Resenha

‘Quarenta em quarentena’: (sobre)vivências em tempos pandêmicos

Érica Schlude Wels
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

‘Quarenta em quarentena’: (sobre)vivências em tempos pandêmicos

Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 43, núm. 2, 2022

Universidade Estadual de Maringá

Recepción: 01 Abril 2021

Aprobación: 15 Septiembre 2021

Introdução

O período prolongado pelas novas ondas de contágio provocadas pela pandemia do novo Coronavírus, em escala mundial, transformou inegavelmente as expectativas que reservávamos para o ano de 2020 – afinal, começamos a ouvir falar da província chinesa de Wuhan, conhecido epicentro da doença, no início daquele ano; a Covid-19 invadiu estrondosamente 2021, gerando um processo agudo de suspensão e instabilidade acerca do que o futuro reserva ao Brasil e ao mundo. A despeito da conhecida fórmula da ‘Vida que segue’, é impossível não chorar, não temer pela fragilidade de planos (antes parte tão consistente de nossas existências), e perder horas de sono (ou simplesmente não dormir) ao sabor das notícias catastróficas, sobretudo se nosso foco é o Brasil atual. Tenho consciência de que, com essas palavras introdutórias, não trago nada de novo. No campo literário, escritores continuam a lançar suas obras, com bate-papos virtuais, e muitos já escreveram sobre a companhia indispensável dos livros nesses tempos de recolhimento involuntário. Nesse sentido, contudo, devo ressaltar a iniciativa da editora Oficina Raquel, com seu e-book para acesso gratuito, intitulado Quarenta em quarentena: 40 visões de mundo em pandemia. No gesto aparentemente simples da possibilidade de leitura gratuita reside, a meu ver, um ato simbólico de compartilhamento, igualmente sem custos, do poder terapêutico de bons textos literários, em meio a um cenário desolador de profunda incerteza.

Trata-se, como o título anuncia, de uma compilação de 40 textos, de autores brasileiros e portugueses, entre poemas, crônicas e contos, sendo o segundo gênero o mais abundante, divididos em blocos temáticos, sugestivamente intitulados: ‘Fim’, ‘Medo’, ‘Solidão’, ‘Amor’ e ‘Começo’. O leitor atento já nota o início pelo fim, o que denota o impacto de um momento crucial na história recente: a nova realidade ditada pelo vírus (o apregoado ‘novo normal’), desarranjando nossa rotina e destruindo vidas e famílias num ritmo acelerado. O final é o ‘Começo’, a abertura para a esperança e a renovação, igualmente velhas companhias da história da humanidade. Também é significativo que a obra seja aberta e fechada com dois poemas, únicos exemplares dessa linguagem: o ‘Prológo poético’ (‘Dias de Agrura’, Maria Teresa Horta) e o ‘Epílogo poético’ (Leonardo Tonus). Acertadamente, ambos os poemas versam sobre cidades. No primeiro caso, Lisboa, e no segundo, uma grande cidade qualquer do planeta pandêmico, com seus espaços públicos e de entretenimento temporariamente desativados, adormecidos: “Sinto falta de minha cidade./das ruas de minha cidade sinto falta./sinto falta dos parques de minha cidade,/de seus teatros, seus cinemas./do ócio dos habitantes de minha cidade /sinto falta” (Menezes & Marques, 2020)[1].A repetição do verso ‘Sinto falta’ demarca o espaço vazio, a ausência deixada por esses locais na vida do cidadão. No final do poema, o eu-lírico se inclui na categoria daqueles que seguem as recomendações de isolamento: “Nós,/os novos ‘enjaulados’” (Menezes & Marques). Os ‘enjaulados’ repetem o neologismo Quarentener, citado em ‘Crisálida’, de Patrícia Nogueira. Para os quarentener sitiados entre quatro paredes, “As janelas viraram livros de poesia, nos oferecendo em cada verso da manhã um sentimento de liberdade” (Menezes & Marques, 2020). No poema de Maria Teresa Horta, em poucos versos, o eu-lírico relata seu sofrimento nos ‘dias de agrura’/‘de doença e mágoa’. O ‘animal da morte e medo’ é uma visita indesejável que tenta adentrar o espaço da casa, enquanto a rua segue mergulhada num atordoante ‘silêncio imenso’. A ausência de alarido e movimento é extensiva a todo espaço urbano da metrópole: “[…] nesta cidade muda/em que se tornou/Lisboa” (Menezes & Marques, 2020). Por meio do Prólogo e do Epílogo poéticos, início e fim se misturam, uma vez que o presente se tornou uma única linha reta, partindo de um ponto com início, porém término desconhecido, e certamente ornamentado por muitas interrogações.

Além da divisão por temas anteriormente explicitada, percebe-se, na leitura dos textos, que estamos diante de uma trança de assuntos. Há um diálogo intenso entre as abordagens dos escritores, num painel multifacetado, consistente e coerente, da vida no isolamento. Como parte importante do poema inicial, o silêncio surge, paradoxalmente, como um som incômodo que se infiltra nos espaços. A memória, nesse contexto, torna-se uma aliada, pois puxa as narrativas, convida à reflexão; pensa-se na infância, evocam-se bons momentos de convivência e lazer, como festas e viagens, infelizmente interrompidos. Na primeira crônica, ‘Modos de Acabar o Mundo’, de Jeferson Tenório, o foco são lembranças das aulas de ciências, mais precisamente a respeito do tema do fim do mundo, preconizado pelos cientistas.

A primeira vez que o mundo acabou, eu tinha 12 anos e estava na sexta série. Ouvi o professor de Ciências dizer que o sol um dia iria explodir. Disse, assim, sem pesar, sem tristeza e com naturalidade (Menezes & Marques, 2020).

Tomado pela angústia, o narrador se depara com a finitude, chocando-se contra as idéias anteriores de estabilidade e até perenidade do mundo. Já a segunda vez em que o mundo acabou, para ele, é bem diversa; é quando se dá conta da sua ‘diferença’ quanto aos demais.

Isso também foi na sexta série. Explico. Toda vida carrega uma fratura. A minha está relacionada à cor da pele. [...] No entanto, naquele dia em que meu corpo fora nomeado negro, naquele dia em que minha cor chegava primeiro, eu não sabia, mas um certo mundo se apagou. A vida até ali reduzida à minha pele (Menezes & Marques, 2020).

Desse ponto em diante, a narrativa reveste-se de aspectos sociais, como a violência nua e crua de policiais contra corpos negros e carentes, seja em confrontos, seja por meio da triste realidade das ‘balas perdidas’ da cidade do Rio de Janeiro. O narrador lista as últimas vítimas de violência policial e das desastrosas manobras de intervenção nas comunidades do RJ: o menino João Pedro, Pedro Gonzaga (asfixiado no supermercado), a menina Ana Carolina de Souza Neves, o menino Marcos Vinicius, a menina Agatha Felix, Evaldo Santos (alvejado, no carro, com 80 tiros), George Floyd, todos são evocados, numa constelação de brilhos ausentes:

Há muitas formas de acabar o mundo. Mas, talvez, para os negros, suportá-lo seja algo mais urgente que temer o seu fim. Hoje, não tenho mais angústia em saber que em 4 ou 5 bilhões de anos o sol irá explodir e que um dia irá engolir tudo a sua volta. Minha angústia foi deslocada para a idéia de que todos os dias um sol se apagará para pessoas cuja cor da pele justificam o fim de seus mundos (Menezes & Marques, 2020).

O chamado ‘racismo estrutural brasileiro’, enraizado na língua, nas posturas e instituições, ou seja, em todo o aparato discursivo e ideológico do país, é um assunto que rende crônicas-testemunho, como ‘Becos, Vielas, Afoxé e Congado’, de Cidinha da Silva. O texto da escritora relaciona resistência com negritude, exaltando o poder de luta que os desvalidos necessitam ter:

A grande lição da pandemia de Covid-19 vem dos becos e vielas, as ruas típicas das favelas. Estamos por nossa própria conta, nós por nós é mantra e é atitude de combate. Nós, gente negra, só nos salvaremos da morte se cuidarmos de nós mesmos e uns dos outros, se nos responsabilizarmos pelos nossos que mais precisam (Menezes & Marques, 2020).

O mencionado viés crítico reveste-se da denúncia das mazelas sociais, acentuadas por um campo político em crise aguda. Em ‘Crônica do fim do mundo’, de Marisa Oliveira, aspectos de sistemas totalitários são o guia para estabelecer a dicotomia alegria versus opressão. Seja a citada ‘alegria clandestina’ clariceana, seja qualquer forma de felicidade, ela sucumbe diante do medo, pois “[…] mesmo trocando de aparelho em aparelho, [a alegria não] seria capaz de sobreviver aos tanques” (Menezes & Marques, 2020). Regimes totalitários remetem ao cerceamento das liberdades, logo, a prisão é outra imagem trazida pela crônica, porém transformada na casa de cada um, única paisagem de trânsito livre durante a pandemia: “Percebo ainda que a casa se transforma inevitavelmente em personagem desses microcontos que se desenrolam dia-após-dia. E é ela que nos devora e nos conforta. Mas também nos aprisiona” (Menezes & Marques, 2020). Inseridos na teia da linguagem, com o potencial dos discursos amplificado pela violência dos tempos pandêmicos, a metáfora é multiplicada, torna-se eficiente recurso de expressão. “A realidade se esfumaça na visão de mundo das telas e das janelas, de onde filtro partes das vidas que correm (ou corriam) lá fora” (Menezes & Marques, 2020). A vida, em suspenso, reveste-se de cores trágicas, fatais: “Não sei bem se vivo uma ópera barroca, marcada por ambiguidades, maniqueísmos, exageros, mas é certo que, neste momento, para mim, são as metáforas que produzem os significados de mundo” (Menezes & Marques, 2020). Em ‘Super Mario e o Coronavírus’, de Henrique Rodrigues, o título jocoso, fazendo referência ao conhecido personagem dos games, ao mesmo tempo que ilustra uma das possibilidades preferidas de distração durante o isolamento, apresenta uma crítica política direta ao governo Bolsonaro: compara-o ao pior presidente da história brasileira, Fernando Collor.

Os suicídios provocados pelo Plano Collor dialogam muito com a postura do atual presidente sobre o número de mortos pelo Coronavírus. Ao ser perguntado por um jornalista sobre o assunto, respondeu com a suavidade que lhe é peculiar: “eu não sou coveiro, tá?” (Menezes & Marques, 2020).

O texto menciona uma das inúmeras frases pronunciadas pelo presidente desde o desencadeamento da crise pandêmica, porém, apesar disso, fecha com otimismo e homenageia os versos de Belchior, recentemente regravados na composição do rapper Emicida: “Mas ouso contrariar o nosso presidente atual, sobrevivendo a ele como sobrevivemos ao antigo” (Menezes & Marques, 2020). Trata-se de sobrevivência, não de leviandade. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” (Menezes & Marques, 2020).

Um dos ápices das críticas sociais reunidas no volume é o breve conto ‘Quarentenas # 3’, de José Roberto Torero. Iniciando a narrativa com o foco nas relações entre empregada doméstica-família da Zona Sul carioca, o leitor se depara com uma amarga homenagem à primeira vítima da Covid-19 no Rio de Janeiro, ‘Elba’. ‘Dona Mercedes’ contraíra o vírus numa viagem à Itália. Sua fiel ‘Secretária’, como muitas famílias denominam as empregadas domésticas, ao cuidar da patroa, infecta-se. Para ela, o vírus é letal. Revestido de tamanha ironia, o desfecho desconcerta o leitor. Uma prova de que a ficção, muitas vezes, se acovarda diante da realidade, pois nela já encontramos farto e instigante material:

Mas o remorso continua torturando dona Mercedes. Tanto que, cada vez mais que ela passa a própria roupa, cada vez que ela faz a própria comida, derrama uma grossa lágrima. E, entre soluços, pensa: “Será que a filha da Elba não pode vir dar uma ajudinha?” (Menezes & Marques, 2020).

No Brasil de Bolsonaro, não poderia ficar de fora, igualmente, a estupidez das tendências negacionistas, como em ‘Os Pombos’, de Luciano Nascimento. A narrativa é inaugurada por uma epígrafe que bem poderia iluminar várias das histórias: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta. (Albert Einstein)” (Menezes & Marques, 2020). O impacto econômico, assunto que povoou o noticiário, sobretudo no início da pandemia, é igualmente lembrado, no breve ‘Sob a mesma Direção’, de Alex Castro. O bilhete de despedida afixado na fachada do comércio – “Obrigada a todas as pessoas, clientes e fornecedores, por vinte anos incríveis. Infelizmente, o prejuízo foi muito e o cansaço, enorme. Antecipamos nossa aposentadoria. Adeus. As proprietárias [...]” (Menezes & Marques, 2020) – mobiliza a clientela do restaurante a apoiar o negócio, pois reconhece seu papel em cada trajetória. E das narrativas individuais, dos dramas de suas personagens, a crítica social volta a abordar a gigantesca crise política – a ‘hecatombe’, a ‘plaga planetária’ que dominou o Brasil contemporâneo (‘Pesadelo acordado’, Luiz Roberto Guedes):

O que mais dói num brasileiro curtido e calejado é ver um país com tamanho potencial perdendo tempo na História. Endossando o projeto demencial de fazer o país retroceder 50 anos no tempo. Porque tempo é “vida” – não é dinheiro, como nos alerta o prof. Antonio Candido. Só resta desejar que haja mais vida depois da hecatombe dessa praga planetária. Recordamos que, na Antiguidade, ‘hecatombe’ era a morte de 100 bois. Quantos mais serão abatidos no rebanho humano? Os pobres e os idosos estão em risco de extinção? O pesadelo recomeça quando acordamos (Menezes & Marques, 2020).

Novos limites entre quatro paredes

Além das diversas roupagens de crítica política e social, destacam-se outros três assuntos: o espaço doméstico, ressignificado, hipertrofiado; a doença, obviamente tornada face possível da morte; a literatura, possibilidade de fruição, estudo, abertura para o outro e para uma infinita rede de signos. Sobre a geografia do espaço doméstico/de confinamento, acionando conhecimentos de literatura ou simplesmente realizando uma busca rápida na Internet, o leitor pode encontrar referências à uma obra de 1794, Viagens ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre (1763-1852), conde e militar francês. Segundo Antonio Candido, ‘a viagem’ descreve como se fossem etapas os movimentos no quarto, o levantar e o deitar, as refeições, os quadros e objetos, os pequenos incidentes, a cadela Rosina e o criado Joanetti, “[...] tudo recheado de digressões e reflexões das quais se destaca o interesse pelos atos voluntários, inclusive os que mais tarde seriam chamados falhos” (Candido, 1989, p. 103).

Composta por 42 capítulos, cada um para um dia da detenção, a obra nasce da necessidade desse ‘viajante imóvel’ permanecer encarcerado num quarto em Turim, Itália, por ter duelado com outro oficial. Contudo, a receita de Maistre não apresenta nada de inovador. Para driblar o tédio, o escritor inicia um percurso pelo ‘encantador país da imaginação’, transformando o seu aposento em um espaço de reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo que o espera lá fora. Assim, Viagem ao redor do meu quarto’ consegue desmontar os clichês do gênero: no lugar de vistas imponentes ou belas paisagens, nos deparamos com descrições dos móveis que adornam o espaço. Sob efeito desse recurso, os objetos mais triviais ganham roupagem filosófica. Trata-se de celebrar a poltrona, “[...] da mais alta utilidade para todo homem meditativo [...]”(Maistre, 2020, p. 21), o espelho, que “[...] proporciona ao viajante sedentário mil reflexões interessantes [...]” (Maistre, 2020, p. 22), além dos benefícios de uma boa cama, “[...] nesse móvel delicioso que olvidamos, durante metade da vida, os dissabores da outra” (Maistre, 2020, p. 21). Também são narradas as histórias por trás das gravuras afixadas às paredes e comentados os títulos da biblioteca, o que retoma a afirmação da importância da literatura nesse contexto de clausura. O narrador se entrega a reminiscências, imagina diálogos entre pensadores clássicos, lembra amizades perdidas, aprende ‘lições de filosofia e de humanidade’ com o criado e com o seu cão, além de explanar sobre pintura e música. O trajeto dentro do quarto é coberto por todas as linhas possíveis da geometria − zigue-zague, diagonal, comprimento −, porém sem seguir regra nem método. E, assim, avança na narração, com idas e vindas no tempo, fazendo pausas inesperadas e até provocando o leitor a sair de seu comodismo e “[...] seguir no encalço das ideias, como o caçador persegue a caça, sem pensar em manter qualquer rota” (Maistre, 2020, p. 32). No artigo de Antonio Candido (1989), ‘À roda do quarto e da vida’, a maneira livre de Machado de Assis, adotada em Memórias Póstumas de Brás-Cubas (Assis, 1978) é, justamente, inspirada em Maistre:

[…] narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem, sai da estrada para tomar atalhos, cultiva o a-propósito, apaga a linha reta, suprime conexões. Ela é facilitada pelo capítulo curto, aparentemente arbitrário, que desmancha a continuidade e permite saltar de uma coisa a outra (Candido, 1989, p. 101).

O livro tornou-se um best-seller em Paris, quando lançado, e séculos depois, parece ter voltado a despertar grande interesse durante a pandemia. Segundo reportagem do jornal O Globo, entre março e abril de 2020, a versão digital da primeira edição francesa, disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, foi acessada 6700 vezes. Inclusive, chegou a ser um dos 200 documentos (entre 6 milhões) mais procurados do site[2].

Além disso, as viagens do escritor francês são mencionadas diretamente nas primeiras páginas das ‘Memórias Póstumas’, no capítulo ‘Ao leitor’: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo” (Assis, 1978, p. 11). O mestre ressalta outras influências de viajantes: “Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida” (Assis, 1978, p. 9). Antonio Candido atesta a influência da viagem imaginária de Maistre sobre a obra-prima Machadiana: “A hipótese, repito, é que a passagem de um modo a outro [como nos cinco últimos capítulos, breves, ligados de maneira aleatória] poderia ter sido ajudada pela leitura da Viagem à volta do meu quarto, composto deste modo” (Candido, 1989, p. 101). Na verdade, assim como Maistre, Machado presta tributo a Almeida Garret (1799-1854), com suas Viagens na minha terra, obra de 1846, na qual se misturam o estilo digressivo da viagem real (de Lisboa a Santarém) e a narração novelesca em torno das personagens Carlos e Joaninha; além do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) famoso pelo romance A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de 1774. A fim de concluirmos essa curta digressão acerca de viagens imaginárias, realizadas em espaços delimitados, mas que se abrem para a imensidão abismal das memórias e da fantasia, citamos um trecho de Garret:

De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. [...] Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal (Garret, s.d. [1846])[3].

Dessa forma, atestamos o ambiente doméstico e familiar como lugar de algum conforto, pois oferece proteção das ameaças do ambiente externo. Contrastando com as saídas proporcionadas pela fantasia tratada pelos escritores das viagens imaginárias, no cerceamento causado pelo isolamento social, as paredes deixam-se marcar pelo tédio e pela rotina. Todavia, em alguns momentos, tornam-se, de fato, loci de redescoberta. Em ‘As Coisas que Guardamos nas Paredes’, Monique Brito destaca o outro ritmo que o trabalho a distância viabiliza. A crônica salienta a diminuição do efeito das pressões externas, aliada a um novo ordenamento do tempo e do espaço. Este agiganta-se, permite-se ser olhado e avaliado. Como nos souvenirs de viagem, antes simplesmente armazenados num canto. As lembranças de bons momentos das férias, simbolizadas e sintetizadas nesses objetos, permitem breves momentos de alegria em meio à rotina esmagadora. ‘Crisálida’, de Patrícia Nogueira, já imprime, no título, o efeito do tempo sobre os corpos vivos, fora a ideia de aprisionamento necessário, para que o nascimento ocorra. Por ‘crisálida’, entendemos: “[…] casulo que envolve essa lagarta e, geralmente, fica dependurado até ao final do processo de metamorfose”[4]. Corpos em estado de latência, encerrados em seus casulos, necessitam, contudo, manter-se conectados ao trabalho (e, nesse ponto, não podemos esquecer aqueles que perderam seus postos de trabalho, as empresas que tiveram de encerrar suas atividades, os novos e reduzidos acordos etc), adaptando-se a diversas ferramentas digitais, aplicativos e links com a velocidade que só a necessidade proporciona, em suma, a uma (re)configuração do tempo e do vínculo com o labor, agora mediado pela tecnologia. ‘Diário do Ano da Peste’, de Thiago Carbonel, é ilustrativo dessa questão:

Nesses dias – que, espero, permaneçam assim – tenho rendido mais e me cansado um pouco menos, mantendo, no entanto, a sensação de que estou trabalhando o dobro, o triplo, o quádruplo do que trabalhava antes. Se nos tempos que chamávamos de normais eu saía de casa e dava catorze aulas, comendo com pressa, irritando-me com o trânsito e enfrentando o tablado que é sempre sujeito aos ânimos da platéia, agora gravo menos aulas, mas tenho realizado protocolos, muitos protocolos, nas páginas e portais, seguindo mil tutoriais que chegam diariamente, junto com convocações para reuniões via conferência que muitas vezes se dão ao mesmo tempo, além de preencher intermináveis relatórios (Menezes & Marques, 2020).

Sendo assim, conectado à máquina, o trabalho adquire uma nova roupagem ao ritmo da tecnologia: sem pausa ou exceção: “O fato é que o trabalho em casa não tem horário nem fim, não tem um outro lugar para onde se possa voltar” (Menezes & Marques, 2020). Se a casa torna-se uma ilha a ser explorada por seus habitantes, o lar fora do país de origem reveste-se de tons inusitados. Com a quarentena passada na Espanha, não por acaso um dos países europeus mais afetados pela letalidade do vírus, em ‘O Dia em que Cometi um Crime’, Beatriz Roscoe relata o impacto do lock-down, esvaziando as ruas, transformando uma cidade vibrante numa cidade deserta. Ao retornar de um passeio para comprar gêneros alimentícios, agradece pelo ambiente onde se encontra, junto a outros estrangeiros, contrariando a fórmula existencialista e parafraseando Valter Hugo Mãe, ‘O paraíso são os outros’.

O impacto da reclusão também cobra um alto preço das crianças, momentaneamente privadas das idas à escola. Os estudos on-line, os trabalhos mediados por computador geram, inevitavelmente, saudades daquela porção que, a despeito do tédio das longas horas passadas junto às carteiras escolares, sempre se beneficiou do espaço socializador da escola. ‘Bolinhas de Papel’, de João Pedro Fagerlande, reúne o calor multifacetado do ambiente escolar na imagem da bolinha amassada e jogada pelas crianças. A crônica aborda a reação sempre emocionada da troca e da ‘chuva’ de bolinhas de papel tornada impossível, devido à distância. “Onde estão os cérebros do Vale do Silício para inventarem um novo tipo de bolinha para as aulas virtuais? Uma de cristal líquido? Bolinhas wireless?” (Menezes & Marques, 2020).

‘É para abraçar com força, Rafaela’, de Elika Takimoto, é um retrato tocante de uma mulher que escuta, diariamente, de seu apartamento, as brigas de um casal para que a filha se engaje às tarefas escolares e se alimente de forma mais saudável. Segundo a narradora, o único remédio possível para a desnorteada Rafaela e seus nervosos pais, é o amor, aqui resumido no abraço. Igualmente sensível é ‘Carta para Victoria aos (quase) 10 anos para abrir em 2040’, de Camila Perlingeiro, narrando com minúcias as etapas da convivência entre mãe e filha quarentener, entre altos e baixos, bons e maus momentos, porém alinhavadas pelo afeto incondicional. A complexidade das relações humanas, igualmente ressignificadas pela convivência forçada, muitas vezes em espaços diminutos ou insalubres, é o mote de ‘A Gente Precisa Falar Sobre Isso? A Gente Precisa Falar Sobre Isso! A Gente Precisa Falar Sobre Isso’, de Ana Claudia Ramos. O paradoxo entre os clamores do título e os tempos pesados da doença é, no mínimo, curioso: por que esperar a pandemia passar? Talvez seja o momento mais propício a faxinar cantos empoeirados, neles incluídos os móveis e objetos, assim como as questões delicadas empurradas para debaixo do tapete dos relacionamentos. A convivência desse casal fictício é metaforizada num espelho meio quebrado, frágil:

Não, não dá mais pra gente se esconder. Por isso quebro essa imagem agora, sem dó nem piedade. Não! Não vou quebrar com as mãos, não se preocupe. Não quero me cortar. Talvez use um martelo, ou uma pedra daquele vaso de plantas. A pedra é mais simbólica, mais visceral. Martelo é algo brutal (Menezes & Marques, 2020).

Em ‘O meu Sol’, de Luis Maffei, um narrador feminino mistura-se à rotina acentuadamente marcada pela reiteração dos momentos: Espera – banho – espera – lentidão – espera – encontro – entrega – banho. Do espaço doméstico previsível, a narradora espreita o espaço urbano esvaziado: “A cidade onde moro parece quebrada, como seu país. Obrigam-nos a uma espera sem futuro” (Menezes & Marques, 2020). O que sobra, nesse presente sem ponto de ancoragem possível, é a dimensão concreta do próprio tempo: “Alguém me espera numa janela. Não existe tempo. Só existe tempo” (Menezes & Marques, 2020). Flávia Six, em ‘Verde na minha mão’, como já demarca o título, cobre-se de plantas, elementos vivos que se destacam de um mundo solitário e objetal: “O problema é que estou cercada de coisas. Me falta um pulsar, uma voz que vibre numa freqüência que não seja a minha” (Menezes & Marques, 2020). Nesse espaço de convivência com o verde, descobre-se meio vegetal, com plantas conversa, e se alegra ao vê-las desenvolverem-se:

Pois então, eu tenho voz de planta. É bem menos estridente que a de cachorros, mas mantém a articulação teatral da voz de bebê. Mas olha, um dia desses acordei e vi pequenas folhas nascerem. Juro, juradinho, minhas plantas estão crescendo. Deve ser o nosso tête-à-tête (Menezes & Marques, 2020).

No contexto botânico, o sol é personagem essencial, esse conhecido símbolo de vida, calor e força. O ‘astro-rei’ opõe-se à lua, na mesma medida das conhecidas dicotomias dia versus noite, frio versus calor, alegria versus melancolia. “É com o sol que tenho meu maior caso de amor. Quando a matemática grita e parece que a minha casa está povoada de ninguém, sentar com o sol é que me mantém no lugar. E ver minha folhinha desabrochar” (Menezes & Marques, 2020).

Para aqueles acostumados às mudanças rápidas de espaço proporcionadas pelas viagens frequentes, a imobilidade forçada pode levar a reinvenções, a divagações e fantasias capazes de suprir, pelo menos temporariamente, a saudade dos deslocamentos passados. É o caso de ‘2020: o ano escrito ‘entre aspas’’, de Leonardo Neto. O narrador, habituado a várias viagens de negócios, começa a fazer uso de uma eficiente frase feita: “Da porta da rua para dentro está tudo bem, mas se olho pro caos que se instalou lá fora, é só dor e sofrimento” (Menezes & Marques, 2020). Através dessa estratégia, resguarda seu espaço doméstico e passa a preenchê-lo com a visita a lindas casas, cujas fotos busca na Internet, preferencialmente em lugares exóticos, disponíveis para aluguel no site Airbnb. Também parte dessa rotina reinventada, está a leitura de curiosidades sem utilidade precisa, como o destino dos dejetos dos passageiros num avião ou a modernidade das cafeteiras das aeronaves. Nesse sentido, fica claro o espectro de interesse do narrador no mundo das viagens, fazendo dele um exemplar emblemático da categoria que já trouxemos aqui, do (agora) viajante imóvel. Talvez uma versão do que Xavier de Maistre faria se tivesse, no século XVIII, acesso à Internet.

Para alguns, os tempos passados entre quatro-paredes remetem aos tempos de guerra, presentes na fala do pai. Esta é a abordagem de ‘Do outro lado da linha’, de Anna Maria Mello.

Vai à cozinha, serve o café que está na térmica. Gosto amargo, requentado, meio gelado. Não pode desperdiçar. Engole, enrugando a testa. Em época de quarentena, não se joga comida fora. Pelo menos, era desse modo que seu pai falava dos tempos da guerra (Menezes & Marques, 2020).

Além dos alimentos, fonte importante de prazer e nutrição em momentos difíceis, o ciclo de dias e noites, isto é, dormir e acordar, é mencionado, de formas distintas, por várias narrativas. Em muitas delas, dormir tornou-se difícil. Menciona-se a cama, a insônia, a noite e seu silêncio. E também, obviamente, o pesadelo, metáfora adequada aos efeitos de um vírus mortal, como no anteriormente citado ‘Pesadelo acordado’, de Luiz Roberto Guedes. A crônica destaca o isolamento de que certas ocupações sempre fizeram uso, como escritores e free-lancers. “Quanto a mim, escriba sem emprego fixo nem aposentadoria, vivendo fugalmente na Frilândia, estou acostumado ao isolamento desde meu último emprego “presencial”, há mais de 10 anos” (Menezes & Marques, 2020). O isolamento ainda trouxe novos desafios aos aposentados e idosos (acrescentado-se o risco maior de adoecimento por parte dessa faixa etária). Para aqueles que trabalham de forma autônoma, de casa, e já estão mais maduros, a necessidade de isolamento reveste-se de uma verdadeira condenação à solidão, inspirando o paralelo com a mãe idosa: “Daí lembro de minha falecida mãe, aos 89 anos, me dizendo muito lucidamente que “minha vida está muito sem sentido”. O isolamento já lhe pesava” (Menezes & Marques, 2020). O tempo é artifício de difícil manejo. Elástico, buraco a ser continuamente preenchido: Entocado e Sr. do meu tempo, navego pelo youtube, assistindo a documentários os mais diversos, aleatoriamente” (Menezes & Marques, 2020). (‘Pesadelo acordado’, Luiz Roberto Guedes). Dispôr dele (‘Sr. do tempo’), enquanto tantos morrem e sofrem, estranhamente soa como uma penalidade, ao invés de um trunfo.

Salvação pela literatura

Como afirmado anteriormente, em muitas narrativas, mesmo quando a Literatura e seu poder regenerador não é o assunto central, sua importância surge por entre as linhas, travestida de várias formas: livros, histórias, memórias, figuras de linguagem, palavra, texto. Paira no ar essa atração milenar pelo ‘Mar de histórias’, essa vocação pelo encantamento de Sherazade. Em ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ (2019), Ailton Krenak, nas palavras reunidas sob esse título sugestivo, declamadas pelo intelectual, o poder de contar histórias é o elo que une o presente a um passado ancestral de sabedoria, única possibilidade de construir um futuro menos ameaçador: “E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (Krenak, 2019, p. 13). Estudando a história dos povos originários, Krenak afirma ter encontrado uma fonte inesgotável de experiência e motivação, recursos indispensáveis à sobrevivência em tempos incertos: “Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos” (Krenak, 2019, p. 14). E a crise que cada um vivencia, confinado entre suas quatro paredes, remete à insistência narcísica em olhar a si mesmo, muito antes de pensar na dor e na perda do outro: “Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser” (Menezes & Marques, 2020).

Do conjunto de narrativas agrupadas na coletânea, poucas são textos puramente ficcionais. Destacam-se, nesse sentido, o conto entre o terror e a distopia, no mais prosaico dia-a-dia de um casal, ‘O Olho Amarelo do Tucano’, de Jorge Marques. Distante do horror da pandemia materializada em aves ameaçadoras – tucanos, lembramos, aves tipicamente nacionais – novamente histórias de um casal são o ponto central de ‘Um Conto de Amor não Confinado’, de Sonia Rosa. Após muitos anos separados, tendo se apaixonado na juventude, um casal se reencontra. Ele, separado, ela, viúva. Contudo, a pandemia se interpõe entre os corpos, ameaçando de forma violenta a possibilidade de reconciliação e a retomada da história de amor. Na linha distópica, ‘O Antídoto’, de Antônio Schimeneck, é outro conto puramente ficcional. Uma família composta por uma menina e seus avós rompe, literalmente, a bolha em que a humanidade vive reclusa e busca refúgio no ambiente natural. Na bolha, o vírus mata e subjuga existências; o cenário bucólico da natureza, com suas plantas exuberantes e animais, permite a reconciliação da espécie humana com o planeta, proporcionando o equilíbrio.

O avô abraçou-se num tronco de carvalho e a neta sentiu o pelo macio do gato preto que começava a demarcar território nas suas pernas. E foram se misturando às avencas, aos lírios, às taquarapocas, aos insetos e às cascas das árvores e descobriram outros refugiados que nem eles. Os outros. Os de fora. Os que não se enquadravam. E, ali, deleitosa surpesa, não havia mais a ameaça do mortal vírus. [...] Os três, vestidos de musgo e sombra, sabem que a verdade não está lá (Menezes & Marques, 2020).

Da profícua relação literatura-salvação, um dos momentos altos é ‘Literatura e confinamento, a solidão’, de Silviano Santiago. Numa prosa fluida, o leitor tem, diante dos seus olhos, grandes referências da literatura universal, como Carlos Drummond de Andrade, Charles Baudelaire e Daniel Defoe, com seu ‘Robinson Crusoé’. A base da crônica é comparar a boa literatura, aquela que nos constitui leitores e cidadãos, com um espelho, onde repetida e paralelamente, nos miramos e nos projetamos. Silviano Santiago parte da teoria do estágio do espelho, de Lacan, a fim de compor sua ode à importância da Literatura, notadamente em períodos dominados pela doença e incerteza:

Pelo estilo e a composição artística, o deleitar, comover e ensinar se dão simultaneamente. O leitor não se aproxima do livro como pessoa sabichona, abastecida o suficiente de emoções, ainda que o seja. Ele procura algo e não sabe bem o que é. Dele se aproxima para, de modo inédito, se deleitar, se emocionar e aprender. De repente, abre-se uma caixinha de surpresas. A nova leitura é diferente da anterior. Pode aumentar o fascínio ou diminui-lo. Depende (Menezes & Marques, 2020).

Em ‘Isso nunca aconteceu comigo antes’, Júlio Emilio Braz destaca a singularidade da existência humana, permeada pela palavra:

A palavra realmente nos singulariza e materializa o cogito ergo sum de nossa humanidade mais profunda e esplendorosa. O tempo, a memória, a eternidade. Tudo é palavra e foi a partir dela, percebi, que demos nossa resposta ao confinamento, ponte segura para se alcançar o outro e reforçar os vasos comunicantes de nossa existência intrinsecamente gregária (Menezes & Marques, 2020).

A crônica a compara a um farol. Se ele nos guia pela escuridão das trilhas de hoje, será esse mesmo norteador que nos restituirá alguma humanidade: “Na adversidade, a palavra transforma-se em farol a iluminar o tortuoso caminho de volta à nossa humanidade. Escrita ou oralizada, a palavra. Sempre a palavra” (Menezes & Marques, 2020). É o poder encantatório da palavra que inspira ‘Quarenta dias, noites, anos’, de Adriana Armony. Tendo números e seus significados em mente, a crônica remete ao universo das 1001 noites:

Sherazada usou 1000 noites para engambelar o sultão e adiar a própria morte, mas foi em apenas uma que se libertou. Numa noite, o sultão foi fulminado pela compreensão de que o amor pelas histórias tinha se tornado maior do que o medo da morte (Menezes & Marques, 2020).

A marca de 40, presente em ‘quarentena’ leva a escritora a questionar a duração desse período: “O no. 40 se impõe em tempos de Covid-19, este outro número que assinala um início – 2019 – sem que se vislumbre um fim. Quarentena, dizemos, sem saber, se quarenta serão os dias, meses, anos” (Menezes & Marques, 2020). Ainda com as origens da prática da quarentena como foco, a autora menciona o início de tudo, com a Peste Negra, em Veneza, Itália. Lembra ainda outro registro infeliz da história da humanidade, evocando a obra É isto um homem?, de Primo Levy, e associando epidemia ao extermínio nazista. O encerramento ilustra as inquietudes assinaladas ao longo da crônica com uma lamentável provocação: “Mas e aí?”, diz o homem que 57 milhões de brasileiros elegeram” (Menezes & Marques, 2020).

O mal do século XXI

Susan Sontag (1989), nos ensaios de Doença como metáfora, demarcando as diferenças entre dois flagelos entre os humanos, a tuberculose e o câncer, inicia sua argumentação separando o reino dos doentes e o reino dos sãos. Esta constatação nada tem de inocente, como pode parecer à primeira vista. Trata-se mesmo de uma visão de mundo que continuamente delimita os espaços de atuação, afetando a convivência e o destino das pessoas:

A doença é a zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar (Sontag, 1989, p. 6).

Discorrendo sobre a tuberculose, a teórica afirma que o efeito de ação dessa doença cruel é proporcional ao desconhecimento de seu tratamento. Portanto, ela era considerada um mal secreto. O desconhecimento da etiologia da doença é igualmente responsável pela crença em seu alto poder de contágio. Ao surgir, o novo Coronavírus desafiou a comunidade médica mundo afora. Passado mais de um ano dos primeiros casos de hospitalização e perdas, foi possível desenvolver, pela comunidade científica, um protocolo de tratamento e controle frente à doença. Por isso, torna-se particularmente preocupante o poder de mutação do vírus, especialmente quando grandes contingentes populacionais começaram a receber as primeiras doses da vacina. Com causa e características bem diferentes da Covid-19, a tuberculose, ainda assim, por afetar os pulmões, guarda algumas semelhanças com esse mal do século XXI: “A tuberculose é desintegração, enfebrecimento, desmaterialização; é uma ‘enfermidade’ de líquidos – o corpo se transforma em fleuma, em muco, em escarro, e, por fim, em sangue – e ‘de ar, da necessidade de um ar melhor’” (Sontag, 1989, p. 4,).

O que ainda não foi possível, nesses longos meses de pandemia global, foi realizar o movimento que Sontag denomina de ‘estetização da morte’. Segundo a autora, somente os românticos conseguiram estetizar os males causados pela tuberculose: “Os românticos moralizaram a morte de uma forma nova por meio da tuberculose, que dissolvia o corpo espesso, eterizava a personalidade, expandia a consciência. Foi igualmente possível, mediante fantasias sobre a tuberculose, estetizar a morte” (Sontag, 1989, p. 13).

A saúde e a doença, apoiadas nos seus discursos ao longo da história, são grandes temas da obra de Michel Foucault. Em sua História da Loucura na Idade Clássica (1978), o filósofo destaca o surgimento, nos idos do século XVIII, de um medo, causado por um mal misterioso que se espalhava, sorrateiramente, das casas de internamento, e posteriormente, pelas cidades.

Na inextricável mistura entre contágios morais e físicos, e através desse simbolismo do Impuro, tão familiar no século XVIII, imagens muito antigas subiram à memória dos homens. E é graças a essa reativação imaginária, mais do que por um aperfeiçoamento do conhecimento, que o desatino viu-se confrontado com o pensamento médico (Foucault, 1978, p. 392).

Nesse sentido, a principal medida é permitir que o mal, ou seja, que a doença, se misture ao cenário citadino. Estabelecia-se, assim, aquela distinção apontada por Sontag, entre os passaportes dos saudáveis e dos doentes. O grande medo que motiva as autoridades é o contágio:

[...] reduzir a contaminação, destruindo as impurezas e os vapores, diminuindo todas essas fermentações, impedir que o mal e os males viciem o ar espalhando seu contágio pela atmosfera das cidades. O hospital, a casa de força, todos os locais de internamento devem ser mais bem isolados, envolvidos por um ar mais puro: nessa época há toda uma literatura do arejamento nos hospitais, que delimita longinquamente o problema médico do contágio mas que visa, de modo mais preciso, aos temas da comunicação moral (Foucault, 1978, p. 393).

Nesse texto clássico, Foucault ressalta um dos estigmas e flagelos na trajetória do Coronavírus: seu poder fulminante de contágio, o que gera, antes de qualquer outra questão, um aspecto moral, de preservação da própria saúde, e que pode resultar na manutenção da saúde do outro. Em ‘O corpo sígnico’ (1994), Ferreira baseia-se nas leituras, realizadas pelos médicos, dos sintomas relatados pelos pacientes. O que a pesquisadora destaca é que esse entendimento origina-se de interpretações acionadas por determinadas significações. A doença, assim como a saúde, encontram seu suporte no corpo, e este é tomado como um “[...] fenômeno gerador de significação e sentido” (Ferreira, 1994, p. 102). Em outras palavras, a noção de doença é dependente de um valor cultivado e aceito em determinado grupo social:

[...] determinadas mensagens emitidas pelo corpo, os sintomas experienciados pelo indivíduo e os sinais observados no exame clínico do médico levam a um significado, a doença. O signo só tem valor enquanto tal se compartilhado pelo grupo social (Ferreira, 1994, p. 102).

Num país de práticas religiosas diversas, a religião e seu imaginário são elementos fortemente arraigados na cultura. Na antologia de contos e crônicas sobre a pandemia, não poderia ficar de fora a possível leitura, por parte de alguns grupos, de que a pandemia remeteria ao apocalipse, ao fim dos tempos, ou, minimamente, teria surgido como punição da humidade por parte de Deus. ‘De um Tom Apocalíptico Adoptado em Tempos de Coronavírus’, de Pedro Eiras, traz comentários de líderes religiosos, oriundos de países como EUA e Itália, vinculados às diversas religiões (judaísmo, catolicismo, islamismo), de que o vírus seria uma forma de castigo divino aos excessos da humanidade, como os ‘pecados’ LGBTQ, o comunismo, o ateísmo dos chineses, ou até seria o terceiro segredo de Fátima, segundo o qual um anjo traria uma espada de fogo contra o mundo. “[...] por cima da doença vírica, uma doença moral, tudo isto in nomine Dei. E colocando sobre os ombros de seres humanos infectados o estigma de estarem a pagar por não-sei-que-“pecados” da humanidade” (Menezes & Marques, 2020).

Enquanto alguns seguem atribuindo o colapso causado pelo vírus à ira divina, outros lamentam a impossibilidade de luto, ação humanamente associada à perda. Com mortes que se sobrepõem umas às outras, o sujeito com seu passaporte de são tenta organizar, em seus pensamentos, a lista dos que se foram, inevitavelmente chocando-se diante de tamanha velocidade e falta de sentido das perdas. ‘Fica pra se Houver Depois’, de Marcos Pasche, é uma breve crônica, em tom coloquial, possível de ser lida num respiro só, com a mesma violência temporal na qual os nomes se acumulam num lamentável rol. Ante essa impossibilidade do luto, a obra também registra o luto nomeado e real, causado pela perda do afetuoso vendendor de livros, no tocante ‘O Livreiro e a Mariposa’, de Godofredo de Oliveira Neto. E em ‘Uma Nova Cor no Mundo: Nuvem Negra Transparente’, Gonçalo Tavares renova as metáforas do vírus, comparando-o à fome. Uma fome insaciável, incontrolável. Daí, elabora uma analogia entre a fome do estômago e a fome de sexo, motivada pelo fato inusitado, divulgado na imprensa, de que em Wuhan proibiu-se o consumo de animais selvagens durante cinco anos (!):

Durante cinco anos, os animais selvagens podem estar calmos. Talvez ao fim desses 5 anos os animais selvagens fiquem mansos e possam já ser legalmente comidos. O manso é aquilo que é comido sem dizer ai nem ui. A fome humana, essa nunca, amansa. Ao contrário dos cavalos selvagens, de alguns lobos e de vários chacais. O cavalo domestica-se à força do punho forte e à corda. Com a repetidão e por vezes ao pontapé. Mas não podes amansar o teu estômago, que é coisa selvagem. Não há corda, punho, pontapé ou jejum repetido que domestique. Levanta o estômago a cada novo dia de manhã e diz: Quero (Menezes & Marques, 2020).

Enquanto isso, um ‘prostituto trans no Brasil’, explica sua sina: “Se eu não tiver sexo, morrerei de fome” (Menezes & Marques, 2020). E, cada qual com sua fome, segue adiante, pois “O dia em Lisboa sem nuvens, nem claras nem escuras” (Menezes & Marques, 2020).

Considerações finais?

Como concluir, se o cenário mundial aponta para frágeis certezas? Em outras palavras, o futuro, como em vários momentos ressaltados pelas contribuições da coletânea, é o que há de mais incerto. Um exemplo é a crônica ‘Volta, d. Irma, volta!’, de Rogério Athayde, na qual o narrador pensa na vizinha idosa. Como tantas outras personagens de novelas reais, ele soube, através do porteiro do prédio em Copacabana, Rio de Janeiro, que D. Irma havia sido internada devido ao vírus. Desamparado, o narrador compartilha sua constatação: “Às vezes me ocorre que a pandemia pode ser um processo de desaparecimento” (Menezes & Marques, 2020).

A emergência de crises, que no presente contexto assumem a forma de uma pandemia traiçoeira, sempre motivou a escrita e a reflexão, seja na esfera literária, seja por meio de ensaios teóricos. Doença (e seu inverso, saúde), morte, apocalipse, solidão figuram entre os grandes temas do repertório da arte e das ciências humanas. A idéia do mal invisível (Sontag, 1989), o pavor do contágio e seus desafios morais (Foucault, 1978), o corpo-sintoma (Ferreira, 1994), além da intertextualidade com viagens imaginárias ou dentro do quarto (Assis, 1978;Candido, 1989;Garret, s.d. [1846]; Maistre, 2020), traduzindo a relevância da literatura em tempos difíceis (Krenak, 2019), são elementos do recorte teórico que reunimos e que dialogam abertamente com as crônicas, contos e poemas dessa antologia da quarentena. Nos textos literários, o espaço é continuamente ressignificado, tanto o do asfalto, quando o dos lares, ou até mesmo em projeções distópicas, capazes de romper com amarras temporais. Da mesma maneira, ganham força as demandas de afeto, os impulsos da memória, a fantasia e o sonho (ou a ausência dele, na insônia, por exemplo). A literatura se reafirma como recurso que oferece alento, possibilita o sonho e a reflexão.

E, assim, a exemplo dos textos reunidos pelo volume, finalizamos sem concluir, mas reforçamos que a literatura é um lócus inesgotável de conforto e saber. Dessa forma, a iniciativa do compartilhamento gratuito da obra reforça a possibilidade de algum tipo de diálogo, ainda que breve. É o que constata Luciany Aparecida, em seus ‘Festejos de liberdade’: “Aciono meu maior festejo de liberdade: o texto” (Menezes & Marques, 2020). Enquanto lemos ou escrevemos, nos deparamos com circunstâncias até então inusitadas: cidades mais vazias e silenciosas, e lares mais ocupados. Suporta-se como é possível suportar, gritando em meio ao silêncio: “Já pensou o quanto barulhento é o silêncio?” (Menezes & Marques, 2020).

Referências

Assis, M. (1978). Memórias póstumas de Brás Cubas (7a ed.). São Paulo, SP: Ática.

Candido, A. (1989). À roda do quarto e da vida. Revista USP, (2), 101-104. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i2p101-104

Ferreira, J. (1994). O corpo sígnico. In P. C. Alves, & M. C. S. Minayo (Orgs.), Saúde e doença: um olhar antropológico (p. 101-112). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.

Foucault, M. (1978). História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, SP: Perspectiva.

Garret, A. (s.d. [1846]). Viagens na minha terra [e-book]. Luso Livros. Recuperado em 14/11/2021 de https://metavest.com.br/livros/viagens-na-minha-terra.pdf

Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.

Maistre, X. (2020). Viagem ao redor do meu quarto. São Paulo, SP: Editora 34.

Menezes, R., & Marques, J. (2020). Quarentena em quarentena: 40 visões de mundo em pandemia [e-book]. Rio de Janeiro, RJ: Oficina Raquel.

Sontag, S. (1989). Doença como metáfora: AIDS e suas metáforas. São Paulo, SP: Companhia das Letras.

Notas

[1] Os trechos em destaque não apresentam páginas marcadas, devido ao formato de e-book.
[2] Fonte: Resenhas a la carte. Recuperado de https://resenhasalacarte.com.br/viagem-ao-redor-do-meu-quarto-xavier-de-maistre/
[3] O trecho em destaque não apresenta página marcada, devido ao formato de e-book.
[4] Fonte: Dicionário on-line de português. Disponível em https://www.dicio.com.br/crisalida/

Notas de autor

eswels@letras.ufrj.br

HTML generado a partir de XML-JATS4R por