Dossiê
A “TRADIÇÃO DA SEGUNDA ORDEM” COMO FONTE IDENTITÁRIA DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO: reflexões epistemológicas e concretizações
The “second-order tradition” as a source for the identity of the study of religion: epistemological reflections and concretizations
A “TRADIÇÃO DA SEGUNDA ORDEM” COMO FONTE IDENTITÁRIA DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO: reflexões epistemológicas e concretizações
Interações: Cultura e Comunidade, vol. 13, núm. 23, pp. 23-37, 2018
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Resumo: Preocupado com a falta de conhecimento sobre as especificidades e o perfil meta-teórico da Ciência da Religião por parte de um número considerável de acadêmicos brasileiros que atuam nesta área, o presente texto apresenta os elementos epistemológicos e metodológicos constitutivos para esta disciplina autônoma. Em prol da identificação de princípios identitários da Ciência da Religião, o artigo chama atenção para aspectos intelectuais e estruturais fundamentais para qualquer empreendimento científico. Em seguida será retomado o conceito da “tradição da segunda ordem” que, por sua vez, instiga um lançamento sistemático de fundamentos da Ciência da Religião consensuais desde a fase formativa da disciplina.
Palavras-chave: Ciência da Religião, Epistemologia, Tradição da secunda ordem, Identidade, Disciplinar.
Abstract: Concerned with the lack of knowledge about the specificities and the meta-theoretical profile of the Science of Religion on the part of a considerable number of Brazilian scholars active in this area, the present text singles out the discipline’s constitutive epistemological and methodological elements. In order to identify these distinguishing principles, the article first draws attention to intellectual and structural aspects instrumental for any scientific endeavor. Subsequently, a summary of the concept of the "second order tradition" prepares a systematic overview of basic elements consensual among scholars of religion since the formative phase of their discipline.
Keywords: Science of Religion, Epistemology, Second-order tradition, Disciplinary, Identity.
INTRODUÇÃO
No Brasil, situações de constrangimento profissional não faltam a um cientista da religião formado no Exterior em meio a uma comunidade acadêmica sustentada por uma consciência corporativa de representar uma disciplina bem resolvida. Para citar apenas um exemplo: em um simpósio organizado por um Programa de Pós-Graduação cujo nomenclatura “Ciências da Religião” não deveria ter deixado dúvidas sobre a identidade intelectual do respectivo corpo docente, um dos palestrantes confessou, frente a um público cheio de colegas e alunos, que “a gente ainda não sabe exatamente o que o termo ‘Ciências da Religião’ exatamente implica”. O depoimento da insegurança epistemológica não encontrou reações contrárias. Em vez disso, impôs-se um ar do alívio entre o público devido à sensação de que a falta de clareza sobre o perfil da nossa disciplina não decorria de uma falha individual de cada ouvinte, mas, sim, de uma deficiência coletiva.
Em termos de Sociologia da Ciência, manifestações desse tipo apontam para uma espécie de desconhecimento identificado por Vetter como um “problema de acesso” (VETTER, 1975). Não se trata, do ponto de vista do referido autor, de uma verdadeira lacuna no depósito do saber de uma comunidade acadêmica, mas, sim, de falta de familiaridade de membros singulares da mesma com o conhecimento coletivamente já estabelecido. Nesse sentido, a afirmação de ignorância sobre o perfil epistemológico inconfundível de uma disciplina aponta para um compartilhamento incompleto do estado-da-arte e, portanto, para uma discrepância entre a conquista intelectual de uma comunidade científica na sua totalidade e o discernimento particular de representantes individuais daquela comunidade – pelo não alcance de fontes, por razões substanciais, técnicas ou linguísticas.
Este artigo pretende diminuir essa disparidade por meio de uma sistematização de reflexões de terceiros, que têm contribuído – de forma direta ou indireta – para o repertório ao qual cientistas da religião se referem em momentos da justificativa epistemológica da particularidade e autonomia da sua disciplina. O respectivo raciocínio é organizado em três passos. Os primeiros dois pontos tratam das especificidades da ciência em sentido mais geral, a saber: a postura acadêmica exigida por cientistas empíricas e as constituintes formais de uma disciplina universitária. Essas duas reflexões prepararão uma discussão mais específica sobre do aspecto central deste texto, isto é, os elementos identitários da Ciência da Religião deduzidos de publicações clássicas da nossa área.
1 Especificidades cognitivas do trabalho científico
A primeira aproximação em relação à questão da identidade da Ciência da Religião apropria-se da observação de que o trabalho acadêmico representa uma forma específica da consciência. (BERGER, 2011, p. 35) Essa característica, postulada por Peter L. Berger de acordo com seu orientador Alfred Schütz (que – por sua vez – elaborou sua Sociologia Fenomenológica com referência à filosofia de Husserl) não é privilégio de nenhuma disciplina. É um aspecto fundante do qualquer empreendimento científico. Como tal, o último está em tensão com a postura que qualifica nossas operações mentais enquanto habitamos nosso “mundo da vida”, ou seja, nosso ambiente cotidiano.
Para Schütz (1932) e seus herdeiros intelectuais (BERGER; LUCKMANN, 2004), esse “mundo da vida” é a esfera em que os seres humanos experimentam a realidade como algo certo e confiável. Essa experiência é uma função da “atitude natural” assumida pelos “indivíduos no sentido de uma suspensão de dúvida sobre a ‘natureza’ desta esfera”. Ao por entre parênteses “a dúvida de que esse mundo e seus objetos pudessem ser outros que não lhe aparentam ser” (VAZ; COSTA, 2013, p. 90) o ser humano trata o “seu” mundo como uma “facticidade” Em outras palavras, a “vida cotidiana [...] na qual nós nos movimentamos todos os dias, nos é dada como inquestionável, não é posta em dúvida, e oferece uma pauta de certezas, cujo processo de criação não é questionado”. (SCHRÖDER, 2006, p. 14)
O trabalho científico exige uma superação da atitude natural por meio de um salto deliberado para uma esfera em que a “realidade” perde – do ponto de vista do observador – seu caráter autoevidente. Na medida em que o indivíduo consegue se distanciar de sua “crença” na facticidade não problemática do “mundo da vida”, ele entra em uma “província de sentido” diferente, regulamentada por um mecanismo mental alternativo concebido, por Schütz e outros, como “atitude teórica”. Esta última é a constituinte básica do “raciocínio científico” em consequência à “decisão do cientista em substituir sua participação afetiva nos objetos e temas desse mundo por uma atitude contemplativa desinteressada”. (VAZ; COSTA, 2013, p. 89) No sentido de uma norma idealizada, a “atitude teórica” é caracterizada por uma postura em que “nenhum pressuposto ou fato são aceitos como simplesmente dados e desprovidos da necessidade de explicação” (SCHÜTZ, 1974, p. 315). Em vez disso, por princípio, qualquer fenômeno é sujeito da reflexão permanente.
O princípio metodológico da “atitude teórica” salientado por Schütz como obrigatório para qualquer empreendimento acadêmico tem desempenhado um papel central para autores preocupados com a seriedade do trabalho de cientistas da religião nos seus contextos universitários. Um empreendimento intelectual merece a classificação como “disciplina” na medida em que seus representantes são capazes de “disciplinar” suas mentes de acordo com as exigências de Schütz. Nesse sentido, pode-se afirmar, a partir de uma citação de Peter L. Berger, que o cientista da religião “é uma pessoa que se ocupa em compreender” seu campo de estudo:
[...] de uma maneira disciplinada. Essa atividade tem uma natureza científica. Isto significa que aquilo que [...] descobre e afirma a respeito dos fenômenos [...] que estuda ocorre dentro de certo quadro de referência de limites rigorosos. (BERGER, 2011, p. 6).
Nem sempre o compromisso com essa norma fica tão explícito como no caso de Hans-Jürgen Greschat, quando ele estipula o ideal de “espectador indiferente” capaz de “desligar” as orientações e perspectivas cotidianas quando raciocina academicamente. (GRESCHAT 2005, p. 164-165). Com isso, Greschat salienta a tensão entre o pensamento cotidiano e o raciocínio científico e a predominância do último no ambiente universitário como aspectos cruciais do mundo acadêmico em geral e da Ciência da Religião em particular. Todas as outras observações sobre a identidade da nossa disciplina são funções desse princípio.
2 Especificidades estruturais do trabalho científico
As reflexões acima focam a necessidade de o pesquisador deixar para trás o mundo da vida e a atitude natural que o sustenta e assumir uma postura diferente diante dos objetos e suas relações a serem estudados. Falta ainda um melhor esclarecimento a respeito da “província do sentido” que o pesquisador acessa na medida em que seu salto cognitivo da atitude natural para a atitude teórica é bem-sucedido.
A primeira determinação dessa província é seu caráter coletivo. Nenhum cientista atua em isolamento, mas faz parte de um empreendimento compartilhado com outros integrantes da mesma sociedade (!!!) acadêmica. Trata-se de um subsistema social que é, como qualquer outro, constituído por um conjunto de regras e princípios específicos que ordena a convivência dos seus integrantes. Em outras palavras:
Uma comunidade científica é um grupo social relativamente bem definido. Estrutura-se em parte por si mesmo: é uma confraria onde os indivíduos se reconhecem como membros de um mesmo corpo. [...] Temos um grupo social que se autodefine de acordo com sua atividade, cujos membros se reconhecem entre si e que tem, portanto, a sua coerência própria. (FOUREZ, 1995, p. 93)
Nesse sentido, a interação dos representantes de uma disciplina pode ser entendido como a dinâmica de um “campo científico”, definido por Bourdieu como:
O universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem [...] a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. (BOURDIEU, 2003, p. 20).
A dimensão sociológica salientada pelas duas citações acima é um constituinte importante da “província do sentido” habitado por integrantes de uma disciplina. Porém, não é suficiente para um entendimento adequado do salto cognitivo realizado pelo pesquisador em prol da superação da sua atitude natural que o prende ao mundo cotidiano. É de alta relevância que o grupo dos representantes de uma disciplina seja portador de uma determinada maneira de considerar, problematizar e interpretar “o mundo”.
A sobreposição entre a existência de uma comunidade acadêmica autoconsciente de si e a “cosmovisão” compartilhada pelos integrantes daquele grupo é crucial para o conceito de paradigma entendido por Thomas S. Kuhn como conjunto de três dimensões. Além da dimensão sociológica, há a dimensão histórica que corresponde ao fato de que paradigmas nascem e organizam o pensamento de um grupo científico durante um determinado período. A terceira dimensão é a filosófica, no sentido de “filtros” que deixam os fenômenos de estudos aparecer de uma maneira específica e determinam as direções em que a pesquisa de cada membro da comunidade devem progredir. (KUHN, 2000, p. 13)
Paradigmas no sentido de uma cristalização de repertório de conhecimento cujo compartilhamento é obrigatório para os membros de uma sociedade científica se reproduzem por meio da formação acadêmica de gerações subsequentes de aspirantes a fazer parte do grupo já constituído. Em outras palavras:
O estudo dos paradigmas é o que prepara um estudante para ser membro da comunidade cientifica e, sendo um ingressante nesta comunidade, o estudante irá reunir-se a pessoas que o ajudaram a ter a base de determinada investigação e com isso sua prática dentro da comunidade científica dificilmente entrará em desacordo com o resto do corpo da comunidade. (PATRICIO, 2016, p. 12-13)
De acordo com Walter Capps, a transmissão transgeracional da herança disciplinar estabelece uma “tradição de segunda ordem” definida como uma:
Narrativa coordenada das escolas principais de interpretação, métodos de abordagem, legados de escolaridade e, mais importante, uma memória viva compartilhada sobre as maneiras em que todos estes fatores constitutivos são relacionados entre si. (CAPPS, 1995, p. 15)
Essa tradição da segunda ordem não cai do céu e não se perpetua “naturalmente”. Ela depende do senso da responsabilidade e da consciência corporativa de cada representante da disciplina, ou seja:
Os intelectuais, professores, pesquisadores e estudantes do campo são confiados a saber quais são os métodos e como eles funcionam, como se aproximar e abordar os objetos e focos e onde se pode encontrar as informações e usá-las de maneira qualificada. O registro e a transmissão dos produtos e das consequências destas perguntas servem para moldar as tradições que pertencem a uma disciplina. Tais tradições têm a função de guiar as atividades intelectuais em andamento. (CAPPS, 1995, p. 14)
Uma vez que “um campo acadêmico não pode aspirar a conhecer seu caminho, a não ser que possa se relacionar com seu passado intelectual de maneira narrativa” (CAPPS, 1995, p. xvi), pergunta-se sobre os elementos constitutivos da “tradição da segunda ordem” que devem ser apreciados no caso da Ciência da Religião. O próximo parágrafo dedica-se ao levantamento desses aspectos identitários.
3 Elementos da tradição da segunda ordem da Ciência da Religião
A primeira questão a ser respondida é de natureza histórica. A partir de que momento no passado os traços da segunda ordem da Ciência da Religião tornam se manifestos? Um forte indicador para o “nascimento” dessa tradição é o fato da institucionalização da nossa disciplina nas universidades europeias durante o último quarto do século XIX. Já nessa fase encontram-se na literatura articulações da convicção de que a nova matéria já se apresentava de maneira consolidada no mundo acadêmico da época.
Lang, por exemplo, avaliou que nossa disciplina teria “alcançado conclusões que já respiram o ar do seu firme estabelecimento” nas universidades (LANG, 1898, p. 1). Um ano depois, Tiele mostrou-se seguro no que dizia respeito aos méritos da então Ciência da Religião e afirmou, em 1899, que esta “conquistara definitivamente seu lugar entre as diferentes ciências humanas”. (TIELE, 1899, p. 2) Em palavras semelhantes, Jastrow afirmou, em 1901, que a Ciência da Religião “tomou seu lugar entre as ciências contemporâneas e ninguém poderia negar a sua importância”. (JASTROW, 1901, p. vii)
Essa posição se manteve consensual também nas décadas seguintes, como prova a opinião de Jordan, que – sem negar o dinamismo interno e a atualização contínua da disciplina – salientou em 1920 que o percurso da última já era “nitidamente rastreável”. (JORDAN, 1920, p. 39)
Essa unanimidade sobre o status da Ciência da Religião corresponde a uma ampla convergência entre autores relevantes a respeito dos constituintes substanciais e metodológicas da “tradição da segunda ordem” da nossa disciplina. Sem pretensão de oferecer uma discussão exaustiva sobre uma lista completa de elementos-chave, o presente artigo contenta-se com uma reflexão breve sobre sete aspectos identitários logicamente inter-relacionados. Trata-se: a) do interesse de conhecimento determinante para nossa disciplina; b) do seu caráter hermenêutico-filológico e empírico, c) do compromisso do cientista da religião com o princípio da abstinência de julgamento de fenômenos religioso; d) do caráter comparativo dos seus estudos; e) da estrutura interna da disciplina no sentido da complementariedade dos ramos histórico e sistemático; f) do repertório heurístico multidisciplinar da Ciência da Religião; e g) da demarcação disciplinar diante da Teologia.
Quanto ao primeiro aspecto, vale lembrar o seguinte. Abstraindo a fase dominada pela Fenomenologia da Religião na tradição de Rudolf Otto, a Ciência da Religião tem se mostrado cética quanto a abordagens que insistem em seu caráter “não reducionista” e se comprometem com a busca para um conhecimento que reflete a suposta “verdadeira profundidade” do nosso objeto. Desde cedo – e, em parte, ainda antes do surgimento da Fenomenologia da Religião – tem se articulado uma oposição a tal vertente “essencialista”. Uma das primeiras articulações de uma posição que é hoje amplamente aceita no âmbito da Ciência da Religião no nível internacional encontra-se na já citada obra de Tiele. Precedendo o princípio “moderno” de que nossa disciplina se dedica a uma análise da religião em termos não religiosos, Tiele alertou ainda em 1899:
O objeto da nossa ciência não é o supra-humano em si, mas a religião que se baseia na fé no supra-humano. E essa religião deve ser investigada como um fenômeno histórico-psicológico e sociológico, ou seja, como algo puramente humano. (TIELE, 1899, p. 4)
Com essas palavras, Tiele concorda com o princípio contemporâneo de que nossa disciplina não investiga “o Sagrado”, para citar apenas uma das possíveis nomenclaturas atribuídas ao “absoluto”. Em vez disso, levanta e analisa as múltiplas manifestações de discursos sobre “o Sagrado”. Esses discursos encontram-se no mundo religioso sob múltiplas formas, entre outras em textos, construções arquitetônicas, sistemas simbólicos, no sentido mais geral inclusive em gestos etc.
O foco da Ciência da Religião no observável, tangível e sensorial se sobrepõe com um segundo aspecto, ou seja, com as consequências metodológicas da exclusão da “transcendência” da agenda da pesquisa. Orientado na “materialidade” do seu objeto e dependente da forma do “discurso” estudado, o cientista da religião típico estuda seu objeto por meio de uma abordagem histórico-filológica, apropria-se de técnicas empíricas associadas ao amplo espectro das Ciências Sociais ou opta por uma abordagem oriunda da Ciência da Cultura. (FÜHRDING, 2013).
Esses métodos – eis o terceiro elemento constitutivo para a tradição da segunda ordem – são sustentados por uma postura específica do cientista da religião diante dos seus objetos de estudo. Tal postura corresponde ao conceito da “atitude teórica” de Schütz válida para cada ciência, mas é “matizada” de maneira específica conforme o “etos” de cada disciplina.
No caso a Ciência da Religião, a atitude teórica culmina na abstinência de um julgamento dos objetos religiosos investigados por parte do pesquisador. Max Müller, por vezes considerado o “pai” da Ciência da Religião, foi um dos primeiros autores que se manifestaram nesse sentido, tendo afirmado em uma publicação de 1882 que:
Na vida cotidiana seria um erro assumir uma posição neutra entre […] posturas conflitantes. Como estudantes da Ciência da Religião, subimos para uma esfera superior e mais serena. O estudante da história das ciências naturais não sente raiva do alquimista e nem briga com o astrólogo: ele simplesmente quer entender como eles enxergam as coisas. O mesmo vale para o cientista da religião. Ele quer descobrir o que é religião, qual base ela tem na alma dos Homens e quais leis ela segue no seu percurso histórico. (MÜLLER, 1882, p. 7).
Seis anos mais tarde, Tiele caracterizou o cientista da religião como alguém “que não conhece heresiarcas, hereges ou pagãos. Para ele, todas as formas da religião são objetos de investigação como se fossem diferentes linguagens em que a mente religiosa se articula.” (TIELE, 1899, p. 8) No mesmo espírito, Stanley A. Cook exigiu, em 1914, que um cientista da religião se abstivesse de preestabelecidas avaliações referentes à validade ou adequação de determinadas ideias. Para o autor, o pesquisador não deve perguntar “Concordamos com uma determinada crença ou um certo costume”? Em vez disso, a questão seria: os aspectos de uma religião estudados são “elementos genuínos” e representam “uma parte integral da vida e do pensamento do contexto em que aparecem?” Norteado dessa maneira, o pesquisador se protege da tentação de “condenar, obscurecer ou refutar dados que coincidentemente ofendem nossas atuais sensações e simpáticas religiosas”. (COOK, 1914, p. xii)
Como as referências indicam, a exigência ao cientista da religião – de colocar suas paixões, preferências, antipatias e aversões entre parênteses –, faz parte da tradição da segunda ordem da nossa disciplina desde sua fase inicial. Ao mesmo tempo, os então protagonistas da Ciência da Religião apresentaram sua disciplina preferencialmente como um empreendimento comparativo, como já indica o frequente uso da correspondente nomenclatura da nossa área (Comparative Religion [JORDAN, 1905], Vergleichende Religionsforschung [SAUSSAYE, 1898], Vergleichende Religionswissenschaft [MÜLLER, 1876]). A seguinte citação joga uma luz nas preocupações implícitas nessas nomenclaturas:
‘Quem conhece apenas uma [religião], não conhece nenhuma’. Esse ditado provém originalmente do fundador da Ciência da Religião como disciplina universitária, do indólogo e linguista Friedrich Max Müller, e representa uma espécie de uma programática desta disciplina [...]. A significância de religiões não se pode deduzir pela ocupação [do pesquisador] com apenas uma única religião [...], mas demanda a investigação cautelosa de diversas tradições religiosas. (AHN et. al., 2015, p. 21)
Até hoje, o estudo transversal e comparado de religiões representa uma das ambições mais específicas da Ciência da Religião. Por essa razão, ela conta como o quarto aspecto constitutivo da tradição da segunda ordem da nossa disciplina. Desse ponto de vista, Kitagawa tem razão quando acusa colegas especializados em uma única tradição religiosa de “miopia acadêmica”. (KITAGAWA, 1968, p. 197-198).
A quinta constituinte da tradição da segunda ordem da Ciência da Religião é uma função direta do quarto elemento e, como outros constituintes já mencionados, tem sido articulada desde cedo na evolução da nossa disciplina. Um exemplo é o raciocínio de Edward Craig que abre seu livro The Evolution of Religion, publicado em 1899, com uma reflexão sobre “a possibilidade de uma Ciência da Religião”. Nesse primeiro capítulo, o autor contextualiza nossa disciplina no então universo acadêmico apontando para dois processos intelectuais simultâneos fundamentais para qualquer ciência moderna, ou seja, o estudo de fatos e as interpretações conceituais dos mesmos. Segundo Caird, essas duas operações são também programáticas da Ciência da Religião, que não se deve contentar com a observação e descrição de elementos específicos de religiões concretas, mas também deve se esforçar para descobrir regras, ordem e razão naquilo que, “à primeira vista, parece acidental, caprichoso e sem sentido”. (CAIRD, 1899, p. 1) Outra referência de mesmo tipo é tirada do livro de Widgery lançado em 1923, em que o autor adverte que uma mera vistoria de fatos religiosos não qualifica a Ciência da Religião. Esta última exigiria, como segundo passo, que os dados levantados fossem submetidos a análises sistemáticas em prol do descobrimento de princípios da conexão entre as religiões e seus elementos. (WIDGERY, 1923, p. 14). A mais conhecida explicitação da complementariedade dessas duas atividades intelectuais encontra-se na tese de livre docência de Joachim Wach, publicada em 1924 e dedicada à fundamentação metateórica da Ciência da Religião. (WACH, 1924) Conforme o autor, as operações no interior da nossa disciplina podem ser categoricamente diferenciadas entre esforços intelectuais históricos e sistemáticos. Enquanto os primeiros reconstroem o desenvolvimento e o status atual de religiões singulares, os segundos têm um caráter transversal e identificam, no material, coincidências e divergências entre os diferentes sistemas religiosos no mundo. Por meio desse ramo, a Ciência da Religião realiza-se como a disciplina comparada tratada no parágrafo anterior. O fato de a subdivisão de nossa disciplina sugerida por Joachim Wach repercutir nas ofertas universitárias da nossa área no mundo inteiro comprova o caráter identitário dessa organização no interior da nossa disciplina.
A pesquisa tanto de religiões singulares quanto o estudo transversal das religiões no plural exige do cientista da religião uma competência multidisciplinar. A apropriação de abordagem e a adoção de procedimentos oriundos de outros contextos acadêmicos no horizonte integrativo da Ciência da Religião disciplinas têm sido enfatizados desde a fase fundante da Ciência da Religião e representam, portanto, o sexto elemento da nossa tradição da segunda ordem, comprovada pela literatura de longa data. Desde cedo também tem sido consensual que as incorporações de abordagens e insights de outros campos de estudo não invalidam a reivindicação de autonomia da Ciência da Religião.
Michael Pye (2017), por exemple, caracteriza nossa disciplina como um quadro integrativo em termos metodológicos, e esta afirmação dá continuidade a reivindicações articuladas há décadas. Tiele, para citar mais uma vez sua publicação de 1899, classificou os diferentes campos de estudos da religião como “disciplinas preparatórias” das quais a Ciência da Religião se apropriaria de “maneira própria”. (TIELE 1899, p. 12-13) O mesmo papel auxiliar foi cogitado por Hershey Sneath no seu comentário introdutório ao livro de Hopkins quando ele escreveu, em 1918, que em nenhum momento da história, a religião foi pesquisada de maneira tão cautelosa e abrangente do que nas três décadas imediatamente anteriores. Entre as disciplinas que contribuíram para esse estudo, encontram-se a História, a Antropologia, a Psicologia e a Sociologia. (SNEATH, 1918, p. i).
Levando a sério essa relação “tradicional” entre disciplinas “assistentes”, por um lado, e a Ciência da Religião como horizonte disciplinar principal, por outro, Walter Capps, nosso advogado do conceito da tradição da segunda ordem, reiterou:
A dependência da Ciência da Religião das contribuições originárias de outros campos acadêmicos e disciplinas não faz com que a Ciência da Religião seja parasítica. Ela adaptou esses materiais e métodos aos seus objetivos e propósitos, ao mesmo tempo em que manteve sua relação simbiótica com outros campos e disciplinas. [...] Muitos desses métodos e materiais eram acessíveis antes da fundação da Ciência da Religião, mas não a combinação e nem a maneira como eles foram integrados. O que é novo são os arranjos, as inter-relações, a dinâmica com a qual métodos e conteúdos foram unidos, bem como os focos e intenções intelectuais específicos. (CAPPS, 1995, p. 290)
O sétimo elemento da tradição da segunda ordem da Ciência da Religião tem a ver com o fato de a idealização e a identificação de alteridades desempenharem um papel importante para a construção da identidade corporativa e a geração do compromisso de cada integrante do grupo com as normas que regulamentam as interações entre os membros da comunidade. Nesse sentido, a Ciência da Religião está submetida à mesma dinâmica que qualquer outro segmento do mundo acadêmico. Em outras palavras: “disciplinas acadêmicas podem ser entendidas como tribos com territórios próprios, que são protegidos de forasteiros e investidos com poder e significado para os seus internos” (KNOTT, 2007, p. 174). Desde cedo, a Teologia se tornou a referência “negativa” predileta da Ciência da Religião. Jordan, na parte do seu livro de 1920 em que reflete sobre “ganhos, necessidades e tendências” (JORDAN, 1920, p. 115-146), exemplifica essa retórica ao afirmar que o pertencimento de um cientista da religião a uma comunidade de fé lhe traz desvantagens porque o “homem pensante” consideraria uma conexão deste tipo com suspeita, se soubesse que representantes das respectivas instituições apenas desdobram posições oficiais, isto é, “uma determinada autorizada interpretação de um dado livro sagrado”. (JORDAN, 1920, p. 131) Por isso, Jordan defende a criação das cátedras próprias, emancipadas de controle denominacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O levantamento de denominadores comuns que norteiam o trabalho coletivo de cientistas da religião não é um fim em si. É um pré-requisito para a geração e manutenção de uma consciência coletiva em prol da coesão entre pesquisadores individuais que habitam o mesmo segmento do mundo acadêmico. Segundo Walter Capps, empreendimentos intelectuais coletivos não suportados por essa consciência coletiva não se qualificam como atividades associadas a campos científicos. Apenas operações acadêmicas que exponham uma tradição da segunda ordem podem ser consideradas manifestações de uma disciplina. (CAPPS, 1995, p. 15)
A sobrevivência de tradições da segunda ordem em longo prazo é uma função do cultivo contínuo dessas heranças acadêmicas. Nesse sentido, uma tradição da segunda ordem assemelha-se a um sistema autopoiético que “reproduz os seus elementos e suas estruturas dentro de um processo operacionalmente fechado com ajuda dos seus próprios elementos”. (MATHIS, s.a., p. 3-4) Isso significa que uma tradição da segundo ordem apenas existe enquanto os herdeiros desse legado intelectual a mantêm viva por meio da comunicação entre si. Caso contrário, uma tradição da segunda ordem cai no esquecimento. É por esse motivo que discursos de professores administrativamente associados a um programa de Pós-Graduação de Ciência da Religião que confessem, em sala de aula ou em uma mesa redonda, falta de clareza sobre o perfil da nossa disciplina, são tão preocupantes.
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Autor notes