresso e a última à tessitura linguística que faz com que o conteúdo se materialize num texto dissertativo-argumentativo por natureza – ainda que a elaboração de uma proposta de intervenção (Competência 5) seja parte do todo.
Como afirmado acima, a redação do Enem, como gênero misto (dissertativo-argumentativo, conforme se indicou no início da seção), exige uma exposição do tema: é aqui que o repertório vai contribuir para a dissertação. Nesse sentido, a redação também requer uma descrição de diferentes aspectos e (relativamente) aprofundada do tema, de tal forma que os argumentos se sustentem nesse contexto. O uso recorrente de verbos estativos (ser, por exemplo) e de adjetivos deve indicar que o texto está dissertando sobre o tema, e ao mesmo tempo, argumentando, pela escolha de tais itens, conforme sugerem Cantarin et al. (2017).
Por isso, é fundamental destacar que uma das formas de se aprofundar um tema deve ser justamente definindo ou redefinindo questões ao longo da redação, uma vez que isso é uma forma de indicar seu ponto de vista sobre o tema. Nesse sentido, o uso de argumentos por definição, como se quer verificar neste artigo, pode ser um recurso estratégico importante para a defesa da tese e consequentemente uma boa avaliação do texto. Assim, se se verificar que, de fato, esse tipo de argumento ocorre com certa frequência nos textos, queremos descrever as expressões linguísticas que o caracterizam no texto.
Nesse sentido, as técnicas argumentativas baseadas na Retórica e na Nova Retórica devem ser recorrentes nos textos prototípicos como os analisados neste trabalho.[3] Essa vertente, aliás, é encontrada em diferentes autores, apresentados a seguir.

Nova Retórica e a redação do Enem
O trabalho com textos de teor argumentativo tem sido um dos principais problemas observados na escrita dos estudantes de ensino médio, conforme aponta Magalhães (2013). Nesse contexto, a autora acredita que a perspectiva da Nova Retórica, em especial as discussões sobre orador, auditório e discurso podem contribuir para práticas mais eficazes no trabalho com argumentação em sala de aula. Mais ainda, a orientação para uma reflexão sobre temas diversos e a aplicação de estratégias são legados fundamentais da Retórica, que podem ajudar na autonomia e competência do estudante.
Nesse sentido, Wachowicz (2010) também entende que a proposta do Tratado pode contribuir para o trabalho em sala, em especial para a orientação da escrita e da reescrita. É por isso que a autora, em seu trabalho, apresenta uma série de elementos linguísticos caracterizadores dos tipos argumentativos. De modo similar, Cavalcante (2017, p. 138) considera que o ‘investimento retórico’ é essencial para se avaliar se um texto se faz “[...] eficiente na argumentação persuasiva”. Numa perspectiva de base na Nova Retórica, a autora afirma que um avaliador precisa verificar como o texto associa ou dissocia as ideias que compõem o texto. Nesse caso, a autora sugere que o autor pode se valer de diferentes técnicas argumentativas, como as definições, para organizar um texto em prol da persuasão a uma tese, o que vai ao encontro daquilo a que nos propomos neste trabalho.
Também na mesma relação entre Nova Retórica e Enem, Barros e Albuquerque (2014) analisaram 18 textos nota 1000, relativos ao Enem 2013. Utilizando a classificação do Tratado, os autores concluem que “[...] os candidatos fazem uso das técnicas argumentativas para dar sustentação às teses defendidas e tentar influenciar o auditório, utilizando, predominantemente, os argumentos baseados na estrutura do real e as ligações que fundamentam a estrutura do real” (Barros & Albuquerque, 2014, p. 545). Nesse sentido, seria de se esperar que não aparecessem muito os quase-lógicos, em especial, o argumento de definição. No entanto, esse argumento já foi observado no trabalho de Oliveira (2016), ainda que com menos recorrência. Por isso, trabalhos que tentem aprofundar a relação entre as estratégias retóricas e as redações do Enem precisam ser ampliados, em especial por promover um impacto no ensino.
Barros e Albuquerque (2014) destacam a presença de argumentos de autoridades nos textos – o que deve estar diretamente relacionado à Competência 2. Elas analisam que trechos de redações como “Thomas Hobbes, filósofo inglês, dizia que o estado de natureza humano é um risco à sobrevivência da própria espécie [...]” (Barros & Albuquerque, 2014, p. 553) revelam uma apropriação por parte do candidato “[...] de grandes nomes, que se consolidaram como figuras importantes, vultos que realizaram grandes feitos na sociedade e que, portanto, não podem ser contestados” (Barros & Albuquerque, 2014, p. 554). Nesse sentido, podemos levantar uma outra hipótese: a de que argumentos de autoridade podem ser trazidos ao texto também com o intuito de introduzir definições a fins ao tema da redação, tal como se observa no próprio exemplo das autoras. Com isso, a possibilidade levantada por P&O-T (2014) de que um argumento pode ser interpretado por mais de um rótulo caberia perfeitamente aqui.
Dessa forma, vamos partir do princípio de que, na perspectiva da Nova Retórica, o candidato é naturalmente o orador, a banca examinadora está na posição de auditório e o discurso é o texto do candidato. Nesse caso, podemos considerar que o candidato deve estar pronto para criar a imagem de seu auditório (tal como se afirma no Tratado), não só a partir daquilo que espera dela – enquanto uma banca de avaliadores especializados –, mas também do conhecimento e crenças que esse auditório possui sobre o tema em si. Além disso, a apresentação das Competências avaliadas tanto no manual do candidato, quanto durante a formação, contribui para a imagem do auditório. Nesse sentido, os textos motivadores atualizam esses aspectos, que devem ser tomados como ponto de partida pelo candidato para, a partir deles, possa desenvolver sua argumentação. De modo análogo, é importante que sejam diversas as técnicas utilizadas para exposição do repertório e para a estrutura do texto dissertativo-argumentativo ao longo da redação. Assim, o candidato que ultrapassar aquilo que os textos motivadores apresentam, por meio de um discurso adequado para a situação, está mais apto a convencer o auditório e, consequentemente, ser bem avaliado. A seguir, analisamos alguns dos textos que obtiveram nota máxima.
Nova Retórica e redações nota mil
Metodologia
Para desenvolver a análise a respeito da ocorrência do argumento por definição em textos do Enem, decidimos concentrar esforços em textos prototípicos do Exame. Assim, tomamos 31 redações da Cartilha de Redações Nota 1000, elaborada por Felpi (2018) e disponibilizada on-line. Em primeiro lugar, para realizar a pesquisa, decidimos estabelecer um critério básico que julgamos essencial a fim de analisar a ocorrência do argumento por definição no corpus sob análise: a definição (ou classificação) apresentada precisaria ser entendida como argumento, fugindo da evidência e da arbitrariedade, tal como nos apontam P&O-T (2014).
Depois, considerando o grande volume de textos das 31 redações (mais de 13 mil palavras), decidimos analisar apenas a ocorrência de verbos relacionados à definição. Entre os exemplos, poderíamos encontrar, seguindo Wachowicz (2010), ser, significar, designar etc. Por isso, para a análise do corpus, decidimos pelo uso do aplicativo Tropes, que auxiliou na identificação das ocorrências verbais. O aplicativo faz um levantamento das ocorrências lexicais, elaborando uma listagem por classe de palavras. Com isso, podemos encontrar todas as ocorrências verbais listadas. Na sequência, quando clicamos sobre o verbo pretendido, o aplicativo apresenta o contexto de ocorrência. Com isso, podemos verificar se é um contexto de uso argumentativo ou não.[4] Como os resultados foram muito expressivos, decidimos apenas exemplificar as ocorrências, sem quantificar todas elas. Vamos apontar os detalhes na seção seguinte.
Resultados e discussão
A pesquisa no Tropes retornou um total de 1.679 ocorrências rotuladas como ‘verbos’. Desse total, cerca de 10% só com o verbo ser, como se vê na Tabela 1 – por essa recorrência e especificidade, ele será o último verbo a ser discutido aqui. Outros 10 verbos de função definidora ou classificadora foram encontrados, conforme se vê na Tabela 1 em ordem alfabética.
Dos 25 casos encontrados com os verbos acima (com exceção de ser), apenas 03 deles não foram analisados como pertencentes ao universo do argumento por definição, menos de 10%, portanto. Assim, nesse primeiro momento, é preciso destacar essas ocorrências em que o candidato utiliza o item lexical típico do argumento por definição, mas não para uma articulação explícita de seu ponto de vista. Nesses casos, os exemplos já não cumprem o critério básico que estipulamos. Vejamos o caso da Redação 5, com o verbo definir. “Adorno e Horkheimer, dois importantes filósofos da escola de Frankfurt, ‘definiram’ como indústria cultural a padronização e massificação dos produtos como forma de lucratividade” (Felpi, 2018, redação 5, ).

No exemplo, o candidato recorre a um argumento de autoridade para apresentar uma definição: a de indústria cultural. No entanto, como se observa nesse trecho (e na redação como um todo), não é a definição de indústria cultural que servirá de argumento para o autor criticar a manipulação das pessoas pelo controle de dados da internet, mas a ideia de que padronizar e massificar em prol do lucro desconsidera a liberdade individual.Já com relação às ocorrências diretamente analisadas como argumento por definição, vamos destacar dois exemplos, começando pelo segundo mais frequente: constituir.
[...] Sob esse viés, é possível depreender que a utilização de dados dos internautas por determinados grupos empresariais ‘constitui’ uma estratégia de divulgação de produtos e pensamentos conforme seus interesses. Dessa maneira, ocorre a seleção de informações e propagandas favoráveis a essas empresas, levando o usuário a agir e consumir inconscientemente, de acordo com padrões estabelecidos por esses grupos (Felpi, 2018, redação 18).
Nesse caso, o verbo constituir poderia ser naturalmente substituído por significar ou ser definido como, o que garante que se trata de identidade entre as partes. O mais importante, todavia, é o fato de que essa identificação é realizada em prol da construção de um argumento: para o candidato, empresas que utilizam dados de internautas o fazem para obter vantagens. Assim, ele define (ou classifica) essa utilização de tal modo que poderá chegar à conclusão de que a responsabilidade pela manipulação é das empresas (como se vê no período seguinte àquele com o verbo em tela). O segundo exemplo é com o verbo assemelhar.
[...] Nesse sentido, a manipulação dos anúncios se ‘assemelha’ ao processo de dominação descrito pelo sociólogo Foucault ao analisar o modelo panóptico, pois o monitoramento das ações dos indivíduos é de suma importância para a manutenção do poder de forma discreta (Felpi, 2018, redação 28).
Neste exemplo, o candidato iguala a manipulação de anúncios para usuários da internet a uma proposta teórica sustentada por um argumento de autoridade (o filósofo Michel Foucault). Assim, o argumento ganha força não só por identificar partes com intenção de persuadir, mas por relacionar as ações atuais com uma discussão mais ampla e sustentada por um especialista.
Nesse sentido, podemos destacar ainda, conforme hipótese levantada na Seção 2.2, que são encontrados termos introdutórios de argumento por identidade em contextos de argumento de autoridade, justamente porque essa relação possibilita a construção de um argumento mais sólido em defesa do ponto de vista. Entre as 22 ocorrências de argumento por definição com verbos os da Tabela 1 (com exceção de ser), encontramos 5 ocorrências em que os termos estavam em contextos de argumento de autoridade.
Finalmente, podemos passar aos casos com o verbo ser. Começamos por afirmar que não analisamos as 167 ocorrências uma a uma, mas tomamos um conjunto inicial de 85 (estas, sim, analisadas individualmente), com o intuito de identificar um certo padrão nas redações. Sabendo que esse verbo é multifuncional, ocorrências como de conectivo (sendo assim) foram descartadas. Além disso, muitos casos em que ele ocorre como auxiliar de voz passiva também foram desconsiderados (como em a manipulação não pode ser aceita). Cabe destacar, ainda, que houve inúmeros casos em que o uso desse verbo (como em Black Mirror é uma série americana que retrata ...) não indicaria um argumento por definição; foram igualmente descartados.
De todos os casos observados, sem dúvida a maior ocorrência se verifica nos casos em que o verbo faz parte de um período composto, sendo núcleo da oração matriz com uma oração subordinada substantiva subjetiva, como se vê no exemplo a seguir. “A priori, ‘é imperioso’ destacar que a manipulação da conduta dos usuários, pelo controle dos seus dados nas plataformas virtuais, ‘é fruto’ do despreparo civil para lidar com a influência das tecnologias” (Felpi, 2018, redação 4).
Acima, a primeira ocorrência é nitidamente o caso de predicação de oração subjetiva, em que o candidato classifica de imperioso o sujeito destacar que a manipulação da conduta (...) é fruto do despreparo (...). Com isso, o candidato se posiciona frente à necessidade de se discutir o despreparo das pessoas com relação à manipulação do seu comportamento em ambientes digitais: logo, vê-se que ele usa um argumento por definição (ao classificar com imperioso) para apresentar um ponto de vista sobre o tema. O segundo caso é também nitidamente um argumento de mesma ordem, já que ali o candidato define a manipulação: é fruto do despreparo (...). Nesse caso, cumpre-se o requisito de que a definição seja usada em função da defesa de um ponto de vista (ao contrário caso sobre Black Mirror, comentado antes).
O último exemplo vem justamente da primeira redação da Cartilha. Nele, vê-se a ocorrência de ser como definidor, dentro de argumento de autoridade, como marcador de voz passiva e em construção com verbo aspectual.
[...] De acordo com Jean Paul Sartre, o homem é condenado a ser livre. Nessa lógica, o uso de informações do acesso pessoal para influenciar o usuário confronta o pensamento de Sartre, visto que o indivíduo tem sua liberdade de escolha impedida pela imposição de conteúdos a ‘serem’ acessados. Dessa forma, a internet passa a ‘ser’ um ambiente pouco democrático e torna-se um reflexo da sociedade contemporânea, na qual as relações de lucro e interesse predominam (Felpi, 2018, redação 1).
Esse exemplo é muito ilustrativo. A primeira ocorrência de ser (é condenado) não parece ser utilizada como argumento por definição, porque traz aquilo que Sartre mesmo diz. No entanto, vê-se que o candidato toma essa definição como parte daquilo que defenderá na sequência, à medida que a confronta com o impedimento da liberdade de escolha no meio digital. A segunda ocorrência (serem acessados) não está ligada à ideia de definição discutida aqui. Finalmente, no terceiro caso (passa a ser), poderíamos pensar que o candidato está tratando de uma transformação (e não de uma definição), em especial pela função de início de estado de passar. No entanto, o que se vê é que o candidato redefine (ou reclassifica) a internet, ao dizer que ela se transforma em ‘ambiente pouco democrático’.
Os resultados acima apontam para uma convergência em relação ao que se discutiu ao longo do trabalho. Primeiro, que a força persuasiva da definição é construída pelo orador no discurso e não dado simplesmente pela presença de um item lexical mais relacionado a ele. No entanto, o que se viu é que esses itens contribuem decisivamente para essa persuasão. Nesse sentido, as definições são justificadas na direção argumentativa do texto, como indicam P&O-T. Depois, o argumento por definição inegavelmente contribui para a exposição do texto (caráter dissertativo), levando em conta o repertório do orador, para que se articule com a argumentação. Seguindo a discussão da Seção 2.1, de que definir e redefinir são movimentos importantes na redação do Enem, os dados confirmam essa relevância, o que pode ser operacionalizado de diferentes maneiras no ensino. Uma das vantagens do argumento por definição deve estar vinculada à ideia de que relações lógicas e formais têm um peso importante para a persuasão, em especial no Enem, a partir do que se apresentou neste trabalho.
Nesse sentido, podemos concluir que a análise do argumento por definição contribui para se entender a constituição do gênero redação do Enem, o que está diretamente relacionado também à melhoria na formação cidadã, acadêmica e linguística, conforme temos discutido em diferentes pontos desse trabalho.
Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo principal descrever a ocorrência do argumento por definição em redações nota 1000 do Enem. Recortamos a análise para a ocorrência de verbos e observamos 11 tipos diferentes – e ser mostrou-se o mais recorrente deles. Além disso, observamos que esse tipo de argumento é comum nas redações analisadas, em especial porque contribuem para o aspecto dissertativo-argumentativo do gênero em questão. Assim, concluímos, seguindo Lopes (1997), que as técnicas argumentativas (aqui, o argumento por definição) permitiram aos candidatos suscitarem a adesão do auditório às teses, o que se garante pela nota máxima no Exame.
P&O-T (2014) afirmam que o argumento por definição é o exemplo claro dos argumentos quase-lógicos. Nesse sentido, sugerimos que a enorme presença desse tipo de argumento em textos do Enem não só reforça essa noção, como vai na direção daquilo que Meyer (2014) aponta: de que a Nova Retórica é o discurso do método no campo da argumentação. Sem dúvida, um trabalho de ensino com essa perspectiva pode contribuir muito para a formação do estudante, para sua prática de cidadania e sua competência linguística.
Na escola, entre os caminhos para inclusão do estudo da Nova Retórica está a relação entre inferências e argumentação. Fiorin (2017) entende que as inferências (semânticas ou pragmáticas) é que fazem progredir uma argumentação, que se sustenta principalmente na dedução e na indução. Outra possibilidade é o estudo da conexão entre a definição e o repertório, assim como das estruturas em que aparecem o verbo ser. É comum a crítica ao ensino de períodos compostos na escola. Aqui, no entanto, mostramos que esse tipo de período, em especial com o uso de ser (orações subjetivas) é fundamental na estrutura da argumentação de textos estilo Enem, o que abre caminhos para um ensino de como essas estruturas podem ser usadas nos textos.
Por fim, há de se reconhecer a discussão do Tratado como uma oportunidade para que as opiniões não se reduzam às paixões, e a racionalidade à demonstração lógica; uma oportunidade para, como se lê nele próprio, superar essa dicotomia. Como defendem P&O-T (2014, p. 1), o campo da argumentação é o lugar da não-coerção e da liberdade; ao mesmo tempo, exige uma racionalidade pautada “[...] no verossímil, no plausível, no provável”. É, pois, uma necessidade em tempos em que ou se busca a verdade a todo custo, ou esta é superada por um vendaval de paixões. Assim, a Retórica é sobretudo um exercício de racionalidade e de democracia.
Agradecimentos
Agradeço aos pareceristas anônimos deste periódico pelas sugestões, críticas e comentários, o que contribuiu para esta versão final. Os problemas remanescentes são de minha responsabilidade.
Referências
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