Dossiês
Recepção: 24 Abril 2016
Aprovação: 27 Junho 2016
Resumo: *Dentre as características fundamentais do humano, que o diferenciam das demais criaturas, duas (entre várias) podem ser destacadas, a saber, a sensibilidade para com o belo e a sensibilidade para com o transcendente. Da sensibilidade para com o belo ocupa-se o ramo da filosofia conhecido como estética. Da sensibilidade para com o transcendente ocupam-se os estudos de religião, dentre estes, a teologia. O presente artigo pretende apresentar, sem pretensão de dar a última palavra, alguns apontamentos a respeito de uma aproximação entre teologia e estética, especificamente em perspectiva da teologia protestante.
Palavras-chave: Estética, Arte, Teologia protestante e estética.
Abstract: Among the basic tenets of the human creature, that differentiate it from other creatures, there are two (among many) might be pointed, that are: sensitivity to beauty and sensitivity to the transcendent. The field of philosophy which deals with beauty is known as aesthetics, and the field of knowledge which deals with the transcendent is the religious studies, and among it, theology. This essay intends, with no purpose of having the last word about it, to present some notes on an approximation between theology and aesthetics, in the perspective of Protestant theology.
Keywords: Aesthetics, Art, Protestant Theology and Aesthetics.
1 INTRODUÇÃO
Beauty is truth, truth beauty,—that is all Ye know on earth, and all ye need to know 2
Uma das características distintivas da criatura humana é a capacidade de contemplação do belo1. A beleza provoca e desperta sentimentos nos humanos, mas curiosamente, não é prática. Mas, como ver-se-á, não é inútil. Não é “prática” no sentido tecnológico, utilitarista. Todavia, é absolutamente indispensável. A arte, no dizer de Paulo Leminski (1986, p.60) é um “inutensílio”, um “indispensável in-útil” em um mundo pragmatista:
As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias.
A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem chamamos poesia, inestimável inutensílio.
As várias prosas do cotidiano e do(s) sistema(s) tentam domar a megera. Mas ela sempre volta a incomodar.
Com o radical incômodo de urna coisa in-útil num mundo onde tudo tem que dar um lucro e ter um por quê.
Pra que por quê?
Seja como for, a arte é necessária à existência. Neste sentido, vale a pena observar um dos primeiros relatos do Gênesis – 4.17-21 – que trata do período primevo, Die Urgeschichte, a história antes da história. Independentemente de qual seja a metodologia hermenêutico-exegética adotada por quem lê o texto, percebe-se que este veicula uma informação interessante por demais. O contexto apresenta um relato genealógico com algumas informações sobre os antepassados dos patriarcas (a respeito dos quais se narrará a partir de 11.26, quando pela primeira o nome de Abrão, mais tarde mudado para Abraão, é mencionado). Neste relato das origens há uma descrição curiosa dos primórdios, da aurora da civilização humana. O texto diz:
17 Caim teve relações com sua mulher, e ela engravidou e deu à luz Enoque. Depois Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Enoque.
18 A Enoque nasceu-lhe Irade, Irade gerou a Meujael, Meujael a Metusael, e Metusael a Lameque.
19 Lameque tomou duas mulheres: uma chamava-se Ada e a outra, Zilá.
20 Ada deu à luz Jabal, que foi o pai daqueles que moram em tendas e criam rebanhos.
21 O nome do irmão dele era Jubal, que foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta.
22 Zilá também deu à luz um filho, Tubalcaim, que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro. Tubalcaim teve uma irmã chamada Naamá. (Gn 4. 17-22)
Observe-se que ao falar dos ancestrais da humanidade (e não apenas dos futuros patriarcas hebreus) o texto no v. 20 fala sobre Jabal, apontado como o “pai” dos que cuidam de gado. Talvez o texto reflita uma mudança no padrão de vida do homem primitivo, quando este abandona o estágio de coletor nômade para ser sedentário e criador de gado, bovino e/ou caprino. O texto apresenta o domínio de uma técnica de domesticação do gado e seu aproveitamento para benefício daqueles agrupamentos humanos, que aprendem a curtir couro para fabricação de tendas. Desta maneira o texto aponta para mudanças na alimentação, no vestuário e na habitação dos antigos.
O v. 22 fala sobre Tubalcaim, “que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro”, ou seja, o pai dos metalúrgicos. O texto indica o tempo quando o homem aprendeu a fabricar armas e ferramentas a partir de metais e minérios. A pecuária e a metalurgia são absolutamente indispensáveis para o desenvolvimento do que conhecimentos como civilização. Não é mero detalhe nem coincidência que o v. 17 fale da fundação da primeira cidade dos homens. Mas entre um versículo que fala sobre a pecuária e outro que fala sobre a metalurgia há um que fala sobre “Jubal, que foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta” (v. 21). A referência é à música, à arte, à estesia. Pecuária e metalurgia são indubitavelmente práticas. A arte não. Neste sentido, a arte, a estesia, a contemplação (auditiva ou visual) são inúteis. Mas o texto bíblico vai em uma direção totalmente contrária, e sugere que a arte é tão indispensável à vida quanto a pecuária (que tem a ver com alimentação, vestuário e proteção) e a metalurgia (que tem a ver com fabrico de instrumentos de defesa e utensílios que serão prolongação das mãos humanas, fazendo o que estas não podem fazer). Em outras palavras: o humano não vive sem a arte, que, em suas variadas manifestações e possibilidades, evoca a beleza, a estesia. O texto do Gênesis de forma bem típica da poética hebraica, sugere que, para os humanos, a estética é tão importante quanto a técnica.
O texto de Gênesis 4 há pouco citado também mostra a antiguidade da religião na vida humana: “E a Sete também nasceu um filho; e chamou o seu nome Enos; então se começou a invocar o nome do Senhor”2. O relato do Gênesis na mesma perícope de maneira criativa apresenta, ou sugere, a necessidade do ser humano tanto da arte como também pela busca do transcendente – religião. Isto aponta para outra característica distintiva da criatura humana, que é sua busca pelo transcendente, pelo inefável, pelo sublime, pelo maravilhoso. O ser humano é homo religiosus. Por isso não há cultura ou sociedade humana sem um sentido de busca do que está acima e além do que é perceptível apenas aos sentidos.
Daí surgem duas constatações prévias: uma, a virtual onipresença da religião nas culturas humanas. Outra, a virtual onipresença da arte, de um modo ou de outro, nestas mesmas culturas. Toda expressão religiosa tem algum tipo de experiência estética, seja pela música, pela dança, pela pintura ou arquitetura ou outros tipos de arte. O que nem sempre acontece é uma reflexão sobre a experiência estética. Desta maneira, a arte tem sido vivenciada na expressão religiosa, mas não necessariamente refletida. Estas constatações fazem surgir pelo menos duas perguntas: o que a sede do sagrado e a busca pela beleza têm a ver uma com a outra? Como então estas duas características humanas se inter-relacionam, como se influenciam mutuamente? Este é o objetivo do presente artigo: refletir, posto que em síntese, sobre uma teologia que pensa o belo, uma teologia da estética, apresentando exemplos desta aproximação na perspectiva da teologia protestante.
2 O QUE É ESTÉTICA
A palavra estética é derivada do grego αισθητική (literalmente, “sensação”, “percepção”). Tradicionalmente é entendida como o ramo da filosofia que estuda o belo e as bases da arte propriamente. O que é considerado “belo”? Esta é a pergunta chave para a estética filosófica. É conhecida a elaboração de Platão quanto ao bom, ao belo e ao verdadeiro.) Do bom ocupa-se a ética, do verdadeiro ocupa-se a lógica e do belo ocupa-se a estética. O verdadeiro aponta para o que se deve crer. O bom aponta para o que se deve fazer, e o belo aponta para o que se deve contemplar. Na Idade Média, a escolástica afirmava que tudo na criação aponta para o criador, e tem as marcas do bom, do belo e do verdadeiro. Como exemplo pode-se citar S. Boaventura (século XII), que fazendo referência à Metafísica de Aristóteles fala das condições do ser: uno, verdadeiro, bom e belo. A estética filosófica clássica falava também de uma metafísica estética, que seria a fonte original de toda e qualquer beleza. Pensadores cristãos antigos estavam muito conscientes quanto a isto. Por isso, conforme Waldecy Tenório (1996, p. 42),
Para Plotino, por exemplo, a estética é uma teologia: a beleza do universo canta e clama a beleza de Deus. Esse, aliás, é um topos retomado por Santo Agostinho, para quem o mundo é um poema, carmen universitatis, uma imagem que será elaborada mais tarde por São Boaventura: Divinae autem dispositioni placuit, mundum quasi carmen pulcherrimum quodam discursu temporum venustare. O impulso místico dos Padres em direção à estética foi de tal ordem que acabou por produzir, sobretudo no cristianismo helenizado, hinos litúrgicos que se elevariam à dignidade de um gênero literário3.
De fato:
Compreende-se então como a reflexão sobre Deus e sobre todas as coisas em Deus é inseparável da reflexão sobre a beleza: o teólogo, ao falar de Deus fala da Beleza, e ao falar de tudo que é belo neste mundo, remete continuamente Àquele que é a fonte e a meta de toda beleza. Para Agostinho, o que une de forma significativa o tema de Deus com o da beleza é o amor: de fato, a beleza tem tanto poder em nós porque nos atrai para si com vínculos de amor (FORTE, 2006, p. 12).
A estética aparece como um ramo distinto do conhecimento filosófico, com Aesthetica, obra em dois volumes do filosófo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, publicada entre 1750 e 1758. Conforme Baumgarten, estética seria o conhecimento sensório da perfeição (apud KUL-WANT, 2010, p. 4).
Curiosamente, por coincidência ou não, a teologia tem, grosso modo, refletido o padrão tríplice da preocupação com o bom, o verdadeiro e o belo. Melhor seria dizer, quase... Ao verdadeiro correspondem a dogmática e a sistemática. Ao bom correspondem a ética e a moral (o que é Teologia da Libertação por exemplo, a não ser uma grande teologia ética?). Mas, e quanto ao belo? Eis aí, um vácuo na reflexão teológica cristã. Até hoje pouco se tem produzido em termos de uma estética teológica. A pergunta óbvia é: por quê? Talvez devido ao fato da estética ser entendida como o capítulo da filosofia que trabalha apenas com a fruição e a contemplação, com o sentimento, consciente ou inconscientemente tidos como inferiores à intelecção. A teologia ocidental tradicional, tanto a teologia católico-romana como a teologia protestante, quase não se ocupa da reflexão sobre a estética em si4.
Todavia, não é demais repetir: é preciso deixar claro que a fé cristã, à semelhança das demais tradições religiosas, sempre se ocupou da experiência estética. O que nem sempre tem ocorrido é a reflexão sobre esta experiência estética. Portanto, não é comum encontrar capítulo ou verbete sobre “arte” ou “estética” em manuais de teologia sistemática ou em dicionários e enciclopédias teológicas. Há evidentemente uma rica e profunda arte cristã (inter alia, HEINZ-MOHR, 1981). Tome-se como exemplo o Westminster Dictionary of Theological Terms, que define arte cristã como “arte que representa temas cristãos como expressões da fé bíblica” (MCKIM, 1996, p. 18). Afinal, são dois mil anos de produção, no oriente ortodoxo e no ocidente romano e reformado, na pintura, na música, na escultura, na arquitetura, na literatura, no cinema e quiçá em outras manifestações artísticas, a partir de uma inspiração cristã. Desde seus primórdios o cristianismo tem lançado mão de símbolos pictóricos para expressar sua fé, através de imagens extraídas do texto bíblico, como a figura do cordeiro (para representar Jesus) ou da âncora (para representar a esperança cristã). Daí ser oportuna a questão de uma estética teológica. Uma definição conceitual útil é a proposta por Gesa Elsbeth Thiessen (2004, p. 1):
Estética teológica é o estudo interdisciplinar de teologia e estética, e tem sido definida como sendo “preocupada com questões a respeito de Deus e de teologia à luz do, e percebidas através do conhecimento (sensação, sentimento, imaginação), através da beleza e das artes.
É portanto um campo bastante amplo, pois inclui a elaboração de uma teologia da beleza, e um diálogo entre a teologia e a arte, nas suas mais variadas manifestações. Na perspectiva da estética teológica, a arte assume status de locus theologicus5.
Na sequência, mostrar-se-á, posto que em síntese, como a teologia protestante, especificamente de corte reformado, tem articulado uma reflexão sobre a estética.
3 TEOLOGIA ESTÉTICA NO PENSAMENTO PROTESTANTE6
A relação do protestantismo com as artes tem sido ambígua. Neste sentido, é importante lembrar que a igreja do oriente testemunhou nos séculos oitavo e novo à “controvérsia iconoclasta”7. O cristianismo ocidental teve sua versão da controvérsia iconoclasta no período da Reforma do século XVI com o movimento liderado por Karl Andreas von Karlstadt, o qual teve vigorosa oposição de Lutero (DREHER, 2001, p. 27-41). Esta postura de aversão à arte tem sido, em linhas gerais desde então dominante nos meios protestantes e evangélicos.
No século XVI João Calvino, ao contrário dos estereótipos que ao longo dos séculos lhe têm sido atribuídos, demonstra claramente ter a arte na mais alta conta. Ainda que em alguns textos defenda um despojamento estético, principalmente no que tange à liturgia. Sem embargo, em outros é nítida a importância da arte em sua teologia. Calvino nas Institutas da Religião Cristã, sua magnum opus, reconhece que toda e qualquer atividade humana, em qualquer área, é dom divino, que deve ser usado para o bem-estar da humanidade. O reformador nos adverte a não nos esquecermos
[...] que mui excelentes dons do Espírito Divino são estes, que, para o bem comum do gênero humano, dispensa a quem quer [...]. Se o Senhor nos quis deste modo ajudados pela obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso destas para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, se negligenciarmos as dádivas de Deus nela graciosamente oferecidas (CALVINO, 1985, p. 33).
Ao comentar Êxodo 31:1-8, a narrativa do chamado e capacitação de Bezalel e Aoliabe pelo Espírito de Deus para a confecção de obras de artesanato para o tabernáculo, Calvino declara que “todas as artes emanam d’Ele, e portanto devem ser reconhecidas como invenções divinas [...] portanto, devemos concluir que qualquer habilidade possuída por qualquer pessoa emana de uma única fonte, e é conferida por Deus” (1854, V. 3, p. 291-292). Calvino não desenvolveu uma teologia da arte propriamente. Mas estabeleceu in nuce princípios que foram posteriormente desenvolvidos de maneira mais elaborada por outros teólogos, especialmente os do assim chamado neocalvinismo holandês. Um destes pensadores é Calvin Seerveld (n. 1990), que refletindo sobre a influência de Calvino no que diz respeito à compreensão teológica da arte e de sua importância se faz notar na tradição protestante evangélica posterior: “a arte tem a tarefa mística de trazer à lembrança daqueles que têm saudades dos céus a beleza perdida e o brilho perfeito que há de vir” (1990, p. 78). Quanto ao aspecto de referencialidade (allusiveness) da arte, Seerveld afirma, em tom bastante coloquial (o texto a seguir vem de uma palestra que ministrou a respeito do tema – daí sua informalidade e coloquialidade):
Se você tem uma objetificação simbólica [...] do significado, você tem arte; caso contrário, você não tem arte. Se o significado objetificado simbolicamente é profundo ou perverso, não importa, você tem uma arte profunda ou perversa ou irrelevante. Se a qualidade simbólica é límpida, complicada ou evasiva, você tem arte límpida, ou complicada ou evasiva. Mas sem uma objetificação simbólica referencial, nada de arte (SEERVELD, 1995, p. 46-47, tradução nossa).
Outro teórico da mesma linha de Seerveld é Lambert Zuidervaart. A partir da leitura de uma de suas obras a respeito da estética em diálogo com a teologia (em conjunto com Henry Luttikhuizen, especialista em história da arte), pode-se apresentar o seguinte resumo da proposta de Seerveld:
· A estética é parte do tecido da realidade criada, e normas estéticas só podem ser violadas ou ignoradas a um alto custo;
· As artes, a despeito de sua variedade, são uma esfera unificadas distinta de outras esferas de atividade cultural, oferecendo oportunidades para serviço vocacional para os cristãos do nosso tempo;
· A estética não está limitada somente às artes, assim como as artes têm varies facetas além da estética;
· O significado central da estética – e distintivamente característico das artes – é a ‘referencialidade’ (allusiveness) ou ‘imaginatividade’ (imaginativity; ZUIDERVAART, LUTTIKHUIZEN, 2000).
Calvin Seerveld trabalha com o conceito de allusiveness, literalmente “referencialidade”. Seerveld rompe com o esquema clássico seguido por Dooyeweerd, de pensar a beleza apenas em termos de harmonia, simetria e proporcionalidade. Para Seerveld uma obra como Guernica, de Pablo Picasso é um exemplo legítimo de obra de arte (Doyeweerd e seus seguidores não a considerariam como tal). Guernica, mesmo que não tenha padrões gregos clássicos de proporcionalidade e harmonia é um libelo contra a ignorância e o absurdo da guerra (no caso, a Guerra Civil Espanhola). Seerveld entende que uma obra de arte aponta para realidade além dela própria. Assim, uma obra de arte será julgada não pela subjetividade de quem a analisa, e muito menos pelos já citados padrões clássicos, com origem na Grécia antiga, de harmonia, simetria e proporcionalidade, mas pelos valores objetivos para os quais aponta8.
Podem-se citar outros filósofos e teólogos identificados com esta tradição do pensamento cristão (CALDAS FILHO, 2001, p. 139-153). Dentre tantos se podem citar Herman Bavinck (1854-1921). Bavinck também trabalha teologicamente o tema da arte tendo como marco teórico desta construção a ideia teológica da graça comum de Deus. Ambos entendem que a beleza tem origem no ser e na natureza de Deus. Ao artista cabe lutar pela beleza. A arte ecoa a beleza da criação original de Deus, imaculada pelo pecado, e antecipa de alguma maneira a consumação. Bavinck (talvez mais que Kuyper) por sua vez parece ser influenciado por Platão, ao defender a ideia que a natureza por sua vez reflete um universal transmundano. Nesta perspectiva a natureza mais reflete a beleza que a possui. Estas ideias podem ser contestadas e criticadas. Mas não há dúvida que estes pensadores foram de alguma maneira originais, pois incluíram em seus esquemas o tema da arte, algo que em seu tempo era absoluta novidade.
Outro pensador que merece destaque nesta área é o teólogo holandês Abraham Kuyper (1837-1920). Ele cita uma passagem elucidativa de Calvino, na qual o reformador afirma que as artes “nos foram dadas para nosso conforto, nesse nosso estado deprimido de vida” (2002, p. 160). Na leitura que fez de Calvino Kuyper, em uma preleção intitulada “Calvinismo e Arte” apresenta uma síntese da posição de Calvino quanto à arte:
Calvino apreciava a arte em todas as suas ramificações como um dom de Deus, ou mais especialmente, como um dom do Espírito Santo; que ele entendeu plenamente os profundos efeitos produzidos pela arte sobre a vida das emoções; que ele apreciava o fim pelo qual a arte fora dada, a saber, que por ela poderíamos glorificar a Deus, dignificar a vida humana, e beber na mais alta fonte de prazeres, sim até mesmo no esporte comum. E, finalmente, que longe de considerar a arte como simples imitação da natureza, ele lhe atribuiu a nobre vocação de desvendar para o homem uma realidade mais alta do que foi oferecida a nós pelo mundo pecaminoso e corrupto (KUYPER, 2002, p. 161).
Kuyper reconhece que o calvinismo contribuiu para o avanço concreto das artes, e exemplos na poesia, na música, na pintura, e até mesmo na escultura.
Não obstante, alguns pensadores têm ousado uma aproximação à estética a partir de uma perspectiva cristã. Dentre estes é possível citar Nicholas Wolterstorff (1980), com seu livro Art in Action (“Arte em ação”). O filósofo estadunidense de origem holandesa defende que a partir de um ponto de vista cristão, a arte tem um lugar necessário na vida. Sem negar a importância de museus, galerias, teatros e salas de concerto, Wolterstorff defende que a arte deve ser apreciada em ação (daí o título do seu livro), nas ruas, nas liturgias, na dinâmica da vida enfim. Wolterstorff é ainda pouco conhecido no Brasil. Sua obra merece e precisa ser divulgada, por vários aspectos. Um dos motivos é devido ao diferencial citado, qual seja, de formular uma defesa intelectual de uma apreciação filosófica e teológica ao belo, expresso pela arte. Curiosamente, Wolterstorff se identifica com a tradição do assim chamado neocalvinismo holandês, ou seja, um movimento de revitalização da tradição teológica reformada, a partir dos últimos anos do século XIX, tendo a Holanda como epicentro.
Estes exemplos de abordagens teológicas à estética revelam que já há alguns anos pensadores de diferentes tradições têm sido sensíveis à importância da formulação de uma reflexão sobre uma teologia da estética. Dentre estes vale citar Abraham Kuyper, que em 1898 apresentou uma série de palestras no Seminário Teológico de Princeton, nos Estados Unidos (as Stone Lectures). Nestas palestras propôs apresentar o calvinismo como uma cosmovisão9 (Weltaunschauung), isto é, uma visão do mundo, da vida e da morte. Nesta palestra Kuyper demonstra como teologia de Calvino se encontra in nuce uma visão altamente positiva das artes. Kuyper cita uma frase memorável de Calvino, que afirmou ser a arte um dom de Deus, que nos ajuda a enfrentar o estado depressivo da vida. Kuyper demonstra como, ao contrário do que afirma o senso comum, a visão calviniana da arte é positiva (se bem que em alguns momentos, Calvino tem uma visão um tanto crítica das artes). Kuyper lembra como no chamado “século de ouro” (XVII) da Holanda, houve um incremento tremendo das artes, especialmente as visuais, por influência da teologia calviniana, que vê a arte como expressão da glória de Deus. Na mesma linha do neocalvinismo holandês em sua abordagem à estética, há que se citar Herman Bavinck e Herman Dooyweerd. Este último trabalhou com uma concepção clássica de beleza, entendida em termos de simetria, proporcionalidade, harmonia e ordem. A proposta dooyweerdiana de colocar o conceito de beleza como o centro de uma filosofia da arte tem sido criticada, por exemplo, pelo teólogo anglicano inglês Jeremy Begbie. Conforme Begbie, no núcleo de uma filosofia da arte deve estar não um conceito de beleza, mas a “dinâmica da renovação da criação feita por Deus em Cristo” (BEGBIE, 1991, p. 257). A abordagem de Begbie é cristocêntrica e trinitária. Ele critica o desprezo às artes em grande parte da teologia protestante, e defende a necessidade que teólogos deem às artes seu devido lugar. Conforme Begbie,
O amor revelado no Filho encarnado é interno ao ser de Deus e motiva toda atividade divina na criação e na redenção [...]. Deus é aquele que tem seu ser em comunhão e que cada ato é parte de seu desejo de relacionamento real e mutualidade. A criatividade humana em seu ponto mais elevado, será uma participação corporativa na humanidade vicária de Cristo, através do Espírito, que fortalece, reúne e focaliza o louvor da criação, direcionando-o ao Pai (BEGBIE, 1991, p. 257, tradução nossa).
Na mesma linha do protestantismo reformado neocalvinista influenciado por Dooyweerd, mas ao mesmo distinto dele: o holandês Hans Rookmaaker (1922-1977). Rookmaaker publicou em 1971 um livro que ficou famoso: Modern Art and the Death of a Culture (ROOKMAAKER, 2014). Neste livro ele demonstra como a desumanização e falta de significado da nossa era são demonstradas nas artes visuais contemporâneas. Rookmaaker é fiel ao princípio dooyeweerdiano de considerar a beleza, entendida em termos de harmonia, como central na e para a arte. Ao mesmo tempo Rookmaaker, por meio de uma frase que ficou famosa – “a arte não precisa de justificativa” (Art needs no justification), defende que uma obra de arte não precisa ser necessária e obrigatoriamente “religiosa”: há arte explicitamente cristã que é incompetente, e arte que não é cristã que é da melhor qualidade (ROOKMAAKER, 2012). A arte, conforme Rookmaaker, precisa refletir e apontar para valores como verdade, honra e justiça10.
Outra possibilidade de aproximação teológica à estética em perspectiva protestante a ser apresentada é a teologia da cultura de Paul Tillich (1886-1965), teólogo alemão que mais tarde se radicou nos Estados Unidos. A teologia da cultura de Tillich vê religião e cultura como polos que se esclarecem mutuamente: a religião dá substância (palavra que em Tillich assume status de terminus technicus) à cultura, e esta por sua vez apresenta as formas pelas quais a religião se exprime. Em Tillich não há a defesa de uma fusão entre religião e cultura, mas a busca de compreensão da relação entre estas duas grandezas. Tillich tem sido um teólogo bastante influente no Brasil, graças ao trabalho pioneiro do teólogo anglicano brasileiro Jaci Maraschin e do teólogo católico belga Etienne Higuet. Maraschin foi aluno do teólogo germano-americano no Union Theological Seminary em New York, e depois professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Higuet defendeu tese de doutorado sobre a teologia de Tillich na Faculté de Theologie Catolique de Louvain, em seu país natal, vindo depois ao Brasil, primeiramente para exercer funções sacerdotais, assumindo posteriormente a docência no referido programa de pós-graduação11. O trabalho mais conhecido nesta perspectiva é Teologia e MPB, de Carlos Eduardo Brandão Calvani (1998). Outro trabalho produzido a partir desta mesma perspectiva teórica é a dissertação de mestrado em Ciências da Religião de Reginaldo Von Zuben sobre a substância religiosa em letras/poesias de Renato Russo, do grupo Legião Urbana (2003).
Não se pode deixar de mencionar, mesmo que em síntese, a contribuição de Rubem Alves (1933-2014) para uma relação entre teologia e estética. Este tema é de per si suficiente para uma tese de pós-doutorado, em teologia ou em filosofia. Por isso o que será apresentado será não mais que uma referência seguida de alguns comentários12. A principal dificuldade para tratar deste tema – na verdade, não apenas este, mas qualquer tema no universo do pensador mineiro – é que Alves foi escritor incrivelmente prolífico, mas que de maneira deliberada optou por não sistematizar seu pensamento. Isto transforma em desafio tratar de qualquer ponto de sua colaboração em qualquer campo do saber. Alves começou sua trajetória acadêmica tratando da ética – foi um dos precursores da Teologia da Libertação latino-americana13. Mas migrou, por assim dizer, para a estética, passando a falar de teologia tendo como interlocutora não a filosofia, como tem acontecido ao longo de praticamente toda a história do pensamento cristão, mas a poesia e a literatura. Neste sentido, Alves foi também um pioneiro na interface teologia e literatura, fronteira da produção acadêmica que cada vez mais ganha corpo no Brasil. Há um trecho de Alves muito sugestivo, por relatar sua migração da metafísica, para a ética e desta para a estética – mas que, como afirmado, sintetiza imanência e transcendência:
Minha vida se divide em três fases.
Na primeira, meu mundo era do tamanho do universo E era habitado por deuses, verdadeiros e absolutos.
Na segunda fase meu mundo encolheu, Ficou mais modesto e passou a ser habitado
Por heróis revolucionários que portavam armas E cantavam canções de transformar o mundo. Na terceira fase, mortos os deuses,
Mortos os heróis, mortas as verdades e os absolutos, Meu mundo se encolheu ainda mais
E chegou não à sua verdade final, Mas à sua beleza final:
Ficou belo e efêmero como uma jabuticabeira florida14.
Alves foi influenciado pelo filósofo russo Berdiaev, ao entender a beleza (da qual se ocupa a estética) como realidade a um só tempo transcendente e imanente. A beleza se torna inspiração para a vida, e é mais que uma experiência estética. É uma categoria metafísica, e tem a ver com o todo da existência. Em um trecho que se tornou muito conhecido, sendo muitas vezes citado, Alves comenta sobre como uma experiência estética lhe deu uma compreensão da fé, e, por conseguinte, da teologia:
Foi numa sexta-feira da Paixão que compreendi. Uma rádio FM (Amparo) estava transmitindo, o dia inteiro, músicas da tradição religiosa cristã. E eu fiquei lá, assentado, só ouvindo. De repente, uma missa de Bach, e a beleza era tão grande que fiquei possuído e chorei de felicidade: “A beleza enche os olhos d\’água” (Adélia Prado). Percebi que aquela beleza era parte de mim. Não poderia jamais ser arrancada do meu corpo. Durante séculos os teólogos, seres cerebrais, haviam se dedicado a transformar a beleza em discurso racional. A beleza não lhes bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os artistas, seres coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza. Agora, sem a menor vergonha, digo: “Sou cristão porque amo a beleza que mora nessa tradição. As ideias? Chiados de estática, ao fundo…“ Assim proclamo o único dogma da minha teologia cristã erótico-herética: “Fora da Beleza não há salvação…15
À GUISA DE CONCLUSÃO
A beleza é e deve ser companheira inseparável da teologia. Percebe-se no tempo presente um cansaço e esvaziamento de uma teologia racionalista, abstrata, teórica e conceitual. Este tipo de teologia não raro se reduz à apologética, buscando afirmar-se como a única correta e condenando todas as demais manifestações do pensamento cristão tidas como desviantes e divergentes. Diante de tal cenário há que se resgatar uma teologia que passe pela experiência estética, pela contemplação da beleza. A vida neste sentido é valorizada não pelas vezes que se respira, quando acontece o mecanismo de inspiração e expiração, mas pelas vezes em que falta o fôlego, em que o belo com sua força une transcendência e imanência. Por conta da importância de pensar a estética teologicamente, este texto procurou tratar desta possibilidade teórica em perspectiva da teologia protestante. Este é um caminho de reflexão teológica que não é novo, pois, conforme demonstrado no texto, tem sido trilhado por teólogos de tradição protestante já há algumas décadas. Não obstante, esta aproximação tem potencial para revitalizar e oxigenar o discurso teológico protestante, especialmente o brasileiro.
REFERÊNCIAS
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Fora da beleza não há salvação. Disponível em https://rubemalvesdois.wordpress.com/2009/11/25/521/
Do Universo à Jabuticaba. Disponível em https://rubemalvesdois.wordpress.com/2012/03/29/jaboticabeira-em-flor/
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Notas