DOSSIÊ
Recepção: 07 Agosto 2017
Aprovação: 23 Novembro 2017
Resumo: Os estudos sobre temas religiosos são recorrentes na análise da história das sociedades, mas não são tão comuns os que se dedicam à divulgação de preceitos morais associados à fé, presentes em livros de orações, objeto de investigação desse trabalho. Trata-se da reflexão sobre as orientações comportamentais registradas em tais obras que eram presenteadas às noivas católicas da região colonial do Rio Grande do Sul, Brasil. Os escritos do livro Maná ou Alimento da Alma Devota referem-se não apenas às orações, mas também à forma de vestir, postura adequada e horários para as preces, dados sobre as indulgências, e o que é considerado pecado, acrescentando ainda observações exemplificadas, que possibilitam sua associação com as práticas religiosas e sociais do período em estudo. As conclusões revelam que a história da religião transita pelos mais diversos documentos, permitindo, através da análise de seu conteúdo, baseada na investigação de discurso, embasada em Orlandi (1999), a aproximação entre registros religiosos e contextos históricos do Brasil, demonstrando práticas de fé e civismo pautados por ideias de moral. O método empregado está fundamentado na exploração historiográfica pautada pela abordagem da nova história que permite o diálogo entre diversas fontes na composição dos cenários e para o exame da cultura religiosa em estudo.
Palavras-chave: Religião católica, Livro de orações, Moral, Civismo, História.
Abstract: The studies about religious themes are recurrent in historical analysis of societies, but are not so common the ones that attend to the divulgation of moral precepts associated to faith, present in prayer books, the object of investigation of this work. It is about the reflection concerning the orientations registered in such pieces, which were gifted to catholic brides of the colonial region of Rio Grande do Sul, Brazil. The writings in the book “Mana ou alimento da alma devota” refer not only to prayers, but to the way of dress, adequate posture and prayer times, information about indulgences, and what is considered sin as well, adding yet exemplified observations, which allow an association with the religious and social practices of the studied period. The conclusions reveal that the history of religion travels through the more diverse documents, enabling, through content analysis, based on discourse investigation, situated by Orlandi (1999), the approximation of religious registers and historical contexts of Brazil, demonstrating faith and civil practices oriented by moral ideas. The used method is funded in historiographic exploration lined by the approach of the new history, which allows the dialog between diverse fonts in composing the scenarios and for the exam of the studied religious culture.
Keywords: Catholic religion, Prayer book, Moral, Civism, History.
1 INTRODUÇÃO
Entre os poucos objetos guardados pela minha mãe, lembro-me de um relógio que recebeu de presente ao noivar com meu pai, o anel de casamento, uma caixinha perfumada e um livro de orações de capa preta. Aproveitava, muitas vezes, sua ausência durante o período em que trabalhava como operária, para remexer seus objetos, entre os quais o que maior curiosidade despertava era o livro, pois os demais os colocava em meu braço e dedo, mas, como não sabia ler, o livrinho, tão pequeno, exercia certo encanto. Dessas memórias de infância surge o objeto de estudo escolhido para esse trabalho, como forma de associar memória, identidade e práticas sociais relacionadas ao religioso católico 1, pois
[...] observa-se, ainda, a presença marcante das origens na memória social migrante que, para facilitar a construção de uma identidade de grupo, pende para os símbolos possíveis de reificação e por aqueles que acentuam a permanência da origem: cozinha, indumentária, expressões e perfis corporais, gestualidade, ritos religiosos. (CANDAU, 2012, p. 97.)
São as lições, recomendações presentes no livro Maná ou alimento da alma devota: orações e exercícios piedosos que estabelecem relações com práticas culturais e cívicas do Brasil nos anos 1950, principalmente.

A sociedade brasileira da década de 1950 estava inserida em mudanças oriundas da denominada guerra fria, e, alinhada aos Estados Unidos, participou da internacionalização das ideias e valores do mundo capitalista. Governavam o país: Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Getúlio Vargas (1951-1954), Café Filho (1954-1955), e Juscelino Kubitschek (1956-1961). Mais que nominar os presidentes da época, é importante ressaltar que estes se configuram como os primeiros eleitos por homens e mulheres alfabetizados, numa breve experiência democrática e populista que durou de 1946 até 1964.
Como uma das características do contexto nacional, é necessário salientar a presença da televisão a partir de 1950, restrita a lugares com energia elétrica, repetidoras dos canais de TV, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, e a classes economicamente mais favorecidas. Para Rodrigues (1999),
Gradativamente a TV, talvez o mais importante meio de comunicação de massa até hoje produzido, foi ganhando espaço como fonte de informação. Através dela as imagens dos fatos podiam ser vistas ao mesmo tempo, em lugares diferentes, por milhares de pessoas, permitindo rápida atualização e a perpetuação na memória, o que dá ao espectador a sensação de ser participante dos acontecimentos. (RODRIGUES, 1999, p. 13).
Nesse sentido, a perspectiva apresentada pela autora possibilita o entendimento de algumas mudanças características da década de 1950, marcada também pelo crescimento do consumo com a amplitude da propaganda e da obsolescência dos produtos. Associados aos produtos tecnologicamente desenvolvidos e presentes na sociedade dividida entre capitalistas e socialistas, E. Hobsbawm (1995) relata alguns desses objetos que passaram a ser presentes a partir dos anos 1950
Quanto aos produtos que visivelmente representavam novidade tecnológica, a lista é interminável, e não exige comentário: televisão, disco de vinil (os LPS surgiram em 1948), seguidos de fitas (as fitas cassetes surgiram na década de 1960) e dos compact discs; pequenos rádios portáteis transistorizados [...], relógios digitais, calculadoras de bolso a bateria e depois a energia solar; e os eletrodomésticos, equipamentos de foto e vídeo. (HOBSBAWM, 1995, p. 261).
O autor continua listando produtos e tecnologias que transformaram hábitos e práticas sociais. A maioria fruto de tecnologias imediatamente pós- guerra, que ao transformarem o cotidiano contribuíram também para o avanço de novos hábitos, os quais reorganizaram as formações familiares. O cenário estabeleceu mudanças de hábitos e comportamentos familiares que prenunciaram as mudanças de décadas posteriores: “A melhor abordagem dessa revolução cultural é, portanto, através da família e da casa, isto é, através da estrutura de relações entre sexos e gerações” (HOBSBAWM, 1995, p. 314). O que se estabelece a partir de então são novas relações familiares, com a presença de organizações familiares compostas apenas por mulheres, outras com estruturas convencionais e menos numerosas.
A participação da mulher no mundo do trabalho aumentou consideravelmente e demarcou inclusive novas formas de vestir, de decidir sobre seu corpo. Scott (2012) considera:
Sublinhe-se ainda que foi somente no ano de 1943 que a legislação brasileira concedeu permissão para a mulher casada trabalhar fora de casa sem a “autorização expressa do marido”. A situação de dependência e subordinação das esposas em relação aos maridos estava reconhecida por lei desde o Código Civil de 1916. Nesse código, o status civil da mulher casada era equiparado ao “dos menores, dos silvícolas e dos alienados”, ou seja, “civilmente incapaz”. (SCOTT, 2012, p. 23).
Mesmo considerando o avanço da legislação de 1943, é necessário marcar que na prática muitas mulheres continuaram vistas como dependentes e incapazes. Logo, refletir sobre a família e papel da mulher nesse grupo social remete à reflexão de como essa estrutura social sofreu alterações no período em estudo. Para Nascimento (2006),
[...] ao focalizarmos a família como referência e unidade de análise estamos resgatando a noção de que no espaço privado e na convivência familiar, é que são criadas as fontes de organização da cultura dos povos; são estruturados os mundos simbólicos de cada indivíduo; e onde são estabelecidos os padrões de relacionamentos que vão ser reproduzidos na sociedade. (NASCIMENTO, 2006, p. 2).
O tema família tem suscitado estudos em todas as áreas do conhecimento, pois a partir desse objeto podem ser investigados temas relativos à saúde, organização social, cultural, relações interpessoais, hábitos e inclusive práticas religiosas. No Brasil dos anos 1950, a família recebia grande influência de instituições como a Igreja Católica, pois esta estava presente em todo o território.
Há algum tempo os estudos demográficos têm demonstrado transformações significativas nas famílias brasileiras a partir da formas de nupcidade, conforme tabela abaixo:
O período abordado na pesquisa se inicia em 1960, pois foi a partir desse censo que houve a preocupação em estabelecer dados acerca das uniões familiares, demonstrando aspectos relacionados às mudanças geradas pelo êxodo rural, desenvolvimento econômico urbano que se acelera, sobretudo a partir dos anos 1950, com políticas desenvolvimentistas como as do governo de JK, cujo lema era 50 anos em 5. Políticas desse gênero acabaram por atrair numerosos camponeses para as áreas urbanas, e, consequentemente, também novas forma de organização familiar.
Estabelecer relação com os dados do IBGE acerca das opções religiosas permite refletir sobre o tema em estudo:
É fundamental observar-se que no censo de religião apenas em 1940 os dados relativos à Espírita são acrescidos, sintoma presente nas formas de abordagem, que pressupõem a necessidade de atingir um número cada vez maior de recenseados e também de possibilitar, a estes, outras respostas. É possível associar, do mesmo modo, a inclusão dessa categoria ao fato de que novas crenças e práticas têm se constituído de forma crescente e significativa na sociedade brasileira, para além das opções oriundas da igreja católica.
Os aspectos incursionados neste trabalho: população, algumas práticas sociais, recenseamentos, e religião, foram escolhidos com a finalidade de contextualizar o objeto de estudo, necessário para o entendimento da história e da análise do discurso. Para tanto, destaca-se a afirmação de Orlandi (1997) sobre ambas as formas de entendimento, alertando para as peculiaridades e objetos de cada, mas acima de tudo para a percepção do diálogo entre língua e história – que se entrelaçam para possibilitar reflexões –, sendo a língua “a forma material (não abstrata como a da linguística) que é a forma encarnada na história para produzir sentidos” (ORLANDI, 1997, p. 19). Sentidos aqui relativos e presentes no livro em análise.
2 MANÁ OU ALIMENTO DA ALMA DEVOTA: CIRCULAÇÃO DE PRÁTICAS SOCIAIS
Em 331 páginas de tamanho 10 x 15 cm, em papel jornal, são apresentadas as orações e exercícios piedosos compilados por Frei Ambrósio Johanning O.F.M. A edição utilizada para o estudo é de 1950, XXI edição, publicada pela Editora Vozes RJ/SP. Ao tecer as considerações sobre os impressos, Nóvoa (1997) diz que:
[....] a imprensa é o lugar de uma afirmação em grupo e de uma permanente regulaçãocoletiva, na medida em que “cada criador está sempre a ser julgado, seja pelo público,seja por outras revistas, seja pelos seus próprios companheiros de geração.” . De fato afeitura de um periódico apela sempre a debates e discussões, a polêmicas e conflitos;mesmo quando é fruto de uma vontade individual, a controvérsia não deixa de estarpresente, no diálogo com os leitores, nas reivindicações junto dos poderes públicos ounos editoriais de abertura. (NÓVOA, 1997, p. 12-13).
Nesse sentido, compreender aspectos referentes ao impresso possibilita caracterizar sua feitura e também sua circulação. A Editora Vozes tem sua história associada à educação no início do século XX, mesmo sendo restrita a determinados setores da sociedade brasileira:
Fundada em Petrópolis, no dia 5 de março de 1901, iniciou sua trajetória imprimindo livros didáticos para atender a Escola Gratuita São José numa máquina impressora Alauzet, recuperada graças ao empreendedorismo de Frei Inácio Hinte, com o nome de Typographia da Escola Gratuita São José. Em 1907, a Ordem dos Frades Menores (franciscanos) lança a Revista de Cultura Vozes, veículo que rapidamente ganha notoriedade nos centros acadêmicos e religiosos da época. Em 1911, a revista empresta seu nome à Editora, nome que permanece até hoje. (EDITORA VOZES, 2010).
No entanto, foi justamente nos anos 1950, marco temporal desse estudo, que a editora passou a ampliar suas publicações e tomou abrangência nacional: “Até os anos de 1950, a Editora produzia livros para venda por catálogo, para escolas, igrejas e livrarias, mas sem estrutura comercial externa. Sentindo necessidade de ampliar sua base de negócios planeja sua primeira expansão.” (EDITORA VOZES, 2010), sendo que nas décadas seguintes
[...] seu leque de publicações passa a acolher novos temas, sobretudo de ciênciashumanas, editando textos de grandes pensadores brasileiros e estrangeiros. Na décadade 1960, a Igreja Católica realizou o Concílio Vaticano II. A Editora Vozes passou a ser aprincipal divulgadora do concílio no Brasil. O país passava a ser governado pelo regimemilitar, situação esta que se estenderia por mais de duas décadas. A Editora Vozes nãoteve receio de ser a voz da denúncia contra o regime. (EDITORA VOZES, 2010).
Atualmente é importante editora nacional, com alcance internacional, cujaspublicações atingem várias áreas do conhecimento.

Como se não bastassem as informações apresentadas, os escritos que justificam oestudo se iniciam com Orações Diárias. O leitor encontra o Índice a partir da página 327, sendo apresentado por módulos, que acolhem as orações e os métodosrecomendados:

Por conseguinte, as relações entre os escritos no livro e as práticas religiosas e sociais foram selecionadas devido à impossibilidade de se fazer a análise de todo o livro nesse trabalho, possibilitando, no entanto, novos entendimentos e estudos. Inicia-se com as Orações Diárias, que indicam de imediato a conduta a ser adotada pelo devoto “Em hora certa, o cristão, se levanta da cama e dirige o pensamento ao Senhor, para agradecer os seus muitos benefícios e pedir-lhe suas graças para o novo dia, fazendo (com água benta, se for possível) o sinal da cruz”. (JOHANNING, 1950).
Após as primeiras orientações e fazer o sinal da cruz, seguem-se as recomendações sobre os próximos momentos do dia que se inicia:
Ao vestir-se, não se esqueça da santa presença de Deus; vista-se com decência, sobretudo se estiver na presença de outro, podendo recitar, ao mesmo tempo “Glória ao Padre, que me criou! Glória ao filho, que me salvou! Glória ao espírito Santo, que me santificou, Ó doce Jesus que tanto me amais, fazei que eu vos ame cada vez mais! Doce Coração de Maria, sede minha salvação! Meu Deus, eu creio em vós, porque sois a verdade infalível. Meu Deus, eu espero em vós, porque sois a bondade infinita. Meu Deus, eu vos amo, porque sois o sumo e amantíssimo bem e digno de todo o amor. (JOHANNING, 1950).
Observa-se que há uma devoção baseada em crença, agradecimento, pedido e reafirmação da fé. Como sequência ao ato inicial, se recomenda que “Depois de vestido, ponha-se de joelhos, diante de um crucifixo ou de alguma outra imagem, e reze com devoção” (JOHANNING, 1950). A partir da referência conclui-se que na casa do cristão é importante a existência de objetos que representem sua cristandade: imagens, crucifixos, bíblia, mesmo considerando que nas origens do cristianismo há a recomendação de não adoração à imagens, objetos tidos como de atos profanos. Como lembra Orlandi (1997) “[...] pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode ser um deslocamento nessa rede” (ORLANDI, 1997, p. 54). Assim a autora propõe três formas de repetição:
a. A repetição empírica (mnemônica) que é do “efeito papagaio”, só repete;
b. A repetição formal (técnica) que é um outro modo de dizer o mesmo;
c. A repetição histórica, que é a que desloca, a que permite o movimento porque historiciza o dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos seus percursos, trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as evidências do imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já estabelecido. (ORLANDI, 1997, p. 54).
Logo, língua e história representam diálogos significativos na reflexão sobre as práticas baseadas em orações e exercícios para os devotos. Dessa forma, a perspectiva de representação e divulgação ganham sentido na afirmação de Certeau (1990):
A presença e circulação de uma representação (...) não indica somente o que ela é para os que dela se utilizam. É necessário ainda analisar a sua manipulação pelos que a praticam e que não são os fabricantes dessas representações. Então pode-se apenas apreciar o desvio ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização. (CERTEAU, 1990, p. 134).
Nesse sentido, o objeto de estudo constitui a memória de um grupo. Sendo conceito essencial para a ciência histórica, a Memória Coletiva é
[...] composta pelas lembranças vividas pelo indivíduo ou que lhe foram repassadas, mas que não lhe pertencem somente, e são entendidas como propriedade de uma comunidade, um grupo. O estudo histórico da memória coletiva começou a se desenvolver com a investigação oral. Esse tipo de memória tem algumas características bem específicas: primeiro, gira em torno quase sempre de lembranças do cotidiano do grupo, como enchentes, boas safras ou safras ruins, quase nunca fazendo referências a acontecimentos históricos valorizados pela historiografia, e tende a idealizar o passado. Em segundo lugar, a memória coletiva fundamenta a própria identidade do grupo ou comunidade, mas normalmente tende a se apegar a um acontecimento considerado fundador, simplificando todo o restante do passado. (CERTEAU, 1990, p. 134).
Mesmo que representado por um grupo menor, a memória se perpetua através, inclusive, da guarda do livrinho e de seu uso constante por parte dos que o receberam. Assim, é importante apresentar o grupo a quem este é destinado:

De pé da esquerda para a direita: Luiza, Eugênia, Ana, Longino, Jacob, Francisco, Santo. Sentados a partir da esquerda: Maria F., Gema, Lourdes, Ignes, Edmundo, Elisa (com Carlos no colo), Luiz, Mário, Roque, Eugênio e Avelino.
Acervo Pessoal da autora.Ao centro encontra-se o casal Luiz e Elisa 2, casados em 1920 no interior do Rio Grande do Sul, pais dos dezessete filhos, sendo que as sete mulheres eram presenteadas com o livro e os homens recebiam outro impresso, como forma de manutenção dos valores e da fé, os quais deveriam ser mantidos, cultivados e propagados entre os descendentes. Essa atitude era própria de famílias oriundas do processo imigratório italiano ocorrido no sul do Brasil, nas últimas décadas do século XIX.
Portanto, os escritos deveriam permear todos os atos cristãos, como indica a página 17:
Aos fiéis que de manhã, pelo meio dia e de noite rezarem o Angelus com os respectivos versículos e oração; ou no tempo da Páscoa, o Regina Caeli, com sua oração, ou afinal 5 vezes a Ave Maria concede-se: Indulg. De 10 anos, cada vez; ind. Plen. Nas condições habituais, se rezam essa oração durante um mês inteiro. (JOHANNING, 1950).
As orações têm, também, a função de absolver as dívidas que o cristão possua e dar o “conforto” das indulgências aos que cumprirem as orações e condutas. Em décadas como a de 1950, quando intensas transformações estavam em curso, a manutenção de tais práticas era significativa para os membros da Igreja Católica, e considera-se que passaram a ser cada vez mais questionadas.
Para os demais momentos do dia, as orações continuam sendo precedidas de orientações; o cumprimento das orações os levaria às indulgências.
A Confissão 3 será utilizada como exemplificação da importância dada às práticas religiosas cristãs no interior do Rio Grande do Sul, Brasil, por descendentes de imigrantes italianos. Na página 82 encontra-se o “método para confessar-se bem”:
Lembra-te, ó cristão, que coisa santa e inestimável é a confissão; pois a confissão, ou penitência, é aquele sacramento que nos perdoa os pecados, cometidos depois do batismo; é um meio eficacíssimo que Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua bondade e misericórdia, nos proporcionou para salvar a nossa alma. Todos que, depois do batismo, cometeram um pecado mortal, o devem empregar. Não é a confissão um objeto de aborrecimento ou de medo, mas sim uma instituição da misericórdia divina. (JOHANNING, 1950).
Com o propósito de explicar a razão da confissão, há de forma incisiva o esclarecimento de ser um ato não aborrecedor e nem amedrontador. Isso permite associar o rigor desempenhado pelos padres no momento da confissão assim como a presente ideia de pecado e punição. Na sequência aparecem mais esclarecimentos e a importância da prática:
Pobre de nós, se não tivéssemos um meio tão simples, tão eficaz e seguro e, para assim dizer, tão natural, como é a sincera, humilde e contrita confissão de nossos pecados. Aproveita-te pois, muitas vezes, deste meio tão salutar, e tanto mais quanto maior for a tua fraqueza e propensão ao pecado. Recebe, porém, sempre este sacramento tão santo com a disposição necessário, isto é: 1º depois de ter séria e tranquilamente examinado a tua consciência; 2º depois de ter feito uma contrição sincera de teus pecados, com o firme propósito de ementa, cuida bem de não depreciar esse sacramento por negligência e superficialidade no exame de consciência ou falta de contrição, ou por calar, de propósito, um pecado mortal. (JOHANNING, 1950).
Observa-se que valores como sinceridade, humildade, são utilizados como forma de lembrar ao cristão sua propensão ao que a instituição considera pecado, mas lembra a ele da importância de confessar-se de forma profunda, apontando o exame de consciência como passo fundamental à prática confessional. Nas páginas 84 e 85 são descritos os métodos para que o exame de consciência seja satisfatório:
Para examinar bem a consciência é necessário saber que o que constitui um pecado mortal, é: 1º a matéria grave; 2º o pleno conhecimento, e 3º o pleno consentimento. Faltando uma dessas três condições, não se pode falar em pecado mortal. Convém saber ainda que a culpabilidade duma ação sempre depende do conhecimento que temos da ação. [...] Também não devemos esquecer que para examinar bem a consciência é necessário indagar o número e as espécies de pecados mortais, o quanto possível, e todas as circunstâncias que tornam um pecado venial mortal, ou um mortal venial. (JOHANNING, 1950).
Como diferença entre venial e mortal, o texto afirma que nos pecados veniais não é necessário o confessor indicar “a miúdo” o número, bastando dizer se foi uma ou muitas vezes, sendo que o venial e o mortal se distinguem pelo número de vezes e pelas três etapas anteriormente postas. Como método para examinar a consciência são apresentadas as etapas a serem seguidas, iniciando pela lembrança de que “é obrigação grave empregar o tempo suficiente para examinar-se e arrepender-se.” (JOHANNING, 1950):
Note-se bem: uma confissão não tem valor: 1º quando, por grave negligência no exame de consciência, deixamos de dizer um pecado mortal, ou o número ou as circunstâncias necessárias dele; 2º quando nos confessamos sem verdadeira contrição e sem propósito sincero de emenda; 3º quando calamos de propósito um pecado mortal; 4º quando antes de recebermos a absolvição, já tínhamos a intenção de não cumprir a penitência. (JOHANNING, 1950)
Para a compreensão sobre a importância de confessar-se e, portanto, de distinguir claramente o que é considerado pecado mortal e venial, o texto utiliza como exemplificação os Dez Mandamentos. Escolhe-se como significante para os demais mandamentos o que se refere ao 6º e 9º, apresentados juntos, “Não pecar contra castidade. Não desejar a mulher do próximo” (JOHANNING, 1950):
Todos os pensamentos, desejos, palavras e ações voluntárias, diretamente contra o 6º e 9º mandamentos de Deus, são pecados mortais; podem tornar-se venais, às vezes por falta de advertência e pleno consentimento. (...) Contra o 6º e 9º mandamentos pequei: Pensei voluntariamente em coisas desonestas.....vezes. [...]
Cantei cantigas imorais vezes.
Gostei de ouvir coisas desonestas........ vezes.
Li livros ou outras coisas imorais...... vezes.
Emprestei tais livros ou escritos a outros ....... vezes. (JOHANNING, 1950).
A indicação para os impressos considerados desonestos é “se pudermos dispor de tais livros ou escritos, procuremos queimá-los, ou, de outra maneira destruí-los”. Também a forma de vestir pode ser considerada pecaminosa:
Trajei vestidos indecentes vezes.
Sair mascarado, sem usar vestidos indecentes e sem falar à modéstia, não é pecado em si: torna-se, porém, muitas vezes pecaminoso por causa de escândalos e outras circunstâncias. (JOHANNING, 1950).
Como se não bastasse, ao final do exame de consciência sobre o pecado cometido aos 6º e ao 9º mandamentos, é recomendado: “manifesta humildemente ao confessor as fraquezas e as feridas de tua alma, escuta os conselhos que te der, e Deus não deixará de dar-te as graças necessárias para venceres cada vez mais os inimigos de tua alma” (JOHANNING, 1950). O fundamental é que o cristão seja convicto de que pecou, obedeça ao representante da igreja, tenha fé em Deus, que este o perdoará. Na página 100, encontram-se outros exemplos de práticas a serem seguidas: “os que têm 21 anos de idade devem examinar-se também se têm deixado de jejuar sem justa causa, como só em doenças, trabalhos pesados ou dispensa.” (JOHANNING, 1950). Assim, o livro apresenta no apêndice os dias de jejum e de abstinência.
Para que o cristão tenha maior percepção dos pecados e da importância da confissão, são apresentados também os pecados capitais, dentre eles:
Fui vaidoso..... vezes, (é pecado venial).
Fui orgulhoso, desprezando talvez os pobres e outros... vezes. (É pecado venial, podendo ser mortal, se gravemente ofendemos o próximo com o nosso desprezo).
Fui avarento...... vezes. (É pecado mortal ou venial, segundo a gravidade da avareza). (JOHANNING, 1950).
Estabelecem-se relações com a necessidade de conciliar a prática social com a moral e os valores mantidos e perpetuados pela igreja católica, da análise do discurso. Como afirma Orlandi, esta trabalha “refletindo sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua.” (JOHANNING, 1950, p. 16). A Moral é o conjunto de regras adquiridas através da cultura, da educação, da tradição e do cotidiano, e que orientam o comportamento humano dentro de uma sociedade. Etimologicamente, o termo moral tem origem no latim morales, cujo significado é “relativo aos costumes”.
Logo, as regras definidas pela moral católica regularam as práticas cotidianas das pessoas, como ideal de civilidade e bons costumes, próprios de uma sociedade em transformação e que passava a conviver com novas organizações sociais e tecnologias. Assim, a ideia de pecado x absolvição encontrava na pregação estratégias de manter a devoção e a fidelidade dos cristãos.
CONCLUSÃO
Finalmente, é necessário que se considere a existência de outras orações, métodos de preparação e de acompanhamento de rituais católicos, como: a santa missa, a comunhão, a preparação dos enfermos, conforme apresentado na tabela 3; e que se estabeleçam possibilidades de novos estudos sobre impressos religiosos. Para a motivação inicial utilizou-se como metodologia a análise de discurso a partir de estudos de Orlandi (1997), a qual afirma que “a análise de discurso não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real do sentido em sua materialidade linguística e histórica.” (ORLANDI, 1997, p. 59).
Em suma, as reflexões sobre moral, devoção, fé, obediência, orações e contexto histórico presentes nesse estudo, atestam aspectos peculiares de uma sociedade em transformação, de valores, em questionamentos associados a práticas religiosas da igreja católica, que utilizava também como instrumentos, impressos, como o livro estudado, para buscar perpetuar suas práticas religiosas e sociais, baseadas igualmente na ideia de conduto através de bons hábitos e da ameaça de punições.
Que as reflexões sobre essas práticas permitam não apenas contextualizar, e de certa forma narrar, as orações e exercícios presentes no livro Maná ou alimento da alma devota, mas que instiguem o aprofundamento através de novos estudos sobre o tema.
REFERÊNCIAS
CANDAU, Joël. Memória e identidade. Trad. Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2012.
CERTEAU, Michel. L’Invention du Quotidien: l’arts de faire. Folio Gallimard, 1990, p. 134.
Dicionário on line de português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/ nupcialidade/>. Acesso em 05 maio 2017.
EDITORA VOZES. História. 2010. Disponível em:
FERGUSON, Sinclair B; WRIGHT, David. F.. Novo dicionário de teologia. São Paulo: Hagnos, 2009.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
IBGE. Tendências demográficas: uma análise dos resultados da amostra do censo demográfico de 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2004. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2017.
IBGE. População por religião (população presente e residente). Disponível em:. Acesso em: 05maio 2017.IBGE. População por religião (população presente e residente). Disponível em:
JOHANNING O.F.M., Frei Ambrósio. Maná ou alimento da alma devota: orações e exercícios piedosos. XXI ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Vozes, 1950.
NASCIMENTO, Arlindo Mello do. População e família brasileira: ontem e hoje. XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambú, MG, Brasil, 18 - 22 de Setembro de 2006.
NÓVOA, Antonio. A imprensa de educação e ensino: concepções e organização do repertório português. In: BASTOS, Maria Helena Camara; CATANI, Denice Barbara. Educação em revista: a imprensa periódica e a história da educação. São Paulo: Escrituras, 1997, p. 11-32.
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
RODRIGUES, Marly. O Brasil na década de 1950. São Paulo: Autora, 1999.
SCOTT, Ana Silvia. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In: PINSKY, Carla B. e PEDRO, Joana, M. Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos / Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva. 2.ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009, p.
Notas