Literatura
Primo Levi e a memória de Auschwitz: o dever da testemunha e a criação literária
Primo Levi and the memory of Auschwitz: the duty of the testimony and the literary creation
Primo Levi e a memória de Auschwitz: o dever da testemunha e a criação literária
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 43, núm. 2, 2022
Universidade Estadual de Maringá
Recepción: 01 Enero 2021
Aprobación: 17 Agosto 2021
Resumo: É a partir da obra de Primo Levi, autor canônico da literatura de testemunho, que este artigo se propõe a analisar o papel da memória na criação literária. Tomando como base as relações entre memória, história e literatura, e analisando os escritos testemunhais do autor, pretende-se expor como a memória do sobrevivente está presente não somente nas obras que tratam diretamente do ‘universo concentracionário’, mas também em sua narrativa de ficção e em seus poemas. Para isso, toma-se como base a poesia de Levi, vertente ainda pouco lida de sua obra. Apesar de apresentarem um peso memorialístico, os poemas de Levi são muitas vezes colocados abaixo de sua narrativa testemunhal e considerados uma face ‘menor’ de sua literatura. Traz-se aqui, porém, a relação que a poesia ‘primoleviana’ estabelece com a memória e, consequentemente, com a história. Assim, pretende-se expor que os escritos do autor, nascidos do testemunho e da memória, devem ocupar um papel de destaque, já que rememoram um passado sombrio que teima em nos assombrar no presente.
Palavras-chave: Primo Levi, poesia italiana, literatura de testemunho, memória, história.
Abstract: It is from the work of Levi, a canonical author of the testimony literature, that this article analyzes the role of memory in literary creation. Based on the relationship between memory, history and literature, and analyzing the author's testimonial writings, I intend to expose how the survivor's memory is present not only in the works that deal directly with the universe of the concentration camps, but also in his fiction and poems. For this purpose, I take Levi's poetry as a base, a part of his work whose read is still limited. Despite bringing a memorialistic connotation, Levi's poems are often placed below his testimonial narrative, and are considered a ‘minor’ part of his literature. However, I bring here the relationship that the ‘primolevian’ poetry establishes with memory and, consequently, with history. Thus, I intend to expose that the author's writings, born of his testimony and his memory, must occupy a prominent role, since they recall a dark past that insists on haunting humanity in the present.
Keywords: Primo Levi, italian poetry, testimony literature, memory, history.
Introdução
No momento em que este artigo é escrito, o Brasil se vê ameaçado pela escalada das medidas autoritárias de um governo que prende opositores que se manifestam contra ele, baseado na Lei de Segurança Nacional redigida ainda nos tempos da ditadura militar. Ditadura, inclusive, que é muitas vezes exaltada por aqueles que estão no poder. Vivemos uma constante ameaça à democracia, que não está somente nas prisões arbitrárias, nos afagos ao militarismo e na presença de apoiadores da ditadura, mas também na presença de correntes ideológicas de extrema-direita e simpatizantes de regimes totalitários nos altos escalões do governo; na perseguição às minorias, no projeto de extermínio de indígenas e quilombolas, no avanço do neopentecostalismo que sufoca a diversidade étnica e cultural. Tudo isso remete a uma espécie de revisionismo e falsificação da história, que se torna oficial à medida que insere, nas propagandas oficiais do governo e até nos materiais didáticos destinados ao ensino básico, referências positivas ao golpe militar de 1964, e transforma-se em panfleto ideológico pautado pela guerra a um inimigo imaginário: o comunismo internacionalista. Ao mesmo tempo, omite a referência a questões pautadas pela pluralidade e diversidade cultural, sexual e religiosa.
Em um contexto agravado pela pandemia, contra a qual poucas medidas efetivas foram tomadas, e cujas consequências parecem ser avassaladoras, sobretudo entre a população mais vulnerável, a literatura de Primo Levi apresenta-se como um espaço incontornável de reflexão, para que possamos pensar um país e uma sociedade capazes de se levantar contra a violência, a discriminação e a segregação. Ela continua a falar conosco, das maneiras mais inesperadas, sobre o que aconteceu e o que está acontecendo.
Assim sendo, a memória dos campos de concentração e extermínio mantidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra, o maior exemplo da barbárie empreendida pela Alemanha comandada por Adolf Hitler, apresenta-se como um dever. Um desses campos tornou-se símbolo da chamada ‘Solução Final’ e sinônimo dos horrores do morticínio nazista. O complexo de Auschwitz, localizado na região da Alta Silésia, na Polônia, foi responsável pela morte de aproximadamente 1,5 milhão de pessoas, entre judeus, eslavos, ciganos, adversários políticos e homossexuais. Em uma área de aproximadamente 40 quilômetros quadrados, com três campos principais – Auschwitz I, Birkenau e Monowitz – e mais 39 subcampos, foi o lugar onde, em 1944, no auge da barbárie, cerca de 6 mil pessoas foram mortas diariamente por estafa, fuziladas, de frio, por experimentos médicos ou nas câmaras de gás. Nos relatos dos sobreviventes é frequente a referência ao amanhecer nas barracas, quando se descobria que os companheiros que haviam partido no dia anterior não estavam presentes, e nunca mais retornariam.
Na maioria dos campos, os judeus foram as principais vítimas. O genocídio da população judaica em todos os territórios ocupados pela Alemanha era o objetivo da ‘Solução Final’ e, entre aqueles presos e postos sob custódia do Terceiro Reich, estima-se que cerca 6 milhões deles perderam a vida durante a guerra, atendendo ao projeto pensado, calculado e executado pelos nazistas desde os primeiros anos do conflito mundial. Tudo fazia parte de um plano que envolvia o extermínio étnico daqueles considerados inferiores à ‘raça ariana’ e a punição aos inimigos políticos.
A política genocida dos nazistas, levada adiante pelos burocratas e ideólogos do regime, começou a ser interrompida somente em 27 de janeiro de 1945, quando o Exército Vermelho entrou nos campos de concentração e extermínio do complexo de Auschwitz e libertou cerca de 8 mil prisioneiros. A data que marca a liberação dos campos na Polônia é hoje comemorada como o Dia da Memória, uma homenagem aos milhões de seres humanos torturados e mortos nos campos comandados pela Alemanha nazista. Naquela tarde de sábado, as tropas soviéticas, enfrentando a resistência dos soldados alemães, conseguiram libertar aqueles que tinham conseguido sobreviver à fome, ao frio e à desumanização. Um desses sobreviventes era um jovem químico de origem judaica, italiano de Turim, que então tinha 26 anos e iria se tornar, em um futuro não muito distante, um dos maiores autores da literatura do século XX: seu nome era Primo Levi.
O dever da memória
A situação extrema na qual Levi se encontrava no momento da chegada do Exército Vermelho – havia contraído escarlatina semanas antes e lutava para sobreviver junto aos outros prisioneiros em condição semelhante na enfermaria do campo – era fruto de onze meses da mais intensa degradação à qual um ser humano pode ser submetido. Levi tinha sido preso no final de 1943, quando decidiu se juntar a um recém formado grupo partigiano nas montanhas de Aosta, nos alpes italianos: após delação, em 13 de dezembro de 1943, Primo Levi foi preso em uma localidade chamada Col di Joux com outros dois companheiros. No momento da prisão, conseguiu se livrar da pequena pistola que carregava consigo, e que mal sabia usar; na caminhada rumo à delegacia, conseguiu rasgar e engolir os pedaços da falsa carteira de identidade que estava em seu bolso. Sob custódia da milícia fascista, e sob a pressão do interrogatório, decide fazer uma escolha. Um dos repubblichini – assim eram chamados os apoiadores e a milícia da República Social Italiana, Estado fantoche comandado por Mussolini após o Armistício de Cassibile, em 8 de setembro de 1943 – diz a ele que se fosse judeu, poderia ser preso e enviado a um campo de concentração mantido pelo governo italiano; se fosse partigiano, a pena seria o fuzilamento. Declara-se judeu.
Como judeu, é enviado ao campo de Carpi-Fossoli, um dos mais de trinta campos de concentração e trânsito espalhados pela Itália e controlados pelos fascistas. Em fevereiro de 1944, o controle do campo foi entregue aos nazistas: a partir daquele momento, os soldados alemães identificavam os prisioneiros judeus e os levavam até à Polônia, ao complexo de Auschwitz. Foi no campo de Fossoli, próximo a Modena, que Levi iniciou a experiência que mudaria radicalmente a sua vida, e começou a presenciar os fatos responsáveis por mudar toda a história da Europa e do mundo.
Considerado um dos grandes faróis que iluminam a história dos sobreviventes da Shoah, autor que fez da experiência como deportado e prisioneiro o mote da sua obra literária, e reconhecido como um dos maiores representantes da literatura de testemunho do pós-guerra, Primo Levi está entre aqueles que sobreviveram e que escolheram contar a sua história, devido a uma necessidade que o acometia ainda no Lager (Levi, 2013). Antes de mais nada, é preciso pontuar que a experiência dos sobreviventes, no limiar entre a vida e a morte, entre a humanidade e a desumanização, neles gerou atitudes diferentes. Enquanto alguns optaram pelo caminho do testemunho, assumindo uma espécie de obrigação e responsabilidade moral desde praticamente a primeira hora após a libertação, outros, apesar do impulso de narrar a própria experiência, não o fizeram de imediato e, ao longo de suas vidas, foram motivados por fatores posteriores e interesses diversos. Outros ainda, decidiram calar.
A necessidade de contar, de narrar sua experiência, sempre foi evocada por Primo Levi. Em sua obra, vários são os momentos em que recorda os sonhos que tinha ainda no Lager: sonhava que tinha sobrevivido e que, ao chegar em casa e tentar contar o que viveu, as pessoas viravam as costas e não lhe davam atenção. O medo, portanto, de querer falar e não ser ouvido; o medo de que ninguém escutasse com atenção aquilo que tinha para falar era grande. No prefácio de seu último livro, ‘Os afogados e os sobreviventes’, publicado em 1986, Levi (2016a) divaga sobre a questão da memória e, acima de tudo, sobre a necessidade de preservá-la. Destaca que “[…] todos os arquivos dos Lager foram queimados nos últimos dias de guerra [...]” (Levi, 2016a, p. 8), o que prejudicou, de fato, que se conhecessem as verdades sobre os campos de extermínio. “O material mais consistente para a reconstrução da verdade [...]” (Levi, 2016a, p. 11), não poderia existir senão pela memória dos sobreviventes. Memória constantemente ameaçada:
Com efeito, depois de terem funcionado como centros de terror político, em seguida como fábricas da morte e, sucessivamente (ou simultaneamente), como ilimitado reservatório de mão de obra escrava sempre renovada, os Lager haviam se tornado perigosos para a Alemanha morimbunda, porque continham o segredo dos próprios Lager, o crime máximo da história da humanidade. O exército de espectros que neles ainda vegetava era constituído de Geheimnisträger, portadores de segredo, dos quais era preciso livrar-se (Levi, 2016a, p. 9).
Apesar das diferentes atitudes assumidas pelos sobreviventes, o esforço e a tentativa nazista de esconder os delitos praticados nos campos de concentração e extermínio não tiveram êxito. Com o fim da guerra, restaram os testemunhos, e não foram os alemães a ditar a história como os soldados previam aos prisioneiros. Muitos sobreviventes, entre eles Simon Wiesenthal, com a iminente derrota dos alemães, foram levados de um campo a outro, e no caminho escutavam os SS os advertindo cinicamente que, qualquer que fosse o final da guerra, “[…] a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito”. Os próprios soldados admitiam o caráter absurdo dos horrores cometidos contra os prisioneiros no Lager: “[…] as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança” (Wiesenthal apud Levi, 2016a, p. 7).
Antes da derrota, os alemães queimaram os arquivos, explodiram as câmaras de gás e fornos crematórios, mataram muitas testemunhas. Apesar disso, porém, poucos fatos da história contemporânea foram tão intensamente documentados e reconstruídos, e os sobreviventes são aqueles mais diretamente responsáveis por isso. Para muitos, escrever sobre Auschwitz era uma missão; falar sobre sua experiência era uma necessidade urgente. Conta-se que o escritor francês Robert Antelme, autor de um dos testemunhos mais conhecidos sobre os campos nazistas – ‘A espécie humana’, publicado na França em 1947, traduzido no Brasil em 2013 e publicado pela editora Record –, na viagem de dois dias de volta a Paris, após ser libertado do campo de Dachau pelos companheiros da Resistência Francesa, não parava de falar ao longo de todo o trajeto, contando de forma obsessiva a sua experiência, que se iniciara em julho de 1944, quando foi preso e condenado pelos alemães a trabalhos forçados. Aquela atitude de Antelme, que mesmo em estado precário sentia a urgência de se comunicar, de narrar aquilo que viveu e presenciou, era o indício de uma necessidade que acometeu muitos daqueles que conseguiram sobreviver: contar a sua história. História tanto dolorosa quanto necessária.
Primo Levi narra que no caminho de volta para casa, após a verdadeira odisseia cumprida pela Europa sob custódia do Exército Vermelho após a liberação de Auschwitz – história contada em sua segunda obra, ‘A trégua’ (1963) –, também queria contar o que viveu. Interpelava desconhecidos, contava de onde estava vindo e para onde estava indo, mostrava a tatuagem em seu antebraço esquerdo, dizendo ser o prisioneiro número 174517, sobrevivente do campo de Monowitz.
Mas contar a sua história era também um peso: recordar a experiência da desumanização gerava a dificuldade de escrever, significava “[…] passar o tempo em companhia de lembranças que provocavam dor, mesmo se o fizesse para se liberar e para oferecer testemunho” (Levi & Scarpa, 2021, p. 3). Mas Levi assume definitivamente o risco, assume o papel de testemunha, veste a insígnia que o acompanharia por toda a vida, enxergando o ato de testemunhar como uma responsabilidade moral imprescindível, uma obrigação para alguém que esteve no limiar entre a vida e a morte e sobreviveu. Porém, testemunhar não é fácil. Trazer à tona suas lembranças é algo complexo, que pode ser traduzido pela famosa frase de outro sobrevivente, o escritor Elie Wiesel: Se “[…] calar é proibido, falar é difícil, senão impossível” (Wiesel, 2007, p. 13). A literatura de Levi também considera essa premissa incontornável: como testemunhar se “[…] nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem” (Levi, 2013, p. 32).
O Lager representa também o intestemunhável: “[…] as testemunhas integrais são aquelas que não testemunharam; são os que tocaram o fundo; os sobreviventes falam em seu lugar: testemunham sobre um testemunho que falta” (Agamben, 1998, p. 43). Apesar da dificuldade e, em alguns casos, da impossibilidade de narrar – caso daqueles que sucumbiram, dos ‘afogados’ (Levi, 2016a) que não sobreviveram para contar realmente o que é tocar o fundo, a plena desumanização – Primo Levi leva seu intuito adiante, baseando-se em um estilo marcado pela constante busca da clareza, pela concisão e pela exatidão das palavras. Narrar os fatos a partir da sua perspectiva, pautada pela curiosidade de sua mente ‘científica’ é, acima de tudo, um direito adquirido por ele e por todos aqueles que viveram situações-limite (Seligmann-Silva, 2003, p. 63): a tarefa da memória deve ser compartilhada, tanto na “[…] memória individual e coletiva como também pelo registro (acadêmico) da historiografia”.
Primo Levi: testemunha, narrador e poeta de Auschwitz
Antes de mais nada, não podemos deixar de considerar uma definição já muito difundida nos meios culturais e intelectuais italianos e ainda pouco considerada pelos leitores e estudiosos brasileiros: Primo Levi é um autor poliédrico. A metáfora é extremamente válida. Aqui reconhecido primeiro e principalmente como uma testemunha da Shoah, autor de uma obra-prima na qual narra sua experiência como deportado – ‘É isto um homem?’ (1947) –, qualificado como químico, sobrevivente, testemunha, e somente depois como escritor, o autor turinense ainda precisa ser exposto ao leitor do lado de cá do Atlântico a partir da multiplicidade de faces que sua obra evoca: testemunha por excelência, mas também narrador de ficção, poeta, tradutor, químico, artista, antropólogo, linguista, etólogo, ensaísta. A obra literária de Levi, multifacetada em toda a sua complexidade de gêneros, inicia-se e não se desprende do testemunho, mas, ao mesmo tempo, oferece uma gama de possibilidades que, a partir dele, vai muito além. O tema recorrente em seus escritos é o próprio ser humano. Sua obra é um dos “[…] raros monumentos literários do século XX que conseguiram aliar refinamento estético a uma intensa preocupação pelo sofrimento dos indivíduos” (Dias, 2019, p. 9).
Tal testemunho, importante salientar, diferencia-se da historiografia, apesar de para ela contribuir. Trata-se da memória individual que, observada pelo historiador, contribui para a construção da memória coletiva, a fim de iluminar os caminhos de quem pretende andar por essas searas, trazer à tona a história do genocídio judeu e da Alemanha nazista. Do ponto de vista do historiador, o que está em questão não é a memória individual, mas o genocídio de um povo executado por um Estado moderno, no coração da Europa “[…] civilizada” (Cytrynowicz, 2003, p. 131). Do ponto de vista da literatura, e da perspectiva que se deve adotar na relação entre autor, texto e contexto, a memória individual importa significativamente mais do que a coletiva, está em primeiro plano, e não pode se submeter àquela.
Evidentemente que, ao se abordar a literatura de testemunho de Primo Levi, deparamo-nos com as premissas antes aqui elencadas, de forma muito clara, como bem sempre objetivou o escritor. Em seus três livros sobre a experiência como prisioneiro – ‘É isto um homem?’, ‘A trégua’ e ‘Os afogados e os sobreviventes’ –, reconhecidos como a ‘Trilogia de Auschwitz’, Levi leva o leitor diretamente ao ‘universo concentracionário’ (Rousset, 1997), faz com que praticamente presencie os fatos ao seu lado, emite reflexões que, mais do que restritas àquele universo e àquele contexto, contribuem para aquilo que ele afirma ser a intenção de seu primeiro livro: “[…] fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana” (Levi, 2013, p. 7). Assim sendo, narrativa e reflexão se juntam e trazem à tona o testemunho do sobrevivente para que, de fato, a sua memória contribua para a construção da memória coletiva. Porém, é importante que voltemos os olhos para toda a produção de Levi que está além da literatura de testemunho e que, mesmo assim, contempla o testemunho, explícita ou implicitamente.
Tomemos como exemplo os poemas escritos por Primo Levi. A poesia, apesar de ser uma face menos lida de sua obra, inclusive na Itália, foi efetivamente a primeira experiência propriamente literária do autor. Assim como observa Scarpa (2021), o poema ‘Buna Lager’, publicado no semanário do Partido Comunista de Vercelli, L’Amico del Popolo [‘O Amigo do Povo’], em 22 de junho de 1946, foi ‘a estreia absoluta’ de Levi, que trouxe consigo toda a memória, extremamente vívida, do Lager. O poema nasce da experiência, e da necessidade urgente de expressão da angústia do sobrevivente:
Buna Lager
Pés feridos e maldita terra,
Longa a fila nas cinzas manhãs
Fuma a Buna das mil chaminés,
Um dia como todos os dias nos espera.
As sirenes terríveis ao amanhecer:
‘Vós, multidão de rostos apagados,
Sobre o horror monótono da lama
Nasceu um outro dia de dor’.
Companheiro cansado, te vejo no coração
Leio-te nos olhos, companheiro ferido
Tens dentro do peito frio fome nada,
Você quebrou por dentro seu último valor.
Companheiro cinza fostes um homem forte,
Uma mulher caminhou ao teu lado.
Companheiro vazio que não tem mais nome,
Homem deserto que não mais chorou,
Tão pobre que você não tem mais dor,
Tão cansado que não tem mais medo,
Homem apagado, que foste um homem forte:
Se ainda nos encontrássemos
Lá em cima, no doce mundo sob o sol,
Com qual rosto nos enfrentaríamos? (Levi, 2016b, s.p., )[1].
O poema, publicado no citado semanário de Vercelli, foi incluído pelo autor em sua coletânea definitiva de poemas, Ad ora incerta [‘Em hora incerta’], publicada em 1984. Nela, Levi suprime o termo Lager, e o poema aparece com o título de ‘Buna’ - ‘a precisão naquele momento era supérflua’ (Scarpa, 2021). Em relação ao título da primeira versão, reproduzida acima, era importante expor que Buna era a fábrica de borracha sintética que surgiu em um dos campos do complexo de Auschwitz, e em cuja construção Levi chegou a trabalhar na condição de escravo. Era também um dos vários exemplos de cooperação entre a indústria e o governo alemão nazista. Lager é a palavra alemã que, como sabemos, remete aos campos de concentração e extermínio, e é o termo preferido de Levi para a eles se referir. Os versos do poema evocam uma máquina em pleno funcionamento, “[…] a fábrica da morte que funciona a todo vapor: em ritmo intenso, com uma vocalidade atormentada, com um registro declamatório” (Scarpa, 2021, s.p.).
O momento imediatamente posterior à volta para casa, após o período como prisioneiro no campo de Monowitz, representou para Levi, como sabemos, a urgência do narrar. Entre os últimos dias de 1945 e os primeiros de 1946, o autor escreveu uma série de poemas que, anos mais tarde, iria definir como “[…] concisos e sangrentos” (Levi, 2001, p. 151). Junto a isso, “[…] narrava vertiginosamente, tanto por escrito como oralmente” (Levi, 2001, p. 151). Levi considerava-se um “[…] poeta bissexto, que escreveu pouco mais de um poema por ano em sua vida, e que entende o ato de escrever poemas como uma atividade mental diversa de todas as outras conhecidas” (Levi, 2018, p. 685-686). Analisando as datas de suas composições – praticamente todos os poemas de Levi indicam a data em que foram compostos: ‘Buna Lager’, por exemplo, apresenta a data de 28 de dezembro de 1945 – podemos determinar dois períodos de maior criatividade, citados pelo próprio autor. Ao explicar, em duas entrevistas de 1984, o título da coletânea recém-lançada, Ad ora incerta [‘Em hora incerta’], Levi dizia:
É uma constatação que fiz ‘a posteriori’, quando coloquei as datas em ordem. Há um acúmulo entre 1945 e 46, e um outro acúmulo entre 1983 e este ano [1984]. Parecem dois cachos separados. Em meio a isso, nos anos restantes, estão os meus trabalhos em prosa e a minha profissão de químico. Para escrever, depois de oito horas por dia na fábrica, tive que adotar um método, uma regra. A poesia não tinha lugar: faltava, exatamente, ‘a hora incerta’ (Levi, 2018, p. 469)[2].
Existem duas zonas densas na minha produção poética: uma em torno de 1946 e uma recente, por dois motivos diversos. Aqueles do pós-guerra eram poemas fortemente emotivos, parecia-me que a linguagem poética servia melhor do que a prosa para falar das minhas experiências. Afinal, o meu primeiro romance abria-se exatamente com uma poesia, apresentada também nessa coletânea. Os poemas recentes eu definiria como poemas de ‘férias’, férias de tudo: do escrever em prosa, por exemplo, ou do meu trabalho cotidiano na indústria química (Levi, 2018, p. 473-474)[3].
Levi cita em suas declarações um de seus poemas mais conhecidos, ‘Shemá’, que abre ‘É isto um homem?’ - “Considerai se isto é um homem [...]” (Levi, 2019, p. 25) - e afirma que seus versos nasciam em ‘hora incerta’. O desejo de lançar a coletânea na primeira metade dos anos 1980 não encontrou o entusiasmo de sua editora, a Einaudi, que não considerou os poemas suficientemente especiais a ponto de merecerem a publicação. Após essa recusa, o autor apresentou os textos a Livio Garzanti, de Milão, editor de Pier Paolo Pasolini. A editora Garzanti, então, aceitou publicar o livro de poemas[4]. Tratava-se de uma coletânea que compreendia vinte e sete poemas já publicados em 1975 pela editora Scheiwiller, sob o título L’osteria di Brema; mais vários poemas publicados anteriormente no La Stampa, jornal de Turim; e mais algumas traduções do alemão Heinrich Heine e do inglês Rudyard Kipling. Ad ora incerta reúne, ao todo, 63 poemas de Levi e 10 traduções, que cobrem um arco de 40 anos: do primeiro, ‘Crescenzago’, escrito em 1943 até o último, escrito em 1984. A poesia de Levi raciocina, descreve, joga com as palavras, suscita a reflexão acerca da própria experiência e da experiência humana. Os exercícios de tradução presentes no livro, segundo o próprio autor, são “[…] mais musicais do que filológicos” (Levi, 2018, p. 475). O livro ganharia, em 1985, o prêmio ‘Abetone’, concedido pela província de Pistoia, e o Prêmio Nacional ‘Giosuè Carducci’.
Na oposição entre prosa e poesia, o autor considerava que a poesia tinha uma linguagem capaz de dizer, em poucas palavras, coisas que significavam muito, diferentemente da prosa, que era mais explícita e analítica, “[…] um novelo desfiado [...]”: “[…] poderia afirmar que se escreve poesia em um estado de excitação, ao qual é muito difícil conduzir-se deliberadamente” (Levi, 2018, p. 474)[5]. A prosa de Levi, apesar de forte e intensa, não é afeita a ‘derramamentos’, é pensada, calculada em busca da clareza, que vem do seu próprio estilo, fundado por sua mente científica. É por muitos classificada como serena, antissentimental e enxuta. Os poemas de Levi são igualmente intensos, mas portam um “[…] tom altissonante e uma voz, às vezes, estridente [...]”, bem diferente da sua prosa (Dias, 2019, p. 10): Levi reservou à poesia um tom que resvala na ira, na fúria contra os carrascos. Somados, prosa e poesia representam as diferentes formas de dar vazão à memória, porque de Auschwitz, não é possível escapar:
[Quem ...] conhece a minha história sabe que a experiência do Lager não se apaga. Pode ser superada, tornada indolor, ou até mesmo transformada em algo útil, como todas as experiências da vida, mas não se apaga. Faz parte dos meus momentos livres continuar a insistir sobre a pergunta de então: exatamente, se isto é um homem. A pergunta não se refere somente ao mundo da guerra e do nazismo, mas também ao mundo de hoje, ao terrorista, a quem corrompe ou se deixa corromper, ao mau político, ao explorador. Em suma, a todos aqueles casos nos quais é espontâneo se perguntar se a humanidade, no sentido pessoal da palavra, esteja conservada ou perdida, seja recuperável ou não (Levi, 2018, p. 470)[6].
Assim sendo, prosa e poesia são maneiras diferentes de se comunicar. O autor se nega ao hermetismo – corrente, inclusive, muito significativa na literatura italiana do pós-guerra, representada, sobretudo, pela poética do prêmio Nobel de Literatura de 1959, Salvatore Quasimodo – e apoia-se na clareza, contrária à ‘escrita obscura’, tão criticada por ele em um artigo de 1977 que gerou uma polêmica com outro escritor, Giorgio Manganelli (Levi, 2016c).
Nascidos também da memória e da experiência, assim como os escritos de testemunho, os poemas de Primo Levi versam sobre aquilo que sustenta toda a sua obra. O tema comum, como nos indica o título de seu livro de estreia, é o homem. O empenho de Levi é um empenho humano; é a escrita de um homem para os demais homens; interessa-se por confirmar que todo ser humano é uma pessoa a ser conhecida, mesmo que seja inimiga; e afirma que “[…] talvez, o resultado de sua busca é este: ter dado uma série de retratos humanos, prováveis e improváveis” (Levi, 2018, p. 475)[7].
Os poemas que tratam diretamente do Lager apresentam aquele caráter testemunhal. Sintetizam na forma poética sucinta a perspectiva do sobrevivente que encontrou a morte nos campos, mas também se depara com ela em seu cotidiano. Como já apresentado, falar sobre Auschwitz é, ao mesmo tempo, uma liberação, uma missão e um peso. E mesmo nos poemas que não tratam diretamente da experiência no ‘universo concentracionário’, a memória involuntária emana, reafirmando a impossibilidade de se apagar aquele passado, presente no presente. No célebre e fundamental ensaio de Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história [...]” (Benjamin, 1996, p. 222-234), o pensador alemão reflete sobre a memória involuntária, e a incorpora a seu procedimento historiográfico (Seligmann-Silva, 2003). Ora, a memória involuntária é feita por associações dominadas pelo acaso, o que, como se vê, é uma constante entre os escritores-testemunhas, entre aqueles que estiveram dentro de situações-limite. O caso de Levi, como veremos, é especialmente emblemático nesse sentido.
O poema ‘Fileira escura’ [Schiera bruna], escrito em 13 de agosto de 1980, nasce em um contexto muito diverso daquele no qual nasceram os primeiros poemas publicados de Levi, entre 1945 e 1946. ‘Fileira escura’ ilustra como a memória do sobrevivente, daquele que teve a vida marcada pelo trauma indelével, persiste em acompanhá-lo, mesmo que deliberadamente ele a evite. Quando consideramos os primeiros poemas, aqueles dos anos 1940, temos que considerar também a urgência do narrar, do levar o leitor ao conhecimento dos fatos, bem como a urgência do liberar-se das recordações, tornando o outro partícipe. O momento no qual ‘Fileira escura’ é composto remete a um contexto diverso: Levi é já um escritor conhecido e premiado na Itália. Aposentado da indústria química na qual trabalhou por mais de 30 anos, dedica-se à carreira de escritor, é colaborador fixo do jornal La Stampa, escrevendo também em outros cotidianos e periódicos de circulação nacional; é um intelectual midiático, uma voz a ser ouvida.
O poema indica que o eu lírico está na plataforma de um bonde em sua cidade, quando enxerga uma fileira de formigas que caminham na junção dos trilhos. A qualquer momento, quando o bonde chegar, elas morrerão. Em suma, mesmo organizadas, mesmo caminhando em um sentido definido, elas morrerão, mas ainda não se deram conta disso:
Era possível escolher percurso mais absurdo?
Na avenida San Martino há um formigueiro
A meio metro dos trilhos do bonde,
E justo na junção da linha férrea
Estende-se longa fileira escura,
Topa uma com outra formiga
Talvez a espiar sua via e sua sorte.
Enfim, essas estúpidas irmãs
Obstinadas lunáticas ativas
Escavaram sua cidade na nossa,
Traçaram seus trilhos sobre os nossos,
E neles correm sem suspeita
Incansáveis atrás de seus tênues comércios
Sem se preocupar com
Não quero escrever,
Não quero escrever sobre essa fileira,
Não quero escrever sobre nenhuma fileira escura (Levi, 2019, p. 74).
Ao descrever o vai-e-vem das formigas, em um dia comum, na ação corriqueira de esperar pelo bonde, a memória involuntária de Levi é suscitada. Memória que o acompanha, da qual é impossível se desvencilhar. As evidências dessa memória estão nos versos finais do poema, um poema escrito pelo sobrevivente Primo Levi (2019, p. 74): “Não quero escrever/ Não quero escrever sobre essa fileira/ Não quero escrever sobre nenhuma fileira escura”. Mesmo que não queira, as recordações do Lager povoam sua mente e, inevitavelmente, levam tanto o eu lírico quanto o leitor à comparação entre aquela fileira de formigas e os prisioneiros nos campos de concentração e extermínio, que também caminhavam em fila, que também constituíam uma fileira escura, que também caminhavam rumo à morte que, no Lager, era iminente, assim como era iminente a chegada do bonde que mataria as formigas.
Ao se assumir como testemunha, e levar o ato de testemunhar como uma missão por toda a vida, Levi ao mesmo tempo dá vazão à urgência de testemunhar e supera a pessoal dificuldade em escrever, pois escrever, muitas vezes, era reviver. A cada vez que escreve, liberta-se de um peso, mas impõe a si um outro, paga o preço da dor que os versos conclusivos de ‘Fileira escura’ exprimem com um grito sem som, correspondente ao ponto branco, ao verso recuado, no qual a poesia parece se romper e no qual o eu lírico afirma categoricamente não querer escrever. Certa vez, em uma entrevista de maio de 1971, indagado sobre a máxima de Adorno, se seria possível a poesia depois de Auschwitz, Levi responde:
Sim, talvez seja precisamente a afirmação de Adorno, que ‘depois’ de Auschwitz não se pode mais fazer poesia, ou ao menos não pode fazer quem lá esteve; enquanto era possível fazer poesia ‘sobre’ Auschwitz, uma poesia pesada e densa, como metal fundido, que escorre e te deixa vazio (Levi, 2018, p. 36)[8].
Poesia ‘pesada’ e ‘densa’, como ‘metal fundido, que escorre e te deixa vazio’: essa talvez seja uma das melhores descrições de muitos dos poemas do autor. Em seus poemas, bem como em suas narrativas de ficção, direta ou indiretamente, o Campo é parte indissociável da escrita e da personalidade de Levi. A afirmação de não querer escrever, repetida algumas vezes, e desesperadamente, nos versos finais de ‘Fileira escura’, parece trazer à tona o incômodo do sobrevivente, portador de uma experiência e de uma memória que não o abandonam, nem nos momentos e tarefas mais corriqueiras do cotidiano de uma vida que, ao menos parecia, ter voltado ao normal.
Mas Primo Levi escolheu escrever. Foi vítima e testemunha dos horrores do Lager; foi observador daquele grandioso “[…] experimento biológico e social [...]” (Levi, 2013, p. 127), o qual ele jamais deixou de narrar, questionar ou transformar em matéria literária. Um momento importante desse itinerário é o ano de 1958, quando a Einaudi publica a edição definitiva de ‘É isto um homem?’. O livro tinha tido pouco sucesso em sua primeira publicação pela editora De Silva, em 1947. Ao ser publicado pela renomada Einaudi, atingiria um público maior e cumpriria o intuito do autor, que faria sua narrativa chegar a um número maior de pessoas. Mesmo com essa meta cumprida, naquele ponto, Levi sabia que ainda não havia terminado de contar Auschwitz, que suas memórias não se encerrariam com o testemunho exposto naquele volume. Mas sabia também que, daquele momento em diante, por muitas ocasiões, deveria, de qualquer forma, recomeçar do início: pontuar a sua literatura como uma literatura nascida no Lager e que do Lager jamais se desprenderia.
Considerações finais
O crítico Marco Belpoliti (2011, p. 119) afirma, analisando a obra de Primo Levi, que para o autor turinense “[…] escrever comporta um ciclo: da memória à obra, e dessa à liberação da opressão da lembrança”. Em certa medida, Levi permaneceu “[…] prisioneiro do próprio dever de testemunhar, da própria repetição que é o princípio gerador da atualização da memória”. Assim, Levi coloca-se diante da memória de forma precisa e problemática. Precisa porque ele mesmo a define como sendo uma memória de precisão patológica, que encontra fundamento em sua constante busca pela clareza, fator primordial de uma literatura que sempre teve como intenção o comunicar-se com o leitor. Sua narrativa em si não é feita por códigos a serem decifrados, apesar de tratar de uma matéria complexa e muitas vezes incomunicável, e daí surge o caráter problemático no enfrentamento às recordações suscitadas por sua memória.
A lembrança do Lager não pode ser apagada, pois recordar é, para Levi, um dever: toda experiência, por mais traumática que seja, representa um elemento de conhecimento, uma fonte de reflexão, ou até mesmo um ensinamento. A raiz do memorialismo de Levi porta consigo a convicção de que escrever é explorar, examinar através de sondagens e indagações os fatos do passado; submeter a lembrança e a experiência à análise para construir, a seu modo, uma visão racional do passado.
Muitas vezes, Levi parece querer evocar a peculiaridade do Lager ao expô-lo como um evento único, que tinha como base o projeto de eliminação total de um grupo étnico, os judeus. Mas, ao mesmo tempo, em algumas de suas declarações, faz questão de ressaltar que o Lager não pode ser considerado um evento incidental imprevisto na história, pois antes e depois da política de extermínio levada adiante pelos nazistas, outros exemplos semelhantes foram detectáveis. Entre as décadas de 1970 e 80, cita os regimes autoritários e violentos que persistiam nas ditaduras da América Latina – Argentina, Brasil, Chile – e em países asiáticos como o Vietnam e o Camboja, que promoviam tortura, morticínio e campos de concentração.
Assim sendo, Primo Levi é, acima de tudo, um autor necessário. Necessário dentro do contexto no qual viveu, o período imediatamente pós Segunda Guerra, passando pela ebulição dos conflitos ideológicos das décadas subsequentes, marcados pela violência, pelo terrorismo e pelo autoritarismo que se espalhava pelo mundo; necessário para o leitor do século XXI, em um momento de avanço de políticas autoritárias. Na conclusão de seu último livro, ‘Os afogados e os sobreviventes’, Levi destaca a importância da memória dos sobreviventes, cada vez mais necessária à medida que o tempo empurrava para um passado cada vez mais distante os que viveram a Segunda Guerra e os campos da morte.
Primo Levi lamentava a sobrevivência de uma mentalidade que se aproximava de alguns sinais precursores do nazifascismo. Regimes autoritários ainda existiam aos montes; campos de concentração para inimigos políticos ou determinados grupos étnicos também. Propagava-se a ilegalidade do Estado, os regimes autoritários e totalitários: “Poucos países podem se dizer imunes em relação a uma futura onda de violência, gerada pela intolerância, pela vontade de poder, por razões econômicas, por fanatismos religiosos ou políticos, por atritos raciais” (Levi, 2016a, p. 164). As palavras de Levi, em 1986, ressoam de forma significativa para os leitores deste momento em que o mundo passa pelas mesmas inquietações, agravadas pela pandemia que nos assola desde o início de 2020.
Referências
Agamben, G. (1998). Quel che resta di Auschwitz. L'archivio e il testimone. Torino, IT: Bollati Boringhieri.
Belpoliti, M. (2011). Primo Levi. Milano, IT: Mondadori.
Benjamin, W. (1996). Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.
Cytrynowicz, R. (2003). O silêncio do sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e história do Holocausto. In M. Seligmann-Silva (Org.), História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes (p. 123-138). Campinas, SP: Unicamp.
Dias, M. S. (2019). A poesia de um sobrevivente. In P. Levi (Ed.), Mil sóis: poemas escolhidos (p. 9-17). São Paulo, SP: Todavia.
Levi, F., & Scarpa, D. (2021). Presentazione. In P. Levi (Ed.), Auschwitz, città tranquilla. Dieci racconti (p. 3-18). Torino, IT: Einaudi.
Levi, P. (2001). A tabela periódica. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.
Levi, P. (2013). É isto um homem? Rio de Janeiro, RJ: Rocco.
Levi, P. (2016a). Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades (3 ed.). São Paulo, SP: Paz e Terra.
Levi, P. (2016b). Ad ora incerta. Milano, IT: Garzanti.
Levi, P. (2016c). Da escrita obscura. In P. Levi (Ed.), O ofício alheio (p. 55-62). São Paulo, SP: Unesp.
Levi, P. (2018). Opere complete vol. 3. A cura di Marco Belpoliti. Torino, IT: Einaudi.
Levi, P. (2019). Mil sóis: poemas escolhidos. São Paulo, SP: Todavia.
Rousset, D. (1997). L’universo concentrazionario 1943-1945. La prima testimonianza della tragedia dei Lager. Milano, IT: Baldini & Castoldi.
Scarpa, D. (2021). A estreia absoluta de Primo Levi: “Buna Lager”. Revista de Literatura Italiana, 2(3).
Seligmann-Silva, M. (2003). Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In M. Seligmann-Silva (Org.), História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes (p. 59-88). Campinas, SP: Unicamp.
Wiesel, E. (2007). La nuit (2a ed.). Paris, FR: Minuit.
Notas
Notas de autor
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