Resumo: Este artigo1 tem como objetivo ressaltar um momento da filosofia de Nietzsche em contraposto a uma crescente difusão literária e cientificista, iniciada no início do século XIX e com ênfase em finais da década de 1880. Seu posicionamento conflita com o embasamento da religião cristã presa a uma filosofia socrática, em que Nietzsche busca desmascarar a doutrina religiosa que expressa remorso, receio e temor ao homem diante de suas atitudes, enganando seus sentidos devido a uma falsa moralidade. A filosofia nietzschiana estruturou-se de forma distinta no processo de compreensão do ser humano frente às interpretações da vida humana, conduzidas por uma dominação cristianizada. Dessa forma, o que se pretende neste artigo é descrever algumas das implicações que Nietzsche apresenta em sua empreitada contra o cristianismo e sua imposição ao modo de vida do ser humano e, com isso, apresentar possibilidades que o filósofo descreve como potencialidades do homem que o conduziriam ao além-do-homem, através de um processo de ultrapassamento e superação da cultura cristã.
Palavras-chave:NietzscheNietzsche,CristianismoCristianismo,TransvaloraçãoTransvaloração,Além-do-homemAlém-do-homem,NiilismoNiilismo.
Abstract: This article aims to highlight a moment of Nietzsche's philosophy in opposed to a growing literary and scientistic diffusion that begun in the early nineteenth with emphasis on the late 1880. These positioning conflicts with the foundation of the Christian religion attached to a Socratic philosophy, where Nietzsche seeks to unmask the religious doctrine that expresses remorse, fear and awe of man towards his actions, deceiving your senses because of a false morality. The Nietzschean philosophy was structured differently in the process of understanding the human face of interpretations of human life, led by a Christianized domination. Thus, what is intended in this article is to describe some of the implications that Nietzsche presents in its endeavor against Christianity and its imposition on the way of life of the human being and, therefore, present possibilities that the philosopher describes how human potential that the they lead to the above-human, through a process of surpassing and overcoming of Christian culture.
Keywords: Nietzsche, Christianity, Revaluation, Above-human, Nihilism.
ARTIGOS
O ALÉM-DO-HOMEM E O CRISTIANISMO
THE ABOVE-HUMAN AND CHRISTIANITY
Ao longo da história o homem se apresenta buscando compreender seu papel no mundo e desenvolver a sua autossuperação. Segundo o referencial teórico deste estudo, frente aos conceitos da formação do mundo ocidental, o homem encontra-se moldado por uma moralidade socrático-cristã voltada para o princípio da conservação.
Com isso, procuraremos conduzir neste artigo o apontamento de Nietzsche a favor da afirmação e valoração da vida, a partir de uma transvaloração dos valores vigentes na sociedade moderna e que, para o filósofo, somente será alcançada por um tipo de homem que se posicione além de tais valorações predeterminadas pela moral socrático-cristã. Nesse contexto, a definição do tema que se pretende na presente pesquisa se faz no sentido de investigar a abordagem de Nietzsche sobre o cristianismo, em contraposição ao além-do- homem.
Segundo o filósofo, o cristianismo é responsável pelo envenenamento e enfraquecimento do homem, e é caracterizado pela negação da vida ao formular valores transcendentes, superiores à própria vida. A noção dessa transcendência, desenvolvida pelo pensamento socrático-platônico e continuado pelos cristãos, seria, de acordo com sua compreensão, a suprema ilusão e origem de uma vida doente, uma moral de fracos. Seria essa a definição de valor que Nietzsche combate em sua filosofia?
Em seu Zaratustra, Nietzsche descreve que o homem encontra-se no limiar a caminho do além-do-homem, que é o escopo a ser alcançado pelo homem: “Amo todos os que se assemelham a gotas pesadas que deslizam uma a uma da sombria nuvem suspensa sobre os homens […] eu sou um prenúncio do raio e uma pesada gota procedente da nuvem; contudo este raio chama-se o super- homem” (NIETZSCHE, 1985, p. 12).
Dado o exposto, buscar-se-á enfatizar o contraposto do além-do-homem e o cristianismo, apresentando definições da estrutura filosófica nietzschiana e sua diferenciação entre transvaloração e a estruturação de unidade valorativa cristã como uma moral da decadência. Dessa forma, apresentamos a proposta de Nietzsche de superação do que o filósofo chama em sua obra Genealogia da moral, de falsa moral.
Nietzsche é um pensador instigante e provocativo. Como seria impossível abarcar toda a sua produção filosófica em um único artigo, optou-se em delimitar a referência da pesquisa na sua compreensão de transvaloração e sua crítica ao cristianismo, tendo como objetivo mostrar como a crítica nietzschiana contribui para uma distinta compreensão do homem perante a vida e seus valores, enfatizando a proposta nietzschiana de ultrapassamento do homem.
A filosofia nietzschiana defronta-se com a cultura cristã, por esta ser, segundo o filósofo, um impedimento para o progresso do homem, sendo o cristianismo responsável por um “holocausto” cultural e moral. O que o cristianismo faz, por meio de seu dogmatismo, é estruturar-se sobre os princípios platônicos e, com isso, servir de entorpecente2 para seus seguidores. Segundo Nietzsche (1996a, p. 8), “falar do espírito e do bem tal como fez Platão; sim, pode-se mesmo perguntar, como médico: ‘De onde vem essa enfermidade no mais belo rebento da Antiguidade, em Platão?' […], pois o cristianismo é platonismo para o povo”. O cristianismo é instituidor de uma formulação inibidora dos instintos e tendências naturais que torna o cristão um animal enfermo. Segundo o filósofo, “estar doente é instrutivo, não temos dúvida, ainda mais instrutivo que estar são – os que tornam doentes nos parece mais necessário do que homens de medicina e ‘salvadores’” (NIETZSCHE, 2006, p. 103), ou seja, o conceito de valoração cristã é um oponente da natureza que censura o que é natural.
[…] refiro-me à moralização e ao amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho “homem” aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. A caminho de tornar-se “anjo” (para não usar palavra mais dura) o homem desenvolveu em si esse estômago arruinado e essa língua saburrenta, que lhe tornaram repulsivas a inocência e a alegria do animal, e sem sabor a própria vida. (NIETZSCHE, 2006, p. 57).
Para Nietzsche (2007a), o mundo prometido ao cristão é uma estória, um erro conveniente para aceitar o “pós-morte”, o reino dos céus, o cristo ressuscitado do apóstolo Paulo,3 o precursor do “cinismo lógico”. Nietzsche entende o cinismo lógico atribuído a Paulo como a insolência de um rabino “errante”, que, por introduzir para os seus seguidores as máximas do cristianismo da forma que ele mesmo interpretara, acabava por deturpar o que realmente a vida do Cristo poderia significar. Segundo Nietzsche,
[...] já a palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo, houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O “evangelho” morreu na cruz. O que desde então se chamou de “evangelho” já era o oposto daquilo que ele viveu: uma “má nova”, um disangelho. (NIETZSCHE, 2007a, p. 45).
Com a “má-nova” imposta pelo cristianismo paulino, o que Nietzsche apresenta em sua filosofia é que não bastaria a morte de Deus, mas também a morte do homem preso a esse valor. Diz Nietzsche: “A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo senão isto?… Estamos cansados do homem…” (NIETZSCHE, 2006, p. 35). A morte de Deus é decorrência do cristianismo e a ascensão do niilismo traz a decadência da cultura religiosa. Se antes o cristianismo nasceu como a interpretação das ações de um homem que em sua época iniciou a tentativa de uma transvaloração de valores, agora com o niilismo ativo surge uma nova forma de se interpretar o conceito de valores, e não mais o Deus cristão.
O conceito cristão de Deus – Deus como deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra; talvez represente o nadir na evolução descendente dos tipos divinos: Deus degenerado em contradição da vida em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Deus, essa fórmula para toda a difamação do “aquém”, para toda a mentira sobre o “além”! Em Deus o nada divinizado, a vontade do nada canonizada!... (NIETZSCHE, 2007a. p. 23).
Para o filósofo, a morte de Deus é um processo histórico, uma ação que ocasiona em uma preparação para o anúncio do além-do-homem, também como uma declaração de uma boa-nova do surgimento de um mundo novo, e não um “aprofundamento de ideias” da compreensão da existência do homem no mundo através de sua compreensão teológica. Dessa forma, com a ascendência do cientificismo e o surgimento de novas explicações da existência humana, Deus começa a perecer. O advento da ciência tornou-se um estorvo para o cristianismo.
Segundo Pimenta (2000, p. 76), “pode-se perceber o não alinhamento de Nietzsche a qualquer das posições que dominaram de modo hegemônico a reflexão sobre o problema do conhecimento do mundo moderno”. Sendo assim, a morte de Deus enfatiza-se como uma dissolução dos valores e conceitos da sociedade, e não em um aniquilamento da fé realizado pelo homem. Devido a essa estrutura no pensamento de Nietzsche e sua complexidade que, para Marton, “frequentar os textos de Nietzsche, familiarizar-se com o seu pensar resulta em trabalhos de exegese” (MARTON, 2000). A busca do além-do- homem é a busca de um ser criador que estabelece valores:
[…] a religião tornou-se, acima de tudo, um “monótono-teísmo”. Desvalorizando este mundo em nome de um outro, essencial, imutável, e eterno, a cultura socrática-judaico-cristã é niilista desde a base. É a morte de Deus que tornará possível a Zaratustra fazer a travessia do niilismo. (MARTON, 2000, p. 56).
Nietzsche diagnosticou no final do século XIX que o além-do-homem deveria ser uma proposta a ser oferecida para o homem, sendo a crítica da racionalidade conceitual uma nova forma de racionalidade, refletida através da necessidade da experiência para corretamente interpretar os conceitos e criar uma nova percepção, antes ofuscada ou negligenciada pelos homens, na qual o niilismo seria a marca dos dois séculos seguintes. A mudança dos valores apresentados na filosofia nietzschiana remete a um conhecimento através de atos e fatos, e não de conceitos preestabelecidos.
A transvaloração (Umwertung) constitui a essência do niilismo ativo “enquanto potência aumentada do espírito que prospera, se desenvolve, ataca, destrói e propõe outros alvos” (ALMEIDA, 2005, p. 56). O niilismo ativo indica uma nova forma de valorar e criar que abre a possibilidade para uma nova perspectiva de se compreender o mundo, sem a necessidade de uma moral reguladora, um Deus para criá-lo, guiá-lo ou até para destruí-lo, sem encantamentos.
Em uma tresvaloração de todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, em um confiar e dizer Sim a tudo que até aqui foi proibido, desprezado, maldito. […] o elevado direito e privilégio à existência. A moral não é atacada, apenas não é mais considerada… (NIETZSCHE, 1995, p. 79)
Segundo Nietzsche, a moral cristã não está ligada à realidade, pois nela se encontra somente motivos e implicações imaginários, tais como “um Deus criador, livre-arbítrio, salvação ou piedade”.4 Essas categorias falseiam a realidade e fazem com que a vida seja desprezada. Com isso, o cristianismo é definido por Nietzsche como um processo de dominação de homens bons, tornando-os enfermos:
Esse cristianismo, quando perdeu seu primeiro terreno, as classes mais baixas, o submundo do mundo antigo, quando se pôs a buscar o poder entre os povos bárbaros, já não tinha, como pressuposto homens cansados, mas interiormente homens selvagens e dilacerados – o homem forte, mas malogrado. […] O cristianismo quer assenhorar-se de animais de rapina; seu método é torná-los doentes – o debilitamento e a receita cristã para a domesticação, a “civilização”. (NIETZSCHE, 2007a, p. 26-27).
Essa dominação cristã iniciou-se no momento em que a religião criou para si uma civilização igualitária, em que seus fiéis, os possuidores de espírito de rebanho, uniam-se para, dessa forma, satisfazerem seus instintos. Essa atitude diferenciava-se da casta que Nietzsche descreve em Além do bem e do mal como os senhores que buscavam justamente desagruparem-se.
A força da religião cristã origina-se de sua dominação concretizada através de suas imposições, e, com isso, a moral cristã passa a se afirmar como um “princípio básico” (NIETZSCHE, 1996a, p. 171) para o ordenamento humano. A afirmação de igualdade, a opressão e a compaixão entre seus fiéis submetendo suas vontades à luz de uma crença que não os permite vivenciar seus instintos, ratificam aquilo que a filosofia nietzschiana desprezara: a negação da vida.
Na filosofia nietzschiana, tal negação conduz a sociedade à decadência e, por sua vez, a uma vontade de nada. Para Nietzsche, não meramente em função de uma moral, a vida é necessariamente vontade de poder, pois “o que é a vida deve ser pensado em múltiplas relações” (FINK, 1988, p. 84). Contrariamente, Müller-Lauter (1997, p. 74) aponta que, “a vontade de poder é a multiplicidade das forças em combate umas com as outras”.
Em Nietzsche, a imposição cultural cristã, alicerçada em um “mundo belo e perfeito”, se faz em decorrência da existência de um bloqueio e recusa das necessidades humanas devido a sua negação. Segundo Mosé,
[...] o motivo desta recusa é que o conhecimento metafísico é uma negação da vida, ou seja, a história do conhecimento metafísico é a história do afastamento com relação aos instintos, ao corpo, à Terra. O móvel de todo conhecimento é sempre a busca de um além-mundo, um mundo diferente do que se apresenta a nós, um mundo sem sofrimento, um mundo que nos faça esquecer da morte. É o medo enquanto instinto que nos leva a conhecer. O homem, diante da pluralidade caótica de forcas da vida, sente medo. (MOSÉ, 1999, p. 189)
Dessa forma, a filosofia nietzschiana estabelece uma crítica para a compreensão do niilismo na modernidade, caracterizado pela perda da verdade com a morte de Deus, e perpassa pela estruturação da cultura ocidental, contrapondo-se ao cristianismo. Nessa perspectiva, o pensamento nietzschiano defronta-se com os paradigmas de uma sociedade cristianizada. Segundo Giacóia Júnior, (1997, p. 25) sendo o cristianismo a religium décadence,5 “a filosofia de Nietzsche é definida como um esforço teórico para levar a cabo uma crítica às formas superiores de cultura no Ocidente”. Perante os apontamentos da modernidade, é descrito por Nietzsche (1995, p. 62-63) que a religião, na condição de “sintoma de decadência, é uma inovação, uma singularidade de primeira ordem na história do conhecimento”.
A crítica nietzschiana descreve justamente a diferenciação entre um niilismo ativo criador e um niilismo negativo que, segundo Almeida (2005, p. 56), encontra-se esgotado e sem possibilidade de atingir novos objetivos. Embasado nessa diferenciação entre niilismo ativo e negativo, Nietzsche retorna com a proposta de ultrapassamento do niilismo e não com o seu aniquilamento.
Ao mesmo tempo em que é situado historicamente, esse fenômeno é pensado no interior do projeto filosófico, que, partindo da crítica da moral, visa a atingir um pensamento afirmativo, para além da oposição entre homem e mundo. O pensamento de Nietzsche visa, com isso, a uma inflexão na História do niilismo. Ao constatar que o niilismo é a consequência da desvalorização dos valores morais, metafísicos e religiosos da tradição ocidental, o filósofo afirma que a raiz comum deste fenômeno, a origem desse hóspede sinistro, está na interpretação moral da existência do mundo. (ARALDI, 2004, p. 63)
O niilismo, em Nietzsche, é definido como um processo para a destruição da moral e dos valores transcendentes, o que levaria o homem a negar os valores de Deus e, por sua vez, ver a vida como um eterno retorno. Segundo Löwith (1991, p. 69-70, tradução nossa),6 “é como forma extrema do niilismo e de seu ultrapassamento que é pensada também a doutrina do eterno retorno”, compreendendo assim a não existência da eternidade pregada pelo cristianismo. Esse processo é conduzido pela vontade de nada, pois a vontade niilista se manifesta na negação e, por meio dela, sua condição de vontade de potência. Nesse contexto, Nietzsche se considera um niilista clássico, o primeiro niilista de fato.
Eu sou, no mínimo, o homem mais terrível que até agora existiu; o que não impede que eu venha a ser o mais benéfico. Eu conheço o prazer de destruir em um grau conforme à minha força para destruir – em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer Sim do fazer não. Eu sou o primeiro imoralista: e com isso sou o destruidor por excellence. (NIETZSCHE, 1995, p. 110).
Nietzsche descreve o niilismo em sua filosofia como uma lógica da décadence, e não uma causa. O ultrapassamento do niilismo para o filósofo é incondicional e somente pode ocorrer na perspectiva do amor fati, contrapondo-se ao cristianismo e sua tradição filosófica. “A aproximação entre Sócrates, Platão e o cristianismo ganha pleno sentido guiados pelo operador teórico fornecido pelo conceito de décadence” (GIACÓIA JÚNIOR, 1997, p. 25).
Nesse contexto, a filosofia nietzschiana se apresenta como uma transvaloração dos valores supremos, diferenciando-se das antigas doutrinas que edificaram a formação do mundo. Através desse projeto de transvaloração, Nietzsche questiona tanto a formação da cultura cristã quanto o cientificismo. Por estes possuírem ou serem “ídolos” deformadores da sociedade, contribuindo na solidificação e construção de empecilhos para essa transvaloração, é utilizada, na filosofia nietzschiana, o que o filósofo chama de filosofia do martelo para guerrear a verdade até então apresentada, sendo essa filosofia instrumento para o seu além-do-homem.
A guerra sempre foi a grande inteligência de todos os espíritos que se voltaram muito para dentro, que se tornaram profundos demais; até no ferimento se acha o poder curativo […]. Uma outra convalescência, em algumas circunstancias ainda mais desejada por mim, está em auscultar ídolos… Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é o meu “mau olhar” para este mundo, é também meu “mau ouvido ”. Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele celebre som oco que vem de vísceras insufladas […]. Também este livro – seu título já o revela – é sobretudo um descanso, um torrão banhado de sol, uma escapada para o ócio se um psicólogo. Talvez uma nova guerra? E serão perscrutados novos ídolos?... Este pequeno livro é uma grande declaração de guerra; e, quanto ao escrutínio de ídolos, desta vez eles não são ídolos da época, mas ídolos eternos, aqui tocados pelo martelo como se este fosse um diapasão – não há, absolutamente, ídolos mais velhos, mais convencidos, mais empolados... E tão pouco mais ocos... Isso não impede que sejam os mais acreditados; e principalmente no caso mais nobre, tão pouco são chamados de ídolos… (NIETZSCHE, 2006a, p. 7-8)
Tais “ídolos”, ao longo da história, são responsáveis por um mosaico de informações ilusórias e surrealistas em que se utiliza todos os seus artifícios para sempre poder manter o homem submisso a um valor supremo, identificando-se com este. Indiferentemente, o cristianismo, para o filósofo, não é somente a religião da decadência ou do ressentimento, mas também uma religião violenta e vingativa motivada pela moral. Segundo Saroldi (1999, p. 159), “Nietzsche nos chama a atenção para os mecanismos de violência psicológica e os considera uma contrapartida necessária da repressão da violência física”.
Nietzsche descreve que o cristianismo tem como objetivo consolar o homem, mas, para que isso seja realizado, faz-se necessário que o homem seja primeiramente atormentado, mantendo-o, dessa forma, enfermo. Nietzsche refere-se ao cristão como um pregador da morte em prol de outra morte. Em seu Zaratustra é descrito que “por toda a parte ressoa a voz dos que apregoam a morte, e a Terra está repleta de seres a quem é necessário pregar a morte. Ou ‘a vida eterna’ – que para mim é o mesmo – contanto que se vão depressa” (NIETZSCHE, 1985, p. 35).
Em Ecce homo, é descrito pelo filósofo que estar doente é uma espécie de ressentimento, e que para o doente não resta outra saída que não seja a aceitação de sua não cura. Para Nietzsche (1995, p. 25), “um ser tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um energético estimulante ao viver, ao mais viver”. Do mesmo modo, a religião cristã promoveu, ao longo da história, uma criação de valores que lhe são úteis, e essa promoção interiorizou-se na humanidade, mantendo-a doente e abrindo lacunas intransponíveis. Com esse adoecimento instaurado pela moral cristã, Nietzsche conceitualiza a importância de seu pensamento às manifestações de seu tempo.
Descobrimos que no tocante aos principais juízos morais a Europa se pôs de acordo, e também os países de sua influência […]. Moral é hoje na Europa, moral de animais de rebanho – logo, tal como entendemos as coisas, apenas uma espécie de moral humana, ao lado da qual, antes da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou deveriam ser possíveis. (NIETZSCHE, 1996a, p. 101).
Nesse momento, sua filosofia volta-se aos homens sãos, que não estão presos aos valores da moralidade cristã. Tal afirmação destaca-se devido às imposições que inibem os instintos e as ações naturais intrínsecas ao homem feitas pelo cristianismo, sendo possível uma abertura para o processo do “livre pensar” na trajetória histórica da humanidade. Segundo Guéron (2003, p. 127), esse processo “seria útil ao homem que quer, ou mesmo que precisa entrar numa grande batalha. A história […], na verdade, é a grande encorajadora dos espíritos humanos que podem, a partir dela, inspirar-se nos grandes feitos e nas grandes personalidades de épocas passadas”.
Segundo Nietzsche, “qual de nós seria livre pensador, se não houvesse a Igreja? A Igreja é que nos repugna, não o seu veneno…” (NIETZSCHE, 2006, p. 28). Esse desprezo descrito pelo filósofo precisa ser encarado como uma espécie de entusiasmo, que o livre pensador deve possuir para se livrar dos princípios doutrinários impostos pelo cristianismo, construindo, dessa forma, um novo caminho para poder ultrapassar-se, ascendendo ao além-do-homem. Nietzsche descreve esse desprezo à institucionalização da religião como uma motivação audaciosa que possibilita, diferentemente do mundo cristão, uma nova criação. Afirma Nietzsche (2006, p. 97): “Pereat mundus, fiat philosophia, fiat philosophus, fiam!”7
Com essas afirmações, fica evidenciado que, para Nietzsche, uma aproximação com a cultura e moral do cristianismo seria o mesmo que denegrir a intelectualidade do homem. Nietzsche descreve que aquele que se propuser a se tornar um tipo superior de homem deve distanciar-se da falsa moral, buscando sua autonomia. O além-do-homem deveria surgir de onde os valores transcendentes acabaram.
Antigamente quando se olhava para os mares longínquos, dizia-se: “Deus”, porém eu vos ensinei a dizer: “Super-homem”. Deus é uma suposição: contudo eu desejo que a vossa suposição não vá além do que a vossa vontade criadora. Podereis criar um Deus? Pois então não me faleis de deuses! Poderíeis, todavia, criar um Super- homem. (NIETZSCHE, 1985, p. 63)
O além-do-homem é aquele que proclama o amor à Terra. Para Nietzsche (1996), é quem vive demasiadamente o eterno retorno, capaz de interpretar os fatos da vida sem alterar seu próprio juízo; diferentemente da religião, que, para se sobrepor, utiliza-se da submissão de seus fiéis a leis divinas, cultivando os males da humanidade, explorando-a.
Como gostaríamos de trocar essas falsas afirmações dos sacerdotes, segundo as quais existe um Deus que de nós exige um bem, que é gratidão e testemunha de toda ação, todo momento, todo pensamento, que nos ama, que em toda desgraça deseja o melhor para nós – como gostaríamos de trocá-las por verdades que fossem tão salutares, calmantes e benfazejas como esses erros! (NIETZSCHE, 2007b, p. 79)
Nietzsche diz que esse processo de exploração é maquinado pelos sacerdotes. Quando a classe sacerdotal obtém sucesso no seu processo de desprezo das ações consideradas como “ruins”, as que Nietzsche descreve como instintivas, ela consegue fazer com que seus fiéis aceitem a lei divina, diminuindo-se perante a autoridade moral dos sacerdotes. Para o filósofo, é o medo diante de uma possível ameaça de castigo de grandes dimensões que faz com que os fiéis do cristianismo erroneamente reconsiderem as consequências das suas ações, mantendo-se doentes. Ele descreve essa fórmula como a mentira da ordem moral universal. Segundo Nietzsche:
Que significa “ordem moral do mundo”? Que existe, de uma vez por todas, uma vontade de Deus quanto ao que o homem tem e não tem que fazer; que o valor de um povo, de um indivíduo, mede-se pelo tanto que a vontade de Deus é obedecida; que nas vicissitudes de um povo, de um indivíduo, a vontade de Deus mostra ser dominante, isto é, punitiva e recompensadora, segundo o grau de obediência. (NIETZSCHE, 2007a, p. 32).
Para Nietzsche, a edificação da moral cristã é o mesmo que um acorrentamento do ser humano a falsos valores, sob a alegação de ser em favorecimento da salvação através do cumprimento de uma vida ascética. Esse dogma fortalece o medo que impede o homem de vivenciar em sua plenitude a vontade de poder, contribuindo para o espírito vingativo de seus fiéis. Segundo Vattimo, a “moral é uma vontade de poder que se caracteriza pela vingança” (VATTIMO, 1990, p. 80).
Ao longo do processo histórico, a moralidade apresentou-se como o centro das questões humanas. Da mesma forma, marca característica desse processo se faz devido ao sentimento de culpabilidade do homem e de seu ressentimento perante os males do mundo. Ponto fundamental que Nietzsche combate com sua filosofia.
Como descrito anteriormente, Nietzsche não se contrapõe preeminentemente à religião cristã, mas às múltiplas manifestações em que atua a moral em seus variados domínios. O cristianismo “nada deixou intacto com seu corrompimento, ele fez de todo valor um desvalor, de toda verdade uma mentira, de toda retidão uma baixeza de alma” (NIETZSCHE, 2007a, p. 79). Portanto, com um posicionamento contraposto ao espírito cristão, ele se distingue em sua filosofia como um ávido adversário da moralidade. Segundo Pimenta (2000, p. 98), “a harmonia segundo a qual é regido o pensamento de Nietzsche e, especificamente, sua tematização do problema do conhecimento é ditada, em larga medida, pela preocupação do autor com a questão do valor e pelas soluções a ela encaminhadas”.
Todavia, pensadores como Charles Mourras (1868-1952),8 Max Scheler (1874-1928)9 e Gabriel Marcel (1889-1973)10 divergem deste apontamento da filosofia nietzschiana. Segundo Mourras (apud LEDURE, 1981, p. 56), a historicidade cristã, responsável pela construção civilizadora ocidental, cuja herança é o fundamento greco-romano, é obra positiva da Igreja Católica. Nietzsche, no entanto, diagnostica essa mesma sociedade como que estando aprisionada a paradigmas que reprimem o amor às coisas terrenas, presa a uma normatividade de um mundo inteligível como verdade absoluta. Para ele, o homem possui necessidade de ser iludido, e a moralidade cristã imposta nesse processo civilizatório é a responsável por esse falseamento. Esse posicionamento do cristianismo reafirma a colocação do filósofo, da necessidade que a humanidade possui de buscar sentido para vida – que para o filósofo seria ascendendo ao além-do-homem. Para Nietzsche, esse domínio do cristianismo evidencia-se através de sua prática opressiva, ocasionando o ressentimento do homem.
Porém, ao contrário do pensamento nietzschiano, Scheler afirma que o ressentimento descrito pelo filósofo é um autoenvenenamento que deturpa os valores, operando uma perversão da “moral eterna”. E, do mesmo modo, Nietzsche atinge somente as deficiências do cristianismo. Segundo Scheler:
Na moral antiga […], o amor traduz um impulso, uma tendência do inferior para o superior, do imperfeito para o perfeito, do que não é para o que é. Neste sentimento poder-se-ia interpretar o amor como fruto do ressentimento. Mas no cristianismo assistimos a um movimento inverso: há uma mudança de sentido do amor… O amor se manifesta no fato de o nobre descer e inclinar-se para o plebeu, o são para o doente… o Messias para os publicanos e os pecadores. (SCHELER apud LEDURE, 1981, p. 59).
É justamente essa disposição antagônica que Nietzsche condena com sua filosofia. Tanto a negação dos valores quanto a pretensão cristã de igualar seus fiéis impedem o homem, segundo Nietzsche, de afirmarem-se perante a vida. Também não é concordável o pensamento de Marcel de que o filósofo “fracassou em sua tentativa de superar o niilismo, como agravou a crise com seu apelo ao super-homem” (MARCEL apud LEDURE, 1981, p. 62), devido o além-do- homem nietzschiano ser uma proposta de transvaloração de valores, e não proposta fortuita. Tais valores, para Nietzsche, foram, ao longo da história, enfraquecendo-se e conduzidos para um processo de “desvalorização”.
Tais divergências ao pensamento nietzschiano são esclarecidas quando se diagnostica o principal apontamento da crítica do filósofo, ou seja, o cristianismo como forma decadente. Segundo Penzo,
a polêmica com o cristianismo decadente revela-se, no fundo, como consequência lógica da polêmica com a concepção platônica, que afirma a distinção entre mundo do ser e mundo do devir. Isso explica por que Nietzsche define o cristianismo como um platonismo para o povo. (PENZO, 2000, p. 29).
Portanto, a crítica nietzschiana abrange o que é conhecido do homem. Dessa forma, a apresentação do além-do-homem como um dos marcos da filosofia nietzschiana possui um caráter essencial para a afirmação da vida em virtude de seu ultrapassamento, diferenciando-se como uma proposta resultante de uma vontade de potência na qual impera sua transvaloração. A filosofia nietzschiana traz uma reflexão ao pensamento cristão de que os valores estipulados pela constante busca pelo conhecimento, antes pelo metafísico e posteriormente pelo científico, estão perdendo seu significado e não mais conseguem preencher a falta de sentido na vida do homem. Com isso, o além-do-homem apresenta-se como uma abertura para a afirmação do homem perante suas várias manifestações, para sua autenticidade perante a vida.
A necessidade de compreender o homem, seus valores, suas angústias e necessidades é uma característica fundamental da história da humanidade, o que leva a crer que, em virtude da formação do mundo ocidental, o pensamento nietzschiano muito corrobora para compreender tais formulações. Contudo, este é apenas um dos possíveis caminhos a ser frequentado sobre a temática proposta.
Compreender o homem, segundo a crítica nietzschiana, como ponte entre o animal e o além-do-homem solidifica a busca pela autossuperação, sendo esta uma proposta de seu pensamento amadurecido na qual a criação de novos valores polemizaram sua filosofia.
Para Nietzsche, o Übermensch deveria ser uma meta a ser alcançada pelo homem, sendo a crítica da racionalidade conceitual uma nova forma de valoração, refletida através da necessidade da experiência para corretamente interpretar os conceitos e criar uma nova percepção, antes ofuscada ou negligenciada pelos homens, onde o niilismo seria a marca dos dois séculos seguintes. A mudança dos valores apresentados na filosofia nietzschiana remete a um conhecimento através de atos e fatos e não de conceitos preestabelecidos. A busca do Übermensch é a busca de um ser criador que estabelece novos valores, a exemplificação da busca pelo ultrapassamento do homem. Em outras palavras, o que Nietzsche propõe é um combate entre moralidade/cristianismo e transvaloração/além-do-homem como um dos caminhos a serem percorridos no processo de afirmação da vida sob a perspectiva de uma desvinculação com os valores cristãos.
A afirmação nietzschiana de que a crença em Deus como verdade absoluta, é a crença em um Deus moralizador, resultante do sentimento de culpa, de medo e insegurança. Com isso, sua interpretação do cristianismo é como executor de uma moralidade que possui como característica a negação do mundo e da vida neste mundo, em prol de uma pós-vida, de uma desumanização do homem, caracterizado pelo ressentimento, culpabilidade e sentimento de vingança que Nietzsche evidencia no decorrer de sua crítica filosófica.
Destarte, a morte de Deus é um aprofundamento das ideias e não uma ruptura, uma preparação para o anúncio do Übermensch. A busca do Übermensch é a busca de um ser criador que estabelece valores, desvinculando do processo de divinização do mundo, estabelecendo uma concepção de conceito de valor que constitui uma crítica à crença de valores absolutos.
A filosofia nietzschiana estabelece um novo ponto de vista para a compreensão do fenômeno cultural iniciado na modernidade e que perpassa pela estruturação da sociedade ocidental, caracterizado pela perda da verdade e na desvalorização dos valores transcendentes. Ou seja, o Deus descrito por Nietzsche pereceu, dando lugar à ciência e à filosofia; entretanto, essas mantiveram o mesmo fundamento enfraquecido que o cristianismo utilizou para sua predominação, originando, dessa forma, uma abertura à necessidade humana de criação e afirmação da vida e, com isso, a proposta nietzschiana de um tipo superior ao homem como possibilidade para a ação máxima deste em seu processo de ultrapassamento.
Por fim, a herança da filosofia nietzschiana apresenta uma atitude desafiadora para a sociedade contemporânea. Uma compreensão do homem sem a repressão do ressentimento e do sentimento de culpa, com isso ocasionando a construção de seu caráter de aceitar a vida com a mesma probidade que fosse repetidamente vivenciada. Dessa forma, segundo a ideia Nietzschiana, será possível apreciar a vida integralmente. Talvez, assim, a realização de seu maior objetivo: a transvaloração de todos os valores.