EDITORIAL
RELIGIÃO, RELIGIÕES, MAIS UMA VEZ...
RELIGIÃO, RELIGIÕES, MAIS UMA VEZ...
Interações, vol. 12, núm. 21, pp. 4-9, 2017
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
RELIGIÃO, RELIGIÕES, MAIS UMA VEZ...
A religião, ou as religiões, são evidências de identidades, atravessadas, remontadas, ressuscitadas, renovadas, desmontadas, que se espalham em novos espaços ou em antigos territórios: política, gênero, consumo, família e outros. Nesse mundo, em que a religião é ator e protagonista, a especialização do mundo acadêmico, aliada à desconfiança frente a tudo aquilo que não tem bases empíricas ou que não se realiza a partir de uma coleta estatística, tornam-se obstáculos de compreensão. Não é mais possível opor compreensões qualitativa e quantitativas, nem insistir em “gavetas” hermenêuticas, ou seja, perspectivas curtas, estreitas e que não dialogam com outras áreas do saber científico e da cultura.
As reflexões acadêmicas sobre religião são desafiadas por uma pauta de fenômenos que não cessa de ampliar-se, exigindo uma multi-competência hermenêutico-metodológica do pesquisador em teologia e ciências da religião: corporeidades, mulheres e feminismos, transexuais, negritudes, identidades universais e regionais, movimentos sociais, consumismos e mídias, saúde e terapias, conservadorismos, sincretismos e hibridismos culturais e religiosos, teologias da prosperidade, violências múltiplas e transversais, racismos disseminados, etnias reinventadas, novas classes e segmentos socioeconômicos, ativismos antigos, cibernéticos e anarquistas, juventudes e dispersões do sagrado, antigos e novos fundamentalismos, esquerdas e direitas, redes eletrônicas, novos circuitos de consumo, bens e serviços (mercados simbólicos, orgânicos, solidários), biotecnologia, ciborgue e engenharia genética, novas intelectualidades (religiosas e não-religiosas), apropriação tecnológica (software livre, códigos abertos, cultura digital), tensões e conflitos globais e locais, depressões, saudades da metafísica e da ontologia, monopólios, novas identidades de consumo, novas ecologias, populismos de direita e de esquerda, velhos e novos cultos à personalidade de líderes religiosos, políticos e artísticos, comunidades, narcisismos, e outros.
Diante desse transbordamento de fronteiras, há duas formas de realizar a tarefa de interpretação: enfocar os fenômenos sob o cânone epistemológico clássico da modernidade e identificar os fenômenos como indevidos e ilegítimos, exigindo, portanto, procedimentos de restauração e diferenciação de territórios, ou operar uma nova leitura, deixando de ver as ambiguidades como defeito ou como operação metodológica impura, e, assim, construir novas narrativas epistemológicas.
Vista como a mais fundamental para a compreensão moderno-científica, a tarefa de conceituar torna-se extenuante e infrutífera, na medida em que os contornos nunca são suficientemente nítidos para adquirir consensos sólidos. Se a conceituação tradicional define zonas claras e delimitadas para análise científica, logo surgem os fenômenos que desestabilizam as fronteiras, iniciando-se uma nova tarefa de conceituação. Por entre os “dedos” do conceito, o “líquido” da religião e do religioso escapa constantemente. Talvez seja o caso de complementar a noção de conceito, pela de narrativa, mais aberta e porosa, o que não significa menor rigor intelectual.
Por outro lado, os consensos construídos em torno dos conceitos tendem a ser provisórios e escapam das teorias com facilidade, desmancham-se. As linhas de tensão entre as ordens deste mundo e as religiões caracterizam-se por invasões, ultrapassagens, concessões e adaptações, em um desenho multiforme caracterizado pela razão, pela emoção, pela corporeidade, pela magia. E isso tanto em relação ao tipo de agrupamento, ao modo de agrupar-se, às sociedades, às plebes e massas e à aristocracia religiosa. A perspectiva normativa, presente em muitas análises sociológicas da religião, enfraqueceu-se diante das críticas pós-modernas e foi acusada de ser insuficiente para dar conta de “explicar” a religião. As atuais reflexões apontam para o fato de que, numa época de fluxos migratórios e diaspóricos de pessoas, mercadorias e ideias, é fácil confundir o lugar que as pessoas ocupam com suas práticas religiosas e culturais, com o lugar onde se pensa ou se deseja que elas estejam. Diante desse cenário, os intérpretes e as fórmulas epistemológicas tradicionais foram desinvestidos de plausibilidade, relidos e ressemantizados. Os estudos de religião encontram-se em uma encruzilhada: a força dos antigos conceitos enfraqueceu-se, mas ainda permanece, enquanto que as novas narrativas ainda não se tornaram mais maduras e fortes o bastante para imporem-se.
A época moderna, com suas acelerações, mudanças na estrutura de produção e reprodução social, inaugurou a era das mobilidades que progressivamente expande-se pelo mundo ocidental, a partir de quatro tipos de mobilidade: a geográfica, a social, a conjugal e a política. Essas mobilidades afetaram a distribuição e a correlação de forças no campo religioso brasileiro. Novas forças religiosas emergiram com vigor (pentecostalismo e neopentecostalismo). Antigas forças (catolicismo) viram-se pressionadas a mudar suas estratégias e a pluralizar-se, em termos de estilos, valores e rituais. Diante de inúmeros exemplos da relação entre as ordens do religioso e do social, uma das indagações pode versar sobre a maior ou menor interferência sobre o social, na vida sociopolítica das sociedades como um todo e da brasileira em particular, comparando-se ou não com outras épocas históricas.
Uma resposta sumária a esse questionamento poderia suscitar comparações sem parâmetros, exemplos descontextualizados, inúmeros dados estatísticos sem enraizamento metodológico, além de exemplos empíricos desproporcionais e conceitos mal formulados, porque foram extraídos de outros campos científicos sem uma poderosa reflexão crítica.
Com isso, perde-se de vista um fato básico de toda a sociologia do religioso, sendo a religião parte do social, entendido como totalidade das relações travadas na sociedade. Embora a perspectiva durkheimiana clássica afirme que a religião é o social, e o social é, em sua origem, o religioso, essa hipótese clássica não consegue explicar as complexas tramas entre religião e sociedade. Ao contrário, reforça tautologias comuns em muitas teorias nas ciências da religião, ou seja, explica-se a religião a partir de chavões, lugares- comuns.
Contudo, em uma análise acadêmica da religião, deve-se partir de algumas premissas, entre as quais a de que o religioso não está fora do social ou das totalidades sociais que integram e estruturam uma sociedade. Diante isso, a leitura só está completa se as duas direções de intercâmbios entre o religioso e o social (e demais dimensões) forem reciprocamente consideradas, aquilatadas e constantemente pensadas.
Apesar dessa necessária reciprocidade, as perspectivas teóricas das ciências sociais precisam enfatizar que os arranjos sociais entre cultura, Estado, sociedade e religião são variáveis historicamente e não podem ser entendidos uniformemente a partir de leituras pouco sofisticadas das teses weberianas, por exemplo, ou de outros autores.
Por outro lado, as ciências da religião devem desconfiar de termos muito vagos, como o sagrado e seu poder heurístico e hermenêutico, para interpretar todas as relações entre o social e o religioso. Dessa forma, em virtude de e até mesmo a despeito de esses termos pretenderem explicar tudo, nada explicam, ao final da investigação e da proposição normativa.
Para fornecer uma via de compreensão, entre outras, da “fenomenicidade” entre o religioso e o social, é preciso entender a religião para além de um sistema organizado de crenças, práticas, valores e religiosidade e vê- la como um ambiente, uma sensibilidade, uma disposição de sujeitos e grupos, socialmente estruturados e culturalmente orientadores, legítimos ou não, abandonando a ilusão recorrente de fenômenos homogêneos.
Nesse contexto, é preocupante a existência de perspectivas teóricas que baseiam seus argumentos em torno de supostas naturezas essencialmente religiosas ou sociais do ser humano e que determinariam, supostamente, os caminhos por onde o religioso influencia.
O religioso está, e se dá, sempre em tensão e relação com o social. Primeiro, porque as fronteiras entre as duas esferas nunca são fechadas; ao contrário, são incertas e tensas, mantêm-se em estado de contínua negociação. Segundo, porque em nome de Deus, de Deuses, de princípios espirituais ou laicos, reivindica-se a intervenção nos assuntos desse e do outro mundo, em variados graus de rejeição e aceitação dos campos político, econômico, moral, artístico e intelectual, e do mundo religioso.
Aqui, emerge um grande problema para pesquisadores e pesquisadoras comprometidos com a tarefa de compreender o religioso e a religião: a aversão, ojeriza ou o incomodo com as críticas. Alguns pesquisadores rejeitam as críticas quando estas não endossam os consensos, ou quando estas não reforçam as crenças e valores que embasam as suas posições. Torce-se o nariz para essas críticas: quem as faz é visto como “invejoso” ou “mal-educado”. No entanto, a crítica, dentro dos parâmetros acadêmicos, é tarefa inerente à compreensão do religioso.
Por isso, outro grave problema nas ciências, incluindo as ciências da religião e a teologia, é a capacidade de elegermos deuses, gênios ou experts sobre um determinado assunto e sacralizarmos tudo o que diz e escreve sobre religião, como se nada do que esse “semi-deus” ou “herói” escreveu e falou pudesse ser contrariado, criticado ou contraditado. Essas atitudes de rejeição ressentida das críticas parecem consolidar o pacto de mediocridade presente em muitos ambientes acadêmicos-universitários: “eu não critico as ideias de fulano sobre religião para não ser criticado por ele e para não me expor” ou, “quem critica fulano o faz por inveja”. Ignoram-se as críticas por patrulha ideológica ou por recurso a falácias como a da inveja. Aqueles que criticam ou são ignorados ou são patrulhados, colocados à margem. Entenda-se, nesse sentido, o quanto é importante fazer a crítica a partir dos canais competentes: revistas acadêmicas, comunicações em congressos, com sinceridade e honestidade intelectual.
O antropólogo Roy Wagner (2012, p. 54) dizia que “a cultura é tornada visível pelo choque cultural, pelo ato de submeter-se a situações que excedem a competência interpessoal ordinária e de objetificar a discrepância como uma entidade”. Assim, pode-se dizer, parodiando, a citação anterior, que a religião é tornada visível pelo choque causado pelos novos fenômenos e pelo desvelamento das origens e das tramas conceituais.
As Ciências Sociais da Religião, as Ciências da Religião e a Teologia (e suas variantes e expressões regionais) existem por meio da ideia de religião que se tornou um idioma e uma linguagem designativa de realidades, eventos, fenômenos, uma maneira de falar sobre relações, profundidades, sacralidades. Por isso, se faz necessário pensar novas possibilidades, sempre. Continuando com Roy Wagner (2012, p. 56): “a antropologia é o estudo do homem ‘como se’ houvesse cultura. Ela ganha vida por meio da invenção da cultura, tanto no sentido geral, como um conteúdo, quanto no sentido específico, mediante a invenção de culturas particulares”. Podemos pensar algo parecido com as Ciências Sociais da Religião (sociologia, história, antropologia e outras) e as Ciências da Religião enquanto estudo da religião “como se” houvesse religião no sentido de um “algo em si”. Explico-me. Em um momento no qual o conceito de religião aparece cada vez mais como artificial, em que suas raízes históricas são cavoucadas e expostas, como nos lembra o antropólogo saudita Talal Asad, é preciso “inventar” a religião e “inventar” novas narrativas que consigam dar conta das múltiplas formas, estruturas e sensibilidades religiosas que se justapõem ou se sobrepõem às antigas classificações e conceituações acadêmico- científicas.
Por isso, as investigações, como as deste Dossiê, preparado pelo Prof. Dr. Rodrigo Coppe, a quem agradeço o convite para redigir este Editorial, devem se ampliar e ao mesmo tempo se aprofundar nas encruzilhadas formadas entre as pistas deixadas por autores clássicos e contemporâneos, e os fenômenos e empirias que multiplicam-se incansavelmente em nosso dias.
Referências
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.