DOSSIÊ
Recepção: 29 Setembro 2017
Aprovação: 14 Novembro 2017
Resumo: O presente artigo pretende analisar a atuação do jesuíta hispano-cubano Manuel Foyaca de la Concha no apostolado social latino-americano ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960, período no qual ele foi um dos mais importantes intelectuais católicos da América Latina, ocupando cargos de destaque na Ação Católica, editando revistas, fundando centros sociais e empreendendo uma ampla divulgação da Doutrina Social da Igreja. A hipótese defendida é que o apostolado social promovido por ele nessa época configurou uma transição entre o Catolicismo Social da primeira metade do século XX e o Cristianismo de Libertação sistematizado a partir da década de 1970.
Palavras-chave: S: Manuel Foyaca, Ação Social Católica, América Latina.
Abstract: This article intends to analyze the action of the spanish-cuban Jesuit Manuel Foyaca de la Concha in the Latin American social apostolate throughout the 1940s, 1950s and 1960s, a period in which he was one of the most important catholic intellectuals in Latin America, occupying prominent positions in Catholic Action, editing magazines, founding social centers and undertaking a wide dissemination of the Social Doctrine of the Church. The hypothesis defended is that the social apostolate promoted by him in this epoch configured a transition between Social Catholicism of the first half of the twentieth century and Liberation Christianity systematized from the 1970s.
Keywords: Manuel Foyaca, Catholic Social Action, Latin America.
1 MANUEL FOYACA DE LA CONCHA: UMA BREVE TRAJETÓRIA
Manuel Foyaca nasceu em Cifuentes, na província cubana de Las Villas (atual Villa Clara), em 11 de fevereiro de 1905, filho primogênito do casal, o cubano Agustín Foyaca Trujillo e a asturiana Júlia de la Concha García-Ciaño. Quando tinha nove anos, a família, já ampliada com mais quatro filhos, migrou para Gijón, na Espanha, onde prosseguiu seus estudos primários e secundários, entrou no Noviciado da Companhia de Jesus e se formou em Filosofia e Sociologia. Em 1931, com a proclamação da Segunda República Espanhola e a consequente expulsão da Companhia de Jesus, foi obrigado a se exilar em Portugal, onde concluiu a Teologia e se ordenou sacerdote em 1935. Retornou no ano seguinte à Espanha, permanecendo neste país até 1940, quando retornou a Cuba, no contexto do esforço do governo constitucional de Fulgêncio Batista (1940-1944) de nacionalizar o clero insular.
Em sua terra natal, Manuel Foyaca ensinou História da América, Sociologia e Moral e Cívica no prestigioso (e elitista) Colégio de Belén, localizado em Havana, tendo sido professor, entre outros, dos irmãos Fidel e Raul Castro. Pela sólida formação intelectual e grande talento organizativo, logo se tornou um dos mais importantes intelectuais católicos do país, ocupando cargos de destaque, como assessor nacional da Ação Católica Cubana (ACC), editor da revista Justicia Social Cristiana e fundador e diretor do Centro Social de Havana. A partir de 1942, iniciou o movimento Democracia Social Cristã, divulgando a Doutrina Social da Igreja em todo o país. É possível aquilatar a intensidade dessa atuação pelo minucioso informe que nos oferece o boletim da Vice-Província de Cuba sobre suas atividades nos quatro primeiros meses de 1946:
Aulas regulares de Sociologia e Cívica no Colégio de Belén;
□ Duas orientações de Exercícios Espirituais na Semana Santa: na Universidade Católica de São Tomás de Villanueva (dos frades agostinianos) e na Associação Caballeros de Colón;
□ Retiros mensais às ex-alunas do Colégio del Cerro e à Congregação das Filhas de Maria;
□ Sermões em várias igrejas;
□ Conferências de divulgação da Doutrina Social da Igreja em Camajuani, Placetas, Cifuentes, Encrucijada, Santa Clara, Trinidad, Casilda, Sancti-Spíritus, San Cristóbal e Calabazar de Sagua;
□ Sete conferências em Bayamo e Santiago de Cuba;
□ Conferência no Anfiteatro de La Habana por ocasião do Seminário Social Interamericano;
□ Conferência Social aos jovens da Beneficência de La Habana;
□ Um comício no Parque de Guanajay e outro em Madruga;
□ Cursilhos semanais em Havana para membros das Uniones de Caballeros Católicos;
□ Cursilhos semanais em Havana para uma centena de empregadas do comércio;
□ Publicação do boletim mensal Justicia Social Cristiana;
□ Coordenação de uma página semanal no Diário de la Marina, intitulada “Catolicismo Social”.
Em resumo, nestes quatro meses o padre Manuel Foyaca visitou 60 municípios diferentes (alguns deles, mais de uma vez), realizou cerca de 200 exposições (entre palestras, conferências e cursos) e participou de 170 eventos1. Não é de se estranhar que o papa Pio XII, ao ser inteirado pelo ministro de Cuba na Santa Sé, Alfonso Forcade, do desempenho do movimento Democracia Social Cristã, “o abençoou e encorajou com expressivas palavras, demonstrando um grande interesse em que tais princípios sejam concretizados politicamente através das organizações e partidos apropriados”2.
Por todas estas qualificações e performance, o Superior da Companhia de Jesus, Jean-Baptiste Janssens, nomeou-o em novembro de 1955 Visitador Social da América Latina. Sua missão consistiu em percorrer todos os países do continente, diagnosticar a situação do apostolado social em cada uma das 19 Províncias, Vice-Províncias e Missões de então, identificar e selecionar jovens jesuítas com vocação para a ação social, enviá-los à Europa ou aos Estados Unidos para se especializar e, por fim, incumbi-los de, em retornando a seus países de origem, constituir (ou fortalecer) os Centros de Investigación y Acción Social (CIAS). Em 1962, por conta de sua incompatibilidade com a Revolução Cubana, Manuel Foyaca se exilou temporariamente na República Dominicana, de onde se transladou em 1967 para a Espanha, na qual viveu até falecer, em 20 de agosto de 19443.
2 ENTRE A JUSTIÇA SOCIAL E O ANTICOMUNISMO
A atuação de Manuel Foyaca enquanto Visitador Social (1955-1962) e Secretário Interamericano de Ação Social (1962-1966) foi marcada por uma combinação de: (a) compromisso com a justiça social e (b) luta contra o comunismo, típica desta primeira etapa dos CIAS. Numa “Instrução” publicada logo no início do seu mandato, ele exortou os jesuítas a terem uma solicitude especial para com os grupos sociais (a classe operária e a camponesa) mais vitimados pela ordem social injusta e mais expostos “à descristianização sob a ação do comunismo ateu”, resumindo em três pontos a ingente tarefa que se colocava para a Companhia de Jesus:
2. É necessário destinar a este apostolado “padres verdadeiramente aptos”. Não padres inúteis, com os quais o Padre Provincial não possa contar para outras coisas... Padres verdadeiramente aptos! Que tenham todo tipo de qualidades requeridas para esta difícil ação.
3. Padres que se entreguem por completo a este ministério. Hoje a ação social não pode ser um passatempo ao qual se dedicam os minutos roubados da sesta... (FOYACA, 1991, p. 119)
O tema do comunismo passou a galvanizar o apostolado social jesuíta. Em setembro de 1960, numa reunião convocada por Janssens com os diretores dos CIAS, em Roma, discutiu-se com Foyaca a situação da América Latina, a consolidação dos CIAS, o impacto da Revolução Cubana nas organizações sociais católicas e a necessidade de combater a penetração comunista no movimento sindical e nas Universidades. Roger Vekemans, representante do Centro Bellarmino, o CIAS chileno, recorda que “todos foram compreensivos com o padre visitador, mas ninguém caiu na armadilha de uma atitude negativa” (apud BEIGEL, 2011, p. 42, tradução nossa)4. Igualmente presente na reunião, o parecer de Carlos de la Torre Uribarren, diretor do CIAS de Torreón, do México (fundado, aliás, pelo próprio Foyaca em 1956), foi bem mais positivo: “As reuniões em Roma foram muito interessantes”5. Deve ter contribuído para isso o fato de Carlos de la Torre ser mais próximo de algumas das concepções políticas de Foyaca. No caso do mexicano, devido à sua participação, na juventude, antes mesmo de entrar na Companhia de Jesus, da Segunda Cristiada (1934-1938), quando se fez cristero, pegou em armas contra o governo, foi preso e quase fuzilado. Por ocasião de uma visita à Bolívia, em abril de 1962, uma das últimas realizadas por Manuel Foyaca enquanto representante do Geral, ele se expressou nos seguintes termos:
O Padre Geral quer que intensifiquemos o apostolado social, cujo objetivo imediato é o desenvolvimento da ordem material e uma melhor repartição de riquezas, para que todos os povos da América Latina disfrutem ao menos de uma parcela substancial do bem-estar criado por Deus para toda a humanidade (...). Por outro lado, esta situação de desequilíbrio e de miséria de grande parte das populações do continente proporciona a grande ocasião à Rússia, que deseja ir rapidamente à conquista do mundo, para uma grande ofensiva na América Latina (Diáspora: Notícias de la Vice- Província Boliviana, La Paz, 30 de abril de 1962, p. 2, apud KLAIBER, 2007, p. 284-285)
Como se vê, seu anticomunismo vinha acompanhado da denúncia às injustiças sociais. Em suas palestras, era corriqueiro ouvi-lo asseverar que “um homem na miséria é terreno fértil para a subversão”6. Polêmicas à parte, não há como deixar de se impressionar com o balanço da Visita Social após seis anos e meio de duração (de novembro de 1955 a junho de 1962), período no qual Manuel Foyaca percorreu nada menos que 235 mil quilômetros em viagens entre América Latina, América do Norte e Europa, produziu um volumoso epistolário (435 cartas trocadas com a Cúria romana, 957 com os Superiores das 19 Províncias latino-americanas e 45 mil com centenas de outros jesuítas), além de ter fundado e/ou assentado as bases de dezesseis CIAS, conforme se verifica no Quadro 1, abaixo7.
À primeira vista, chama a atenção a abrangência da rede de centros sociais entãoconstruída, já que apenas três das dezenove circunscrições latino-americanas nãopossuíam um CIAS ao final dos anos 1960. Para mensurar adequadamente o impactodeste esforço institucional no apostolado social latino-americano, entretanto, há queultrapassar o ângulo puramente quantitativo da Visita Social. Com efeito, os cerca de150 jesuítas alocados nestes centros podem parecer numericamente irrisórios,sobretudo quando comparados aos mais de 4.000 padres, irmãos e noviços dispersospelos quatro cantos do continente. Antes, é preciso ponderar aspectos de outraordem.
Outro elemento fundamental a ser apreciado é a natureza da formação acadêmica dos jesuítas enviados para cursar mestrado e doutorado nas principais universidades europeias e norte-americanas, de maneira a ser tornarem “padres verdadeiramente aptos” para uma ação social qualificada. Os Quadros 2 e 3 (a seguir) são bastante ilustrativos a esse respeito, demonstrando como mais de dois terços dos jesuítas dos CIAS se especializaram nas áreas sociais e/ou econômicas, conforme a tipologia proposta por Manuel Foyaca, preferencialmente em universidades europeias (mais de 60% do total).
De fato, quando se considera que eles (1) estavam seguramente entre os melhores quadros intelectuais da Sociedade de Jesus; (2) não apenas ensinavam como também dirigiam boa parte das mais importantes universidades particulares, a exemplo das Pontifícias Universidades Católicas (PUCs) do Equador (PUCE), Colômbia (PUJ), Brasil (PUC-Rio) e Peru (PUCP) e demais universidades católicas, como a mexicana UIA, a chilena UC, a portenha USAL, a uruguaia UCU, a paraguaia UCNSA, a venezuelana UCAB, a centro-americana UCA e a também brasileira UNISINOS; e (3) eram responsáveis pela publicação de algumas das mais reputadas revistas da época, como Christus (México), Mensaje (Chile), CIAS e Stromata (Argentina), Revista Javeriana (Colômbia), Estudios Sociales (República Dominicana), Perspectivas de Diálogo (Uruguai), Aquí (Bolívia), Síntese e Cadernos do CEAS (Brasil), SIC (Venezuela) e Estudios Centro-Americanos (El Salvador), se é levado a admitir o prestígio social e acadêmico então gozado por esses CIAS.
Uma cifra que salta aos olhos é a dos 60 jesuítas especializados nos vários ramos das ciências sociais. Tal preeminência seria, inclusive, responsável por algumas controvérsias quando da realização, entre 1966 e 1970, do Survey, um ambicioso projeto de investigação idealizado pelo recém-eleito Geral Pedro Arrupe, sucessor de Janssens. Tratava-se de um levantamento (e posterior análise) exaustivo de dados, indicadores e estudos econômicos, sociais, políticos e religiosos de cada país no qual a Ordem estava presente, de modo a delinear uma atuação mais criteriosa e eficiente por parte das diversas pessoas e obras inacianas. Como coube preferencialmente aos sociólogos da Companhia de Jesus a coordenação da referida pesquisa, não faltaram piadas, mais ou menos maldosas, a esse respeito, a exemplo dessa, contada por um jesuíta coetâneo: “Se você quer fazer carreira, chegar a Superior ou receber cargos importantes, vá por mim, matricule-se num curso de sociologia!”9.
O curioso é que, via de regra, tais insinuações partiram dos opositores de padre Arrupe, descontentes com a primazia que o apostolado social vinha ganhando ao longo do seu generalato, sem se dar conta de que a origem de tal processo remontava ao tempo de Janssens e que um de seus principais mentores havia sido o padre Manuel Foyaca...



3 DO CATOLICISMO SOCIAL AO CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO
Não se sabe até que ponto Manuel Foyaca já migrou da Espanha para Cuba com uma ideologia anticomunista definida. É verdade que seu irmão caçula, Carlos Foyaca, foi um falangista militante, e que algumas de suas conferências no Seminário Conciliar, na Espanha franquista, foram saudadas com entusiasmo pelo diário da Falange Espanhola das Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalista (JONS) em razão de sua “defesa da grandeza da Pátria”12. Em Cuba, suas condutas e posicionamentos mereceram uma cobertura privilegiada por parte da grande imprensa, em particular do jornal de maior circulação da Ilha, o católico Diário de la Marina (cf. Figura 1, abaixo), que havia, recorde-se, lhe concedido, em 1946, a coordenação de uma página semanal sobre Catolicismo Social.

Como foi visto sua atuação ao longo do primeiro período em Cuba, antes da Visita Social (1940-1955), se destacou por uma febril divulgação da Doutrina Social da Igreja e pelo vigoroso embate em prol da Reforma Agrária, no contexto de um país desprovido de legislação trabalhista protetiva e dominado pelo latifúndio. Entre outras iniciativas, ele organizou a Segunda Semana Social Cubana entre 14 e 18 de maio de 1951, com sessões no Colégio de Belén sobre economia agrária, profissões do campo, meio social camponês e sua vida religiosa moral13.
No espectro ideológico da esquerda, é inegável a ironia com a qual ele é retratado pelo periódico Hoy, órgão de imprensa do Partido Socialista Popular (PSP), futuro Partido Comunista Cubano (PCC), que, vez por outra, se refere a ele como “esse fantasmal reformador que traz fórmulas para curar todos os males insulares”14. Na charge alusiva à Segunda Conferência Interamericana de Ação Social Católica realizada na capital cubana entre 2 e 10 de janeiro de 1946 (cf. Figura 2, abaixo), o padre Foyaca aparece tentando barrar o acesso do repórter aos debates, ocorridos nas amplas instalações do colégio da Companhia de Jesus na capital cubana, sob o argumento de que estes seriam restritos “unicamente aos membros da Ação Católica”. A ilustração ao lado, no entanto, aponta o verdadeiro motivo para esta proibição: impedir a divulgação da estratégia de infiltração (“penetración”) nos sindicatos comunistas (“no católicos”) latino-americanos, como propõe o delegado argentino.

De qualquer maneira, fica evidente em suas matérias a distinção feita entre Foyaca e os demais “curas falangistas”, como eram chamados os sacerdotes cubanos no período. Ademais, vale lembrar que o próprio PSP apoiou os três governos democráticos pós-1940: Fulgêncio Batista (1940-1944), Ramón Grau San Martín (1944-1948) e Carlos Prío Socarrás (1948-1952), o qual, aliás, também havia sido aluno do Colégio de Belén. Assim, ele é apresentado como “porta-voz de um certo movimento social que diz de índole social, [de modo que] não pode ser considerado no mesmo plano que outros senhores que predicam constantemente a luta irreconciliável contra toda ideia de progresso”15.
É possível, portanto, ver no Apostolado Social da Companhia de Jesus promovido por Manuel Foyaca nesse período, uma transição entre o Catolicismo Social da primeira metade do século XX e o Cristianismo de Libertação sistematizado a partir da década de 1970. Por Catolicismo Social, entende-se:
[...] o Movimento que, no plano doutrinal e no plano da ação, começa em meados do século XIX, enquanto reação contra as consequências desastrosas provocadas pela industrialização, nascida sob o signo do capitalismo liberal e individualista. (...) É importante notar que todas estas atividades, tanto no campo doutrinal como no campo prático, se desenvolviam antes de qualquer influência do pensamento marxista. (...) Nascido fora do movimento operário, o que o privou inicialmente da vitalidade das bases, o catolicismo social constituiu uma corrente doutrinal da maior importância, à medida que gestou por quase dois séculos a ideia do compromisso social da fé cristã e contribuiu assim para a elaboração de uma doutrina social da Igreja (...) (ÁVILA, 1991, p. 70-71)
Sem dúvida, é notável a articulação de Manuel Foyaca não apenas com expoentes do catolicismo social europeu como de uma das vertentes politicamente mais progressistas da Ação Católica internacional, a Juventude Operária Católica (JOC). Cumpre registrar que monsenhor Joseph Cardjin, criador do jocismo na Bélgica (1925) e na França (1927), foi presença constante em Cuba daquela época. Entre outros eventos, ele participou de Jornada Jocista em 29 de julho de 1951 no Colégio de Belén, com missa de comunhão, direção do círculo de estudos, almoço com os dirigentes masculinos e palestra sobre “relevantes problemas sociais”16. Dois anos depois, Cardjin voltaria àquele colégio jesuíta para o Congresso Centro-Americano e Caribenho da JOC17. Outro frequentador assíduo da ACC foi Joaquin Azpiazu, diretor do centro social jesuítico madrilenho Fomento Social, que esteve em Havana em 1949 e 195118.
Bem antes disso, em janeiro de 1946, por ocasião da Segunda Conferência de Ação Social Católica, estiveram presentes na ilha caribenha os jesuítas John La Farge, editor da revista América, de Washington, especialista em questões raciais e fundador do Catholic Interracial Council, um importante centro social jesuíta sediado em Nova York, e Albert Le Roy, delegado da Santa Sé junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) entre 1936 e 195519. Sobre o padre Le Roy, aliás, Manuel Foyaca afirma que foi um “informe alarmante” do delegado pontifício acerca da situação do operariado na América Latina que teria convencido o padre Jean- Baptiste Janssens a nomear um Visitador Social para o continente20. Assim, é sintomático o título escolhido para a seção semanal por ele editada no Diário de la Marina.
Por outro lado, os rumos tomados por boa parte dos centros sociais decorrentes da Visita Social foram bem outros, muitas das vezes sob a estreita “influência do pensamento marxista”. É neste sentido que se adota a noção proposta por Michel Löwy, de Cristianismo de Libertação, “por ser esse um conceito mais amplo que ‘Teologia’ [da Libertação] ou que ‘Igreja’ [dos Pobres] e incluir tanto a cultura religiosa e a rede social quanto a fé e a prática” (LÖWY, 2000, p. 57).
Por exemplo, não resta dúvida que, no final da década de 1960, o Centro Bellarmino exerceu uma influência decisiva na adesão de grupos católicos ao projeto de “socialismo em liberdade” do governo Salvador Allende (1970-1973). Por sua vez, em 1970, o CIAS XXIII, do Rio de Janeiro, no qual funcionava o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades), foi invadido pela Polícia Federal sob a acusação de oferecer formação subversiva a seus alunos jocistas e incitar o enfrentamento ao regime ditatorial brasileiro (SERBIN, 2001, p. 189-202).
Em 1974, o Congresso Indígena de Chiapas, no sul do México, fundamental para a eclosão, vinte anos depois, da rebelião neozapatista, teve entre os seus principais organizadores jesuítas vinculados ao CIAS local, a ponto de um deles, o padre Jerónimo Hernández, ter sido preso na década de 1990 sob a suspeita de ser o verdadeiro Marcos, o subcomandante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) (KLAIBER, 2007, p. 414-416). Em 1975, o CIAS baiano, denominado Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), assessorou a fundação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das mais combativas entidades da Igreja Católica brasileira na denúncia dos conflitos de terra e no enfrentamento à exploração dos camponeses e trabalhadores rurais (cf. PERANI, 2002, p. 47-52).
Por fim, as comunidades de base nicaraguenses das quais emergiu uma parcela significativa dos combatentes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) foram assessoradas pelo CIAS de Manágua. Mais que isso, com a vitória da Revolução, em julho de 1979, diversos jesuítas não apenas a apoiaram como dela participaram, até mesmo como membros do governo (CABESTRERO, 1983).
O manto de silêncio que se abateu sobre a memória do padre Manuel Foyaca, chegando a obscurecer quase completamente sua contribuição ao apostolado social latino-americano, talvez esteja ligado a sua postura depois de 1967, quando se radicou definitivamente em Madri. Afastado das instâncias de coordenação dos CIAS latino-americanos, ele terminou se aproximando de um grupo de jesuítas integristas, em sua maioria espanhóis, intitulado Jesuitas en Fidelidad (também conhecidos como Los Descalzos ou Vera Compañia), os quais se opunham frontalmente às orientações do Geral Pedro Arrupe, cogitando, inclusive, a separação da Cúria da Companhia de Jesus e a constituição de uma espécie de Província pessoal, subordinada diretamente ao papa (ÁLVAREZ-BOLADO, 2001, p. 1302-1305). O cisma não prosperou, mas suas consequências perduraram por décadas, pelo menos para o padre Foyaca.
REFERÊNCIAS
ÁLVAREZ-BOLADO, A. España. In: O'NEILL, Charles E.; DOMINGUEZ, Joaquín M. (org.).Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús. Tomo II. Roma: InstitutumHistoricum Societatis Iesu; Madri: Universidad Pontificia Comillas, 2001, p. 1265-1311.
ÁVILA, Fernando Bastos de. Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. 2. ed. São Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: Ibrades, 1991.
BEIGEL, Fernanda. Misión Santiago: el mundo académico jesuita y los inicios de la cooperación internacional católica. Santiago: LOM, 2011.
CABESTRERO, Teófilo. Ministros de Deus, ministros do povo: testemunho de três sacerdotes no Governo Revolucionário da Nicarágua – Ernesto Cardenal, Miguel d’Escoto, Fernando Cardenal. Petrópolis: Vozes, 1983.
COSTA, Iraneidson Santos. O Visitador Cubano: Manuel Foyaca de la Concha e os Centros Sociais da Companhia de Jesus na América Latina. Anais do XIº Encontro Internacional da ANPHLAC, Niterói, v. 11, 2014, p. 1-19.
FOYACA, Manuel. Instrução do Padre Manuel Foyaca. In: COMPANHIA de Jesus. Pastoral Popular: fundamentação inaciana. São Paulo: Loyola, 1991, p. 115-142.
KLAIBER, Jeffrey. Los jesuitas en América Latina, 1549-2000: 450 años de inculturación, defensa de los derechos humanos y testemonio profético. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya, 2007.
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: LPP/UERJ; Buenos Aires: CLACSO, 2000.
MOLINA, Antonio. Manuel Foyaca SJ, pioneiro de la Justicia Social Cristiana em las Américas. San Juan: Centro de Cultura Unesco, 2005.
PERANI, Cláudio. O início da Comissão Pastoral da Terra: colaboração do Centro de Estudos e Ação Social. In: POLETTO, Ivo; CANUTO, Antônio (org.). Nas pegadas do povo da terra: 25 anos da Comissão Pastoral da Terra. Goiânia: CPT; São Paulo: Loyola, 2002, p. 47- 52.
SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Notas