Resumo: Este artigo oferece uma análise a partir da crítica bíblica feminista das raízes patriarcais da hermenêutica bíblica abrangendo dois momentos: os processos patriarcais na seleção e canonização das Escrituras e os modelos interpretativos patriarcais dos primeiros intérpretes denominados “pais da igreja” no período patrístico-medieval. Situado a partir das propostas hermenêuticas feministas contemporâneas, o objetivo é fazer uma análise da hermenêutica bíblica dos primeiros séculos da Igreja Cristã, destacando as raízes patriarcais da tradição interpretativa que moldou a teologia bíblica e seus efeitos na vida das mulheres. O texto pretende contribuir para o diálogo teórico no campo da interpretação bíblica e dos estudos bíblicos feministas visando a superação de modelos interpretativos patriarcais.
Palavras-chave:Interpretação bíblicaInterpretação bíblica, Modelos interpretativos Modelos interpretativos, Leituras Feministas Leituras Feministas, Patriarcado Patriarcado.
Abstract: This article offers an analysis from the feminist biblical critique of the patriarchal roots of biblical hermeneutics covering two moments: the patriarchal processes in the selection and canonization of the Scriptures and the patriarchal interpretative models of the early interpreters called "fathers of the church" in the patristic-medieval historical period. Situates in the contemporary feminist hermeneutical proposals, the goal is to analyze the biblical hermeneutics of the early centuries of the Christian Church by highlighting the patriarchal roots of the interpretative tradition that shaped biblical theology and its effects on women's lives. The text intends to contribute to the theoretical dialogue in the field of biblical interpretation and feminist biblical studies aimed at overcoming patriarchal interpretative models.
Keywords: Biblical interpretation, Interpretative models, Feminist Readings, Patriarchy.
Dossiê
Interpretação Bíblica: raízes patriarcais e leituras feministas
Biblical Interpretation: patriarchal roots and feminist readings
Recepção: 17 Setembro 2018
Aprovação: 15 Novembro 2018
A tradição patriarcal na interpretação bíblica é tão antiga como a própria formação do Cânon que compõe o que hoje constitui as Sagradas Escrituras que para as Igrejas Cristãs, é mais conhecido como Bíblia[3]. O desenvolvimento dos estudos feministas no campo da exegese e hermenêutica bíblica tem contribuído para chamar a atenção para este uso da Bíblia na legitimação e perpetuação de sistemas patriarcais predominantes na sociedade e na Igreja Cristã.[4] As leituras feministas têm oferecido outros modelos interpretativos que têm representado, no campo da hermenêutica bíblica, uma transição paradigmática em vista de superação dos modelos patriarcais que permanecem vigentes, principalmente na prática interpretativa de comunidades religiosas. As leituras feministas têm desenvolvido novas perspectivas de exegese e hermenêutica bíblica em busca de maneiras de “libertar” o texto bíblico de suas amarras patriarcais visando a proclamação de uma fé cristã mais justa e igualitária.
Nesse sentido, identificar raízes patriarcais na interpretação bíblica é um dos passos importantes no processo de despatriarcalização das tradições interpretativas. Este artigo procura apresentar o lugar da Bíblia para as intérpretes feministas e o desafio de lidar com a herança patriarcal. Após apresentar um panorama geral da hermenêutica bíblica feminista e revistar alguns momentos-chave dessa tradição, o texto se atém a dois momentos específicos: O primeiro trata do processo de patriarcalização[5] na formação e canonização dos textos escriturístcos do Antigo Testamento (Bíblia Hebraica) e do Novo Testamento (Testamento Cristão)[6] e o segundo remete aos modelos de interpretação bíblica dos chamados “pais da igreja”[7] responsáveis pelas primeiras leituras interpretativas da fé cristã do período patrístico e medieval. O pano de fundo para essa análise é perceber os efeitos dessa tradição interpretativa na vida das mulheres.
É comum, nos círculos feministas, que teólogas e pastoras sejam indagadas sobre como podem ser, ao mesmo tempo, feministas e cristãs. Além disso, no caso de pastoras e biblistas é preciso constantemente responder: Como podem feministas continuar trabalhando com a Bíblia, um livro tão patriarcal? Como pode a Bíblia servir como fonte de espiritualidade para mulheres feministas?[8]
Existe uma grande variedade de respostas e opiniões a respeito da Bíblia entre as intérpretes feministas. Feministas consideradas “radicais” ou “pós-cristãs”, entendem que Bíblia é um instrumento patriarcal de opressão das mulheres e, portanto, não serve para construir uma espiritualidade de libertação. Mary Daly, teóloga católica, é uma das biblistas identificadas nessa linha. Em 1975 ela escreveu: “A coragem de deixar uma tal instituição como a igreja Católica e, para além dela, o Cristianismo em geral e qualquer religião patriarcal, em todas as suas formas – tanto sacral quanto secular – brotou muitas vezes do desespero.”[9] A exemplo de Mary Daly, muitas outras feministas cristãs com o mesmo argumento abandonam o cristianismo e a Bíblia por considera-las parte de uma tradição patriarcal irrecuperável, buscando outras fontes de espiritualidade que sejam mais libertadoras.
Um outro grupo, mesmo reconhecendo elementos patriarcais que constituem a Bíblia, identificam elementos libertadores que se sobressaem numa leitura mais abrangente da narrativa bíblica. A elas é atribuída a caracterização de “feministas reformistas”. Teólogas como Letty Russel, Rosemary Reuther e Phyllis Trible argumentam que “a Bíblia não é totalmente androcêntrica, mas também contém alguns princípios éticos absolutos e tradições feministas libertadoras” (FIORENZA, 1992, p. 54) seguem considerando a Bíblia como Escrito fundante da fé cristã e do judaísmo, não abrindo mão de disputar seu uso e interpretação para a libertação das opressões e para construção de relações de equidade e justiça. (SAKENFELD, 1995, p. 65).
Cristina Conti, por exemplo, afirma que a Bíblia é testemunho da revelação, embora não deva ser confundida com a revelação mesma (CONTI, 1998, p. 03). Já Letty Russell chama atenção para o fato de que a Palavra de Deus não é equivalente aos textos bíblicos (RUSSELL, 1985, p. 11-18). Nessa mesma linha a Leitura Popular da Bíblia afirma que a Bíblia e a Palavra de Deus não são idênticas. A Bíblia só se converte em Palavra de Deus quando lida em comunidade de fé, tendo em vista a realidade e a vida. No método da Leitura Popular da Bíblia, as experiências e a vida das pessoas e os textos bíblicos são colocados lado-a-lado. Insiste-se na relação entre o livro da vida e o livro da Bíblia. Desta forma, abre-se caminho para relações mais dialógicas, superando relações autoritativas e verticalizadas com o texto bíblico. A perspectiva feminista tanto tem ajudado a construir essa perspectiva metodológica quanto tem encontrado espaço nela. (NEUENFELDT , 2005, p. 117).
A grande maioria das biblistas assume relações e percepções distintas e graduadas do lugar que a Bíblia ocupa na vida e na espiritualidade das mulheres. A questão central e que motiva a presente reflexão é que, mesmo reconhecendo as marcas e raízes patriarcais presentes nos textos e nas interpretações, a Bíblia continua sendo recurso importante para muitas mulheres feministas e cristãs que mantém sua espiritualidade e militância no interior de instituições cristãs e, portanto, atuam no campo da disputa da Bíblia como instrumento de libertação contra todas as formas de opressão, violência e injustiça.
Uma das primeiras críticas feitas à Bíblia como escrito patriarcal usado contra as mulheres foi efetuada já no século XIX por Elizabeth Cady Stanton. Em 1985 um grupo de mulheres lideradas por Stanton publicou a obra inédita denominada The Women’s Bible, um projeto coletivo de interpretação bíblica que nasceu como um projeto de revisão dos conteúdos sexistas da Bíblia. The Women’s Bible traz uma crítica radical ao uso das Escrituras contra as mulheres, denunciando desde a ausência e invisibilização das mulheres nos textos quanto as interpretações favoráveis à escravidão e à subjugação das mulheres na Igreja e na sociedade. O trabalho de revisão interpretativa da Bíblia foi realizado por 30 mulheres e alguns poucos homens parceiros dos Estados Unidos e da Europa, especialistas em línguas originais e teologia. The Women’s Bible recebeu muitos ataques e críticas, porém marcou a história da interpretação bíblica a partir das mulheres. (DEIFELT, 1992, p. 13).
O que motivou inicialmente o projeto foi o contexto do movimento das sufragistas que defendia o direito das mulheres ao voto e à propriedade. Um dos problemas que as mulheres do movimento frequentemente enfrentavam era o uso de textos bíblicos, por parte de seus adversários, que afirmavam que a vontade de Deus era a submissão das mulheres, e que elas não deveriam falar em público. Textos bíblicos não só inibiam a participação das mulheres, mas também as tachavam de pecadoras, pois elas iam contra a vontade de Deus. A partir do uso da Bíblia contra a emancipação e direito das mulheres é que Stanton decidiu abordar especificamente a questão das mulheres na Bíblia. Stanton começou a planejar um estudo acerca da Bíblia em 1886. Este estudo iria analisar a Bíblia não como um livro inspirado diretamente por Deus, mas como um livro escrito por seres humanos em contextos específicos. (DEIFELT, 1992, p. 06).
O pressuposto de que a Bíblia funciona como uma legitimação do patriarcado social e eclesiástico está presente em todo comentário desenvolvido em The Women’s Bible. O comentário está dividido em duas partes. O primeiro volume se atém aos textos do Pentateuco, enquanto que o segundo volume se dedica ao estudo de outros textos do Antigo Testamento e aos textos do Novo Testamento. O comentário é baseado, principalmente, em uma teologia da criação. O primeiro relato da criação, em Gênesis 1, foi usado como princípio de análise. Os capítulos 1-3 do livro de Gênesis ocupam lugar importante na construção do argumento exegético-teológico. (DEIFELT, 1992, p. 10) A interpretação de Gên. 3.1-24, que é um dos textos bíblicos utilizado nas interpretações patriarcais para justificar a submissão das mulheres, é questionada por Stanton que faz uma contra argumentação destacando a coragem, a dignidade e a elevada ambição de Eva por conhecimento e denuncia a interpretação masculina responsável pela doutrina de submissão e subordinação da mulher baseada nos relatos da criação. (STANTON, 1974, p. 15).
Segundo Elisabeth S. Fiorenza os pressupostos que deram base ao projeto The Women’s Bible ainda são considerados válidos pelas intérpretes feministas de hoje. São eles: a Bíblia é usada como arma política contra a emancipação das mulheres; a Bíblia é um livro político; a Bíblia é um livro patriarcal. Por essa razão o trabalho de mulheres em torno de uma interpretação não patriarcal da Bíblia permanece pertinente e necessário. (FIORENZA, 1992, p. 30).
As leituras feministas da Bíblia são, portanto, herdeiras desse legado histórico, fazendo da hermenêutica bíblica uma estratégia de luta contra o patriarcado. Reconhecer as raízes da patriarcalização da interpretação bíblica consiste em um dos passos para enfrentar e desconstruir leituras patriarcais da Bíblia que atingem e afetam a vida das mulheres. O projeto The Women’s Bible pode servir de ilustração para as implicações políticas e hermenêuticas de uma interpretação bíblica feminista e o impacto para a tarefa interpretativa de uma leitura crítica ao patriarcado.
Após discutir brevemente diferentes perspectivas de intérpretes feministas acerca da Bíblia e visualizar um marco importante no processo de despatriarcalização do texto bíblico, segue o desafio de lidar com a tradição interpretativa patriarcal que o acompanha. Como visto, essa é uma luta e um desafio das mulheres e intérpretes feministas[10] de ontem e de hoje. O patriarcado bíblico é inimigo antigo que permanece aterrorizando a vida de mulheres. Phyllis Trible, em seu trabalho intitulado Depatriarchalizing in biblical Interpretation, recupera uma afirmação de Kate Millet: “O patriarcado tem Deus ao seu lado”. [11] Trible busca, a partir dessa referência, evidenciar a tendência patriarcal dos textos bíblicos do Antigo Testamento. (TRIBLE, 1973, p. 30).
O movimento de mulheres do século XIX começou nomeando o poder cultural-político dominante nas relações e estruturas do patriarcado. O termo significa literalmente “dominação do pai”. Desde então, este conceito-chave da análise feminista tem sido importante para os movimentos e estudos feministas. Na interpretação bíblica tornou-se também uma categoria importante de análise do texto bíblico. No Dicionário de Teologia Feminista o termo patriarcado é trabalhado por Luise Schottroff e Christine Schlumberger e é definido, antes de tudo, como um conceito de luta e depois como “um vasto sistema de dominação (poder/domínio /poder-hierarquia) que abrange tanto formas de organização social pré-estatais como as sociedades segmentárias, além de formas estatais como o Império Romano à época do aparecimento do cristianismo ou as atuais estruturas de Estado e de poder”. (GOSSMAN, 1997, p. 371).
Nos estudos bíblicos feministas também tem sido de importante contribuição o conceito de “kiriarquia” ou “kiriocentrismo”, desenvolvido por Elisabeth S. Fiorenza, e entendido como um sistema correlacionado de dominações. De acordo com Fiorenza as sociedades kiriarcais precisam de uma "classe serva" de pessoas. A existência dessa classe é mantida através de leis, de sistemas educacionais, políticos e religiosos. Tal sistema se sustenta na crença de que os membros dessa "classe serva" são inferiores por natureza ou por decreto divino e devem submeter-se aos indivíduos e grupos a quem estão destinados a servir. (FIORENZA, 2009, p. 140) Dentro dessa compreensão, o patriarcado, visto por lentes feministas, não é compreendido como um sistema dualista essencialista, mas como um conceito analítico que permite perceber as estruturas e as relações que conformam o sistema a partir das interações com múltiplos elementos, como gênero, raça, classe, e suas inscrições discursivas e reproduções ideológicas.
Outro elemento teórico e conceitual que têm impactado a discussão sobre patriarcado é a discussão em torno da categoria de gênero. Nas lutas e estudos feministas o conceito de patriarcado tem sido problematizado e ampliado, tanto através da emergência e utilização da categoria de gênero e seus desdobramentos, bem como através da intersecção com outras questões como raça e etnia, classe social, geração, identidades. A utilização da categoria de gênero nos estudos feministas e estudos queer[12] tem sido importante para ampliar a análise crítica dos sistemas de poder para além do dualismo ou binômio homem-mulher.
Teólogas e exegetas pós-coloniais, tais como Kowk Pui-lan e Musa Dube, realizam o cruzamento entre a crítica patriarcal e a crítica colonial nos estudos bíblicos visando uma crítica do poder colonial-patriarcal que sustenta as teologias e leituras fundamentalistas, patriarcais e colonialistas da Bíblia. Elsa Tamez, teóloga e biblista feminista latino-americana, fazia, desde os primeiros momentos de vigência da Teologia da Libertação na América Latina, uma crítica que ia além da questão econômica de classe. Sua crítica às opressões já agregavam as categorias de gênero e colonialidade. Dizia ela: “a opção pelo pobre não dá conta de abarcar totalmente as outras opressões, além da econômica”. Ela pensa que “a libertação tem em primeiro lugar que ver primeiramente com a dignidade humana e o respeito, depois com a pobreza. Para uns, os direitos fundamentais são individuais; para outros são em primeiro lugar coletivos, culturais”. Tamez afirma, ainda, que a libertação não pode ser apenas do capitalismo, mas da colonialidade.[13] Por isso, a construção de leituras feministas no campo da religião, da teologia e da hermenêutica bíblica emprestam e aprofundam a discussão sobre patriarcado para entender como se constroem as relações de poder sustentadas em símbolos culturais, conceitos normativos, instituições e identidades subjetivas[14] que mantem determinadas pessoas e grupos sociais em posição de inferioridade. De modo específico, as teologias e hermenêuticas bíblicas feministas, utilizando-se de instrumentais próprios, explicitam de que forma o patriarcado se materializa nas concepções e estruturas religiosas, inclusive a partir dos textos sagrados. Tal abordagem permite descobrir os elementos patriarcais presentes na tradição, fundamentais para os processos de despatriarcalização.
A pesquisa bíblica feminista tem demostrado que o processo de constituição do cânon bíblico, primeiramente marcado pela passagem da tradição oral até tornar-se Escritura, foi marcado por intencionalidades patriarcais-coloniais de marginalização e exclusão das mulheres da memória bíblica. Na tradição escrita, em muitos casos, as palavras das mulheres foram deixadas de fora ou foram apresentadas de forma distorcida, controlada pelas elites letradas masculinas. Kwok Pui-lan afirma que, quando comparada a autoridade oral em relação à autoridade baseada no manuscrito, a primeira é considerada intrinsecamente mais democrática ou igualitária, sendo que a segunda tende a ser mais elitista. Por isso, ao falar da Bíblia como escrito canônico deve-se levar em conta diversos processos que operaram, muitas vezes, controles, interesses e ideologias patriarcais. (PUI-LAN, 1998, p. 128).
Já de acordo com Dube, falar de Escritura Sagrada significa reconhecer pelos menos cinco pressupostos: 1. uma cosmovisão social que estabelece uma nítida diferença entre sagrado e secular; 2. uma contraposição entre textos escritos e textos orais; 3. um cânon literário visto como normativo; 4. a presença de instituições religiosas como guardiãs dos cânones escriturísticos; 5. formas particulares de interpretação a serviço do cânon sagrado. A atenção a esses pressupostas permite não apenas desmascarar as interpretações patriarcais do texto bíblico a partir de sua configuração canônica, mas trazer à tona os silenciamentos, exclusões e ideologizações pelas quais os textos bíblicos foram submetidos em seu processo de escrita e canonização. (DUBE, 1988, p. 59).
Num olhar mais abrangente para as Escrituras que resultaram do processo de seleção e canonização é possível identificar as marcas de uma narrativa de linha patriarcal predominante. No Antigo Testamento são predominante as imagens de Deus relacionadas ao poder masculino: Rei, Senhor, Pai, Poderoso, Deus guerreiro (Salmo 93,1; Isaías 64,8; I Crônicas 29:11, Salmo 46:7) e nas narrativas da Criação sobressai uma visão de supremacia masculina e subordinação da mulher na ordem da criação (Gên. 2-3). Além disso, Iahweh é apresentado como o Deus dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó (Êxodo 3,6, I Reis 18,36) e as matriarcas aparecem sob uma moldura patriarcal de rivalizações (Gênesis 16,1-12 e 29-30). No código legal de Israel as mulheres aparecem como mera propriedade (Êxodo 20,17). A violência contra a mulher performa os quadros narrativos dos períodos bíblicos dos Juízes e da monarquia (Juízes 19, Juízes 11,29-40). As mulheres são excluídas dos espaços sagrados do culto e do templo e seus corpos vão sofrendo gradativa exclusão legitimada pelas leis sacerdotais (Números 5,11-31, Levítico 12 e 15,19-24). Estes são apenas alguns breves destaques do que aqui denomina-se de linha narrativa patriarcal predominante do Antigo Testamento.
Exegetas e hermeneutas especialistas no Antigo Testamento têm ajudado a “tirar o véu” da tradição patriarcal que cobre o Antigo Testamento. Um dos trabalhos importantes é o de Phyllis Trible, como visto acima. O método interpretativo usado por Trible é a crítica retórica que se concentra no movimento do texto mais do que nos fatores históricos extrínsecos. Em seu artigo conclui: “De várias formas os textos bíblicos demonstram um princípio de despatriarcalização agindo na Bíblia. A despatriarcalização não é uma operação que o/a exegeta perfaz no texto. Ela é uma hermenêutica operando dentro da própria Escritura”. (TRIBLE, 1973, p. 48) Neste sentido, o trabalho da exegeta feminista é encontrar e operar com o texto a partir dessa perspectiva libertadora. Isto é o que se constitui como princípio da despatriarcalização agindo na Bíblia.
A abordagem feminista do Antigo Testamento, visando a despatriarcalização da tradição interpretativa, é marcada pelo esforço e estratégias hermenêuticas para lidar com textos que foram traduzidos do hebraico para o grego quase exclusivamente por homens, o que desafia a descobrir o androcentrismo nas traduções e recuperação de informações que foram sistematicamente perdidas ou suprimidas. De acordo com Silvia Schroer não existem métodos de exegese feminista específicos do Antigo Testamento, mas cada método pode ser ligado a uma opção feminista. (SCHOTTROFF, SCHOERER; WACHER, 2008, p. 88) Em termos de seleção dos textos canônicos, soma-se o esforço de trabalhos feministas de resgate de tradições bíblicas entre os apócrifos e pseudoepígrafes[15] que se contraponham à linha predominantemente patriarcal dos textos canônicos. A pergunta “o fato de não ter sido aceito no cânon teve motivos misóginos?” tem conduzido a uma pesquisa feminista cada vez maior entre os textos considerados não-canônicos.[16]
Na perspectiva da crítica pós-colonial de Pui-Lan, a formação do cânon religioso é claramente uma questão de poder. Neste jogo de poder muitos grupos dentro da comunidade religiosa, tais como mulheres, pobres e pessoas marginalizadas, não tiveram poder de decisão. O cânon fechado por um determinado grupo com uma visão cultural e religiosa acabou por excluir outros grupos e outras manifestação culturais. (PUI-LAN, 1995, p. 16).
A exegese e a hermenêutica feminista do Antigo Testamento requerem posturas que releiam a história da salvação, a história de Deus com seu povo, a partir das experiências das mulheres e dos grupos marginalizados como lugar de manifestação da Revelação de Deus. Esta postura implica em tomar o texto bíblico a partir do seu longo processo de fixação histórica, de redação e compilação. Processo este influenciado pela configuração política, econômica, social, religiosa, de gênero e poder. A hermenêutica da suspeita[17] como instrumental de análise permite uma leitura crítica da tradição patriarcal-colonial do Antigo Testamento atentando não apenas para as inclinações explícitas, mas para as marcas mais sutis de androcentrismo na cosmovisão implícita nos textos bíblicos que servem a interesses patriarcais e coloniais.
Em relação às narrativas que compõem o Novo Testamento é preciso reconhecer que elas têm como contexto o Império Romano, cuja cultura de dominação imperial-patriarcal é predominante em todos os níveis (familiar, social e político). Soma-se ao patriarcado romano o patriarcado judeu que é o patriarcado social-religioso vivenciado pelo grupo que vive sob a opressão do império romano.
É nesse contexto de múltiplos modelos de dominação que surge o que hoje se conhece como Novo Testamento, dentro de uma realidade de duplo patriarcado. Patriarcado religioso judeu e patriarcado sócio-político greco-romano. Patriarcado de dominadores e dominados. Portanto, os textos precisam ser compreendidos a partir das condições patriarcais e das ideologias de dominação nas quais se originaram. Desta primeira constatação fica evidente a necessidade de uma interpretação de crítica patriarcal dos textos do Novo Testamento.
Elisabeth Schussler Fiorenza trouxe importante contribuição para a despatriarcalização da hermenêutica bíblica do Novo Testamento. Em seu livro As origens cristãs a partir da mulher ela faz uma crítica às tradições patriarcais que predominaram na formação e canonização dos textos neo-testamentários e propõe uma reconstrução das origens cristãs a partir da mulher. (FIORENZA, 1992). Fiorenza sugere que uma interpretação feminista do Novo Testamento deve classificar e testar os textos bíblicos em um processo de análise crítica e avalia-los quanto ao seu conteúdo e função na perpetuação e legitimação de estruturas patriarcais, não apenas em seus contextos históricos originais, mas também no contexto contemporâneo.
As abordagens feministas têm destacado que o cânon do Novo Testamento foi lentamente tomando forma no processo da crescente patriarcalização da igreja primitiva. Segundo Reimer o caráter “contra cultural” do movimento de Jesus, com uma visão igualitária entre homens e mulheres, foi pouco preservado na tradição normativa no Novo Testamento. A ambiguidade dos escritos originais de Paulo em relação às mulheres, bem como a patriarcalização do cristianismo que ocorreu nas cartas deutero-paulinas e pastorais suprimiram a visão inicial. (REIMER, 2005, p. 75) Da mesma forma, de acordo com Ruether, o conflito entre normas libertadoras e patriarcais está presente no Novo Testamento de um modo mais radical do que nas Escrituras Hebraicas. Segundo ela, o caráter libertador do movimento de Jesus foi derrotado pela linha hermenêutica dominante daqueles grupos que moldaram o cânone escrito do Novo Testamento a tal ponto que só é possível encontrá-lo nas entrelinhas do texto (RUETHER, 1993, p. 162).
Marga Janete Ströher, seguindo a mesma reflexão de Fiorenza, Reuther e Reimer, revela que a canonização dos escritos primitivos cristãos se deu num processo de luta contra e a favor da liderança das mulheres. A patriarcalização gradual das igrejas cristãs é responsável pela marginalização das mulheres nas funções de liderança, promovendo uma virada da “Igreja na casa” para a “igreja como casa patriarcal de Deus”. (STROHER, 1996, p. 19).
Mas, nem tudo foi perdido no processo de lutas ideológicas do cânon. A fórmula batismal registrada em Gálatas 3.27 e 28 tem sido apontada como um exemplo contundente da proposta de um novo modelo de vida e relações. Segundo essas leituras, o texto aponta para a memória do projeto igualitário do movimento de Jesus que aparece como uma linha tensionante na narrativa de tendência patriarcalizante. É nessa linha libertadora dessa memória subversiva que atua a hermenêutica feminista visando a despatriarcalização dos textos bíblicos no Novo Testamento.
Em resumo, a mentalidade patriarcal dos escritos bíblicos pode ser apresentada como um dos resultados das disputas interpretativas dos primeiros grupos narrativos-escriturísticos. A redação das fontes vétero e neo-testamentárias se deu, majoritariamente, sob a perspectiva de homens representantes das elites com o poder e as condições necessárias para a realização de tais registros. Esses sujeitos e seus processos se deram, marcadamente, dentro de um contexto e cultura androcêntricas e patriarcais que deixam vestígios nos documentos que produziram. Não é de se admirar, portanto, que nessas fontes as mulheres sejam apresentadas prioritariamente como uma presença marginal na história, destacando-se uma narrativa histórica de linha marcadamente androcêntrica. Nessa perspectiva, não é exagero dizer que a religião bíblica herdada foi o resultado interpretativo de tendências patriarcais que sobrepujou a memória e herança das dissidências e resistências.
Para além dos processos de redação, seleção e composição do cânon bíblico, a história da transmissão da tradição bíblica também deve ser analisada criticamente. Frequentemente a tradição interpretativa dos textos bíblicos é acompanhada por ensinamentos patriarcais. Por isso a interpretação feminista da história da transmissão de um texto bíblico desempenha papel importante no processo de despatriarcalização. A história da transmissão que surge a partir de um texto bíblico não corresponde, muitas vezes, a sua intenção original, ou mesmo, seu sentido original não corrobora para a perpetuação de ideologias patriarcais, misóginas e colonizadoras.[18] Neste sentido, uma hermenêutica bíblica feminista que visa a despatriarcalização precisa percorrer desde o texto em si até a história interpretativa de sua transmissão e fixação.
Os “pais da igreja”, considerados “guardiões” da tradição e da doutrina, foram os primeiros representantes da tradição eclesiástica dos apóstolos, tornaram-se os “pais”, “donos” e “senhores” da interpretação bíblica e primeiros intérpretes autorizados da Igreja Cristã nos seus primeiros séculos. (HALL, 2000, p. 46-57). Tendo a interpretação bíblica em suas mãos, os pais patrísticos-medievais foram fundamentais no desenvolvimento e sistematização de uma teologia patriarcal de desprezo às mulheres (FIORENZA, 1992, p. 74). Suas concepções e visões interpretativas em torno da mulher perduraram toda idade medieval e seus efeitos são perceptíveis ainda hoje na maioria das correntes cristãs. Um exemplo importante é encontrado na história de transmissão da narrativa de Genesis 1-3 onde a atuação interpretativa dos pais da Igreja acompanha a história do texto, perpetuando ideologias misóginas de subordinação e dominação a partir de uma antropologia patriarcal. (SUDÁRIO, 2009, p. 25).
A Hermenêutica bíblica patrística-medieval que acompanhou os textos bíblicos foi marcada por uma subordinação das Escrituras bíblicas à doutrina da Igreja, ou seja, a interpretação da Bíblia deixou de ser a principal tarefa da Igreja para tornar-se a comunicação da doutrina. A Bíblia, neste sentido, ficou subjugada à doutrina e o texto bíblico foi usado para legitimação da doutrina. A ênfase do ensino estava nos deveres morais e os exemplos bíblicos funcionavam apenas como ilustração e legitimação destes ensinos. Durante esse período, aceitou-se geralmente o princípio de que qualquer interpretação de um texto bíblico devia adaptar-se à tradição e à doutrina da Igreja. A fonte da teologia não era fundamentalmente a Bíblia, mas a leitura da Bíblia conforme a tradição da Igreja, entendida como a interpretação realizada por pessoas autorizadas. A Bíblia, enquanto palavra revelada, estava submetida às formulações doutrinárias da Igreja, o que caracterizou a interpretação bíblica patrística-medieval. (ZABATIERO, 2011, p. 29).
Foi neste clima bíblico-teológico de defesa da doutrina da fé cristã que surgiu a partir dos pais patrísticos-medievais uma ideologia da mulher como um ser duvidoso e maligno maquinado a partir da interpretação de determinados textos bíblicos que procuravam justificar uma ordem patriarcal de dominação do homem sobre a mulher através de uma ideologia de demonização das mulheres.
Vale ressaltar que a visão que se tinha da mulher no período da Idade Média era predominantemente negativa. Sua origem, muito antiga, foi moldada de acordo com a interpretação teológica dos homens da Igreja, que situava a humanidade em uma batalha universal, na qual o Diabo usava a mulher para espalhar sua obra de perdição. (GEVEHR; SOUZA, 2014, p.115).
Revisitar o passado para buscar nele algumas respostas para o presente é um dos propósitos ao qual se propõe este artigo. Desvendar o passado, procurando nele as fontes que nos permitem questionar formas de ver, sentir e representar o mundo e as relações é, sem dúvida, um exercício constante que nos faz reelaborar as formas de interpretação da Bíblia e das realidades que nos cercam. Nesse contexto, a história interpretativa que acompanha os textos bíblicos aparece como uma dessas possibilidades de (re)visitar o passado, encontrando nele possíveis respostas para determinadas visões produzidas sobre as mulheres.
A mentalidade patriarcal de desprezo às mulheres dos pais medievais baseada no uso de determinados textos bíblicos estabeleceu uma teologia bíblica misógina cujo os efeitos perduram até os dias atuais. Segundo Gebara, em grande medida, essa interpretação contribuiu para a criação da ideia de que a mulher é a origem do mal. (GEBARA, 2000, p.31). Para os pais da Igreja, “as criaturas do sexo feminino não conheciam comedimento, ou eram extremamente virtuosas ou perdidas nas profundezas da depravação alegando encontrar vestígios sobre o elevado grau de perversidade atingido pelas mulheres nas páginas da Bíblia”. (GEVEHR; SOUZA, 2014, p. 118).
O discurso bíblico-teológico da “maldição de Eva” dos pais-medievais acompanhou as mulheres e seus corpos que simbolizavam perigo e tentação ao mal. Além dessa ameaça, elas amedrontavam a alma dos homens. Segundo a famosa citação de Tertuliano de Cartago “A mulher é a porta do inferno. É por meio da mulher que o diabo atinge o homem”. Essa citação resume, de modo contundente, o lugar e o papel da mulher na interpretação bíblica dos pais da igreja. (SUDÁRIO, 2009, p. 29).
A interpretação dos textos de Gênesis 2 e 3 feita pelos pais da igreja nos primeiros séculos da igreja repercutiu decisivamente para a construção de uma mentalidade cristã que liga a origem do mal e do pecado às mulheres. Segundo Ruether: “alguns textos da Escritura e muitos textos de comentários teológicos dos “pais da igreja” afirmam que os seres femininos são não apenas inferiores aos masculinos, mas sua “malignidade” é maior. Esta interpretação excludente das mulheres foi decisiva por muito tempo na teologia.” (RUETHER, 1993, p. 85).
De acordo com Gebara, a ideia do mal relacionado à mulher está relacionada diretamente com uma antropologia patriarcal baseada nas narrativas da criação e suas interpretações dualística e hierárquica marcada por dualismos hierárquicos, tanto filosóficos como religiosos. (GEBARA, 2000, p. 31). Rosemary Reuther, corrobora, indicando que Agostinho de Hipona é uma fonte clássica desse tipo de antropologia patriarcal, considerado o maior artífice da ortodoxia cristã ocidental. Segundo ela, as grandes convicções teológicas do Ocidente foram forjadas a partir da leitura e interpretação canônica das lentes agostinianas da fé e das Escrituras. Agostinho representa uma síntese da grande tradição patrística responsável pela compreensão cristã que deu forma à sociedade e a Igreja ocidental.[19] A visão de Agostinho sobre as mulheres como “filhas de Eva” e, consequentemente, como origem e herdeiras do pecado e mal original, fez com que ele declarasse que a mulher é imagem de Deus somente de um modo secundário, quando unida a um homem. Já o homem possui a imagem de Deus de forma definitiva e assume, portanto, caráter normativo. (RUETHER, 1993, p. 86).
Em resumo, a leitura que os pais da igreja fizerem das narrativas das origens em Gênesis, vendo nestes textos bíblicos a diferença entre o ser homem e ser mulher a partir de uma visão antropológica dualista hierárquica serviu de fundamento para a multissecular vinculação das mulheres à culpa, através da figura arquetípica de Eva. A “lupa” usada pelos pais da igreja para interpretar os textos bíblicos colaborou para as construções simbólicas que perpetuaram a situação de exclusão e subordinação social e religiosa das mulheres.
Outro efeito da difamação bíblico-teológica contra a mulheres promovida pelos pais patrístico-medievais vai resultar na exclusão das mulheres das funções eclesiais, discussão que estava em curso desde os séculos segundo e terceiro. Segundo Fiorenza: “a polêmica dos autores patrísticos contra a liderança e ofício eclesial de mulheres na igreja resultou na categoria de heresia. As mulheres serão incialmente excluídas e depois perseguidas e acusadas de heresias”. (FIORENZA, 1992, p. 79).
Os pais patrístico-medievais, em sua maioria, defendiam uma compreensão patriarcal de igreja a partir de sua leitura de textos do Novo Testamento, alegando a sucessão e tradição apostólica e argumentando, por exemplo, que Jesus não comissionou mulheres para pregar, nem as admitiu na última ceia, citando textos como Gen. 2-3, I Cor. 14 e os códigos domésticos. Segundo Fiorenza, enquanto as mulheres que pregavam e ensinavam evocavam o exemplo da apóstola Tecla, Tertuliano denunciava os Atos de Paulo e Tecla como fraude. Tertuliano, ofendido pela insolência das mulheres que ousavam “ensinar, participar em disputas teológicas, exorcizar, prometer curas e batizar”, argumentava que não era permitido às mulheres “falar na igreja, ensinar, batizar, sacrificar, realizar qualquer outra função dos varões, ou reclamar qualquer outra forma de funções eclesial.” (FIORENZA, 1992, p. 82).
Em resumo, os elementos aqui levantados revelam um clima teológico-patriarcal que predominou na seleção dos textos que se tornaram “Sagradas Escrituras” e na tradição interpretativa dos pais da igreja nos primeiros séculos. Portanto, é pertinente a suspeita na recepção destes textos por parte das mulheres intérpretes. Essa suspeita hermenêutica acompanhou o trabalho de Elizabeth Cady Stanton e a levou a afirmar que os autores estavam marcados por suas concepções patriarcais quando escreveram e interpretaram os textos. Assim, a partir de uma leitura crítica feminista a questão-chave não é mais se o texto foi escrito a partir da perspectiva patriarcal — a maior parte dos textos foi — mas se foi escrito e interpretado com o objetivo de negar igualdade às mulheres e se é possível realizar outra leitura que contradiga essa perspectiva.
A proposta é evidenciar as raízes patriarcais do texto e da sua tradição interpretativa identificando as camadas interpretativas patriarcais sobrepostas ao texto. Parte-se, então, para uma avaliação da relação entre o texto bíblico e a realidade na qual o texto é lido e interpretado na atualidade, observando se o texto está querendo manter ou modificar a situação vigente. Por isso os estudos bíblicos feministas analisam criticamente as interpretações bíblicas que estiveram e estão a serviço da preservação da doutrina e das estruturas patriarcais e oferece novos modelos e paradigmas de interpretação.
Com os dados e as informações apresentadas neste breve panorama é possível perceber que: 1. As mulheres como intérpretes têm disputado o campo da interpretação bíblica no enfrentamento do patriarcado; 2. A Bíblia carrega marcas predominantemente patriarcais em seus múltiplos processos de constituição; 3. A interpretação bíblica dos primeiros séculos cumpriu uma função patriarcal que deu suporte à própria patriarcalização da Igreja e foi um reflexo dela; 4. Pode-se, ainda, afirmar que as leituras patriarcais desenvolvidas pelos pais patrístico-medievais lançaram as bases da teologia bíblica da igreja cristã e que estas continuam tendo efeitos nos sistemas sociais e eclesiais; 5. E, finalmente, as raízes patriarcais da interpretação bíblica produziram efeitos históricos nefastos na vida das mulheres.
A crítica feminista, visando a superação da exclusão da experiência das mulheres e a desigualdade de gênero, abrangerá amplamente toda a teologia bíblica, sua tradição e instituições cristãs. Porém, o campo da teologia e hermenêutica bíblicas destaca-se no sentido da reformulação do discurso bíblico-teológico protagonizado pelas mulheres, reivindicando a sua humanidade plena como critério interpretativo crítico das Escrituras Sagradas, como escreve Reuther: “O princípio crítico da teologia feminista é a promoção da humanidade plena das Mulheres. Tudo que nega, diminui ou distorce a humanidade plena das mulheres é, por conseguinte, avaliado como não-redentor” (RUETHER, 1993, p. 23). O uso constante da Bíblia para marginalizar, excluir e silenciar as mulheres, a partir de uma interpretação bíblica patriarcal e androcêntrica, distorce e contradiz o paradigma teológico da igualdade entre mulheres e homens e não pode ser admitido como palavra autêntica de Deus. Trata-se, pelo contrário, de reflexo do pecado sexista que atingiu tanto a matriz formadora da Bíblia quanto suas traduções, usos e interpretações na história da tradição cristã. A força crítica das mulheres tem provocado uma desconstrução dos modelos teóricos da hermenêutica bíblica ao propor novos princípios e critérios hermenêuticos que afirmem a humanidade plena das mulheres.