Dossiê
ABORDAGENS PSICOSSOCIAIS SOBRE A PRIMEIRA FASE DA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL
Para proteger a humanidade é preciso nos afastar dela! Com esse chamado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) nos clama ao “isolamento social”, em um dos períodos mais críticos da história mundial, que têm afetado profundamente nossos modos de interação e de produção, alterando dinâmicas simbólicas e materiais.
Quando começamos a escrever esse texto, em 01/05/2020 (feriado do dia do/a trabalhador/a), as entidades oficiais responsáveis pelo monitoramento da pandemia do novo coronavírus já registravam quase 3,5 milhões de pessoas diagnosticadas com o SARS-CoV-2 (conhecido como “novo coronavírus”) e quase 250 mil mortos/as. A despeito da grande subnotificação, o Brasil já era o primeiro da América Latina em número de casos e estava entre os 10 países com maior incidência do vírus, com quase 100 mil casos e mais de 6.000 mortes (7%), além de mais de 1.500 óbitos em investigação, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde (Brasil, 2020a).
Hoje (26/08/2020), passados menos de 4 meses, o cenário é ainda mais preocupante e, certamente, quando você estiver lendo esse texto, os números serão ainda maiores. O Brasil hoje já é o segundo país do mundo em número de casos de pessoas diagnosticadas com o SARS-CoV-2 e de mortes por Covid-19, registrando, formalmente, 3.669.995 casos de pessoas contaminadas e 116.580 mortes, ou seja, um número maior do que o quantitativo global de morbidades e mortalidades registrado em maio. Hoje, no mundo inteiro, já são quase 24 milhões de pessoas contaminadas e quase 820 mil mortes (Brasil, 2020b).
A revista Psicologia & Sociedade resistiu, inicialmente, em produzir um dossiê sobre essa pandemia, tendo em vista tratar-se de um fenômeno complexo, sobre o qual, neste momento, ainda temos mais questionamentos do que capacidade de produzir conhecimentos metodologicamente densos e eticamente responsáveis. Pareceu-nos, em princípio, uma proposta pouco sensível e oportunista, com risco de resultar em produções superficiais.
Porém, embora ainda consideremos prematuro falar, de forma ampla e profunda, sobre os efeitos da pandemia, em uma perspectiva psicossocial crítica, resolvemos fazer um recorte cuidadoso, focalizando o conjunto de controvérsias importantes que se adensaram nesta primeira fase da pandemia no Brasil - particularmente em relação aos jogos políticos, disputas de versões, práticas preventivas e dinâmicas interpessoais mobilizadas (ou potencializadas) neste início da pandemia - e que justificariam a publicação deste dossiê. Neste sentido, convidamos a comunidade científica a produzir artigos que possam nos ajudar não a compreender, mas talvez a melhor organizar nossas dúvidas e questões fundamentais, que têm alimentado nossos debates nesta primeira fase da pandemia.
Neste momento, aqui definido como “primeira fase da pandemia”, que compreende especialmente o primeiro semestre de 2020, temos operado, no Brasil, com maior ou menor resistência, a difícil e necessária medida de prevenção baseada no isolamento social (alguns dizem ser apenas físico) orientado por entidades e profissionais baseados em protocolos da OMS (WHO, 2020a; WHO, 2020b).
As hashtags imperativas “#fiqueemcasa” e “#usemascara” viralizaram (para usar um termo ironicamente apropriado), em forma de campanhas sanitárias, nas redes sociais em meio a disputas de versões sobre origem, diagnóstico, imunização e tratamento da doença; insegurança generalizada em relação às informações (especialmente no tocante ao número efetivo de casos de contaminação, adoecimento e morte); orientações sanitárias que mudam no ritmo da expansão do número de casos; canais diversos de mídia disputando versões; repertórios midiáticos de grandes corporações alinhados a projetos políticos e econômicos capitalista comuns (ou não) e práticas discursivas machistas e patriarcais que colocam em relevo a ordem produtiva em detrimento da ética do cuidado e da vida.
Hoje, o quadro epidemiológico da pandemia, no Brasil, põe em relevo problemas sociais há muito denunciados pelos movimentos sociais e pelo campo de estudos e pesquisas em psicologia social. No caso brasileiro, a pandemia reproduz a desigualdade social resultante de processos e dinâmicas de colonialidade e segregação racial. Não por acaso, hoje, o maior número de casos e as maiores taxas de letalidade são registradas entre as populações negras, nas diferentes regiões do nosso país.
Além disso, em países como o Brasil e Estados Unidos, em que os governantes não apresentam uma clara política de prevenção e tratamento e preferem, de forma irresponsável, ignorar a gravidade do problema, a pandemia toma contornos ainda mais preocupantes. Assim, no campo da dinâmica pública, este período tem sido também marcado por controvérsias políticas em um cenário pré-eleitoral; gestões públicas e projetos político-econômicos em choque; ascensão e queda de um ministro da saúde que, apoiado em princípios, diretrizes e orientações de especialistas em saúde pública, confrontava abertamente discursos e práticas do representante máximo do poder executivo neste país; vacância temporária de representante do ministério da saúde; desrespeito e desinvestimento progressivo na produção científica nacional, especialmente aquela voltada para o campo das Ciências Humanas e Sociais; (des)governos, cinismos, argumentos medievais, descasos (PRADO, 2020).
Neste cenário, do ponto de vista programático, das políticas públicas e práticas coletivas, explicitam-se também problemas sociais crônicos, sistemas de saúde à beira do colapso (já diagnosticado há tempos); tecnologias de necropolítica e práticas coloniais operadas a olho nu, gerontocídio, acentuação da desigualdade social marcadas por classe e raça. Em contrapartida, emergem práticas solidárias da sociedade civil organizada, possibilidades artísticas e culturais de resistência e episódios que apresentam uma ressurreição da natureza, graças à restrição da circulação de humanos.
Do ponto de vista das relações interpessoais, o imperativo “fique em casa” explicitou também problemas relativos à dinâmica considerada privada. Algumas pessoas já moravam sós e passaram a viver sós. Outras passaram a conviver 24 horas com pessoas com quem só se encontravam ao acordar, no fim do dia e nos fins de semana, quando muito. Ressaltam-se aqui as dificuldades estruturais relacionadas à moradia da maioria da população brasileira e o fato da casa ser, para algumas pessoas, espaço de violência e opressão. Não por acaso, registramos incremento de agravos à saúde mental e da violência doméstica e familiar baseada em gênero e sexualidade (WENHAM; SMITH; MORGAN, 2020).
Para os que têm acesso à tecnologia avançada de comunicação, novos desafios se conformaram. Potencializaram-se convivências e interações mediadas por dispositivos on-line aproximando distâncias e potencializando encontros, mas também, conflitos. As ferramentas remotas, por sua vez, possibilitam intensificar o trabalho (especialmente o chamado “intelectual”) e a competir com os afazeres domésticos e esses passaram a existir para quem apenas usufruía do seu produto. Isso sem contar o verdadeiro bombardeio de lives, “vidas”, em meio a espetacularização da morte entre corpos ensacados, campos de vala comum e containers funerários.
E, aos poucos, fomos ampliando nosso vocabulário anglo-saxão como a delivery, fake news, lockdown e tantas outras práticas expressas em termos incorporados na vida comum quase como se fora língua local; e “actantes” (LATOUR, 1994) passam a se performar em diferentes materialidades (máscaras, álcool em gel 70%, óculos de proteção, macacões que se assemelham aos usados em operações envolvendo material radioativo ou EPI da apicultura etc.). Em meio a tudo isso, uma constatação e uma grande dúvida, sem respostas prontas ou fáceis: o que (ou como) seremos depois de tudo isso?
Neste campo profícuo de controvérsias, considerando a importância de leituras psicossociais críticas para a produção de conhecimento sobre momentos críticos como o que estamos vivendo, a revista Psicologia & Sociedade (Gestão 2020-2023) lançou uma convocatória para reunir textos que nos ajudassem a problematizar essas leituras.
Nos últimos três meses, parte da equipe de editores/as da revista se dedicou à elaboração deste Dossiê, para o qual foram recebidas propostas, em formato de resumos ampliados (mínimo 1.000 e máximo 1.500 palavras, incluindo o corpo do texto e as referências bibliográficas) em que sejam apresentados: 1) delimitação do problema/tema; 2) objetivos do texto; 3) referencial teórico e método; 4) resultados, análises e considerações breves que dialoguem com as questões suscitadas nos objetivos. Esses resumos foram avaliados pela equipe editorial da revista quanto à adequação à proposta do Dossiê e conformidade com o escopo da revista.
Diante do grande número de propostas recebidas e considerando o número limitados de textos que compõem um dossiê, desenvolvemos uma avaliação comparativa entre os manuscritos, considerando os seguintes critérios de avaliação: 1) a estrutura concisa e coerente do texto, conforme padrões usuais da comunicação científica; 2) contribuição singular da proposta ao campo de estudos sobre o qual versa o Dossiê, com delimitação precisa do objeto de estudo/pesquisa, corpus e estratégias de análise bem delineadas e leituras coerentes com a fundamentação teórica apresentada; 3) natureza mais crítico-analítica do que descritivo-opinativa na apresentação das análises; 4) relação direta com o tema do Dossiê, e não de forma indireta ou tangencial.
Neste sentido, em respeito à tradição de nossa revista, que se consolida a partir da resistência a formas individualistas e abordagens experimentais de pesquisa em psicologia social, privilegiamos textos que: 1) dialogavam criticamente com a literatura e os debates contemporâneos em relação ao tema abordado e ao campo de estudos em psicologia social (no âmbito das ciências humanas e sociais) e não apenas arrolassem textos e autores; 2) cuja natureza fosse explicitamente analítica, com solidez de argumentos e não apenas uma descrição de procedimentos, resultados e análises e 3) que apresentassem contribuição inequívoca do manuscrito ao campo de estudos sobre o qual versa o manuscrito e sobre o campo teórico que aborda. Para desempate, adotou-se como critérios: 1) o nível de desenvolvimento da proposta apresentada em comparação com as demais; 2) a variabilidade de temas para o conjunto do Dossiê; e 3) a busca de equilíbrio na distribuição regional dos/as autores/as.
Os/as autores/as dos resumos aprovados nesta primeira etapa foram orientados/as, então, a submeter seu texto completo, na plataforma da revista, seguindo as mesmas normas de uma submissão regular. Assim, todos as propostas aprovadas nesta primeira etapa seguiram procedimento de avaliação assim estruturado: primeiro momento, uma equipe de assessores/as editoriais, sob supervisão dos/as editores/as, procedeu a conferência da adequação do manuscrito às normas da revista; no segundo momento, apenas os textos aprovados no primeiro momento foram enviados para os/as editores/as, que realizaram a avaliação de escopo e de qualidade; e no terceiro momento, os textos aprovados pelos/as editores/as no segundo momento foram encaminhados para o processo de avaliação por pares, preservando a identidade dos autores e consultores (double blind review).
No total, recebemos 59 resumos, dos quais selecionamos 19 para submissão de manuscritos. A partir da avaliação dos/as pareceristas ad hoc, aprovamos 17 artigos, os quais organizamos em duas partes que passaram a compor o dossiê “Abordagens psicossociais sobre a primeira fase da pandemia do novo coronavírus no Brasil”.
Na primeira parte, são apresentados textos que versam sobre questões éticas, políticas, conceituais e históricas que são acionadas a partir do advento da pandemia. Nessa seção, foram incluídos textos sobre: gestão de riscos em contextos de incerteza (Mary Jane Spink); dilemas éticos sobre o cuidado (Juan Guillermo Figueroa-Perea); narrativas sobre a morte durante a gripe espanhola e a Covid-19 no Brasil (Rosineide Cordeiro e Luciana Kind); metáforas que acionam dinâmicas e modos de subjetivação (Mario Carvalho, Anna Clara Luz, Bruna Paulino e Camilla Ferreira); narrativas entre ciência e política (André Luiz Machado das Neves e Breno de Oliveira Ferreira); saúde mental e modos outros de viver (Maria Angelica de Melo Rente e Emerson Elias Merhy).
Na segunda parte, reunimos textos que nos provocam reflexões sobre dimensões da vida em sociedade profundamente afetadas pela pandemia e nos brindam com debates sobre desafios, fundamentos e horizontes. Nesta seção foram incluídos textos sobre: contradições estruturantes e emergentes nas relações sociais no Brasil que se expressam na dinâmica do trabalho doméstico remunerado (Maria Betânia Ávila e Verônica Ferreira); implicações da pandemia para o mundo do trabalho (Kelen Christina Leite); paradoxos do isolamento na dinâmica dos afetos entre indígenas Sateré-Mawé, do Amazonas (Bader Sawaia, Renan Albuquerque e Flávia Busarello); dinâmicas subjetivas e intersubjetivas da relação eu-outro(a)-mundo próprias à experiência íntima de confinamento domiciliar (Marina Pinheiro e Roberta Mélo); contribuições da contação de histórias para a saúde mental no contexto da pandemia de Covid-19 (Jaileila Menezes, Síria Botelho, Roseane Amorim da Silva, Antônio Santos, Daniela Souza Leão, Victoria Canales, Ítala Silva, Helen Silva e Bruno dos Santos); a ratificação de uma política de morte no sistema prisional brasileiro (Jaqueline Sério da Costa; Johnny Clayton da Silva; Eric Brandão e Pedro Paulo Bicalho); dinâmicas de gênero entre a casa e a guerra (Lisandra Espíndula Moreira, Júlia Alves, Renata Oliveira e Claudia Natividade); vulnerabilidade programática e violência contra a mulher (Brisa Campos, Bruna Borba e Vera Paiva); práticas políticas de afirmação da vida acionadas a partir de acolhimento psicológico e afetos (Laura Quadros, Cláudia Cunha e Anna Paula Uziel); controvérsias do uso de máscaras por homens negros em uma sociedade marcada por racismo e regime necropolítico (Lucas Gabriel Santos e Rosa Pedro); impacto da quarentena e COVID-19 na comunidade trans (Manoel Antônio dos Santos, Wanderlei Oliveira, Érika Oliveira-Cardoso).
No conjunto desses textos, a pandemia se revela como a ponta de um grande e profundo iceberg. Apesar do pouco tempo entre a convocatória e a publicação desses textos, consideramos que o produto final resultou em uma bela publicação, com relevância histórica, marcada pela pluralidade de perspectivas e por uma densa produção de questionamentos que podem contribuir, sobremaneira, para seguirmos ampliando nossos olhares sobre problemas sociais densos que criam restrições ao projeto por justiça social em nosso país.