DOSSIÊ
Recepção: 27 Setembro 2017
Aprovação: 14 Novembro 2017
Resumo: O processo de imigração europeia para o sul do Brasil se deu de forma mais sistemática ao longo doséculo XIX. Imigrantes alemães e, depois, italianos, ocuparam como colonos terras destinadas paraessa finalidade pelos governos imperial e provincial. A colônia de Caxias do Sul-RS, que é objeto desseartigo, foi ocupada por imigrantes italianos e católicos, a partir de 1875, constituindo-se no principalpolo de atração colonial no último quartel do século XIX. No correr do século XX, o município setornou um importante centro de atração de migrantes em razão do desenvolvimento industrial. Nessemovimento também vieram para Caxias do Sul trabalhadores de ascendência alemã e protestante. Jána condição de moradores e trabalhadores da cidade, um pequeno grupo de luteranos construiu suaprimeira capela em 1947, que foi queimada quatro anos depois. Este estudo se ocupa em analisar asrelações de resistência, negociação e conflitos entre católicos e luteranos em Caxias do Sul, tendo comopano de fundo manifestações de intolerância e o incêndio da capela, na metade do século XX.
Palavras-chave: Religião, Intolerância, Luteranos.
Abstract: The European immigration process to the south of Brazil occurred more systematically throughout the 19th century. German immigrants and latter Italians, occupied as settlers lands destined for this purpose by the imperial and provincial governments. The colony of Caxias do Sul - RS, which is the object of this paper, was occupied by Italian and Catholic immigrants, since 1875, constituting the main colonial attraction pole in the last quarter of the 19th century. Throughout the 20th century, the city became an important center of migrants’ attraction because of the industrial development. In this movement also came to Caxias do Sul workers from German and protestant ancestry. Already as residents and workers of the city, a small Lutheran group built their first chapel in 1947, which was burned four years later. This study aims to analyze the relations of resistance, negotiation and conflicts between Catholics and Lutherans in Caxias do Sul having as background manifestations of intolerance and the burning of the chapel in the middle of the 20th century.
Keywords: Religion, Intolerance, Lutherans.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No início dos anos de 1950, o templo luterano de Caxias do Sul, no Brasil meridional, foi incendiado poucos anos depois da fundação da comunidade. As razões desse sinistro não foram devidamente apuradas e, ainda hoje, existem versões desencontradas sobre o incidente. As atividades luteranas, tais como cultos e ritos religiosos, começaram na cidade no final da Campanha de Nacionalização. O movimento do grupo religioso avançou até a fundação da Comunidade Evangélica Luterana da Paz, em 1945. Dois anos depois, a comunidade adquiriu um terreno e construiu sua primeira capela, que se situava “num potreiro que, mais tarde, anos depois, seria o prolongamento da Avenida Júlio de Castilhos”. A capela era de “tabuas, parede dupla, seis janelas e uma porta de duas abas. Media 6 x 11m.”1.
Em fins de julho de 1951, a capela foi queimada. As razões do incidente estão envoltas de dúvidas e suspeitas. As duas principais teses são: a primeira, que tenha sido um acidente provocado por um andarilho, que utilizava a parte inferir da capela para se proteger do frio, fazendo fogo; a segunda, que tenha sido um ato criminoso motivado por disputas religiosas.
O presente artigo tem por objetivo problematizar esse incidente, tratando de questões relativas à intolerância religiosa entre católicos e luteranos em Caxias do Sul. Essa reflexão irá contar com memórias 2 ligadas a projetos salvaguarda de depoimentos e outras experiências com a mesma metodologia. Este texto não se preocupa tanto em descobrir as razões do incêndio, mas em “compreender como se produzem e explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso.” (CHALHOUB, 2001, p. 41).
2 CAXIAS DO SUL: ITALIANA E CATÓLICA?
O município de Caxias do Sul, que é objeto desse estudo, está localizado na região nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. A partir da segunda metade do século XIX teve início o processo de ocupação do território por imigrantes europeus, sobretudo os originários da Península Itálica. A imigração teve o incentivo do governo imperial, que se preocupou em criar uma infraestrutura para receber os estrangeiros. Uma das primeiras medidas adotadas foi a criação de colônias, divididas em pequenos lotes que eram concedidos aos colonos para a ocupação territorial e, consequentemente, o desenvolvimento da agricultura.
No último quartel do século XIX, essa região se transformou no principal polo de atração de imigrantes italianos no sul do Brasil. No ano de 1875 foi fundada a colônia Fundos de Nova Palmira – mais tarde denominada colônia Caxias –, concomitante e seguida de outras, como as colônias Conde D’Eu (criada em 1874, atual município de Garibaldi), Dona Isabel (1875, Bento Gonçalves), Alfredo Chaves (1885, Veranópolis) e Antônio Prado (1889) (GIRON, HERÉDIA, 2007).
Passado meio século do início dessa ocupação, Caxias do Sul já despontava como uma cidade em processo de desenvolvimento e atraía trabalhadores de diversos lugares do estado e do país. Nesse movimento demográfico, pessoas oriundas de outras levas de imigração acabaram aportando na cidade, em busca de trabalho e melhores condições de vida (LAZZAROTTO, 1981), tornando mais plural o quadro populacional que era quase que exclusivamente formado de imigrantes italianos. Esse movimento não só modificou o cenário produtivo, como trouxe para a cidade outros costumes, práticas gastronômicas, atividades artesanais, vivências sociais e religiosas. Apesar desse movimento demográfico, o choque cultural, religioso e étnico decorrente desses embates/diálogos não tem encontrado um espaço privilegiado nas pesquisas históricas.
Como o maior fluxo de imigrantes se deu com colonos da Itália, a presença católica foi uma decorrência natural. A historiografia da imigração tem ressaltado a importância dos elementos religiosos católicos para a coesão social. Essa leitura está presente desde os clássicos até obras mais recentes que tratam de temas como identidade3 em áreas coloniais.
A religião foi um dos elementos de identidade cultural onde o desafio da etnia se resolveu pela experiência religiosa e por suas tradições. A força da religiosidade, expressa através do catolicismo nessa região, tem a ver com a presença da Igreja desde a formação dos núcleos coloniais, bem como com o papel que a religião desempenhou na integração cultural dos grupos imigrantes. A religião foi um elemento de construção de identidade cultural, preenchendo as lacunas deixadas na antiga pátria. (HERÉDIA, PAVIANI, 2003, p. 62).
Alguns pontos da citação acima merecem destaque: em primeiro lugar, a presença do catolicismo desde a formação dos núcleos coloniais; em segundo, o papel da religião como elemento de integração social. Este amálgama de identidade cultural e religião marcou os primeiros tempos da colonização (DALLA VECCHIA; HERÉDIA; RAMOS, 1998) e se cristalizou na autoimagem constitutiva da cidade na perspectiva da “vida italiana daqui” (MANFROI, 1999, p. 54). Essa imagem, reforçada no século XX, ofuscou a presença de outros grupos étnicos presentes na cidade.
Recentemente, manifestações preocupadas com o multiculturalismo local passaram a patrocinar discursos e ações que buscam mostrar outras presenças étnicas para além da italiana/católica em Caxias do Sul. São representativas dessa postura propostas como a da Festa da Uva de 2014, pautada no slogan: “Na alegria da diversidade”. O jornal Pioneiro, diário local de notícias, cobriu esse evento com a seguinte manchete: “Poloneses, alemães, italianos, brasileiros. As etnias são lembradas durante todo o desfile cênico-musical e reforçam o tema central da Festa da Uva de Caxias” (PIONEIRO, 2017). A matéria do jornal mereceria uma análise, já que indica os representantes europeus de um lado (poloneses, alemães e italianos) e os brasileiros de outro, mas esse não é o objeto deste texto.
Entre os grupos citados na matéria do jornal Pioneiro que aportaram em Caxias, em busca de trabalho, estão os migrantes alemães, boa parte deles de tradição luterana. Como referido anteriormente, nas primeiras décadas do século XX, em razão do desenvolvimento econômico da cidade, Caxias passou a ser um polo de atração de trabalhadores que migraram em busca de um horizonte melhor. Esse processo afetou parcialmente o perfil étnico da cidade que, aos poucos, passou a conviver com o diferente, ou seja, alguém que vem de fora.
A tese de Herédia (1997) – nesse ponto específico, descrito abaixo –, se debruça em descrever esse desenvolvimento econômico e industrial de Caxias do Sul, salientando alguns expoentes desse processo, em especial do empresário Abramo Eberle. Segundo a autora,
[...] o seu crescimento é decorrente da capacidade da empresa em aliar as atividades da funilaria com o comércio que permitiram a essa grande indústria entrar no mercado nacional. Eberle, Rossi, Gazola foram nomes de expressão na história da metalurgia caxiense e refletem o exemplo de trabalho, poupança, empreendimento e domínio do ofício. (HERÉDIA, 1997, p. 76).
A descrição da autora reflete o desenvolvimento da indústria metal mecânica na cidade, surto esse que foi acompanhado por outros tantos setores. Na metade do século XX, Caxias já figurava como uma cidade em processo exponencial de desenvolvimento industrial e, portanto, um polo de atração de trabalhadores de outras regiões.
Outro estudo que merece destaque nessa descrição panorâmica do desenvolvimento industrial de Caxias associado à atração de mão de obra é o clássico Pobres construtores da riqueza, de Lazzarotto (1981). Nessa obra, o autor trabalha a relação dialética entre o desenvolvimento industrial da Metalúrgica Eberle e o papel da classe operária como produtores de riqueza. No que diz respeito à originalidade da análise do autor na historiografia local, interessa, nesse momento, destacar que, à medida que a empresa crescia, era acompanhada pelo desenvolvimento da cidade, já que muitos trabalhadores de fora vinham atraídos pelos empregos. O autor afirma que “a partir do momento em que se tem notícia da cidade de Caxias do Sul, principalmente da Metalúrgica Abramo Eberle, como um centro que poderia oferecer emprego, começa uma verdadeira migração.” (LAZZAROTTO, 1981, p. 97).
Nessa migração vieram trabalhadores de diversas regiões do sul do Brasil. Trabalhadores especializados, inclusive estrangeiros, compuseram essa mão de obra. O estudioso mostra em um gráfico (1905 – 1970) esses estrangeiros: 113 italianos (64,9%); 18 alemães (10,3%); 43 outras nacionalidades (25%). (LAZZAROTTO, 1981,p. 105). A maciça maioria dos trabalhadores, no entanto, era de nacionais que vinham em busca de emprego, oriundos das várias regiões do Estado. O autor atesta ainda que nessa empresa poucos provinham de atividades agrícolas, ou seja, o tipo de trabalho exigia algum conhecimento técnico.
A presença de colonos alemães nesse fluxo de industrialização relativo à Eberle não é tão expressivo nos dados apresentados acima. Contudo, não foi só a indústria que se transformou em atrativo para trabalhadores vindos de outros lugares. A pluralidade de atividades no setor de serviços, por exemplo, possibilitou a absorção de mão de obra não especializada.
Parte dessa mão de obra não especializada vinha das regiões coloniais alemãs. A pequena propriedade, onde foram alocados os colonos, já não garantia a sobrevivência para famílias, não raro numerosas. A saída de parte dos indivíduos dessas famílias se impunha na busca de empregos na cidade. Nesse movimento, a cidade de Caxias passou por um processo de absorção de mão de obra de vários matizes étnicos e sociais. Nesse período, chegaram também levas de colonos alemães luteranos, principalmente das regiões coloniais da encosta de serra.
3 CAXIAS: ALEMÃES E PROTESTANTES
Antes da organização dos protestantes em comunidades, os fiéis de diferentes orientações religiosas praticavam seus atos religiosos no que se convencionou chamar de “culto doméstico”. No entanto, faltava para essas famílias não católicas o espaço oficial para a realização de cultos públicos e dos ofícios sócio religiosos, como batismo, confirmação, casamento e enterro (RADÜNZ, 2009).
O primeiro grupo protestante a se organizar em Caxias do Sul foi o dos metodistas, no início do século XX. Essa presença é fruto dos processos de imigração que trouxeram outras confessionalidades religiosas. A respeito dos metodistas:
Quem pensa que a colonização italiana do município de Bento Gonçalves trouxe consigo somente a fé católica está definitivamente equivocado. Cerca de 16 famílias vindas do norte da Itália, mais especificamente famílias Valdenses, trouxeram além das tradições comuns daquela região, uma religião que vinha se difundindo grandemente naquele período, a religião protestante. A igreja está localizada no centro da cidade, de frente para a Praça Vico Barbieri. (ROMANINI, 2011).
Para atuar na região, o grupo metodista nomeou em 1921 o reverendo John William Price, que nasceu nos Estados Unidos. A jurisdição religiosa de Caxias incluía Forqueta, Vila Seca e São Marcos, bem como os três circuitos de Bento Gonçalves, Alfredo Chaves e Gramado. No ano de 1922, o templo de Caxias do Sul foi inaugurado. Ainda hoje esse templo é um marco da presença metodista na cidade (CORRÊA; PRICE, 2017).
Os protestantes ligados à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil iniciaram as suas atividades na metade do século XX. Segundo o próprio relato da agremiação:
Registros históricos contam que os primeiros cultos luteranos na cidade começaram em 1946 e reuniam em torno de 35 pessoas. Mas a criação oficial do grupo só ocorreu dois anos depois, em 30 de maio de 1948, tendo Conrad Luber como um de seus fundadores. Naquela época, os encontros eram dirigidos por pastores vindos de trem de Montenegro e, mais tarde, de Dois Irmãos e Nova Petrópolis. Por não haver um prédio próprio para a realização dos cultos, as celebrações ocorriam na casa de fiéis. Meses depois, o templo da Igreja Metodista passou a ser alugado para os encontros, duas vezes por mês. A mudança nos rumos da história da IECLB em Caxias começou com a criação de uma paróquia, em 1964. Naquele ano, o Sínodo aprovou também a vinda de um pastor fixo para a cidade, o norte-americano Robert Carol Maland. A igreja começou a ser construída em 1968 e, em apenas um ano, estava pronta. A obra teve apoio financeiro da Obra Gustavo Adolfo, da Alemanha, e contou com o esforço das famílias, que se uniram para ajudarem em mutirões de trabalho. (IGREJA CRISTO BOM PASTOR, 2017).
O terceiro grupo a se estabelecer em Caxias do Sul foi dos protestantes ligados à Igreja Evangélica Luterana do Brasil – IELB, conhecidos também como missourianos em razão da sua relação com a Igreja Luterana do Estado de Missouri, nos EUA. A presença de luteranos e a vinda de novos missourianos de outras localidades levaram à realização do primeiro culto dessa agremiação na cidade. Segundo o relato do próprio pastor Walter Rennecke, primeiro sacerdote dos luteranos ligados a IELB:
Nos primeiros meses de 1944 eu recebi do pastor Carlos Warth, de Novo Hamburgo, uma carta dando o nome e endereço de uma família de sua comunidade que havia se mudado para Caxias do Sul (...). Por carta me comuniquei com esta família, fixando a data da minha visita, e pedindo de procurar um local para o nosso culto e de convidar pessoas interessadas para assistir este primeiro culto. Assim também fizeram. No dia 29 de abril de 1944 viajei de trem até Caxias do Sul, onde me esperaram na estação os dois filhos da família Konrath. Nessa família também fui hospedado. No dia seguinte, dia 30 de abril de 1944, domingo jubilante, foi realizado, com licença especial da polícia, nosso primeiro culto nessa cidade de Caxias do Sul, cidade que antes só conhecia de nome. Este nosso primeiro culto foi assistido por 23 pessoas, entre eles três inspetores da polícia, que o delegado tinha mandado.4
Esta primeira atividade de culto entre os luteranos se deu no contexto da Campanha de Nacionalização do Estado Novo (1937 – 1945), do Governo Vargas, que proibiu, entre outras, a utilização de língua estrangeira em território nacional. Não é de se estranhar que a licença para o culto luterano tenha vindo acompanhado pela fiscalização in loco por três inspetores. O referido pastor já havia sido preso em razão dessa política do estado.
Em fins de 1942, num domingo de manhã, fui a Cascata do Buricá, para dar o culto lá. Porém, antes de iniciar o culto, que naquele tempo se realizava na casa do Sr. João Reisner, veio um auto com um inspetor da polícia de Santa Rosa, com o subprefeito de Vila Horizonte e um soldado da brigada militar e me deram voz de prisão. O motivo da minha prisão era que eu tinha nascido na Alemanha.5
A comunidade luterana iniciou seus trabalhos de forma sistemática em Caxias do Sul, em 1945. Dois anos depois já havia adquirido um terreno e construído sua capela, conforme descrito anteriormente. Passados 4 anos de sua construção, a igreja foi incendiada. Antes desse sinistro, a construção já havia sido alvo de violação de propriedade com a ação provocativa que, na percepção dos luteranos, manifestava intolerância religiosa. Em entrevista, o pastor Rennecke relatou o episódio: “Três meses antes do incêndio, escreveram na frente da capela: ‘Esta é a casa do diabo, ninguém deve entrar’. Depois os membros apagaram e pintaram por cima. Foi o fanatismo e ignorância. De quem? Bem, vocês podem imaginar...”.6
Antes de avançar no texto e analisar as memórias relativas aos fatos e aos aspectos ligados ao “fanatismo e ignorância”, é preciso apresentar com mais detalhes as bases empíricas que subsidiam esse texto.
4 AS BASES EMPÍRICAS: DEPOIMENTOS
Na Unidade Arquivos Privados do Arquivo Municipal João Spadari Adami (AMJSA), de Caxias do Sul, há um banco de memória oral que possui várias entrevistas que tratam de diversos assuntos referentes a essa pesquisa, tais como: imigração alemã; histórias de vida, prisão e atividade como pastor da Igreja Luterana; Integralismo; Campanha de Nacionalização; a Igreja Luterana em Caxias do Sul: fundação, primeiro culto, local do primeiro culto, perseguição religiosa, adeptos, sacramentos, crença, Martinho Lutero; uma segunda igreja, entre outros. Além disso, o acervo do Arquivo guarda dois textos doados pelo primeiro pastor luterano que atuou em Caxias, um deles, intitulado "Breve resumo do começo das atividades da nossa igreja aqui em Caxias do Sul e região". Este texto contém um pequeno relato de suas experiências como pastor e aborda o início das atividades da Igreja Luterana em Caxias do Sul. O outro relato, intitulado “Entrevista com um imigrante”, apresenta as respostas das 24 perguntas feitas a um imigrante alemão sobre imigração alemã e vida familiar, que integra o Projeto “A Voz da Memória - o passado preservado na tecnologia digital”. Além dos arquivos com depoimentos do AMJSA, este texto se vale também de uma entrevista gravada no ano de 1992, em VHS, com os luteranos Walter Paul Rennecke, Emilio Ernesto Schmidt e Eunice Schafer Schmidt.7
As entrevistas que compõem o banco de memórias dessa pesquisa exigem do historiador algumas reflexões. Esses vestígios que permanecem na memória dos entrevistados são, na realidade, discursos sobre si que mesclam experiências que foram vividas coletivamente. Além disso, essas experiências podem tomar uma dimensão ainda maior quando compartilhadas, faladas por determinado grupo, nesse caso, os luteranos de Caxias do Sul, que dão ao evento uma dimensão social. Essa memória
Não tem compromisso com a crítica, com uma operação mental de validar ou não seus movimentos através de problematizações. Difere ainda da História como campo de produção de conhecimento. A memória pode ser História, mas não é história por si só. É vestígio. Apesar de indomável, esforça-se em assegurar permanências, manifestações sobreviventes de um passado, a capacidade de viver o já inexistente. A memória é, então, também o lugar de permanências. (BASTOS; STEPHANOU, 2011, p. 420).
Esse vestígio do passado com qual o historiador lida se mantém numa relação tensionada entre lembranças e esquecimentos. Os projetos de salvaguarda de memória apresentados nesse texto lidam com as “memórias seletivas. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado”. (POLLAK, 1992, p. 4). Não são Histórias em si, mas representações de um passado que sofre alterações e atribuições de sentido na atualidade.
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica [...]. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1984, p. 9).
Conforme mencionado no texto, “A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado.” A tarefa do historiador, como destaca Nora (1984), é trabalhar com memórias, ressignificando seu conteúdo, entendendo aquilo que tem real significado para o depoente.
Na memória fica o que significa [...] na história se ressignifica o que fica, esta é a violência do historiador que com os seus conceitos atribuem novos significados ao que ficou guardado nas memórias: recordando-as, reconstruindo-as, desmanchando suas teias. Violar a memória faz com que seja gestada a História que está sempre em busca de um novo sol para orientá-la. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994, p. 50, grifo do autor).
Essas informações guardadas na memória e que surgem quando provocadas num espaço de entrevista exigem uma ressignificação de seu conteúdo. O tema da análise de conteúdo continua sendo uma metodologia utilizada em circunstâncias como as que cercam essa proposta de análise (BARDIN, 2006). Em termos bem objetivos, os discursos presentes nos bancos de memória precisam passar pelos seguintes tratamentos:
Cronologicamente, a análise de conteúdos pode abranger as seguintes fases: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Na primeira fase [...] organizamos o material a ser analisado. Nesse momento, de acordo com os objetivos a questão de estudo, definimos, principalmente, unidade de registro, unidade de contexto, trechos significativos e categorias [...] Na segunda fase, o momento é de aplicarmos o que foi definido na fase anterior. É a mais longa. Pode haver a necessidade de fazermos várias leituras de um mesmo material. A terceira fase [...] devemos tentar desvendar o conteúdo subjacente ao que está sendo manifesto [...] nossa busca deve se voltar [...] para ideologias, tendências e outras determinações características dos fenômenos que estamos analisando. (GOMES, 2002, p. 78-79, grifos do autor).
No que se refere à primeira fase, o material analisado já foi descrito anteriormente: trata-se dos acervos do AMJSA e do material em vídeo.8 No que diz respeito aos trechos significativos e termos recorrentes, a fala do pastor Rennecke sugere algumas categorias que merecem um maior aprofundamento. Termos como “intolerância” e “fanatismo” compõem essa memória e são reverberados também pelo casal Schmidt. Aliás, esse casal tinha um trânsito respeitável na cidade, por conta das atividades comerciais ligadas ao setor de tecido e alfaiataria. Em razão do prestigio desse espaço comercial, muitas pessoas católicas da elite caxiense eram fregueses dos referidos luteranos.
Para abrir a análise da segunda fase descrita por Gomes (2002), as falas gravadas dos três depoentes apresentam variações a respeito de alguns aspectos relativos à queima do templo. A fala do reverendo parece associar o incidente a uma situação anterior: a pichação da parte frontal com os seguintes dizeres: “esta é a casa do Diabo, ninguém deve entrar”. A entrevista continua com uma narrativa que sugere uma ligação entre a pichação com o incêndio: “Depois os membros apagaram e pintaram por cima. Foi fanatismo e intolerância. De quem? Bem, vocês podem imaginar...”9 A fala do pastor tem a sensibilidade de não acusar diretamente possíveis responsáveis pelo incêndio, mas, nas entrelinhas, sugere que seus ouvintes cheguem a conclusão que ele pretende indicar: “vocês podem imaginar”.
O segundo entrevistado apresenta um tom mais conciliador na avaliação que faz a respeito do incêndio. Depois de descrever os anos iniciais dos trabalhos comunitários, ele afirma que
Deus permitiu que queimasse, mas deu força à comunidade. Muitos membros creem que foi criminoso o incêndio. Eu não acho. Ninguém teria coragem. Apesar de não ter luz elétrica, eu acredito que foi acidente. Havia gente que morava embaixo da capela. Não dá pra condenar este ou aquele. Apenas se sabe que a igreja não era desejada aqui.10
O tom mais ameno do comerciante provavelmente reflete o lugar social de onde ele fala, ou seja, um profissional que, integrado economicamente na lógica da cidade, mantinha relações com pessoas católicas, sem maiores problemas. Alguns elementos nessa fala merecem destaque, tais como: “Deus permitiu...”; “a igreja não era desejada aqui”. O primeiro argumento tem um efeito anestésico, ou seja, retira, em parte, a responsabilidade humana e social, lançando para os desígnios divinos eventos sensíveis (RADÜNZ, 1996). No que diz respeito à repulsa da presença dos luteranos organizados em comunidade, tal avaliação é compartilhada pelos três entrevistados. O incômodo dessa presença é descrita na entrevista de Eunice Schmidt, que traz detalhes da sua infância e as dificuldades de sociabilização entre as famílias católicas, em razão da sua pertença luterana.
Quando a referida entrevistada fala a respeito do incêndio, sua descrição problematiza uma série de elementos:
Tinha um senhor que dormia debaixo da capela. Um esmoleiro. Fazia sua caminha ali. Quiseram acusá-lo, pois ele fazia fogo ali. Eu nunca achei isso. A capela era de madeira, mas tinha os pilares a mais ou menos um metro do chão. A primeira ideia foi que ele tivesse feito um fogo maior, mas essa ideia foi logo descartada. Apesar disso, prefiro acreditar nessa hipótese, do que pensar que os padres tenham posto fogo lá.11
Nesse depoimento, pela primeira vez, se cita concretamente um possível envolvimento da Igreja Católica local, através dos padres. A depoente se apressa em desconsiderar a hipótese. Ela continua salientando que a “Igreja Católica não estava preocupada que nós roubássemos seus membros. Algumas pessoas, com ideias absurdas; fanáticos – não toda a Igreja”. Esse depoimento sugere possíveis responsáveis, mas logo procura amenizar o tom acusatório.
O Jornal Diário do Nordeste noticiou o incidente na edição do dia 01 de agosto de 1951:
A versão sugerida no jornal é que tenha sido um incêndio acidental ocasionado por algum andarilho que tivesse procurado abrigo no porão da igreja. As fotos do incêndio mostram uma incineração mais expressiva na parte superior da capela, o que colocaria em suspeita a tese relativa a algum andarilho ter feito o fogo e ter perdido o controle.
As informações constantes nessas entrevistas apontam para lugares diferentes, no que se refere à relação religiosa e social na cidade, entre católicos e protestantes. O mesmo vale para as impressões relativas ao incêndio da capela. Chalhoub (2001) salienta que as narrativas indicam diferentes pontos de vista. No que diz respeito às diferenças nos suportes empíricos entre a pesquisa de Chalhoub e o tema em questão, é possível aproximar as reflexões do autor com o tipo de fonte utilizada nessa pesquisa:
O fundamental em cada história abordada não é descobrir “o que realmente se passou” [...] e sim tentar compreender como se produzem e explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso. As diferentes versões produzidas são vistas neste contexto como símbolos ou interpretações cujos significados cabe desvendar. Estes significados devem ser buscados nas relações que se reptem sistematicamente entre as várias versões, pois as verdades do historiador são estas relações sistematicamente repetidas. (CHALHOUB, 2001, p. 40).
Sobre a análise das fontes, Chalhoub (2001) destaca que é importante levar em consideração os diferentes pontos de vista presentes nas fontes:
[...] só porque existem versões ou leituras divergentes sobre as coisas ou fatos é que se torna possível ao historiador ter acesso às lutas e contradições inerentes a qualquer realidade social. E, além disso, é na análise de cada versão do contexto de cada processo, e na observação da repetição das relações entre as versões em diversos processos, que podemos desvendar significados e penetrar nas lutas e contradições sociais que expressam e, na verdade, produzem-se nessas versões ou leituras. (CHALHOUB, 2001, p. 41).
O presente artigo, como dito anteriormente, não pretende resolver o impasse relativo às responsabilidades do incêndio, mas, através desse episódio, analisar como se deram as relações entre luteranos e católicos em um determinado período de convivência em Caxias do Sul. A base teórica dialoga com elementos da micro história, destacando, a partir de um episódio, a circularidade presente nas relações sociais da cidade. “Uma escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável em outros tipos de historiografia”, procurando “indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula” (GINZBURG, 1991, p. 178), ou seja, uma tendência de ver o todo, a partir das partes e/ou nas partes.
5 RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE CATÓLICOS E LUTERANOS.
Em estudo sobre as tensões entre luteranos e católicos em Santa Catarina, estado do sul do Brasil, Klug (1998) analisa os choques entre as duas religiões que buscavam se consolidar, sobretudo nas áreas de imigração. Nesse estudo, o autor foca a confessionalidade baseada “numa boa base escolar. Foi essa área que mais produziu tensões, visto haver uma disputa pela mesma ‘clientela’” (KLUG, 1998, p. 11). No texto, o autor faz uma retrospectiva da situação dos protestantes no império católico do Brasil, salientando que havia um clima de xenofobia em relação aos acatólicos. O foco dessa análise está no estudo de comunidades em Joenvile e Blumenau, que são áreas de colonização que absorveram alemães de confessionalidade católica e protestante, numa relação de quase igualdade numérica, com uma pequena superioridade dos católicos.
O caso de Caxias é diferente, no que se refere aos elementos ligados à intolerância e ao fanatismo. O episódio da Serra gaúcha se dá em um cenário onde a maioria é católica e de origem italiana. Os poucos descendentes de alemães luteranos na cidade tiveram que negociar a sua diferença, inclusive, construindo memórias que, por vezes, foram readequadas às circunstâncias do momento.
Emílio Schmidt lembra que “quando eu casei, uma testemunha não ganhou permissão do padre para entrar em nossa igreja, pois, segundo ele, não era de Deus. Há 40 ou 50 anos este era o conceito”.12 Na sequência, ele traz essa memória para o tempo da entrevista e conclui que “hoje o preconceito não é mais tão forte. Preconceito não com os alemães, mas com os luteranos”.
No discurso de Eunice Schmidt, percebe-se a presença de mais elementos relativos aos preconceitos de ser luterana. Descrevendo memórias:
Sim, eu já sentia o olhar de indiferença dos amigos. Eu não era convidada para as festas e os amigos não vinham nas minhas festas. Éramos conhecidos como os “protestantes da Avenida Rio Branco”. As pessoas tinham dificuldades de chegar perto de nós na rua. Referiam-se a meu pai como “aquele alemão protestante” [...] Mas os parentes de minha mãe não aceitavam o meu casamento na Igreja Luterana. Minhas primas e outros parentes me diziam que o meu casamento não tinha valor. Sempre sofri muita pressão de minha mãe e da família dela. Eram católicos fanáticos.13
O relato em questão evidencia outro elemento: os pais da entrevistada não comungavam da mesma religião – o pai era protestante e a mãe católica. O provedor luterano era um homem importante social e economicamente; a mãe aparece no relato sem maior destaque; aliás, ela está nessa memória como uma agente católica. Essa situação aponta para um campo possível de negociação entre católicos e protestantes, mesmo diante de uma postura rígida por parte da igreja católica, no que se refere aos casamentos mistos. O desconforto dessa relação transparece nos depoimentos. Como a memória que estava sendo buscada na entrevista tratava dos preconceitos, da intolerância, a mãe da entrevistada aparece, nessa fala, com a roupagem católica. Provavelmente, por pressão dela, os netos tenham sido batizados católicos: “Foi um peso. Meus filhos acabaram sendo batizados na Igreja Católica, por insegurança minha”. Percebe-se como essa memória pode ser selecionada, dirigida. Em outra circunstância de evocação da memória, por exemplo, seria possível que o relato da depoente apresentasse a progenitora com outras características não ligadas às fricções religiosas.
Por fim, cabem ainda algumas considerações a respeito das gravações em VHS que foram transcritas e que servem de fonte para esse artigo. A gravação em imagem das entrevistas colocam outros elementos que a descrição no papel não consegue apresentar: as expressões faciais, os trejeitos da fala e o lugar onde as entrevistas foram concedidas, etc.

Pastor Rennecke em entrevista gravada em vídeo (captura de tela)
Arquivo pessoal de Débora Viviane NonemacherA gravação com Rennecke foi feita no seu escritório pastoral. Nela, se percebe um depoente muito tranquilo, no que se refere à entrevista. Sente-se à vontade para fazer algumas afirmações que são reforçadas pelo tom de voz, pelo olhar. Falando de seu lugar social e profissional, o referido sacerdote sugere responsabilidades pelo incêndio, ligando o evento à pichação da capela meses antes do episódio, com os dizeres: “essa é a casa do diabo, ninguém deve entrar”. Subjetivamente, o vídeo é mais preciso do que a transcrição, no que se refere àquilo que o depoente quis trazer como memória individual: não responsabiliza ninguém pelo sinistro, mas deixa transparecer suspeitas.
O depoimento de Emílio Schmidt está envolto em um ar sagrado: ele foi colhido dentro da igreja. Isso tem um significado especial, já que não se sabe as razões da escolha do lugar santo.

Emílio Schmidt em entrevista gravada em vídeo (captura de teka)
Arquivo pessoal de Débora Viviane NonemacherO tom mais conciliador do depoimento relativo ao incêndio, procurando descartar a possibilidade de sinistro criminoso, já foi referido anteriormente. Há, no entanto, mais um aspecto a ser considerado nessa entrevista: o lugar onde ela se deu. A tradição luterana relativa à interpretação do oitavo mandamento, que trata de testemunho, ou seja, falar de outrem, é muito clara. No Catecismo Menor de Lutero essa proibição é assim tratada:
Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. O que quer dizer isso? Devemos temer e amar a Deus e não usar de falsidade, mentindo, traindo, caluniando ou desacreditando o nosso próximo; mas devemos desculpá-lo, falar bem dele e interpretar tudo da melhor maneira. (LUTERO, 1938, p. 5).
“Interpretar tudo da melhor maneira possível” é a orientação dada por Lutero aos seus seguidores, principalmente se esse testemunho for dado dentro de uma igreja. Esse lugar santo, onde Deus está especialmente presente, exige do fiel uma postura de resignação e de aceitação aos desígnios divinos. “Deus quis assim”, afirma Schmidt ao referir-se ao incêndio. A transcrição pura e simples da entrevista acaba por deixar passar esse componente importante: ele estava falando dentro de uma igreja.
A entrevista de Eunice Schmidt não vem carregada da mesma forma. Ela foi entrevistada, pelo que as imagens sugerem, em alguma sala de sua casa, onde se sentia tranquila. Ela se lembra do incêndio, recorda sua infância e rememora as
dificuldades de ser luterana em terra de católicos. Quando fala a respeito do incêndio, usa uma metáfora, dizendo que “os católicos eram como elefantes e os protestantes como formiguinhas”, portanto, os padres não iriam se importar com os poucos luteranos.
Desde o começo eu tava assim. Não vão querer me convencer a mim que esse ou aquele potentado católico vai se envolver com meia dúzia de alemães – não! não! não! Isso é uma ideia minha, pessoal. Pode ser que não seja a verdade. Pode ser que algum dia até, a verdade venha à tona. Pode ser que eu me equivoquei. De repente, eu falei a vida inteira defendendo e !!! vou cair na fogueira (sic).14
Esse depoimento final relativo ao incêndio não se encontra na transcrição, somente no vídeo. A depoente, que vinha sistematicamente defendendo que os padres não tinham participação no evento, ao final, se deixa trair, provavelmente pela memória coletiva dos protestantes que ruminavam a ideia de um sinistro criminoso: “Pode ser que não seja verdade. Pode ser que um dia a verdade venha à tona”. A opinião relativa ao não envolvimento dos católicos no evento convive com dúvidas: “De repente, falei a vida inteira defendendo e!!! Vou cair na fogueira”. No vídeo, essa frase final vem acompanhada por uma expressão facial com sorrisos silenciados que reforçam as dúvidas que a depoente deixa transparecer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fundamental em cada história abordada não é descobrir “o que realmente se passou [...] e sim tentar compreender como se produzem e explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso”. (CHALHOUB, 2001). O que realmente se passou relativo à queima da capela luterana continua em aberto.
As versões ou leituras divergentes sobre o incidente tornam possíveis, ao historiador, ter acesso às lutas e às contradições inerentes à realidade social. Essas contradições religiosas e étnicas em Caxias do Sul refletiam o momento sensível do período da Campanha de Nacionalização de Getúlio Vargas, que proibiu, entre outras coisas, o uso de idioma estrangeiro (LIA; RADÜNZ, 2015). Até esse período, o culto luterano era majoritariamente em alemão. Os hinos, a liturgia e a prédica faziam mais sentido na língua materna. Para além dessa pressão nacional, os conflitos religiosos de natureza local, sobretudo em áreas de imigração, foram uma constante. Padres e pastores, na maioria das vezes, não tiveram uma relação amistosa, levando seus fiéis a olharem com estranhamento os diferentes.
As leituras divergentes sobre o incêndio alimentam duas explicações: uma delas, mais tranquila, passando a responsabilidade à fatalidade; outra, mais tensa, indicando os possíveis responsáveis pela incineração. As entrevistas que embasam esse texto mostram apenas a versão dos luteranos, onde essa memória, como um elo vivido no eterno presente, (NORA, 1984) está mais palpitante. Na metáfora do elefante e da formiguinha proposta pela depoente, o paquiderme “não estava interessado nos poucos luteranos” e, portanto, as memórias católicas sobre o incidente devem ser tão ínfimas como são as formigas. Por essa razão, faltam elementos ao historiador para comparar as diferentes versões apresentadas por católicos e luteranos. O jornal que cobriu o fato talvez seja o contraponto, a versão oficial, a fala hegemônica da cidade.
Diferentes versões se mostram nos depoimentos luteranos. O comerciante Schmidt, que tinha relações com clientes católicos, procura colocar a responsabilidade do incêndio nas mãos do Altíssimo. “Deus quis assim”, isto é, um propósito divino fez com que os luteranos se reerguessem e construíssem um novo templo, ainda mais pujante. Sua mulher, que detalha seus conflitos de infância na condição de protestante, lamenta episódios de intolerância que marcaram a sua existência. Essa carga parece transparecer na sua memória sobre o incêndio, que é recoberta de dúvidas sobre a participação católica no evento: “Talvez algum dia a verdade venha à tona”, conclui ela, não descartando a versão indicada pelo reverendo, em tom sugestivo: “Vocês podem imaginar...” A revitalização dessa memória carrega todos os desacertos do sacerdote, na condição de luterano e alemão, em terras brasileiras, sobretudo, no período da Campanha de Nacionalização. Essa memória se revitaliza na condição de um pastor aposentado, que está sendo provocado a falar sobre o passado, não uma, mas várias vezes. Parece que essa memória requisitada se recobre de uma importância ainda maior, que o qualifica a falar com mais autoridade. O incêndio da capela continua envolto em dúvidas. Entre os luteranos, o tema ainda ocupa um espaço na memória “em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento” (NORA, 1984, p. 9), pelo menos, entre as pessoas mais velhas, que vivenciaram o fato.
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Notas