Resenhas
Do ódio. Campinas: Vide Editorial, 2015. ISBN 9788567394558, 134p.
Recentemente, numa visita despretensiosa a uma livraria, deparei-me com um pequeno livro, Do ódio, escrito pelo um filósofo romeno contemporâneo: Gabriel Liiceanu. O título me chamou atenção de imediato. Nossa conjuntura parece requerer alguma reflexão mais séria sobre o fenômeno. Não que o ódio deixou de ser parte do percurso humano em algum momento. O cortejo de horrores movidos por ele pululam pela história. No entanto, é possível notar que o ódio vai se reconfigurando em novas formas e encontrando novos canais para se manifestarnos dias atuais. Formado em Filosofia (1965) e Letras Clássicas pela Universidade de Bucareste (1973),Liiceanuparte de um trecho da famosa obra de JulienBenda, A traição dos intelectuais (1927)1, para construir sua reflexão: “o nosso século terá sido o século da organização intelectual dos ódios políticos”. Nota-se que o ponto que perpassaa sua análise é a relação dos intelectuais com os movimentos políticos que tiveram como um de seus principais combustíveis o ódio. A primeira distinção que oferece é entre o “ódio de partida” e o “ódio de reação”. Uma pessoa chega a odiar outra, desejando-lhe o mal, pelas qualidades superiores que tem, como inteligência, beleza, sucesso, sorte. Esse mal não corresponde a nenhum gesto do odiado, mas nasce “puro”, de maneira original, é um ódio “de partida”, sem nenhuma justificação moral, parecendo totalmente gratuito. O “ódio de reação” é aquele em que a pessoa odeia a outra pelo mal que essa lhe cometeu. É o ódio que parece querer “recolocar o mundo em equilíbrio, é um ódio com justificativas morais”. O ódio, como o amor, é assim uma forma de resolução emocional do encontro com o outro. Como me comporto quando me comparo com o outro? Quando observo que o outro tem qualidades que são superiores às minhas? Ou quando vejo que temos qualidades semelhantes? Para Liiceanu, há dois modos de resolução emocional: “ou admiro-o como igual a mim ou superior a mim, e termino por amá-lo; ou invejo-o fundamental e profundamente e termino por odiá-lo” (p. 27). O encontro com o semelhante ou superior termina no amor, passando pela admiração, ou no ódio, passando pela inveja.
Fundamental na reflexão é o lugar do desejo, o que me faz lembrar a obra de René Girard e sua reflexão sobre o mimetismo, como o processoque engendra a violência. Deseja-se para si certa qualidade quedescubro sempre no outro: “Um sucesso a que aspiro pertence ao outro. Um destino que pretendo é de outro” (p. 31). Não são nossas impotências e limites pessoais que são colocadas em discussão, mas a “injustiça cósmica”, que reverbera na pergunta “por que ele, e não eu?”. Liiceanu vai falar em “ódio espontâneo”(não cultivado) e “ódio culto (educado) e cultivado”. Para essa distinção, utiliza-se da história bíblica do assassinato de Abel por Caim, que deixa como herança à humanidade o trajeto “inveja-ódio-crime”. Caim inveja seu irmão e o odeia pessoalmentepelo fato de seu sacrifício ter sido recebido por Deus de melhor maneira que o dele. Deus avalia que esse crime é algo ruim, mas também o seu autor o avalia negativamente, sendo assim merecedor de um castigo:a interdição de ver a “face do Senhor”. Liiceanu entende que foi no século XIX que ocorreu uma mudança na compreensão do ódio, na esteira do surgimento das ideologias políticas modernas, transformando-se numa paixão honrada, sendo suprimida toda a ideia de pecado, remorso e castigo. Segundo ele, o que descobria, “juntamente com Marx, o final do século XIX, é que o ódio pode ser organizado”, podendo ser “induzido, argumentado, explicado, teorizado, previsto como escopo, com um programa e posto de modo sistemático a trabalhar” (p. 49). Mas com qual finalidade? O bem da humanidade. Três tipos de ódio como “paixão política” tomavam formas no período, como observava Benda em 1927: ódio de classe, ódio de raça e o ódio nacional. Todos eles encontraram seus teóricos, capazes de organizá-los intelectualmente num corpo de doutrinas. Um aspecto notável dessa transformação, e que pode ser encontrada hoje em dia nos “discursos de ódio” que presenciamos atualmente, é o fato de que o ódio se torna impessoal, algo bastante diferente do crime de Caim. Tal fenômeno está relacionado com a ascensão das massas. O ódio impessoal quer dizer duas coisas: já não se odeia um único indivíduo, mas se odeia em grupo; já não se odeia uma pessoa isolada, mas uma pessoa agente de uma categoria. “Odeia-se uma hipóstase englobadora [...] odeia-se alguém como burguês, como hebreu, como cigano, como intelectual, como islamita, como americano, como húngaro etc.” (p. 54). O ódio é impessoal quando não se odeia uma pessoa isolada, mas sim como membro de um grupo ou categoria (classe, raça, nação, religião). Uma outra característica dessa transformação é que o ódio se torna culto e cultivado. As ideologias como redes de doutrinas é definida por Benda como “organização intelectual dos ódios políticos”. Ele passa a ser pensado e canalizado para determinados fins. O ódio dotado de uma ideologia traduz-se nos seguintes pontos, de acordo com Liiceanu: a) o ódio passa a ser ódio com programa, o que significa que a ideologia indica ao ódio o objeto que deve ser odiado, sendo no final destruído e aniquilado e os meios utilizados para responder ao objetivo; b) O enobrecimento do ódio com o intuito de fazê-lo crimes advindos dele; c) Justificação “científica” e “histórica” do ódio; d) a introdução do ódio numa equação de felicidade; e) o ódio tornado honrado, a ideologia leva à categoria de herói aquele que odeia em prol da causa, recebendo em vez do castigo uma recompensa por seu ato; f) a ideologia distorce a verdade e cultiva sistematicamente a mentira. Um dos expedientes mais comuns das ideologias, entendida aqui como a organização doutrinária do ódio, é a destituição de certos grupos de sua humanidade. Não se reporta mais a eles como seres individuais, pessoas, com seus limites e possibilidades particulares, mas como entidades esvaziadas de humanidade: burgueses, judeus, ciganosetc. A partir de então se divide a humanidade em grupos: as que estão do lado daqueles que sabem aonde ir (sua ideologia os diz), os “progressistas”, e aqueles que atravancam o processo em direção à felicidade prevista, os “reacionários”. A “operação de destituição da esfera do humano”, como diz Liiceanu, foi uma das maiores estratégias do ódio organizado pelas ideologias. O outro, aquele que não concorda com a doutrina da salvação, passa rapidamente a ser estigmatizado e a ser situado num amplo bestiário do ódio.
A grande questão, levantada por Benda e analisada por Liiceanu, é que só é possível chegar a tal ponto, a medida em que a “crença num universal humano, na humanidade e nos valores eternos desta” (p. 95) não tem mais qualquer valor. Perguntaria o que a “morte de Deus” tem a ver com a “morte do ‘humano’”. O homem não existindo em mais nenhum lugar, torna-se objeto de categorizações que respondem apenas aos ideólogos organizadores do ódio e não mais à sua liberdade. O autor termina a obra analisando brevemente o caso particular da Romênia sob o regime comunismo, os intelectuais e o ódio entre 1948 e hoje, que deixo ao leitor sua análise.
Rodrigo Coppe Caldeira
PUC Minas