Editorial

Teologias: epistemologias

Cesar Kuzma KUZMA
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Teologias: epistemologias

Interações: Cultura e Comunidade, vol. 13, núm. 24, 2018

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Editorial

Com o avanço das pesquisas em Teologia realizadas nos Programas de Pós-Graduação no Brasil e com o fortalecimento desta Área de Pesquisa junto à CAPES, agora com autonomia, tendo sido criada a área de Ciências da Religião e Teologia, um novo ciclo passa a ocupar as pautas e discursos daquilo que vem sido produzido e pesquisado. De modo específico no Brasil, estando a Teologia aliada às Ciências da Religião, sua proposta segue em um discurso próprio, naquilo que lhe é característico e que confere ao seu labor uma originalidade, não se limitando à esfera do sagrado ou da religião, mas tendo cada vez mais a capacidade para ir às fronteiras na sua investigação, interagindo com outras perspectivas hermenêuticas, interagindo com as outras áreas das humanidades e com outras ciências, procurando estar atenta a tudo o que acontece na sociedade e para esta busca oferecer um discurso crítico e reflexivo. Tudo isso, sem perder aquele ponto que caracteriza a sua natureza e a sua intenção primeira: oferecer um discurso [sobre Deus – teo-logos] a partir de uma fé específica, mantendo e ampliando o horizonte de sua investigação, desde a sua confessionalidade.

Deste modo, a Teologia que se produz e a percepção acadêmica que se espera encontrar em seus discursos não tem a intenção de trazer uma defesa das dimensões da fé, fechando-se a tudo o que ocorre em sua volta e que desafia o seu discurso, criando assim um espaço separado, indiferente a tudo o que rodeia a sua realidade. Evidentemente, sendo o discurso teológico produzido a partir de uma condição de fé específica, aquilo que toca o interno desta fé e as articulações religiosas presentes no interior da religião farão parte desta construção, porém, entendendo que se faz necessário uma compreensão mais ampla, dialogando e ampliando a percepção para outras expressões e orientações que se possam fazer, sendo elas religiosas, filosóficas, de outras concepções teológicas ou que venham a interrogar os aspectos e fundamentos desta mesma fé. Assim, fazer Teologia não significa apenas ter um discurso a partir da fé, como casualmente se diz, mas sim ter uma reflexão crítica e reflexiva a partir desta fé, como também uma reflexão crítica e reflexiva desta mesma fé, compreendendo que a mesma é vivida em um mundo e contexto específicos, que por sua vez possuem construções também específicas sobre as questões humanas e sociais. Este discurso pode servir para o alimento da própria comunidade que vive desta fé, mas também pode ter uma concepção mais ampla, quando se produz numa perspectiva acadêmica e tende a dialogar com outras realidades e esferas do saber.

Assim como a Filosofia, a Teologia aparece como uma das ciências mais antigas da história da humanidade, marcando, inclusive, o modo de ser e estar das pessoas, bem como a constituição das culturas, do pensar religioso e das diversas formas sociais. Em seu desenvolvimento, a Teologia buscou oferecer respostas e/ou novas interrogações para as situações que iam se apresentando com o passar do tempo. Os mistérios da vida e da morte, os destinos dos povos, as relações com o transcendente e outras tentativas de explicar a realidade para além do que se poderia constatar empiricamente, assim como outras situações que tocam a questão do sentido deram passos para o surgimento de Teologias, construídas com hermenêuticas próprias e no uso de uma linguagem capaz de explicar ou orientar tais questões. Se considerarmos culturas antigas, por exemplo, perceberemos que a religiosidade e a tentativa de entender os fenômenos trazidos e/ou produzidos pela religião sempre fizeram parte do estudo das Teologias, e isso não surge como uma alienação ou tentativa de dizer o inexplicável, mas sim com uma racionalidade capaz de aliar as explicações destes fenômenos com as expressões filosóficas existentes, dando um sentido plausível para a relação do próprio ser [da pessoa], dos demais [das comunidades e sociedades] e do mundo [lugar e espaço]. Somando-se a isso, o que caracteriza a Teologia, o fazer teológico, é que esta relação existente entre a pessoa, os demais e o mundo evocam uma condição transcendente, buscando a compreensão de um sentido maior, chegando, inclusive, a nomear o próprio transcendente, na busca de um Tu correspondente [Deus] ou a Ele referente. Este Deus que se busca racionalizar pela Teologia pode se apresentar com muitas faces, sendo estas fiéis ou não àquilo que é reproduzido pela religião, o que exige que o discurso teológico possa assegurar-se desta intenção, buscando compreender a verdade e a revelação que se produz e se espera.

A história da Teologia mistura-se com a história do desenvolvimento dos povos, uma vez que este é marcado pela influência da religião. É possível perceber isso do oriente ao ocidente, de norte ao sul, em culturas dominantes e em culturas dominadas, quando ambas buscam justificar a sua presença e sobrevivência. Fazendo aqui um breve recorte epistemológico e temporal, olhamos para o desenvolvimento da Teologia cristã, desde o seu início, quando ainda com influência da cultura/religião/teologia judaica passa a ter uma nova compreensão da realidade que passava a se manifestar naquele momento, produzindo uma nova experiência de Deus trazida por Jesus de Nazaré e depois anunciada por seus seguidores e que oferecia novas respostas e novos entendimentos para o sentido da vida e pela luta por justiça e libertação. Então, esta Teo-logia, este discurso sobre Deus que surgia naquele instante trazia uma nova racionalidade e uma nova perspectiva de linguagem para entender o sentido da vida e a relação desta com as demais situações que nos cercam, também com o futuro, sendo ele histórico ou em vista de uma nova realidade. Esta mesma fé cristã, ao sair do ambiente judaico e entrar no ambiento heleno, utiliza-se das filosofias existentes para construir um discurso sobre as novas perguntas que se achegavam. Este período da Teologia cristã, entendido como Patrística, foi um dos mais ricos da história do Cristianismo e ainda hoje merece um estudo e pesquisa detalhados para aquilo que se pretende entender por diálogo, inculturação, orientações e fundamentações da própria fé. O método utilizado consistia em apoiar-se nas filosofias existentes e a partir delas buscar orientações para as grandes questões. Com o tempo, houve aprofundamento, fortalecimento de uma hermenêutica e consolidação de uma estrutura e modo de pensar, o que fez da Teologia um edifício robusto, sendo que suas respostas marcam o existir das pessoas, constituem também uma nova organização da sociedade e, inclusive, com o surgimento de universidades, onde, aliada à Filosofia, a Teologia tecia o seu modo de se expressar e de se constituir como modo de saber. Isso tudo levou a avanços epistemológicos e a produção de grandes manuais e linhas de pensamento. Os séculos se seguem e chegamos em outro momento importante, chamado Escolástica, sendo este também um período responsável por grandes saltos na história. Temos um tempo de mudança de época, fortalecimento das Artes, avanço das Ciências Naturais e o ampliar da Filosofia com novas questões. Estas situações trazem influências para a Teologia que necessita repensar a sua posição e método, pois as perguntas sobre o Transcendente incidem diretamente nas perguntas sobre o humano e o mundo. Mais uma vez, fortalece-se o tecido teológico e fazer Teologia vai se caracterizando por uma epistemologia própria, com grande influência sobre os diversos setores da sociedade. A Teologia marca a cultura ocidental, pois produz, em grande parte, os alicerces de sua estrutura.

E assim se segue, obviamente, a narrativa sobre a Teologia, as Teologias, suas histórias e métodos é muito mais ampla e complexa do que tentamos expressar em poucas linhas acima. Todavia, nossa intenção era de demonstrar a profundidade, a abrangência do discurso e a relevância que esta teve na construção de nossa sociedade. Por certo, a história foi avançando e novos questionamentos chegaram ao ser humano. Não podemos ignorar o século XX e as significativas mudanças que nele ocorreram, seja no âmbito de gerir a sociedade pela revolução industrial e tecnológica, seja no transcorrer das duas grandes guerras mundiais, mas também por uma nova posição da religião, deixando de ser a base do tecido social e tendo a necessidade repensar a sua posição e estrutura no atual contexto. Neste período chamamos a atenção para dois movimentos: 1) a Teologia pós-guerra, sobretudo a partir das interrogações e horrores de Auschwitz; 2) a Teologia da Libertação da América Latina.

O século XX foi um século frutuoso para a Teologia. O fortalecimento da Filosofia moderna, o avanço da reflexão sociológica, nas ciências naturais e a maior interação entre os povos e os desafios trazidos pelo modo de crer e de conceber a religião favoreceram esta condição. Porém, o período da Segunda Grande Guerra Mundial, sobretudo os horrores produzidos em Auschwitz inquietaram o pensar teológico, a ponto de a grande pergunta passar por esta interrogação: é possível falar de Deus depois de Auschwitz? Muitos teólogos foram influenciados por este momento e muitas expressões teológicas passam a surgir neste momento. Teologias contextuais, cujo método exige um maior aprofundamento do dado fundamental da fé e os desafios existentes no tempo, na história. As grandes tragédias humanas produziram interrogações e cabe à Teologia se deixar interpelar por estas questões, fazendo delas e, a partir delas, o seu teo-logos.

Quando falamos em Teologia da Libertação da América Latina falamos de um novo modo de fazer teologia e que, provavelmente, foi o modo que mais influenciou a Teologia no século XX, chegando ao século XXI com novas linguagens e perspectivas. Seu nascimento é motivado pela abertura oferecida pelo Concílio Vaticano II e o modo que este concebe a relação da Igreja com a sociedade. O Vaticano II tem a sua recepção na América Latina, na Conferência de Medellín, em 1968, e, a partir daí o tema libertação e a produção de uma teologia que se importasse diretamente com a realidade dos povos oprimidos ganha força e passa a fazer o seu caminho. É importante registrar que nasce em abertura ecumênica e aos poucos ultrapassa os limites da confessionalidade, isto é, a Teologia ocupa-se de situações anteriormente tidas como estranhas à fé, porém, agora, vistas como inerentes à fé, já que toca na questão do humano, na relação entre as pessoas, no transformar na sociedade e na perspectiva de futuro que se pode esperar. Trata-se de uma Teologia da práxis, maneira como se chamam estas Teologias que visam uma ação social. No específico da Teologia da Libertação, ela parte de um método que se deixa questionar pela realidade existente, aprofunda esta questão iluminada pelos fundamentos da fé e da religião e, em seguida, oferece pistas e caminhos de ação e transformação da realidade, daí a expressão libertação, sendo sempre entendida como libertação humana e social. Parte de uma situação específica, de uma posição, basicamente a partir dos pobres, excluídos e vulneráveis. Esta Teologia ou modo de fazer Teologia teve grande influência em outras expressões, como as chamadas Teologias Feministas, Teologias Negras, Teologias Indígenas, etc.

Com este editorial para o número de Interações, que tem como dossiê Teologia: epistemologias, demonstramos a abrangência do discurso teológico e a complexidade histórica de sua construção. Assim como em outras épocas, a Teologia se vê desafiada a buscar novas epistemologias para produzir o seu pensar e, com isso, oferecer algo concreto e relevante às pessoas e à sociedade. Hoje, os desafios são muitos, como o novo posicionamento das religiões e as novas situações no modo de crer, as múltiplas realidades humanas, as graves crises políticas que sufocam a sociedade, as migrações, a valorização e a proteção das culturas e povos originários, o respeito ao meio ambiente, a defesa dos direitos humanos, a garantia da liberdade religiosa e de toda a liberdade de expressão, a questão de gênero e os diversos desafios trazidos pelo tempo presente. As situações e problemáticas se somam e nos interpelam. Elas são urgentes. Assim como outras ciências, a Teologia deve oferecer o seu discurso, garantido aquilo que lhe é próprio, fugindo de toda e qualquer intenção fundamentalista, mas abrindo novas perspectivas de interpretação dos fenômenos que nos rodeiam e que pedem de nós uma resposta, uma posição, em específico, uma posição teológica. Em muitos casos, a resposta virá para a própria pessoa, para o seu entendimento e situar no tempo e na história. Em outros casos, a resposta virá para a comunidade, que vive da fé e necessita de fundamentos e princípios para decidir e encontrar caminhos. Mas em outros, as perguntas e respostas virão pela academia, o que entendemos ser um lugar privilegiado para produzir Teologia hoje. Nela, os saberes se encontram, as realidades são confrontadas e o pensar é concebido diante de um espaço amplo, inesgotável, sendo o pensar e o pesquisar também em busca de uma responsabilidade coletiva.

É com este entusiasmo que anunciamos este novo número da Interações. Acreditamos que ela vai contribuir para o fazer teológico e para as novas perspectivas trazidas para a Área de Ciências da Religião e Teologia.

Agradeço ao Prof. Dr. Flávio Senra pelo convite e espero com ele e com todo corpo editorial colher os frutos desta nova edição.

Agradecimentos

Agradeço ao Prof. Dr. Flávio Senra pelo convite e espero com ele e com todo corpo editorial colher os frutos desta nova edição.

Notas

Cesar Kuzma Doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio. É o atual presidente da SOTER (2016-2019).
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