Dossiê

Explicar e Compreender: a querela em torno do procedimento epistemológico próprio da Ciência da Religião

Explain and Understand: the quarrel around the epistemological procedure proper to the Religious Studies

Fabiano Victor CAMPOS *

Explicar e Compreender: a querela em torno do procedimento epistemológico próprio da Ciência da Religião

Interações: Cultura e Comunidade, vol. 13, núm. 23, pp. 38-72, 2018

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Resumo: Este artigo visa abordar a questão da polaridade dicotômica entre explicação e compreensão como um problema subjacente às reflexões epistemológicas que perpassam a Ciência da Religião. Analisando as origens históricas do debate entre explicação e compreensão enquanto respectivos procedimentos epistemológicos próprios das Ciências da Natureza e das Ciências Humanas, o autor procura mostrar de que modo a Ciência da Religião frequentemente se posicionou em face dessa querela epistemológica, bem como as consequências de sua opção ante esse problema, no que tange aos próprios resultados de suas pesquisas e no que concerne à sua própria autocompreensão enquanto área do saber. Entende que as preocupações, de caráter propriamente epistemológico, dos cientistas da religião, ou seja, seus esforços metateóricos para que a Ciência da Religião consolide cada vez mais a sua reputação científica, impõem a necessidade de não eludir a tarefa de enfrentar essa problemática. Por essa razão, apresenta, enfim, as contribuições da Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur para dirimir a polaridade dicotômica entre explicação e compreensão no interior da Ciência da Religião.

Palavras-chave: Explicar, Compreender, Epistemologia, Ciência da Religião, Paul Ricoeur.

Abstract: This article aims to address the dichotomous polarity between explanation and understanding as a problem underlying the epistemological reflections that pervade Religious Studies. Analyzing the historical origins of the debate between explanation and understanding as the respective epistemological procedures proper to the Sciences of Nature and Human Sciences, the author tries to show how Religious Studies often stood in the face of this epistemological quarrel, as well as the consequences of its option to this problem, with regard to the results of their own research and their own self-understanding as an area of knowledge. He understands that the preoccupations of its epistemological character, by cientists of religion, that is, their metatheoretical efforts to make Religious Studies increasingly consolidate their scientific reputation, impose the necessity of not avoiding the task of confronting this problematic. For this reason, it presents, finally, the contributions of Paul Ricoeur’s Hermeneutic Phenomenology to resolve the dichotomous polarity between explanation and understanding inside the Religious Studies.

Keywords: Explain, Understand, Epistemology, Religious Studies, Paul Ricoeur.

INTRODUÇÃO

Uma clássica distinção separa o domínio das disciplinas comumente reconhecidas científicas em três setores distintos, diferenciados ao menos pela natureza de seus objetos de pesquisa: as Ciências Formais Puras, as Ciências da Natureza ou Ciências Naturais e as Ciências Humanas, também conhecidas pelos nomes de Humanidades, Ciências do Homem e Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften)[1]. A distinção entre aquelas primeiras e as outras duas, que supõem um conteúdo que não seja meramente formal, parece ser dificilmente contestável. Já a questão acerca da distinção entre as Ciências Naturais e Ciências Humanas é bastante controversa. Tradicionalmente, ela tem sido vista como representada pela distinção entre explicação e compreensão, ambas entendidas como estratégias heurísticas e epistêmicas, de modo que às Ciências da Natureza caberia explicar objetos, ao passo que às Humanidades estaria reservada a tarefa de entender ou compreender o sujeito humano em suas múltiplas dimensões: social, política, psíquica, e assim por diante.

Herdado da hermenêutica clássica, esse longo e complexo debate entre explicar e compreender também influenciou e impactou metateorias em Ciências da Religião, de modo que essa área do saber, comumente situada no âmbito das Ciências Humanas, foi mormente entendida como um tipo de saber interpretativo e em cujo bojo de análises não caberia falar propriamente em explicação com caráter científico. Por essa razão, partimos, neste texto, do pressuposto de que as preocupações de caráter epistemológico dos cientistas da religião, ou seja, seus esforços para que a Ciência da Religião consolide cada vez mais a sua reputação científica, impõem a necessidade de não eludir a tarefa de enfrentar o debate acerca da oposição dicotômica entre o explicar e o compreender enquanto procedimentos epistemológicos próprios às Ciências da Natureza e às Ciências Humanas, respectivamente.

Neste texto, traçaremos, pois, o seguinte itinerário de análise: na primeira seção, buscaremos apresentar situar a problemática num contexto mais amplo, identificando as origens históricas do debate entre explicação e compreensão enquanto respectivos procedimentos epistemológicos das Ciências da Natureza e das Humanas. Num segundo momento, buscaremos mostrar como esse debate atravessou as considerações de ordem metateórica e epistemológica em Ciência da Religião, ou seja, procuramos esclarecer de que modo a Ciência da Religião frequentemente se posicionou em face dessa querela epistemológica, bem como as consequências de sua opção ante esse problema, no que tange aos próprios resultados de suas pesquisas e no que concerne à sua própria autocompreensão enquanto área do saber. Por fim, procuraremos identificar e apresentar as contribuições da Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur para dirimir a polaridade dicotômica entre explicação e compreensão. Trata-se de criticar e apaziguar, a partir da leitura ricoeuriana, a polaridade dicotômica entre compreensão e explicação, evidenciando quais são os contributos de uma concepção dialética entre esses dois atos explicativos para os estudos realizados em Ciência da Religião.

Com efeito, os debates acerca dos conceitos de explicação e compreensão apresentam amplas e complexas dimensões epistemológicas, mas também filosóficas. Por essa razão, de modo algum temos a pretensão de resolver o problema neste artigo. Todavia, julgamos ser possível ao menos levantar e defender a hipótese de uma certa relativização da polaridade dicotômica à qual alguns teóricos nos acostumaram. Vê-se, assim, que o nosso propósito, neste texto, não é o de erigir uma tipologia da interpretação, à maneira de um Emilio Betti (1955)[2], por exemplo. Trata-se, antes, de reconhecer e mostrar, a partir da fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur, a radical indissolubilidade entre o explicar e o compreender e, consequentemente, apresentar os contributos desse modo de pensar para a própria compreensão epistemológico-metodológica dos estudos de religião.

A escolha do referencial teórico que norteará o presente texto não é aleatória nem furtiva. Com efeito, sabe-se que autores diversos – alguns, inclusive, emergentes do próprio interior da Ciência da Religião enquanto área de conhecimento –, têm refletido sobre esta problemática. Um deles é o professor Jeppe Sinding Jensen (2009; 2011), do Departamento de Cultura e Sociedade da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Jensen (2011, p. 46) entende que “interpretações e explicações são atividades mutuamente compatíveis”. Para ele, “cientistas nas ciências ‘puras’, obviamente, procuram explicar ‘o mundo’, mas também interpretar evidências, validações e hipóteses. Da mesma forma, a interpretação inclui geralmente uma medida de explicação”, acrescenta ainda o autor (JENSEN, 2011, p. 46-47). Todavia, trata-se, neste texto, de ir além dessa tese, mostrando, com base nos estudos de Paul Ricoeur, que entre o ato explicativo e o interpretativo há uma completa indissolubilidade, para além de uma mera compatibilidade entre ambos. Ou seja, afirma-se, neste artigo, que o explicar e o compreender não são apenas compatíveis, mas absolutamente inseparáveis. Entre os dois atos, há uma relação de conexão necessária, e não apenas uma ligação possível.

Cabe sublinhar, por outro lado, que não desconhecemos a teoria gadameriana da hermenêutica e muito menos menosprezamos o seu contributo para repensar a problemática que ora nos interessa. De fato, a sua continuidade do pensamento heideggeriano, bem como a sua tentativa de afastar-se da grande tradição hermenêutica e da filosofia da história do idealismo alemão de Schleiermacher até Dilthey, nos parecem desembocar num caminho profícuo para refutar a separação dicotômica entre explicação e compreensão, tal como objetiva o próprio Gadamer. Todavia, por questões de recorte teórico e com vistas a satisfazer à exigência de brevidade que um artigo nos impõe, deixaremos para um outro momento o diálogo com o pensamento do filósofo alemão contemporâneo.

1. Origens históricas do debate entre explicação e compreensão

É recente a questão relativa à polaridade dicotômica entre explicação e compreensão enquanto procedimentos epistemológicos[3] próprios às Ciências da Natureza e às Ciências Humanas, respectivamente. Se pensarmos em termos de história humana, de há pouco é que essa temática alcança um ponto realmente crítico. Mais precisamente, é apenas no século XIX que ela adquire uma problematicidade que não lhe fora conferida antes.

De fato, já na Antiguidade Aristóteles (1992, p. 25) levantara um problema análogo, ao menos em termos de gênero, quando advertira em sua Ética a Nicômacos: “[...] devemos buscar em cada classe de coisas a precisão compatível com o assunto, e até o ponto adequado à investigação”, de modo que não há que “insistir em chegar à precisão em tudo indiscriminadamente” e “tampouco indagar qual é a causa de tudo de maneira idêntica”, de forma que “em algumas circunstâncias basta que o fato seja bem fundamentado”. Desta sorte, o rigor da ciência, para o pensador antigo, não era compreendido em termos de univocidade, mas de analogia: a seus olhos, ele era determinado em função da natureza do objeto a ser conhecido. Para o Estagirita, um espírito bem formado pela paideia (educação ou instrução), um pepaideuménos, trata as ciências, isto é, os saberes ou conhecimentos, com o rigor (akribés) – no sentido de precisão, exatidão, ou ainda, grau ou nível de certeza, segundo os termos tomasianos – que compete atribuir a cada qual e que é exigido por cada uma delas segundo a própria natureza do objeto em questão. Tendo em vista essas considerações, poder-se-ia julgar encontrar nos textos de Aristóteles uma primeira apologia em favor da diferenciação e da hierarquização dos métodos próprios a cada espécie de saber científico. Todavia, esse gesto apologético do Estagirita não foi suficiente para engendrar uma crise da epistemologia. Em primeiro lugar porque, para Aristóteles, essa diferenciação de modo algum representava um problema, haja vista a perspectiva unitária do saber presente em seus escritos. Em segundo lugar, como bem assinala Ricoeur (1975, p. 12-13), de cujas reflexões nos valemos sobremodo neste tópico, foi preciso que duas condições fossem satisfeitas para que o ponto crítico do problema fosse atingido na contemporaneidade. Cumpre-nos, pois, explicitarmos quais foram as razões para que a diferença entre os dois atos intelectivos, o explicar e o compreender, adquirisse uma amplitude tal que passasse a ser concebida em termos não mais de diferenciação apenas, mas de separação, oposição e dicotomia.

Em primeiro lugar, foi preciso que a exigência de universalidade do método matemático-experimental se impusesse com todo o seu vigor e com toda a sua força, primeiramente às Ciências da Natureza e, posteriormente, às Ciências Humanas. Mas essa primeira condição, por sua vez, só foi preenchida progressivamente. Suas principais etapas, ainda segundo Ricoeur, foram: a matematização da natureza com Galileu e Descartes; depois, a unificação das leis naturais mediante o princípio de inércia e das leis de Newton, o que nos levou a falar da natureza como de uma única natureza; a extensão do método experimental às ciências da vida[4] ou biociências, as quais hoje compreendem as disciplinas científicas que envolvem o estudo dos organismos vivos, tais como as plantas, os animais e os seres humanos, bem como as questões relacionadas a essas disciplinas, a saber, aquelas oriundas da bioética, da biotecnologia e da biologia molecular, por exemplo; e, por fim, a constituição das chamadas Ciências Humanas que, com a prerrogativa de se manterem fieis ao ideal de cientificidade moderno, se arvoraram sob a égide epistêmico-metodológica das Ciências da Natureza. Numa palavra, foi preciso que se unificasse a própria epistemologia numa única teoria lógico-matemática. Ora, essa aliança entre epistemologia, lógica, matemática e empirismo se exprimiu no positivismo lógico do Círculo de Viena, no atomismo lógico de Russel e na filosofia analítica anglo-americana, recebendo foros de nobreza filosófica aí nesses domínios. Ao termo desse movimento, pôde-se então proclamar e reivindicar a universalidade do saber matemático-experimental não apenas na sua forma lógica, mas também no que diz respeito aos seus conteúdos e aos seus lugares de aplicação[5].

A segunda condição para que surgisse o conflito supramencionado era a de que as Ciências Humanas atingissem um nível não apenas de desenvolvimento, mas também de consciência metodológica distinta em relação às Ciências da Natureza. Segundo Ricoeur (1975, p. 13), alguns fatores históricos foram fundamentais para o desencadeamento desse processo de conscientização distinta: foi preciso, segundo ele, o nascimento da historiografia de Ranke na Alemanha, da linguística e da filologia a partir de Von Humbolt, Rast e Grimm, da antropologia social com Tylor, dentre outros eventos, para que pudesse ser formulada uma reação antipositivista, em estreita ligação com a própria história da hermenêutica.

Enfim, esse duplo movimento, que acarretou o distanciamento entre as duas atitudes fundamentais, o explicar e o compreender, e instaurou a polaridade dicotômica entre a metodologia das Ciências da Natureza e a das Ciências Humanas, encontrou na reflexão filosófico-hermenêutica de Dilthey as condições necessárias para a sua formulação e sistematização teóricas. Ora, para escapar à alternativa entre positivismo e ceticismo, Wilhelm Dilthey (1833-1911) propôs falar, metodologicamente, de compreensão[6] nas Ciências Humanas, em oposição à explicação enquanto procedimento epistemológico próprio das Ciências da Natureza. À explicação objetiva das Ciências da Natureza opor-se-ia a interpretação/compreensão subjetiva das Ciências Humanas. Nos termos de Ricoeur,

Dilthey chamava explicação ao modelo de inteligibilidade recebido das ciências da natureza e estendido às ciências históricas pelas escolas positivistas e fazia da interpretação[7] uma forma derivada da compreensão, na qual ele via a atitude fundamental das ciências do espírito, a única capaz de respeitar a diferença fundamental entre estas ciências e as ciências da natureza. (RICOEUR, 1986, p. 137).

Tratava-se, pois, para Dilthey, de “fazer justiça ao conhecimento histórico” contra a concepção positivista da história e de “dotar as ciências do espírito de uma metodologia e de uma epistemologia tão respeitáveis quanto aquelas das ciências da natureza” (RICOEUR, 1986, p. 82). Segundo essa lógica, a episteme[8] das Ciências da Natureza seria, pois, eminentemente explicativa, ao passo que a das Ciências Humanas ou Humanidades seria compreensiva ou interpretativa. É, pois, na reflexão filosófico-hermenêutica diltheyana que, aos olhos de Ricoeur, se situa a origem da formulação dessa antinomia ou dualidade entre o explicar e o compreender. Para o filósofo francês, em Dilthey a distinção entre essas duas atitudes fundamentais constituía uma alternativa na qual uma deveria excluir a outra. Assim, as ciências ora seriam explicativas, ao jeito do sábio naturalista, ora interpretativas, à maneira do historiador. De fato, Dilthey, que segundo Gadamer (1977, p. 600) “fez soar a hora filosófica da hermenêutica”[9], defendeu o ideal de alcançar um conhecimento objetivo nos estudos históricos, os quais, para ele, podiam ser designados como “ciências”, embora apenas sob o epíteto “Ciências do Espírito” (Geisteswissenschaften). Desta sorte, à região da natureza, constituída pelos objetos oferecidos à observação científica e submetidos, desde a teoria de Galileu Galilei, ao trabalho de matematização e, desde John Stuart Mill, aos cânones da lógica indutiva, opor-se-ia o domínio do espírito, formado pelas individualidades psíquicas nas quais cada psiquismo é capaz de se movimentar. A compreensão, segundo esta perspectiva, seria essa espécie de deslocamento ou de “transferência em um psiquismo alheio”, estrangeiro, distinto e outro em relação ao próprio eu (RICOEUR, 1986, p. 143).

O que Dilthey procurou fazer foi conferir à compreensão uma respeitabilidade científica de igual nível àquela da explicação. A questão que ele afrontou foi aquela relativa às condições de possibilidade das Ciências do Espírito, questão essa que “nos conduz ao seio da grande oposição, que atravessa toda a obra de Dilthey, entre a explicação da natureza e a compreensão do espírito” (RICOEUR, 1986, p. 82-83). Perguntar, pois, se é possível a existência de Ciências do Espírito é questionar sobre a possibilidade uma “consciência científica dos indivíduos, se esta inteligência do singular pode ser objetiva à sua maneira, se ela é suscetível de receber uma validade universal” (RICOEUR, 1986, p. 143). A resposta diltheyana não poderia ser outra que a positiva, pois, para ele, o interior se manifesta em sinais exteriores, aptos a serem percebidos e compreendidos enquanto sinais ou signos de um psiquismo diverso, outro, diferente. “Chamamos compreensão”, diz o pensador alemão no célebre artigo de 1900 sobre a origem da hermenêutica, “ao processo pelo qual conhecemos alguma coisa de psiquismo com a ajuda de sinais sensíveis que constituem a sua manifestação” (DILTHEY, 1900, p. 320). Dentre esses sinais, acrescenta o filósofo alemão, temos as “manifestações fixadas de modo duradouro”, os “testemunhos humanos conservados pela escrita”, os “monumentos escritos”, sendo a interpretação a arte de compreender aplicada a essas diversas formas de manifestações psíquicas, de modo a nos permitir aceder ao psiquismo alheio. Assim, de um lado teríamos o domínio dos fatos e, de outro, um domínio dos signos ou sinais; a este último, no entanto, Dilthey não se cansou de reivindicar uma certa objetividade científica, com vistas a pô-lo em pé de igualdade com aquele primeiro, em termos de legitimidade. Ora, é precisamente neste ponto que o filósofo francês vê Dilthey enredado no ideal de objetividade aclamado e reivindicado pela própria escola histórica contra a qual Dilthey levantara diversas críticas. Ricoeur (2007, p. 196, nota 8) sublinha o fato de Wilhelm Dilthey continuar sendo “o herói da resistência das ciências ditas do espírito à absorção das ciências humanas pelas ciências naturais”. Adverte, todavia, que “a prática efetiva das ciências históricas convida a uma atitude mais ponderada e mais dialética”.

De fato, para Dilthey, a compreensão não é oriunda de uma introspecção subjetiva ou de uma mera especulação filosófica. Para ele, a compreensão tem uma face objetiva, pois nasce dos produtos humanos na história. Isso significa que, aos olhos diltheyanos, toda manifestação do espírito humano apresenta um sentido mais amplo e objetivo, não sendo, portanto, meramente subjetiva, justamente por se situar no domínio do espírito (Geist) ou da cultura. Segundo a reflexão diltheyana, o conhecimento objetivo, isto é, o conhecimento objetivamente válido, implica o alcance de um ponto de vista superior à história, a partir do qual poder-se-á olhar a própria história. Mas o homem finito, por seu próprio caráter histórico, vê e compreende sempre a partir da sua perspectiva mundana, que é sempre situada no tempo e no espaço; não pode alçar um sobrevoo e pairar acima da relatividade da história para então obter, assim, um conhecimento objetivamente válido.

Elucidadas, pois, as razões históricas para que a querela epistemológica entre o explicar e o compreender se instaurasse e viesse à tona, compete-nos, agora, refletir sobre a questão da polaridade entre compreensão e explicação como um problema subjacente às reflexões epistemológicas que perpassam a Ciência da Religião enquanto uma área do saber relativamente recente na história do pensamento humano.

2 A Ciência da Religião em face da querela epistemológica entre explicação e compreensão

A Ciência da Religião nasce no contexto da “modernidade filosófica pós-cartesiana” (VAZ, 1991, p. 164-165) e é no âmbito dessa modernidade que se assentam os seus pressupostos epistemológicos. De fato, a gênese da Ciência da Religião remonta aos fins do século XVII e ao início do século XVIII, no clima de afirmação do deísmo e do iluminismo. Mas a sua institucionalização propriamente dita se dá apenas no século XIX, com a criação da primeira cátedra da área na Suíça, em 1873. Posteriormente, foi se firmando em outros países como Holanda, França, Bélgica e Alemanha (PYE, 2001, p. 26).

Dada, pois, essa considerável trajetória histórica já percorrida, cabe notar que reflexões de natureza epistemológica não constituem nenhuma novidade em Ciência da Religião. De fato, desde cedo os arautos e protagonistas desse campo do saber se viram comprometidos com o enfrentamento de questões metateóricas. Dentre elas, algumas constituíram alvo de discussões e críticas mais acaloradas, ao passo que outras persistem até hoje enquanto objeto de reflexão dos bem-pensantes.

Uma das reflexões de cunho metateórico no seio da Ciência da Religião pode ser expressa nos termos do problema concernente à polaridade dicotômica entre explicação e interpretação no terreno da ciência moderna. Com efeito, como vimos, o procedimento epistemológico das Ciências da Natureza foi comumente definido em termos de explicação, que se pretendeu opor à compreensão enquanto modo de agir inerente às Ciências do Espírito. Ou seja, essa dicotomia entre explicação e interpretação, ambas concebidas como estratégias heurísticas e epistêmicas, foi tradicionalmente entendida como representando, respectivamente, as diferenças entre as Ciências da Natureza, que explicam objetos, e as Ciências Humanas, que compreendem ou interpretam sujeitos. Radicada no seio das Ciências Humanas, fossem estas vistas como “da Cultura” ou “do Espírito” (Geisteswissenschaften), a Ciência da Religião não tardou, pois, a ser relegada ao rol dos saberes de caráter meramente compreensivo. Desta sorte, para muitos estudiosos da religião até a década de 1970, movidos sob a influência de pensadores como Wilhelm Dilthey e Edmund Husserl, a Ciência da Religião seria mormente interpretativa, em clara oposição aos procedimentos explicativos intrínsecos às Ciências da Natureza. À mesma época, essa perspectiva dicotômica foi endossada por pensadores como Jung, Campbell e Eliade, que enfatizaram o redimensionamento dos estudos de religião para os aspectos simbólicos e míticos. Assim, quer fosse considerada como parte das “humanidades”, quer fosse entendida como uma ciência em sentido mais estrito, seguindo alguns padrões peculiares às Ciências Naturais, a Ciência da Religião, adotando a perspectiva antagônica entre explicar e compreender, seria inelutavelmente arrastada a aporias incontornáveis: ora reduzir-se-ia ao status de uma ciência interpretativa ou meramente hermenêutica, ora o procedimento epistemológico de seu corpus de conhecimentos encerrar-se-ia numa descrição dos fenômenos observados. Elucidadas, portanto, algumas questões decorrentes da compreensão da Ciência da Religião à luz da dicotomia entre o explicar e o compreender, convém agora nos debruçarmos sobre as críticas a esse tipo de compreensão.

Já na década de 70 do século passado, essa rígida dicotomia entre explicação e compreensão, consagrada pelo culturalismo, fora reconhecida como inadequada para exprimir a estrutura fundamental do ato do conhecimento científico. A necessária superação dessa perspectiva foi particularmente sublinhada por Jean Ladrière (1972; 1974a; 1974b)[10]. De fato, uma questão decorrente dessa querela epistemológica pode ser enunciada da seguinte forma: as ciências, as naturais e as humanas, constituem um único e contínuo campo do saber ou há entre elas uma certa descontinuidade, sobretudo quando se passa de um tipo a outro modo de abordagem?

Mas no âmbito específico da Ciência da Religião essa tese também foi e ainda é alvo de condenações diversas. Não constitui a nossa intenção, neste texto, retomar todos os argumentos e explicitar a contestação que tais autores dirigem à supramencionada questão. Todavia, a título de exemplo, podemos traçar um breve mapeamento de tais críticas. Dentre as mais recentes, destacam-se as de Jensen (2009)[11], Robert Segal (2006) e Donald Wiebe (1998) [12], os quais sugerem que abordagens explicativas respondem de melhor maneira a perguntas típicas dos estudiosos da religião, como aquelas relativas à origem, ao papel, ao sentido e à verdade da religião. Para esses autores, a Ciência da Religião encontra-se alicerçada em paradigmas oriundos de abordagens científico-sociais da religião, empíricas, indutivas e causais, o que implica em reduzir o objeto de estudo em componentes mais básicos, em si mesmos não religiosos, mas sociais, psicológicos e assim por diante. Evidentemente, é contra esse tipo de redução explicativa do vivido religioso a múltiplas dimensões da cultura, da sociedade e do humano, que Eliade e seus sequazes não tardaram a se contrapor, ao enfatizarem o aspecto sui generis da religião e da ciência que a estuda. Como bem sublinha Cruz (2013, p. 43), muito da resistência ao ato de explicar no âmbito dos estudos desenvolvidos e enfeixados sob o título de Ciência da Religião decorre de uma visão antiquada, estreita e inadequada – reducionista, diríamos – com relação a esse ato, levando à suposição de que toda a riqueza do religioso seria por ele minada. Os arautos de tal postura são tomados pelo receio ou escrúpulo de ver o religioso reduzido a fatores e causas sociais, culturais, psicológicas, humanas, dentre outras. Nesse sentido, explicar o fato ou fenômeno religioso equivaleria a esvaziá-lo de toda a sua riqueza e de seu sentido originais, os quais apontariam, sobretudo para os que acreditam numa dimensão sui generis da religião, para a dimensão ou origem transcendente da realidade explicada, reduzindo-a ora a um mero fato da cultura e da sociedade, ora a um simples produto da mente humana. É, pois, contra tais reducionismos que se insurgem os que, por um temor quiçá excessivo, julgam dever banir, de uma vez por todas, o ato explicativo dos estudos sobre religião.

Essa posição, entretanto, não resiste ao mais ligeiro exame que se faça dos que os cientistas da religião escrevem. Esses, por sua vez, não hesitam em proclamar, constantemente, que estão a “lançar luz” sobre a realidade observada ou a “esclarecer” aquilo a respeito de que falam. A despeito de suas objeções, seus discursos encontram-se amplamente entremeados de expressões explicativas, tais como “posto que”, “portanto”, “porque”, “haja vista que...”. Por conseguinte, nos parece que, em Ciência da Religião, mais se explica do que realmente comumente se admita fazê-lo.

Tais autores negam que devam dar qualquer espécie de explicação enquanto cientistas da religião. A Ciência da Religião, afirmam eles, destina-se apenas a descobrir e, em última instância, a relatar ou a descrever o que se observa, e isso da maneira mais “fidedigna” possível em relação ao fato observado. Tudo se passa como se a realidade estivesse lá, de um lado, e o cientista da religião, enquanto sujeito do conhecimento, de outro lado, fosse capaz de lançar sobre a realidade um olhar isento de pressupostos, preconcepções, teorias, enfim, de uma pré-compreensão de mundo que, na realidade, permite ao pesquisador achegar-se ao fenômeno.

De modo geral, o ato de explicar é entendido sob a forma de um responder à pergunta “por que”, por meio de uma relativa variedade de utilizações do conector “porque” (ANSCOMBE, 2000). Para aqueles que adotam uma orientação de cunho positivista, o conceito de explicação seria neutro em relação à matéria a que se refere, ou seja, seria necessariamente o mesmo, seja qual for o campo ao qual a explicação se refere. De fato, o ato explicativo implica a decomposição do complexo em unidades cada vez mais simples, bem como em referir o desconhecido ao já conhecido. Mas isso não significa reduzir o religioso a causas sociais ou psicológicas apenas, como defendem alguns autores[13]. Nessa perspectiva, Wiebe (1998) defende a tese de que, em Ciência da Religião, é fundamental o exercício do explicar. O traço característico do ato explicativo realiza-se sob a forma de uma decomposição do complexo em termos mais simples, referindo-se o aspecto até então desconhecido ou obscuro ao já conhecido e descrito. Trata-se, a seu ver, de expor adequadamente o que está sendo estudado, ou seja, da necessidade de clarificar, de expor os componentes constituintes de uma realidade, de evidenciar as partes de um todo e, a um só tempo, de melhor perceber o conjunto, ao reunir as partes analisadas separadamente.

Por outro lado, cabe notar que muito do recalcitramento ao ato de explicar em Ciência da Religião decorre de uma visão estreita e reducionista acerca da natureza desse ato[14], visão essa geralmente ancorada no modelo nomológico-dedutivo do ato explicativo, de Carl Hempel (1905-1997), filósofo alemão que legou importantes contribuições para a Filosofia da Ciência. Ora, o modelo nomológico-dedutivo de explicação científica de Carl Hempel, foi apresentado pela primeira vez em 1948, na obra Studies in the Logic Of Explanation, assinada por Hempel e Paul Oppenheim, e desenvolvido em vários artigos e livros posteriores. Segundo Wesley Salmon (2006), o modelo de explicação científica de Hempel implica um divisor de águas, a saber, a separação entre a pré-história e a história nas discussões modernas sobre a explicação científica. Conhecido por vários nomes, tais como “modelo de Hempel”, “de Popper-Hempel”, “de subsunção nômica”, “de cobertura legal inferencial”, dentre outros, ou simplesmente modelo “N-D” (abreviatura de nomológico-dedutivo), o modelo de explicação científica de Hempel apresenta a estrutura de um argumento dedutivo, conferindo um importante papel às leis[15] científicas no padrão explicativo. O essencial desse modelo de explicação científica é que ele explica um determinado fato mostrando que esse fato é um caso particular de uma lei geral – daí o sentido do termo grego nomos, lei, donde nomológico –, e faz isso mostrando que o fato em questão pode ser deduzido da lei geral. Nesse sentido, o fato analisado apresenta-se como consequência lógica da lei à qual ele obedece, de modo que se supõe que siga ou derive necessariamente dela. Segundo esse esquema, a ideia do explicar resume-se a uma predição[16], fundamentada numa lei geral anteriormente dada. Assim, para o modelo nomológico-dedutivo de explicação científica, aquilo que deve ser explicado pode e deve, necessariamente, ser deduzido de uma lei ou de um conjunto de leis acrescido de um conjunto apropriado de condições iniciais e contextuais. Uma explicação científica constitui, pois, segundo essa lógica, um argumento no qual as premissas (leis e condições iniciais e contextuais) explicam um fato descrito pela conclusão desse argumento. Nesse sentido, é elucidativa a seguinte afirmação de Menna:

A explicação hempeliana “abarca”, “subsume” etc. o fenômeno que trata de explicar em um padrão de uniformidades explicitado na forma de leis, mostrando que o fenômeno se segue dessas leis e de algumas condições particulares pertinentes. Em outras palavras, o modelo N-D substitui a pergunta “por que acontece o fenômeno?” pela pergunta “de acordo a que leis gerais e que condições iniciais acontece o fenômeno?” Observemos, incidentalmente, que a noção de explicação põe o peso explicativo na relação de cobertura ou subsunção que as leis das premissas exercem sobre o explanandum, e não na noção de causa. (MENNA, 2013, p. 151).

Desse modo, a ideia que subjaz ao modelo nomológico-dedutivo de explicação científica de Hempel é a de que, considerada a verdade de todos os enunciados, os do explanans, que são os enunciados de leis gerais acrescidos dos enunciados que expressam fatos relevantes do contexto da explicação, e do explanandum, que se constituem nos enunciados que descrevem os fatos que se pretende explicar, a conexão lógica entre as premissas e a conclusão ou inferência mostra que o explanans assegura a explicação do explanandum. Com efeito, geralmente não podemos ter certeza de que os enunciados do explanans sejam verdadeiros em tudo o que enunciam. Mas isso não constitui um problema para o modelo de Hempel. Isso porque “o que a condição empírica de adequação exige é que os enunciados do explanas possam ser submetidos à ‘verificação (ou testabilidade) empírica’, isto é, que possam ser confirmados por todas as informações relevantes antes de serem considerados verdadeiros” (MENNA, 2013, p. 153), e é nesse sentido que Hempel julga satisfazer as condições de conhecimento exigidas pela teoria de Popper.

Hempel acredita e alega que toda explicação científica legítima, inclusive a da História e a das Ciências Sociais, deve apresentar a forma de raciocínio nomológica-dedutiva. Todavia, cumpre-nos observar que não há um só tipo de explicação científica[17] e que o modelo nomológico-dedutivo de Hempel não é senão mais dentre os vários tipos ou paradigmas de explicação em ciência, e não a forma absoluta de explicação, aplicável a todas as outras espécies do ato explicativo. Jeppe Jensen (2011, p. 44-46), por exemplo, identifica seis tipos diferentes de explicações, desde as mais tradicionais, de raiz newtoniana, e que só seriam aplicáveis a alguns ramos das Ciências Naturais, até aquelas mais peculiares às Ciências Humanas, como as contextuais. Tal perspectiva é de certo modo corroborada por Robert McCauley (2012), que discorre sobre distintos “níveis de explicação” e enfatiza que um nível de explicação mais básico (fornecido pelas Ciências Cognitivas da Religião, segundo ele), no qual o religioso descrito já não é mais reconhecido por quem o pratica, pode e deve dialogar com outros níveis de explicação mais próximos à intencionalidade e à consciência humanas.

Evidenciada a influência que a concepção antinômica diltheyana exerceu sobre a Ciência da Religião, bem como as suas implicações para esse domínio do saber, cumpre-nos, agora, perscrutar as contribuições da Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur para dirimir essa polaridade dicotômica entre explicação e compreensão e, por fim, o que ela pode oferecer, em termos de conteúdo, para uma nova forma de compreensão e de abordagem dos próprios estudos científicos da religião.

3. As contribuições da fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur para dirimir a polaridade dicotômica entre explicação e compreensão

A princípio, cumpre-nos salientar que de modo algum temos a pretensão de promover, nesta parte do texto, uma exposição detalhada da filosofia de Ricoeur. Nosso propósito é mais modesto. Ele se restringe a apresentar a concepção dialética de Ricoeur no que tange ao problema da relação entre explicação e compreensão[18], e isso nos domínios da teoria do texto e, por conseguinte, nos terrenos da teoria da história e da ação humana, porém de modo sumário e de maneira que nos baste para lançar uma nova luz à mesma problemática, situada, porém, no âmbito específico da Ciência da Religião.

Em um texto de 1983, intitulado Sobre a interpretação, Paul Ricoeur, preocupado em definir para seus leitores anglo-saxões o locus específico de sua filosofia, declara: “[...] eu gostaria de caracterizar a tradição filosófica da qual eu me reclamo por três tratos: ela está na linha de uma filosofia reflexiva, ela permanece sob a influência da fenomenologia husserliana; ela pretende ser uma variante hermenêutica dessa fenomenologia” (RICOEUR, 1986, p. 25, grifos do autor). Essas três rubricas – filosofia reflexiva, fenomenologia e hermenêutica -, consideradas em conjunto, determinam, pois, segundo o próprio autor, as faces do seu itinerário de pensamento. Ora, ao unir a metodologia da hermenêutica à eficácia analítica da fenomenologia e, em particular, aos recursos fornecidos pela elucidação das diferentes dimensões da intencionalidade, a obra ricoeuriana pode, então, ser devida entendida como a realização efetiva do projeto de uma “fenomenologia hermenêutica”, tal como o próprio autor a caracteriza.

Numa perspectiva epistemológica, a obra ricoeuriana apresenta uma dialética entre as Ciências da Natureza, tais como a física e a química, e a fenomenologia pura das experiências vividas. De fato, Ricoeur desenvolve gradativamente uma fenomenologia hermenêutica que tem por objetivo englobar as Ciências Naturais, a interpretação dos símbolos e a linguagem simbólica. Cumpre-nos sublinhar que, ao retomar essa problemática da interpretação[19] em seu próprio seio, o movimento ricoeuriano de reflexão já recebe um estatuto reflexivo crítico oriundo das obras de Schleiermacher, Dilthey, Gadamer e Heidegger.

Para Ricoeur, a dicotomia tradicional entre Naturwissenschaften (Ciências Naturais) e Geisteswissenschaften (Ciências do Espírito) se situa tanto no nível epistemológico quanto no plano ontológico. No domínio epistemológico, a polaridade se manifesta sob a forma de uma dicotomia entre a explicação, tomada no sentido da explicação causal própria das Ciências Naturais, e a compreensão que, para Dilthey, concerne à compreensão da vida psíquica de outrem através dos signos. Essa dicotomia epistemológica funda-se na pretensa ideia de que o objeto próprio de cada uma dessas ciências, Natur e Geist, Natureza e Espírito ou Natureza e Homem – os quais, por sua vez, correspondem, respectivamente, ao mundo físico dos objetos e ao mundo psíquico da consciência humana ou dos indivíduos humanos –, são, por si próprios, irredutivelmente diferentes entre si. Eis a perspectiva ontológica na qual desemboca, em última instância, a diferenciação de ordem epistemológica. De um lado, uma certa concepção epistemológica dicotômica, que separa completamente as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito; de outro, uma concepção ontológica, que opõe, de modo radical, dois tipos de entidade, aquele da natureza e aquela do espírito, isto é, do universo propriamente humano das significações e de suas produções culturais. Considerada sob este ângulo, a distância ontológica acarreta também uma separação epistemológica, de forma que a esfera da compreensão conduz à ideia de que as Humanidades constituem uma dimensão do saber científico em um sentido singular e próprio. Numa palavra, o que é reclamado pela noção de compreensão, tal como desenvolvida por um Dilthey, por exemplo, é que a episteme das Ciências Humanas é irredutível e diversa em relação àquela cientificidade peculiar às Ciências da Natureza. Desta sorte, para Dilthey, a hermenêutica constitui o método próprio das Ciências Humanas, ao passo que a explicação constitui o procedimento epistêmico-metodológico específico das Ciências Naturais. Nesta perspectiva, toda forma de explicação levada a termo no interior das Humanidades seria ilegítima, pois a essas não caberia propriamente explicar, mas tão somente interpretar.

Insurgindo-se contra esse tipo de pensamento, Paul Ricoeur julga encontrar, antes, um movimento dialético entre os dois procedimentos epistemológicos, o explicar e o compreender, e não uma dicotomia pretensamente responsável por fundar, em termos epistemológicos, o distanciamento entre os dois níveis de saber ou conhecimento científico, isto é, entre as Ciências Naturais e as do Espírito. Por dialética, Ricoeur aí entende que cada uma das duas atitudes remete à outra por meio de características que lhes são próprias.

Vê-se, logo, que uma outra noção de ciência, mais ampla e menos restrita, acompanha e conduz esse tipo de reflexão. Por outro lado, cabe notar também o giro semântico que o conceito de verdade aí recebe: trata-se, nas palavras do próprio autor, da “inscrição da verdade num outro registro que aquele da verificação” (RICOEUR, 1991, p. 382). Em outros termos, o modo epistemológico da fenomenologia hermenêutica proposta por Ricoeur é o da atestação, à maneira do testemunho, e não o da verificação. A verdade se diz, pois, sob o signo da atestação, mais do que em termos de verificação. Daí que, a seus olhos, seja possível falar de verdade não apenas no terreno das Humanidades, mas também nos domínios da Filosofia e da Teologia. Não é possível, nem constitui o nosso propósito aqui, desenvolver e explicitar todas as novas significações que tais conceitos angariam. Compete-nos, apenas, chamar a atenção do leitor para o que está em jogo nesse entendimento dialético da relação entre o explicar e o compreender.

Qual é, pois, o caminho argumentativo traçado por Ricoeur que o permite repensar a relação entre o explicar e o compreender e, por conseguinte, entre as duas esferas do saber supramencionadas? A tentativa ricoeuriana de apaziguar a querela entre o polo da explicação e o polo da compreensão, levada a termo em inúmeros ensaios do filósofo, deu-se a partir da detalhada apresentação do modelo quase causal de Henrik Von Wright em Tempo e Narrativa [Temps et Récit] (RICOEUR, 1983, p. 187-202). Para Ricoeur, essa oposição encontrava a sua razão de ser numa época em que as Ciências Humanas sofriam uma forte atração pelos modelos em vigor nas Ciências Naturais, numa dinâmica que se arrastava sob a chancela e a tutela do positivismo de cariz comtiano.

Ricoeur entende que a distinção entre o explicar e o compreender ao modo diltheyano, isto é, entre o explicar (Erklären) próprio às Ciências da Natureza em clara oposição ao compreender (Verstehen) peculiar às Ciências do Espírito, parece clara à primeira vista. De fato, segundo ele, a distinção e mesmo a antinomia entre as duas atitudes fundamentais – o explicar e o compreender – e, por conseguinte, entre os procedimentos epistemológicos próprios das Ciências Naturais e os das Ciências do Espírito, não apresenta dificuldades quanto ao seu entendimento. Todavia, essa dupla oposição “não cessa de se obscurecer desde o momento em que nos interrogamos sobre as condições de cientificidade da interpretação” (RICOEUR, 1986, p. 143).

Reconhecendo a perspicácia analítica do pensador alemão, Ricoeur assume que Dilthey bem soube perceber a grandiosidade do problema, a saber: não se teria o direito de falar de Ciências do Espírito se, sobre a compreensão, esse modo compreender próprio às Ciências Humanas, não se pudesse erigir um verdadeiro e legítimo tipo de saber, capaz de guardar a marca ou o registro de sua origem na compreensão dos signos, e que fosse apto a apresentar, a um só tempo, o mesmo caráter de organização, de estabilidade, de coerência de um saber verdadeiro, e que é reclamado como sendo um dos aspectos fundamentais das Ciências Naturais (RICOEUR, 1986, p. 163).

Todavia, examinando o destino da oposição entre o explicar e o compreender à luz do confronto de escolas hermenêuticas contemporâneas, Ricoeur (1986, p. 137) entende que a noção de explicação sofreu uma espécie de deslocamento, de modo que já não é mais herdada das Ciências da Natureza, mas de modelos propriamente linguísticos. Já no que tange à ideia de interpretação, percebe o filósofo que ela veio a padecer de transformações profundas na hermenêutica moderna, que a afastaram da noção psicológica de compreensão, no sentido diltheyano do termo. Ocorre então, aos olhos de Ricoeur, uma nova posição do problema, menos antinômica e mais fecunda, e é exatamente essa nova forma de abordar a questão que o filósofo procura explorar em seus textos. Em outros termos, o que Ricoeur percebe é que o problema legado de Dilthey mostra-se renovado depois de quase um século pelos recentes desenvolvimentos da lógica da ação e das próprias mudanças em curso no domínio da hermenêutica. Mais precisamente, Ricoeur situa a sua discussão no campo das transformações sofridas sob a influência do segundo Wittgenstein, de Austin e da filosofia da linguagem ordinária, lá onde a diversidade dos “jogos de linguagem” (expressão wittgensteiniana) e, por conseguinte, dos sistemas de compreensão, emergiu em face do monismo metodológico do positivismo lógico. Aos olhos do filósofo francês, sobre essa base se ergueu uma espécie de pluralismo bastante difuso, dando origem a uma espécie de dispersão ou de fragmentação dos “jogos de linguagem”. É, pois, nesse terreno arenoso que a reflexão ricoeuriana procurará se desenrolar (RICOEUR, 1975, p. 14).

Para resolver a querela em torno do explicar e do compreender, não basta, pois, segundo Ricoeur, conferir uma respeitabilidade de semelhante nível à compreensão, em comparação à explicação, ao modo de Dilthey. Isso, para ele, não resolve, mas aprofunda o problema epistemológico, à medida que a questão não evade desse âmbito, não aponta e nem se segue para o domínio ontológico, lá onde o problema deve ser definitivamente abordado, encontrando aí o seu terreno próprio e, portanto, o lugar de sua compreensão adequada e de sua solução. De fato, para Ricoeur, essa polaridade dicotômica só se resolve à medida que o pensamento reflexivo é conduzido a transpor o polo propriamente epistemológico na direção do ontológico[20].

[...] o debate de aparência epistemológica entre explicar e compreender esconde um debate muito mais profundo: esta compreensão intuitiva que abre o campo da explicação, que acompanha a explicação, que envolve a explicação, é a emergência, ao plano epistemológico, do sentimento vivo de pertencer a um mundo de existentes e a um mundo de sentido. Trata-se de um saber antes do saber, que emerge mais de uma hermenêutica do ser no mundo que de uma epistemologia da explicação. Se é absurdo fazer da compreensão um método rival da explicação, a única via que resta aberta é a de nela discernir a visada do enraizamento prévio do homem no seu mundo histórico. [...] Pois da profundeza da compreensão o homem é chamado à clareza da explicação. (RICOEUR, 1975, p. 23).

Em última instância, o que Ricoeur (1986, p. 154) procura é ultrapassar a oposição antinômica entre as duas atitudes fundamentais, o explicar e o compreender, e sublinhar a articulação que torna a análise estrutural e a hermenêutica complementares. Trata-se, pois, de aceder, gradativamente, a uma relação cada vez mais estreita, complementar e recíproca entre o polo da explicação e o da compreensão. De fato, Ricoeur propõe uma dialética da explicação e da compreensão capaz de manter, a um só tempo, a linguagem da força e a linguagem da intenção.

Para tal, num primeiro momento, o autor é levado a forjar um conceito de interpretação em oposição ao de explicação, aproximando-se de certo modo da própria perspectiva diltheyana, exceto num sentido preciso: ao situar a origem do conceito de explicação na linguística e na semiologia, em lugar de fazê-lo emergir das Ciências da Natureza, tal como Dilthey, o referido conceito ganha em força no que tange à sua semântica, de tal modo que será possível, posteriormente, redirecioná-lo a uma relação mais dialética com a noção de compreensão.

Segundo o entendimento dialético de Ricoeur, todo ato de interpretação comporta momentos de explicação e, ambos, interpretação e explicação, juntos nos conduziriam à compreensão adequada do objeto do conhecimento. Neste sentido, aos olhos ricoeurianos, a explicação é capaz de possibilitar e promover a compreensão, que, a rigor, é intersubjetiva. Longe de se opor à compreensão, a explicação é seu esteio, no sentido de não deixar a compreensão manca, ou seja, estreita por demais. O trabalho explicativo encontra, pois, seu ápice e seu ponto de culminância exatamente na esfera da compreensão.

Nos próprios termos de Ricoeur (1975, p. 21), “há uma inteligência inerente à compreensão, que já é uma espécie de explicação. Em lugar de opor ‘explicar’ e ‘compreender’, tratar-se-ia, pois, de diversificar as modalidades da explicação de tal maneira que a compreensão aparecesse como a forma vivida, a forma interiorizada, de um conteúdo [...].” Desta sorte, o pensador francês nos conduz à ideia de que a dinâmica própria do ato explicativo, na multiplicidade de suas formas, é o que nos possibilita a compreensão, a qual se apresenta, do início ao fim, como a abóbada de todo o processo, como o arco no interior do qual a explicação encontra a sua razão de ser e a própria unidade de seu movimento pluriforme.

Desta sorte, a compreensão não apenas encerra o trabalho da explicação; antes, ela também o antecede e o acompanha. Neste sentido, para Ricoeur, a compreensão constitui uma tarefa interpretativa que engloba o ato explicativo do início ao fim.

Nos termos ricoeurianos, “a compreensão não limita a preceder, ela acompanha a explicação. Dela pode-se dizer o que Kant diz do eu penso que ‘deve poder acompanhar todas as nossas representações’.” (RICOEUR, 1975, p. 23). O que se apresenta é, pois, uma relação complexa e dialética, e em certa medida paradoxal, na qual a compreensão engloba e como que se apresenta como a estrela-guia do ato explicativo. Para usar uma fórmula cara a Kant, do mesmo modo que pensamentos sem conteúdos são vazios e intuições sem conceitos são cegas, para Ricoeur, explicações que não conduzem à compreensão também nada nos acrescentam em termos de conhecimento da realidade. Assim, nos termos ricoeurianos,

Não podemos dizer, portanto, que a compreensão não exerça nenhum papel. Certamente, a compreensão não é um método em si. Ela é, antes, uma espécie de guia, que precede, acompanha e conclui o método. A compreensão precede a explicação; neste sentido, ela abre previamente um certo espaço de experiência e instaura a diferença entre o mundo dos fatos e do mundo dos signos. Mas, abrindo o mundo do sentido, a compreensão o abre sobre a explicação. A esse respeito, todo o nosso vocabulário “disposicional” (tender a..., tratar de..., ser capaz de...) testemunha essa continuidade entre o vivido intencional e a argumentação teleológica. [...] a compreensão conclui e envolve a explicação, na medida em que ela assegura uma unidade de sentido àquilo que a explicação dispersa ou articula em fases distintas sob a forma de sistemas, quaisquer que sejam eles. [...] Compreender é englobar a análise infinita do detalhe no olhar, que a palavra campo evoca. É neste sentido que a compreensão encerra [clôture] tanto quanto ela abre e acompanha. Ela recapitula, num ajuntamento sinótico, o diverso analítico do discurso. Essa dialética do intuitivo e do discursivo é o que assegura, em última instância, a unidade indesfiável do compreender e do explicar. (RICOEUR, 1975, p. 22-23).

Essa dialética é que leva Ricoeur (1986, p. 181) a inferir que, no plano epistemológico, não há, propriamente falando, dois métodos, a saber, o método explicativo e o compreensivo. Estritamente dizendo, apenas a explicação seria metódica. A compreensão revela-se, antes, como a abóboda do momento metodicamente explicativo na multiplicidade de suas faces e nuances. Nos próprios termos do pensador francês, a compreensão é “o momento não metódico que, nas ciências da interpretação, se compõe com o momento metódico da explicação. Esse momento precede, acompanha, encerra e assim envolve a explicação. Em contrapartida, a explicação desenvolve analiticamente a compreensão” (RICOEUR, 1986, p. 181).

Para Ricoeur (1986, p. 137), os termos “explicar” e “compreender” resumem duas atitudes fundamentais que podemos assumir perante um texto. E é na leitura – isto é, no olhar sobre o texto escrito – que Ricoeur vê se confrontarem essas duas atitudes fundamentais. Para o pensador francês, a noção de texto, tal como por ele entendida e estabelecida (RICOEUR, 1986, p. 137-142), impõe uma renovação das duas noções, a de explicação e a de interpretação, e, graças a essa renovação, implica uma concepção menos antinômica da relação que se estabelece entre elas. Em outros termos, Ricoeur julga poder e dever abordar a questão relativa à relação entre o explicar e o compreender à luz de uma teoria do texto, a qual, a seus olhos, ergue-se como uma forma paradigmática, de modo que pode ser estendida a uma teoria da história e a uma teoria da ação. Para ele, à luz da teoria do texto, o que se observa é, ao contrário, uma estreita complementaridade e uma reciprocidade entre explicação e interpretação, de modo que a antinomia se esvai.

Com efeito, uma vez que o discurso enquanto “é o acontecimento da linguagem” realiza-se, como tal, “temporalmente e no presente”, ele se apresenta como um evento fugidio, reenviando continuando ao seu locutor (RICOEUR, 1986, p. 184). Desse modo, aos olhos ricoeurianos, “o discurso é sempre acerca de alguma coisa. Ele se refere a um mundo que pretende descrever, exprimir, representar” (RICOEUR, 1986, p. 184). Neste sentido, o discurso constitui-se não apenas de um mundo, mas supõe o outro sob a forma de um interlocutor a quem se dirige.

O texto fixa as significações que ele põe em jogo destacando-se das circunstâncias que constituem o caráter eventual do discurso. Sem abolir completamente “o laço entre o locutor e o discurso”, ele o torna “distendido e complicado” (RICOEUR, 1986, p. 187), introduzindo, assim, no universo da linguagem, um efeito de distanciação, que constitui, aos olhos ricoeuriano, a primeira condição requerida por todo projeto de compreensão. Ora, é justamente esse caráter do texto que confere à opção estratégica de Ricoeur as suas razões, de modo que o pensador francês fundamenta todo o seu discurso sobre “a teoria do texto”, concebendo-a como como o modelo paradigmático de sua teoria da interpretação.

Todavia, longe de encerrar a sua teoria do texto numa concepção puramente semiológica, Ricoeur (1986, p. 164, grifos do autor) procura abri-la “às dimensões de uma antropologia filosófica”. É assim que a abordagem ricoeuriana se desenrola através de uma série de “deslocamentos”, “imbricados uns nos outros”, a saber: “deslocamento da hermenêutica do símbolo na direção da hermenêutica do texto, mas também deslocamento da hermenêutica do texto rumo à hermenêutica do agir humano”, tal como “a análise da função narrativa deveria consagrar à época de Tempo e narrativa” (RICOEUR, 1995, p. 61).

Desta sorte, o exame crítico do processo da compreensão conduz Ricoeur (1986, p. 162) a substituir “o dualismo metodológico da explicação e da compreensão” e “a alternativa brutal” que ele pressupõe por uma “fina dialética”, segundo a qual “explicar e compreender não constituiriam os polos de uma relação de exclusão, mas os momentos relativos de um processo complexo ao qual se pode chamar interpretação”. A estratégia utilizada por Paul Ricoeur para desenvolver essa dialética, justificando-a, consiste em mostrar inicialmente por uma teoria do texto, concebido como modelo paradigmático da abordagem hermenêutica e, em seguida, estendê-lo ao caso da ação humana; depois, ao caso da história; e, enfim, ao das Ciências Humanas em geral. A cada etapa, o que a análise evidencia é a interpenetração da compreensão e da explicação, conforme um esquema que já se encontra perfeitamente ilustrado pela teoria do texto e que é passível de ser identificado, sob formas cada vez mais complexas, nos outros níveis da abordagem[21].

Com efeito, segundo a concepção dialética proposta por Ricoeur, o sentido do texto dá-se exatamente na relação que se instaura entre a compreensão e a explicação. A seus olhos, essa relação apresenta um duplo movimento, um que vai da compreensão rumo à explicação e outro que, reciprocamente, dirige-se do polo explicativo ao compreensivo. Desta sorte, numa situação dialogal, a explicação não passa de uma forma de “compreensão desenvolvida através de questões e respostas” (RICOEUR, 1986, p. 165). O texto, bem como toda forma de inscrição em geral, supõe um processo de objetivação, já em movimento de realização no próprio intervalo que se introduz entre o dito e o dizer na instância do discurso, que precede o ato da escrita, isto é, a inscrição do discurso sob a forma textual. Ora, a dinâmica da compreensão recolhe e prolonga esse processo, não sob a simples forma de uma troca dialogal, mas conformando-o a regras de estruturação, próprias da análise estrutural. A dinâmica da compreensão é, pois, “regrada por códigos comparáveis ao código gramatical que a compreensão das frases”. Na perspectiva semiológica, a evidenciação desses códigos é o que precisamente constitui a demarcação que explica o texto. Vê-se, assim que “essa exteriorização nas marcas materiais e essa inscrição nos códigos de discurso tornam não apenas possível, mas necessária, a mediação da compreensão pela explicação, cuja análise estrutural da narrativa constitui a execução mais notável” (RICOEUR, 1986, p. 167).

Esse movimento, que caminha na direção da explicação não é, todavia, senão um momento possível. Como a compreensão carrega, em si, a exigência da mediação do momento explicativo, esse, por sua vez, traz em si e consigo a exigência de um retorno à compreensão. Mas não se trata de um retorno ao idêntico; trata-se, ao contrário, do acesso a uma forma mais profunda de compreensão. O momento da objetivação, realizado pela análise estrutural, implica, por sua vez, a exigência de se destacar completamente o texto das circunstâncias nas quais ele foi produzido e, por esse gesto, “virtualizá-lo”. O texto torna-se, assim, neutralizado, sem alcance efetivo. Ora, a própria abordagem da análise comporta a exigência de uma ancoragem concreta, na qual a significação do texto poderá encontrar a sua efetividade. A origem ou fonte dessa exigência constitui a própria dinâmica da compreensão, que tende a se realizar no atual, ao retorno “do sistema rumo ao acontecimento, da língua para o discurso”, “da compreensão ingênua à sábia compreensão”, ou ainda, “do puro objetivo para o intersubjetivo” (RICOEUR, 1986, p. 167).

De modo algum, trata-se, aí nesta ideia de reinscrição do texto no atual, de um retorno para alguma forma de psicologismo nem de negar o caráter subjetivo da compreensão, na qual a explicação se consuma. “O que há a compreender numa narrativa”, assevera Paul Ricoeur (1986, p. 168, grifos do autor), “não é, em princípio, aquele que fala por detrás do texto, mas o que é falado, a coisado texto, a saber, a espécie de mundo que a obra de algum modo desenrola pelo texto”. Neste sentido, “se o sujeito é chamado a se compreender ante o texto, é na medida em que não está fechado sobre si mesmo, mas aberto sobre o mundo[22] que ele reescreve e refaz” (RICOEUR, 1986, p. 168).

Todavia, como dissemos acima, o esquema da relação dialética entre o explicar e o compreender, colhido a partir da teoria do texto, encontra-se também em outras dimensões da realidade antropológica. De modo detalhado, Ricoeur mostra como esse esquema também se transforma em teoria da ação e em teoria da história, de modo que o que fora observado no domínio da teoria do texto permanece como um paradigma à luz do qual os outros domínios antropológicos, o da ação humana e o da história, podem ser iluminados.

No que concerne à história, o momento da compreensão exerce uma competência particular, que é a capacidade de seguir uma história. Ela é feita de antecipações conjecturais e de correções sucessivas, que evocam explicações em termos de causas (relações entre causas e efeitos), mas também em termos de razões e de motivos. Segundo Ricoeur, tais explicações hão de permitir ao historiador ver os fatos com um olhar mais longínquo e amplo, bem como guiar a sua compreensão inicial na esteira de seus esforções de adequação aos dados históricos.

Mas é com a teoria da ação que o alcance da dialética entre o explicar e o compreender atinge o seu limiar, como estrutura profunda do procedimento metodológico nas Ciências Humanas. A esse propósito, Ricoeur se refere sobretudo à posição adotada por Max Weber, que define o objeto das Ciências Humanas como “a conduta orientada de maneira sensata” (Sinnhaft orientiertes Verhalten). A ação pode dar lugar a uma ciência porque obedece a condições de objetivação da mesma natureza que aquelas que fazem do texto um possível objeto de ciência. Ora, a analogia entre o texto e a ação implica que é possível encontrar na teoria da ação sensata a mesma relação dialética entre explicação e compreensão presente na teoria do texto. No que diz respeito à ação sensata, considerada sob o prisma paradigmático do texto, a dialética entre compreender e explicar toma a forma particular de uma dialética entre a conjectura e a validação, que aos olhos ricoeurianos se constitui no equivalente moderno da dialética entre verstehen e erklären, e é através desses dois momentos que construímos a significação no domínio da ação. Com efeito, esse momento de construção, em que “o texto pede para ser construído” mostra-se como necessário à medida que um texto “não consiste numa simples sucessão de frases, colocadas em um mesmo pé de igualdade e compreensíveis separadamente. O texto é um todo, uma totalidade”, ensina Ricoeur (1986, p. 200). Em outras palavras, um texto não se constitui numa mera sucessão de termos, separados uns dos outros, mas se desenha sob a forma de uma totalidade de sentido, cabe sublinhar. Ora, “a relação entre todo e partes”, sublinha Ricoeur (1986, p. 200), “requer um tipo especial de juízo, aquela cuja teoria Kant formulou na terceira Crítica”. Por outro lado, o momento da validação também se faz necessário, pois “há sempre várias maneiras de construir um texto”, mas “não é verdade que todas as interpretações sejam equivalentes” (RICOEUR, 1986, p. 202). Desse modo, como no caso do texto, “uma plurivocidade específica prende-se à significação da ação humana”, de modo que “ela também, a ação dotada de sentido, é um campo limitado de construções possíveis” (RICOEUR, 1986, p. 203). Identificando, pois, um interessante elo entre a plurivocidade específica do texto e a plurivocidade analógica da ação humana, Ricoeur julga encontrar, em ambos os domínios, a mesma relação dialética, porém nomeada de diferente maneira: lá no locus do texto, ela recebe o nome de dialética entre explicação e compreensão, ao passo que no plano da ação humana, ela é então chamada de dialética entre conjectura e validação. Mas é, no fim das contas, uma só e mesma relação, manifestando-se, todavia, de modo diferente em domínios diferentes do humano.

Evidenciadas as contribuições da Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur para dirimir a polaridade dicotômica entre explicação e compreensão, cabe-nos, num momento derradeiro de nossa análise, nos perguntar: quais são as implicações de se conceber o procedimento epistemológico peculiar à Ciência da Religião à luz dessa perspectiva dialética entre o explicar e o compreender? Eis, pois, o que agora nos compete demonstrar.

4 A Ciência da Religião à luz da concepção dialética entre o explicar e o compreender de Paul Ricoeur

Neste momento final de nossas análises, buscaremos evidenciar algumas implicações de se conceber o procedimento epistemológico peculiar à Ciência da Religião a partir da perspectiva dialética entre o explicar e o compreender, tal como proposta por Paul Ricoeur. Arrolemos, pois, sinteticamente, algumas delas.

Um dos principais méritos da reflexão de Ricoeur, ao lado de outros autores não menos importantes, como Jean Ladrière e Gadamer, consiste em nos permitir considerar como superada a querela suscitada no início do século XX em torno dos termos, tidos como antagônicos, explicação e compreensão. Nesse contexto, torna-se inadequada e reducionista a perspectiva que julga poder atribuir à Ciência da Religião a insígnia de ser meramente interpretativa.

Em segundo lugar, convém perceber que tal dialética nos conduz a relativizar toda pretensão moderna de considerar como ciência, isto é, como saber digno de angariar foros de nobreza ou de cientificidade autêntica e legítima, apenas o conhecimento empírico-formal, estruturalmente organizado e sistematizado de modo matemático. Ora, essa visão reducionista da ciência humana deslegitima todos os outros tipos de saberes de que o homem é capaz, na multiplicidade caleidoscópica de seus modos de abordagem e de significação do real, tais como o teológico, o artístico, o filosófico, mas também o produzido pela Ciência da Religião. Isso porque, como vimos, à estrutura argumentativa desse último domínio do saber não se aplica, como conditio sine qua non, o modelo nomológico-dedutivo de explicação. Desta sorte, perceber a dialética entre o explicar e o compreender no próprio seio da Ciência da Religião, nos conduz a entrever, por um lado, que o conhecimento por ela produzido não se limita nem se reduz aos cânones positivistas de uma compreensão de ciência. Trata-se, pois, de reconhecer que o saber peculiar à Ciência da Religião admite uma dimensão interpretativa essencial nas suas diversas formas, mas que de modo algum essa dimensão pode vir a sugerir o relegamento da dimensão explicativa às sombras do esquecimento.

Desse modo, se aplicarmos a perspectiva dialética de Ricoeur à Ciência da Religião, é possível entender que o ato explicativo possui espaço legítimo no terreno específico dos estudos científicos sobre a religião e que, por outro lado, sua semântica não se esgota no modelo nomológico-dedutivo de Hempel, de modo que é possível entrever diferentes formas e possibilidades de sentido que ele aí angaria. Trata-se, pois, de afirmar, seguindo-se a lógica ricoeuriana, que no seio dos estudos de religião a compreensão acompanha, norteia e constitui o ápice de todo o processo explicativo, de modo que não mais nos é permitido afirmar que a Ciência da Religião seja meramente interpretativa, em oposição ao procedimento explicativo pretensamente próprio de todo o multiforme e plurívoco espectro daqueles de tipos de saber que se arvoram sob o guarda-chuva mais amplo das Ciências da Natureza.

Ao cientista da religião cumpre cuidar, no entanto, para não impor às suas análises a exigência de um rigorismo matemático, de uma causalidade nomológica-dedutiva, que, a rigor, não o leva a nada além de uma distorção dos próprios fatos e das causas que os originam, bem como a uma ideia equivocada e pretensiosa de que o fenômeno analisado – no caso, o religioso – possa ser rigorosamente explicado em sua natureza, sem que se leve em consideração o próprio horizonte que permite a manifestação do que se mostra. Isso significa, em última instância, que o ato explicativo em Ciência da Religião não pode e nem deve se resumir ao modelo nomológico-dedutivo proposto por Hempel, tal como alhures analisamos. De fato, ao cientista da religião não cabe vaticinar sobre os fatos, ao modo de uma predição a partir de uma ou de várias leis previamente concebidas. Insistimos, pois, na variedade dos tipos de explicação no âmbito dos estudos científicos de religião, ao modo defendido por autores como Jensen e Segal. Desta sorte, assim como não há, em história, um modo privilegiado de explicação[23] (VEYNE, 1971; PROST, 2014), o mesmo poder-se-ia dizer do que ocorre em Ciência da Religião. Ao cientista da religião cumpre perceber que há diferentes formas de explicação, cabendo-lhe analisar que tipo ou tipos são os mais favoráveis e ricas para a análise que pretenda que pretenda oferecer do fenômeno religioso em questão.

No que tange aos estudos científicos sobre a religião levados a termo pela Ciência da Religião, não se trata, pois, de solapar nem de invalidar a descrição dos fenômenos religiosos ou daqueles aparentados ao que se concebe por religião, mas de inseri-la num contexto mais amplo, de pensá-la a partir de uma perspectiva mais integrativa, na qual a questão da compreensão do sentido do religioso impõe-se de modo incontornável. Com efeito, a tarefa do cientista da religião não é tão somente a de estabelecer e descrever os fatos, mas também a de compreendê-los. E isso, evidentemente, o obrigará a dar explicações de ordens diversas. Trata-se, pois, de “explicar mais, para melhor compreender”, segundo a sugestiva fórmula de Ricoeur. Desta sorte, quando afirma preocupar-se em compreender, cabe ao estudioso e pesquisador do fenômeno religioso elucidar que formas as suas explicações assumem. Trata-se, pois, de reconhecer as próprias condições da práxis racional e científica, isto é, de admitir que pesquisador algum principia o conhecimento a partir de um ponto zero, que não é possível ao sujeito cognoscente mover-se em um campo absolutamente ausente de pré-conceitos, de conhecimentos prévios e de linguagem, numa ilusória pretensão de imparcialidade absoluta. Enfim, trata-se de reconhecer que a nossa razão, bem como a nossa racionalidade, são como que condicionadas por uma limitação essencial e que essa, por sua vez, se ergue como a própria condição de possibilidade do saber por elas engendrado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caminhando na esteira dos ensinamentos de cunho heideggeriano (HEIDEGGER, 2012), Paul Ricoeur reconhece que o compreender deixa de se apresentar como uma maneira do conhecer, isto é, como uma das formas específicas do âmbito cognoscitivo humano, para revelar-se como um modo de ser e de se relacionar com os seres e com o real como um todo (RICOEUR, 1977, p. 17). Isso significa que a dinâmica da compreensão envolve o ser humano por inteiro. Nesta perspectiva, o homem, em sua totalidade, se revela, por assim dizer, como uma ontologia, como um modo de compreensão da realidade, o qual se dá não apenas na árdua tarefa que lhe compete enquanto sujeito do conhecimento, enquanto procura entender o mundo que o cerca, no qual se encontra inserido e com o qual estabelece relação, mas cumpre perceber que até mesmo as suas disposições afetivas apresentam-se como modos do compreender.

Abordada à luz da dialética entre o explicar e compreender, tal como sugerida pela fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur, a Ciência da Religião revela-se, no que tange à especificidade de seu procedimento epistemológico próprio, tanto como um saber interpretativo quanto como um saber explicativo. Incluída, pois, no amplo e diverso espectro das várias e diversas formas do conhecimento humano, a ela cabe explicar mais para compreender melhor, de modo cada vez mais amplo e significativo. Explicar e, explicando bem e de maneiras diversas, compreender: eis a tarefa a que é chamado todo aquele que se propõe debruçar, em suas análises, sobre o fenômeno religioso e sobre as múltiplas formas de realidade religiosa ou não religiosa que se fazem presentes no mundo do texto, da história e do agir humano.

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Notas

[1] A propósito da dificuldade de se traduzir o termo alemão Geisteswissenschaften, o qual, em decorrência da palavra Geist de que é composto, encontra-se em uma articulação direta com a noção de espírito, bem como acerca da multiplicidade de termos e expressões com os quais os diferentes países e línguas procuram exprimir o sentido de uma ciência de tipo determinado, diversa em relação às ciências formais e às da natureza, ver Gadamer (2007, p. 145-154). Esse autor, por sua vez, pensa as chamadas Ciências do Espírito em ligação com a formação humanista que elas pressupõem. Neste sentido, em vez de buscar um método próprio para as Ciências do Espírito à maneira de um Dilthey, Gadamer (2003, p. 55-60) procura mostrar como o conhecimento se desenvolve tendo como ponto de partida a apropriação do que é tido como relevante na própria tradição cultural.
[2] Com efeito, em sua obra Teoria generale della interpretazione, composta por dois volumes, Emilio Betti (1955) intenta construir uma teoria hermenêutica que seja aplicável a qualquer modo de interpretação. Para tal empreitada, ele distingue diversos tipos de interpretação, por ele sistematizadas em três grupos distintos, conforme a função que cada qual desempenha, a saber: as interpretações com função meramente reconhecedora (filológica, histórica e técnica); as de papel reprodutivo (dramática, musical e tradução); e aquelas que apresentam função normativa (jurídica, psicológica e teológica).
[3] Por epistemologia e, por conseguinte, os substantivos adjetivados que derivam desse termo, pode-se compreender, num sentido geral, uma disciplina cujo objetivo é o de elucidar a natureza e os modos do procedimento cognitivo e de trazer à tona os princípios que dão razão (isto é, que fundamentam) a práticas cognitivas efetivas, consideradas em toda a variedade de suas formas. Num sentido mais restrito, a epistemologia pode ser identificada à reflexão sobre uma prática cognitiva particular, a prática dita científica, instaurada desde os primórdios do estabelecimento do logos ou da razão demonstrativa como o centro simbólico da cultura grega. Cumpre, pois, à reflexão epistemológica a determinação daquilo que promove a cientificidade de um discurso e, correlativamente, a tarefa de saber se há um modelo único ou, ao contrário, se há modos múltiplos da cientificidade, isto é, se há formas variadas do discurso demonstrativo, que fundamenta ou fornece as razões (motivos, causas) de algo.
[4] Até os fins do século XVIII não existia nem a noção de vida enquanto objeto empírico nem mesmo a própria ideia de objeto empírico. Os seres vivos eram representados como espécies ideais nos horizontes da História Natural. A revolução copernicana operada por Kant no terreno da teoria do conhecimento é que definitivamente operou a cisão do clássico saber monolítico em dois polos distintos, o das ciências empíricas e o da filosofia dita transcendental, responsável por analisar as condições de possibilidade de todo conhecimento possível. A partir de então emerge o objeto próprio das ciências da vida, que se ergue sob a forma empírica e é analisado por meio do efeito, ou do defeito de órgãos, bem como pelo mecanismo e pela função dos seres na dimensão de suas leis e em seus espaços peculiares, exteriores às clássicas representações.
[5] A propósito dessa reivindicação de universalidade do conhecimento matemático-experimental, Ricoeur (1975, p. 12) sublinha o vergamento das Humanidades aos pressupostos metodológicos e epistemológicos peculiares às Ciências da Natureza, trazendo à baila os exemplos de conquistas contemporâneas, tais como a aplicação praticamente universal da cibernética a campos bastante distintos, tais como o físico e o biológico, mas também o linguístico. Ricoeur tem em mente a correlação entre código genético e código linguístico, esse último se exprimindo no nível da epistemologia recente, sobretudo no quadro das teorias do empirismo lógico. Poderíamos acrescentar ao menos um outro exemplo à lista arrolada pelo filósofo francês, o da abordagem sistêmica na Psicologia. Ora, essa forma de abordagem, por se desenvolver com inspiração na teoria geral de sistemas e na teoria cibernética, dentre outras, tem recebido críticas diversas, oriundas sobretudo do construcionismo social pós-moderno, que, por sua vez, a têm inculpado de uma visão estruturalista e mecanicista. A propósito desse espraiamento do método científico moderno a todas as dimensões do saber, Jean Ladrière (1979, p. 91) já advertia: “no nível universitário, todos os domínios, mesmo os que tradicionalmente se orientavam para a formação ‘humanista’, são dominados pelo método científico”.
[6] Talvez o leitor se surpreenda ao não ver surgir, neste contexto textual, a noção de interpretação, ao menos com certa regularidade. Ora, não figurava ela ao lado da noção de compreensão, na grande época da querela Verstehen-Erklären instaurada pela reflexão filosófico-hermenêutica de Dilthey? Não foi ela considerada pelo próprio filósofo alemão uma forma especial de compreensão ligada à escrita e, em geral, à dinâmica da inscrição? Mas Ricoeur (1986, p. 142) bem sublinha que a oposição inicial, em Dilthey, não é exatamente entre o explicar e o interpretar, mas entre o explicar e o compreender, e isso porque a interpretação emerge aí, na reflexão diltheyana, como uma província particular da compreensão (Verständigung, em alemão). Neste sentido, dirá o autor francês, é da antinomia entre explicação e compreensão que se deve partir. Trata-se, pois, de conferir ao conceito de interpretação a mesma extensão que ao conceito de compreensão.
[7] Para uma análise da rica polissemia que o termo “interpretar” encerra, convém consultar Francis Jacques (1993) e Palmer (2014, p. 23-41). Sobre a possibilidade de “conceitos transversais” no caso da interpretação, ver o estudo de Marie-Dominique Popelard (1993).
[8] Por episteme aqui entendemos, segundo o legado que nos chegou dos gregos, o sistema de conhecimentos racionais fundado no logos apoideitikós, isto é, na razão demonstrativa que, incluindo tanto o saber da physis quanto a filosofia, busca “dar razões” ou fundamentar o próprio discurso, e não uma espécie de inconsciente do saber ou de um a priori histórico, à maneira de Foucault.
[9] Sobre a gênese histórica do paradigma hermenêutico, ver os ensaios contidos na primeira parte da obra coletiva assinada por Bochet et al (1993), bem como o livro de Mussner (1972).
[10] Consideráveis traduções de dois dos três textos de Ladrière supramencionados, ambas realizadas por Maria José J. G. de Almeida, podem ser encontradas em Ladrière (1978, p. 21-37; p. 63-89).
[11] Jensen (2009) nos apresenta uma discussão acerca do debate entre explicar e compreender no âmbito dos Estudos de Religião (Religious Studies).
[12] Donald Wiebe, que vem se destacando no meio acadêmico por tematizar as relações dos estudos sobre a religião com as ciências em geral e, em particular, com a teologia, propõe romper com a separação dicotômica entre descrição e interpretação, por um lado, e a explicação, por outro lado. Seu principal argumento ergue-se a favor do que ele próprio nomeia como um “paradigma alternativo para o estudo da religião”, isto é, um “novo paradigma”, apresentado sob a forma de “uma alternativa ao atual ‘descritivismo’ no estudo acadêmico da religião” (WIEBE, 1998, p. 6). Concebido em sentido lato, o descritivismo de que nos fala Wiebe incluiria sobretudo as abordagens de cunho fenomenológico. Segundo o autor, a questão da verdade já se encontra desde sempre implicada no próprio ato de descrição da religião estudada na sua multiplicidade de expressões e na variedade de suas formas. Daí o título encerrado por sua obra, que propõe o laço entre a questão da verdade e os estudos da religião, de modo que aquela se apresentaria como incontornável a estes, os ensejados pela Ciência da Religião enquanto área do saber. Para o autor, se os estudos acadêmicos de religião avocam a si a pretensão de cientificidade e de explicação da religião, eles não têm como contornar a discussão sobre a verdade no que concerne ao seu objeto de análise. Ver, a propósito, sobretudo o quarto capítulo, intitulado A categoria da verdade no estudo crítico da religião (WIEBE, 1998, p. 131-173).
[13] Para alguns estudiosos, como veremos adiante, a explicação científica constitui um ato muito mais rico e complexo, envolvendo e implicando a interpretação ou compreensão do objeto.
[14] Acerca da natureza da explicação científica, consultem-se as obras de Hempel (1970) e Rudner (1969). Para um exame crítico do modelo de explicação científica de Hempel, ver Cartwright (2004), Dray (1957; 1969, p. 15-35), Wiebe (1998, p. 54-66), Hanson (1978), Ricoeur (1986, p. 176-182) e Menna (2013).
[15] Segundo Menna (2013, p. 153), Hempel utiliza o termo “lei” no sentido linguístico, ou seja, no sentido de “enunciado de lei”, “enunciado legaliforme” ou “enunciado nomológico”. Eis, pois, a definição hempeliana de lei: “Entendo por lei geral um enunciado de forma condicional universal que pode ser confirmado ou desmentido por meio de resultados empíricos adequados” (HEMPEL, 1965, p. 231).
[16] Cabe observar que, no modelo nomológico-dedutivo de Hempel, os termos “explicação” e “predição” apresentam-se como equivalentes, sinonímicos ou intercambiáveis. O termo “predição”, por sua vez, não alude, de modo excludente, a enunciados sobre acontecimento futuros, mas abarca, indistintamente, eventos presentes e passados. Nesse sentido, predição e explicação erguem-se como inferências (dedutivas) simétricas: logo, predizer um fato x é explicar x antes que ocorra e, inversamente, explicar um acontecimento y é predizer y após a sua ocorrência e a partir de uma lei ou de um conjunto de leis dadas de antemão. Daí que, para Hempel (1965, p. 279), a dedução possa ser denominada explicação ou predição.
[17] No 1º volume de Temps et récit (Tempo e Narrativa), Ricoeur consagrou o essencial das suas análises ao confronto entre explicação causal e explicação por razões (ver, sobretudo, a 1ª parte do capítulo 2).
[18] A respeito dessa problemática tal como abordada por Ricoeur, convém consultar os textos de Ladrière (1991; 2004), Reagan (1991) e Follon (1977).
[19] Longe de ignorar e de recalcitrar a importância da noção de interpretação, Ricoeur propõe lhe dar um campo de aplicação mais amplo do que aquele atribuído por Dilthey. Para ele, há interpretação nos três níveis do discurso histórico: no documental, no da explicação/compreensão e no da representação literária do passado. Nesse sentido, a interpretação é por ele entendida como “um traço da investigação da verdade em história que perpassa os três níveis” ou, ainda, como “um componente da própria intenção de verdade de todas as operações historiográficas” (RICOEUR, 2007, p. 196).
[20] Traçando as grandes etapas do desenrolar histórico da hermenêutica moderna, Paul Ricoeur (1986, p. 81) evoca “o decisivo alargamento que Dilthey a fez sofrer, ao surdinar a problemática filológica e exegética à problemática histórica”. Neste esgarçamento, Ricoeur (1986, p. 81) entrevê uma verdadeira “reviravolta crítica da hermenêutica”, “que prepara o deslocamento da epistemologia para a ontologia, no sentido de uma maior radicalidade”.
[21] Para melhor perceber o paralelismo entre as sucessivas etapas da abordagem, Ricoeur (1986, p. 165, grifo do autor) propõe considerar, de modo privilegiado, no caso da teoria do texto, “o gênero narrativo do discurso”. Aí nesse contexto, segundo Ricoeur, a explicação se constrói sob o modelo semiológico, tal como é possível vê-lo funcionar nas Mitológicas de Lévi-Strauss. Ora, segundo uma perspectiva dicotômica, o sentido do texto é aí inteiramente dado por sua forma, e isso não é senão “o entrecruzamento dos códigos executados pelo texto” (RICOEUR, 1986, p. 165, grifo do autor).
[22] O “mundo do texto” é, “no caso do texto-narrativo, o mundo dos trajetos possíveis da ação real” (RICOEUR, 1986, p. 168).
[23] A recente construção para a história, pelo filósofo finlandês Georg Henrik Von Wrigth (1971), de um modelo misto de explicação no qual se alternam segmentos causais (no sentido de regularidade de leis) e teleológicos (no sentido de motivações suscetíveis de serem racionalizadas) corrobora a afirmação de que não existe um modelo privilegiado de explicação no domínio histórico. Para uma apresentação detalhada do modelo quase causal de Georg Henrik Von Wright forjado na obra Explanation and understanding (Explicação e compreensão), ver Ricoeur (1983, p. 235-255).

Autor notes

* Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Docente no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista PNPD/CAPES 2017. E-mail: fvocampos@pucminas.br
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